5 de janeiro de 2021

Não há opções seguras: Uma Conversa com Andreas Malm

O ativismo climático deve adotar a violência estratégica, como a destruição de propriedade corporativa?

Por Andreas Malm



Tradução / No verão de 2013, enquanto em missão para a revista The Nation, encontrei-me no profundo leste do Texas sentado face a face com um dos jovens organizadores do Tar Sands Blockade, o grupo de justiça climática radical que se tinha empenhado durante mais de um ano numa campanha de ação direta de base não violenta contra a famosa etapa sul do oleoduto Keystone XL desde Oklahoma até à costa do Golfo do Texas. Operando a partir de um campo clandestino nos arredores de Nacogdoches - e, como foi mais tarde revelado, sob vigilância do FBI - a campanha demonstrou uma vontade de assumir sérios riscos, tanto legais como físicos, e ajudou a galvanizar o crescente movimento climático na América do Norte e na Europa. A questão que se punha então era como poderia a campanha escalar as suas táticas para além dos espetaculares piquetes e bloqueios aéreos de árvores que tinham feito manchetes nacionais. "A indústria mostrou todas as intenções de escalar a crise climática para além de certos pontos de viragem", disse-me o organizador. "Temos de nos perguntar a nós próprios, como é que faremos a escalada? O que é que poderá ser uma escalada excessiva?"

Agora, mais de sete anos depois, com a crise climática em curso, essa questão continua a assombrar. Com milhares de milhões de vidas - na verdade, a própria humanidade - em jogo, até onde deve ir o "movimento dos movimentos" pela justiça climática? O que devem os ativistas - não todos nós, claro, mas os suficientes para fazer a diferença - estar dispostos a arriscar?

Andreas Malm, historiador económico da Universidade de Lund, na Suécia, escreveu um novo livro compacto, uma espécie de manifesto, que aborda precisamente esta questão do ponto de vista do movimento climático europeu, no qual ele tem estado profundamente envolvido. O título, How to Blow Up a Pipeline: Learning how to Fight in a World in Flames (“Como Rebentar com um Oleoduto: Aprender a Lutar num Mundo em Chamas), é calculado para provocar - mas o livro não é uma mera bravata. Malm é autor de volumes tão densos como Fossil Capital: The Rise of Steam Power and the Roots of Global Warming (Capital Fóssil: A Ascenção da Energia a Vapor e as Raízes do Aquecimento Global) (2016) e The Progress of This Storm: Nature and Society in a Warming World (A Progressão desta Tempestade: Natureza e Sociedade num Mundo em Aquecimento) (2018). Embora ele queira certamente agitar as coisas, a sua abordagem é sempre erudita e, acima de tudo, moralmente séria. Argumentando que a santificação da propriedade privada pelo capitalismo "vai custar-nos a Terra", How to Blow Up a Pipeline desmantela metodicamente a doutrina do movimento social da "não-violência estratégica" - que há muito tempo proíbe o vandalismo ou a sabotagem da propriedade - enquanto que Malm permanece resolutamente contra qualquer tipo de violência dirigida contra as pessoas.

Malm é a coisa mais distante que pode haver de um terrorista. Mas a sua frustração com a ortodoxia do movimento é palpável, uma vez que ele se insurge contra o que ele chama "o desaparecimento da política revolucionária":

"Já quase não existe como uma praxis viva. [...] Desde os anos 1789 até cerca de 1989, a política revolucionária manteve a atualidade e o potencial dinâmico, mas desde os anos 1980 tem sido difamada, antiquada, desaprendida e tornou-se irreal. [...] Este é o impasse em que o movimento climático se encontra: a vitória histórica do capital e a ruína do planeta são uma e a mesma coisa. Para sairmos disto, temos de aprender de novo a lutar."

Este novo livro de Malm será, sem dúvida, descartado por bastantes pessoas muito sérias - incluindo ativistas do clima e defensores de políticas reformistas - como marginal e mesmo perigoso. Isso seria um erro muito grave. Nada poderia ser mais perigoso, neste momento da história humana, do que uma fé cega na política ou ativismo costumeiros.

Falei com Malm via Zoom no dia 10 de Dezembro a partir da sua casa em Malmö, onde ele está em licença parental.

Wen Stephenson

Devo dizer que inicialmente estava cético, mas agora, depois de ter lido o seu livro, penso que é uma das coisas mais importantes escritas sobre a crise climática. Tenho algumas reservas, no entanto, ou receios.

Andreas Malm

Obrigado. E quero dizer-te também que tive apreensões sobre este livro, porque não quero escrever nada que prejudique o movimento. E tive as minhas dúvidas sobre a sabedoria de lançar um livro como este, porque, obviamente, particularmente por causa do título, dará uma oportunidade aos nossos inimigos para nos marcar, ou a alguns de nós, como terroristas. Portanto, há um risco e um perigo em escrever um livro como este, e eu estou ciente disso.

Wen Stephenson

Pois bem, deixa-me então ir direito ao assunto: Estás pessoalmente disposto a fazer explodir um oleoduto?

Andreas Malm

Sim, em princípio, estaria disposto a fazer mais ou menos qualquer coisa que eu defenda no livro.

Wen Stephenson 

Portanto, por outras palavras, chegamos a este ponto. Talvez pudesses explicar a premissa do livro e o que é que te levou a escrevê-lo.

Andreas Malm

Na Primavera de 2018, eu estava a mergulhar num grande projeto de investigação histórica - coisas mesmo muito eruditas, a ler sobre o Antigo Egipto, coisas desse género. Aconteceu então o nosso Verão extremo. Não sei se te lembras, a partir do teu horizonte, do Verão de 2018 na Europa, onde tivemos secas, incêndios e ondas de calor sem precedentes, sobretudo na Suécia. Disse à minha editora que já não podia realmente fazer essas coisas históricas, porque senti que tinha mesmo de fazer algo mais relevante para este momento de extrema emergência. E, nessa altura, senti que queria realmente escrever um livro sobre a ausência total de algo como um movimento climático proporcional à magnitude do perigo. Então o que aconteceu foi que, no final desse mesmo Verão, Greta Thunberg sentou-se à porta do Parlamento, em Estocolmo, e todo o seu movimento começou - não na Suécia, de forma alguma, a Suécia é um país muito tardio e muito insignificante no movimento das Sextas-Feiras pelo Futuro e greves climáticas.

Wen Stephenson

Uma profetisa nunca é bem-vinda no seu próprio país?

Andreas Malm

Exatamente. Quer dizer, ela tornou-se possivelmente a pessoa sueca mais famosa de sempre, mas o seu movimento foi infinitamente maior na Alemanha e na Dinamarca, e assim por diante, do que aqui. Mas para pessoas como tu e eu, que estamos no movimento há muito tempo, a força da mobilização popular que vimos em 2018-19 - não sei se tiveste a mesma sensação nos E.U.A. com as Sextas-Feiras pelo Futuro, mas aqui na Europa foi realmente um salto qualitativo para uma escala de massas que nunca vimos antes no movimento climático, e isso foi incrivelmente inspirador. E, claro, também tivemos o movimento Extinction Rebellion (XR) (Rebelião contra a Extinção) no Reino Unido e os campos de ação direta climática a proliferarem na Europa. Este ano foi realmente completamente diferente devido à pandemia, e o movimento essencialmente suspendeu as atividades, aboliu-se a si próprio, perdeu todo o ímpeto que tinha acumulado em 2019. Mas isso talvez seja outra história.

Este livro é o resultado de dois sentimentos contraditórios: um imenso sentimento de empoderamento e de esperança que resulta das mobilizações de 2019 e, ao mesmo tempo, um certo grau de frustração, porque já deveríamos ter alcançado esta força há muito tempo atrás. Agora estamos finalmente a começar a tornar-nos um movimento social importante, mas continuamos a utilizar as mesmas táticas que temos vindo a tentar há muito tempo. E quanto ao XR, em particular, o seu compromisso com uma versão muito rigorosa de desobediência civil absolutamente pacífica endureceu mesmo. A filosofia XR sobre como realizar a mudança social é uma forma muito severa, diria eu, de pacifismo estratégico. E considero isso paradoxal, porque a urgência da situação deveria antes levar-nos a experimentar diferentes tipos de táticas.

Wen Stephenson

É possível traçar uma linha desde Fossil Capital até How to Blow Up a Pipeline? Uma coisa que retirei da leitura de Fossil Capital é que a catástrofe climática está literalmente incorporada em toda a estrutura económica da civilização capitalista moderna. E isso faz dela um desafio político de uma ordem completamente diferente das lutas do passado.

Andreas Malm

Penso que há algo como um desencontro entre a minha análise em Fossil Capital e a orientação estratégica do movimento climático de hoje. Em termos simples, Fossil Capital está muito concentrado no lado da procura, ao ponto de explicar a transição dos moinhos de água para os motores a vapor como o que os fabricantes de algodão exigiam. E isso porque o lado da oferta, os produtores de carvão, não tiveram grande papel nessa transição, tanto quanto me pude aperceber quando fiz a minha pesquisa empírica. Mas o movimento climático, na última década, mais ou menos, passou a concentrar-se principalmente no lado da oferta - nomeadamente, nas empresas que produzem combustíveis fósseis. E penso que essa tem sido uma escolha estratégica completamente correta, que tem dado vida ao movimento climático, após o fracasso da estratégia de demonstrações em cada cimeira mundial da COP, ano após ano. O que deu ao nosso movimento uma verdadeira substância e vitalidade foi uma mudança para os oleodutos, os investimentos, todo o circuito de obtenção de lucros a partir dos combustíveis fósseis. Penso que é aí que o movimento climático precisa de se intensificar mais radicalmente. É aí, claramente, se falarmos em termos de antagonismo, onde o nosso inimigo está localizado, em toda a sua enorme força. Os promotores mais agressivos da combustão contínua de combustíveis fósseis são, naturalmente, aqueles que produzem os combustíveis fósseis.

E essa viragem do movimento climático dos E.U.A. foi absolutamente fundamental para inspirar os anos mais recentes de ativismo climático também na Europa. As lutas em torno de Keystone XL e do Dakota Access Pipeline, e naturalmente o movimento de desinvestimento nos combustíveis fósseis, todas estas coisas foram absolutamente essenciais. Não creio que possa haver qualquer disputa sobre a sabedoria desse movimento.

Wen Stephenson

Quero certificar-me de que os leitores compreendem que tu não és um teórico de poltrona, de torre de marfim, mas que és um grande participante nestes movimentos. Na verdade, é refrescante falar com um "intelectual do clima" que fala a linguagem da ação direta, e que conhece realmente a história do movimento climático, e da ala mais radical do movimento em particular, tanto aqui como na Europa. Isso é uma coisa rara nos E.U.A. nos dias de hoje, onde a comunidade climática está quase inteiramente concentrada em argumentos políticos e campanhas eleitorais. Mas uma das coisas que aprecio neste novo livro é que, apesar da tua experiência, tens muito cuidado em não apresentar a tua proposta como a "Única Verdadeira Via em Frente". Não estás a oferecer um novo dogma.

Andreas Malm

Fico aliviado por o teres lido dessa forma.

Wen Stephenson

Totalmente. Citas contra-argumentos razoáveis e reconheces os potenciais perigos e armadilhas da tua abordagem. Por exemplo, não estás a sugerir que abandonemos as mobilizações em massa não violentas, mas sim que táticas mais radicais deveriam também fazer parte da mistura estratégica. Mas a questão é a seguinte: o movimento climático norte-americano parece estar a afastar-se mesmo das formas mais suaves de ação direta não violenta e de desobediência civil.

Andreas Malm

Isto é devido ao Novo Pacto Verde (Green New Deal)?

Wen Stephenson

Bem, sim e não. Penso que tem muito a ver com a raça e as dinâmicas raciais da esquerda americana. Porque, nos últimos cinco a dez anos, o movimento começou finalmente a abordar a identidade branca e o privilégio branco, e não há como negar o facto de que arriscar a prisão e ir para a prisão é visto como privilegiado e excludente - precisamente no momento em que o movimento está a tentar tornar-se mais inclusivo e alargar a sua base. Vês uma dinâmica semelhante na Europa? E o que pensas desta situação nos E.U.A., onde já é difícil convencer os organizadores a abraçar a desobediência civil, quanto mais a sabotagem?

Andreas Malm

Essa é uma dinâmica muito carregada e complicada. É bastante interessante ouvir isso, e consigo compreender totalmente a lógica subjacente, de que a importância da raça na política dos E.U.A. dissuade a desobediência civil não violenta. Faz sentido, completamente.

Na Europa, há certamente pessoas à esquerda que aproveitam qualquer oportunidade para falar mal do XR. E o argumento mais poderoso que tem sido apresentado contra o XR é a sua cegueira total aos fatores de raça quando se trata das relações com a polícia. E estou convencido de que os acontecimentos deste ano, após o assassinato de George Floyd, tornaram as atitudes do XR em relação à polícia impossíveis de justificar. Nunca mais serão capazes de amar a polícia tão apaixonadamente como o fizeram em 2019. Quer dizer, os críticos dessa atitude estavam inteiramente corretos ao salientar que ela decorre de um certo tipo de posição rica e privilegiada da gente branca no Reino Unido. Mas em defesa do XR, é preciso dizer, infelizmente, que esse é o caso também de outros ramos do movimento climático, que é um movimento esmagadoramente, desproporcionadamente branco na Europa. O movimento falhou redondamente na tarefa de envolver jovens imigrantes e não brancos nas nossas cidades. Isso é um grande inconveniente.

Tenho um livro a sair em Maio, juntamente com o Coletivo Zetkin, intitulado White Skin, Black Fuel: On the Danger of Fossil Fascism (Pele Branca, Petróleo Negro: Sobre o Perigo do Fascismo Fóssil), baseado em muita investigação coletiva sobre as relações entre a extrema-direita e as políticas energéticas e climáticas na Europa e também nos E.U.A. e no Brasil. No final, argumentamos que o fracasso do movimento climático em articular uma posição consistentemente antirracista e antifascista, bem como a brancura do movimento, precisam de ser tratados urgentemente. Porque cada vez mais na Europa, e talvez mais obviamente na Alemanha - e acho que esta é mais ou menos a mesma situação com Trump, embora ele esteja fora, mas a extrema-direita republicana obviamente não desapareceu da noite para o dia - é muito claro que o movimento climático está cada vez mais a defrontar-se com uma extrema-direita que defende agressivamente os combustíveis fósseis e o que ela concebe como a nação branca. Portanto, não faremos qualquer progresso sério a menos que aprendamos a fundir as lutas antirracista e pelo clima.

Quer dizer, eu nunca tentaria convencer pessoas de origem imigrante, ou negros, em França, no Reino Unido ou na Suécia, a fazer esse tipo de ação de desobediência civil, entregando-se à prisão. Seria o cúmulo da insensibilidade. E compreendo a lógica de dizer que esse tipo de ação, em si mesma, é um exercício de privilégio. Mas não temos de pensar em ação direta como tendo necessariamente de nos expor à polícia. É possível escapar à prisão.

Wen Stephenson

Devo dizer que não discordo do teu argumento moral em favor da sabotagem da infraestrutura de combustíveis fósseis - embora, pessoalmente, eu seja não-violento. Não sou um pacifista moral absoluto, mas sou estrategicamente não-violento. Como discutes no livro, há uma distinção categórica entre destruir propriedade e cometer violência contra pessoas. Portanto, a questão realmente se resume, para além do argumento moral, no problema da eficácia: Será que uma determinada estratégia ou tática funciona? E tu dedicas bastante tempo a desmantelar o argumento de que a "não-violência estratégica" é a única abordagem eficaz para os movimentos sociais. É claro que se poderia argumentar que a mudança política dramática a que assistimos nos E.U.A. em matéria de alterações climáticas, com o Green New Deal (Novo Pacto Verde), o Sunrise Movement (Movimento Nascer do Sol), e todo o resto, é o resultado da resistência não-violenta sustentada durante a última década: Keystone XL e todas as outras lutas de oleodutos, Standing Rock, todas as ações anti-fracking, outras ações contra infraestruturas, tudo isso foi fundamental para a construção e galvanização do movimento.

Andreas Malm

Tudo o que conseguimos até agora, cada vitória regional, cada derrota temporária que infligimos aos nossos inimigos, tudo até agora se deveu à não-violência estratégica, à desobediência civil não-violenta, porque não utilizámos nenhum outro método. Não estou certamente a dizer que isso é, por definição, uma estratégia ineficaz, que devemos abandoná-la. O meu argumento é em torno da necessidade de suplementar, de complementar a estratégia com outros tipos de estratégia que sejam mais militantes.

O caso que construo no livro é em resposta à visão apresentada pelo XR, que é muito histórica. Afirmam ter aprendido com todos os episódios históricos relevantes de movimentos sociais e de mudança social, que a única coisa que funciona é absolutamente a não-violência exclusiva. Eles apoiam-se fortemente no livro publicado em 2011 de Erica Chenoweth e Maria J. Stephan Why Civil Resistance Works (Porque Resulta a Resistência Civil). Isto provoca-me bastante como historiador que sou também. Posso colocar e tirar, à vez, os meus chapéus de historiador e de ativista, mas, francamente, os exemplos chave que são avançados nesse livro, os paralelos chave - a luta contra a escravatura, as sufragistas inglesas, o movimento anti-apartheid na África do Sul, as recentes mobilizações e vitórias contra ditaduras na Primavera Árabe, e também a Revolução Iraniana (à qual tenho uma ligação pessoal, porque a minha parceira é iraniana), e, é claro, o movimento dos Direitos Civis nos E.U.A. - a ideia de que estes episódios nos ensinam que a única coisa que funciona é a não-violência parece-me muito profundamente desonesta e imprecisa. Porque todas essas lutas incluíram componentes muito significativas de confrontação física com a ordem vigente - e a destruição de propriedade tem sido parte integrante de todos estes movimentos, de uma forma ou de outra. E, é claro, alguns desses movimentos foram extremamente sangrentos, sobretudo a luta contra a escravatura.

O meu ponto de vista, obviamente, não é que, pronto, houve uma guerra civil nos E.U.A. e por isso precisamos de ter uma guerra civil sobre o clima, ou que temos de matar dezenas de milhares de pessoas privilegiadas como os escravos no Haiti fizeram quando se revoltaram. Não é essa a conclusão que tiro desses episódios. E qualquer tipo de analogia é aqui extremamente ténue, porque a crise climática é constituída de forma tão diferente de qualquer um desses outros exemplos. Mas o meu ponto, na minha crítica ao pacifismo estratégico, é que se todas as analogias significativas, desde a escravatura à queda do Muro de Berlim, até à revolta contra Hosni Mubarak em 2011, se todas as analogias significativas até agora aduzidas pelo movimento climático têm historicamente incluído uma componente de violência, e uma não menor de destruição de propriedade, então que razão há para dizermos, no movimento climático, que somos o primeiro movimento da história moderna que atingirá os nossos objetivos sem nunca nos desviarmos da não-violência absoluta? Será porque o nosso inimigo é mais fraco? Qual é a razão convincente? E o ponto crucial aqui é que esta não-violência estratégica exclui a destruição de propriedade.

WS: 

Escrevi sobre os Valve Turners, os ativistas climáticos não violentos que fecharam manualmente os quatro oleodutos que transportavam petróleo de areias asfálticas do Canadá para os E.U.A., em Outubro de 2016, sem danificar nada para além das fechaduras que partiram com cortadores de parafusos. E tu escreves sobre os ativistas operários católicos que sabotaram o oleoduto de acesso ao Dakota, em 2017, evitando ao mesmo tempo conscienciosamente qualquer dano físico às pessoas. Estes são exemplos isolados, talvez porque danificar a propriedade, de qualquer forma, viola um tabu. A nossa sociedade fetichiza a propriedade privada. E no entanto, como escreves tu, "a propriedade vai custar-nos a Terra".

Andreas Malm

Devo dizer aqui que essa frase, na verdade, foi formulada pelo meu editor, que viu corretamente isso como sendo a essência do meu argumento. O âmago dessa afirmação, "a propriedade vai custar-nos a Terra", é que se pensarmos que a santidade da propriedade privada está acima de tudo, então precisamos de proteger a santidade da propriedade privada em combustíveis fósseis, o que significa estarmos todos de bem com a ExxonMobil e todos os outros que continuam a explorar, produzir e vender combustíveis fósseis - e depois disso estamos acabados! Por isso, é realmente uma escolha muito difícil, da qual não vejo como se pode fugir. Dar fim aos combustíveis fósseis, por definição, significa dar fim à propriedade privada em combustíveis fósseis.

Mas o argumento também se sustém do ponto de vista de um ativista. Porque quase nenhum governo no mundo se mostrou disposto a colocar qualquer limite a este tipo de propriedade privada, então é tarefa das pessoas que não fazem parte do aparelho de Estado, dos cidadãos comuns, se quiserem, demonstrar que a propriedade privada não é sagrada. Não está acima de tudo, porque uma biosfera habitável é a condição prévia essencial para todos os valores morais, e é isso aquilo entre que temos de escolher - uma biosfera que possamos habitar ou a continuação da propriedade privada livre em combustíveis fósseis. Não é muito difícil expor o argumento moral neste caso.

Mas atacar a propriedade física, as máquinas, as infraestruturas, as instalações, que destroem o nosso planeta, é algo muito diferente, qualitativamente diferente, de atacar o corpo de um ser humano. Por isso, espero que não haja dúvidas quanto à minha total rejeição de métodos de assassinato e morticínio.

Wen Stephenson

Certo, e também distingues moralmente entre a destruição de bens necessários à subsistência e a propriedade de luxo ou empresarial. Portanto, quero voltar à questão da eficácia no contexto dos movimentos políticos e sociais. Nos vários exemplos históricos que citaste, discutes a ideia de um "efeito de flanco" que uma ala radical ou militante de um movimento social pode ter, ao criar espaço para uma mudança política que de outra forma seria impossível. Mas também reconheces que pode haver um "efeito de flanco negativo", que a coisa pode resultar em ambos os sentidos. Se a destruição de propriedade se tornasse uma tática generalizada, por exemplo, poderia provocar uma repressão estatal a um nível que ainda não vimos até agora. Também poderia haver uma perda de apoio popular, o que seria especialmente inoportuno neste momento, no contexto dos E.U.A., onde temos um certo agrupamento de vontades em torno do Novo Pacto Verde (Green New Deal), poderíamos perder esse impulso se houvesse um movimento de resistência popular. E poderia haver uma reação adversa violenta, vigilantismo, grupos armados de direita a tomar as coisas nas suas próprias mãos.

Andreas Malm

Já temos isso.

Wen Stephenson

Certo. Portanto, o que estou a levantar aqui é a questão do risco. Dados estes riscos, esta não parece ser a melhor altura para lançar uma campanha de sabotagem dos combustíveis fósseis. Por outro lado, quando é que haverá melhor altura, tendo em conta a janela temporal que temos, que se desvanece?

Andreas Malm

Exatamente.

Wen Stephenson

E levantas no livro esta questão de timing, que talvez precisemos de dar uma oportunidade ao Novo Pacto Verde antes de promovermos uma escalada deste tipo. Mas se daqui a alguns anos virmos que nada mudou, então o quê? Há aqui riscos imensos envolvidos, políticos, sociais. Como é que se navega nisto?

Andreas Malm

Estás a fazer exatamente as perguntas mais pertinentes e difíceis. E há tantos componentes diferentes para uma resposta. Deixe-me tentar.

Em primeiro lugar, tens toda a razão em dizer que qualquer tipo de escalada de táticas envolve riscos. Mesmo algo como a desobediência civil de massas do XR implicou riscos. Agora mesmo, o governo está a tentar criminalizar o XR no Reino Unido. Sou o primeiro a admitir que há muitas maneiras de as coisas poderem correr mal. Mas uma das convicções fundamentais que tenho sobre o nosso momento atual é que não há nenhuma maneira de avançar que não envolva riscos. Porque a emergência se prolongou já por tanto tempo, estamos em tão grandes dificuldades, que cada caminho em frente vem com enormes riscos. Não estamos naquela situação de luxo em que podemos dizer que só vamos experimentar as opções seguras. Porque não creio que haja opções seguras. Quer dizer, o tipo de cortes radicais nas emissões que precisamos que sejam dirigidos pelo Estado, algo como cinco ou dez por cento ao ano, teria claramente o risco de que a partir daí evoluamos para o autoritarismo estatal. Qualquer tipo de medidas de geoengenharia - e essa é uma história completamente diferente, eu editei um livro sobre essa questão, e penso que o movimento climático precisa de a levar muito mais a sério – exceto a geoengenharia solar, como todos sabem, envolve riscos tremendos, astronómicos. O mesmo acontece com outras coisas, como as tecnologias de emissões negativas.

Para o movimento social, do mesmo modo, o tempo é tão curto, e precisamos de realizar tanto, que qualquer falha, qualquer passo dado na direção errada, pode ser desastroso. O cenário em que toda a energia do movimento climático seja sugada para um projeto parlamentar - quer dizer, não sabemos sequer se é provável que seja bem sucedido ou se não vai ser outra desilusão tipo Obama. Quem sabe se daqui a cinco ou dez anos as pessoas não olharão para trás para o Novo Pacto Verde como um desperdício de energia ativista, porque não foi suficientemente radical? Só estou a dizer que também aí há um risco.

Portanto, sim, tens toda a razão, é claro, há muitos riscos. E se for hoje o caso, nos E.U.A., que o Novo Pacto Verde tem uma hipótese real de sucesso e está a tornar-se uma espécie de paradigma dominante para a esquerda, uma espécie de conceito abrangente e mobilizador para o movimento social e para a política democrática radical nos E.U.A., então eu seria o primeiro a advertir os ativistas climáticos mais impacientes e militantes para não fazerem nada que possa prejudicar esta campanha e o ímpeto por detrás dela. Mas em outros contextos, poderia funcionar de uma forma diferente. É difícil dizer quando será o melhor momento para nos envolvermos numa escalada militante do tipo que eu defendo no livro. Será apenas quando não há qualquer outra ação em curso? Quando há uma completa paralisia e ausência de movimento? Ou será quando estivermos na crista de uma onda, do alto de uma grande vaga de mobilização como a que tivemos em 2019? Consigo ver ambos os casos. Mas também depende do contexto nacional e da recetividade à militância em diferentes países.

Deixa-me dar apenas um exemplo contrafactual. Se, durante o inferno dos fogos selvagens australianos, um grupo de ativistas tivesse entrado numa mina de carvão e de alguma forma desmantelado parte da infraestrutura mineira, algum equipamento, rebentando-o ou desmontando-o, seja lá como for, e tivesse depois enviado um comunicado inteligente dizendo: "Olha lá, Austrália, tu és o maior exportador de carvão do mundo. Se continuas assim, estás a condenar-te a ti própria a este tipo de inferno insuportável" - isso seria um momento para o movimento dizer: "Sim, uma ação como esta tem riscos. Mas será que estamos a levar a crise climática suficientemente a sério?"

Será que nos damos conta de que não ocorreram nunca grandes mudanças sociais, a esta escala, sem que os movimentos pagassem um preço, incluindo o preço da sua saúde física e segurança? Todos os movimentos que mencionámos até agora, e todos os movimentos em que vemos paralelos com a situação atual, incluíram uma componente de sacrifício. Agora, não estou a dizer às pessoas para saírem à rua, sacrificarem os seus corpos e morrerem pela causa. Isso não é algo que eu deva dizer a mais ninguém para fazer. Devo fazê-lo eu próprio, se acredito que é a coisa certa a fazer. Mas a ideia de que podemos conseguir os nossos objetivos sem enfrentar reações negativas, sem enfrentar a repressão do Estado, sem enfrentar a polarização na sociedade, e sem enfrentar a defesa agressiva de interesses e privilégios adquiridos - para mim, isso é uma ideia asseptizada, ou muito superficial, de como as mudanças sociais fundamentais acontecem.

Wen Stephenson

Deixas bem claro que pensas que seria um erro catastrófico para o movimento climático envolver-se, ou mesmo estar associado, de qualquer forma, ao terrorismo de qualquer tipo. E começaste esta entrevista dizendo que não queres prejudicar o movimento. Porque, a dada altura, o risco é que façamos mais mal do que bem, nas táticas que escolhemos. E o perigo que não consigo ultrapassar é que pode muito bem haver uma reação securitária que pode esmagar totalmente o nosso movimento, especialmente sob governos da direita. As forças dos combustíveis fósseis que enfrentamos não são apenas fascistas, mas de certa forma totalitárias e genocidas, dispostas e capazes de erradicar populações inteiras. Porque é que não iriam decidir-se a erradicar impiedosamente um movimento como este? Mas então, digo a mim mesmo, talvez tenhamos chegado a um ponto em que não temos outra escolha senão ir ao confronto.

Andreas Malm

Pois é.

Wen Stephenson

E no entanto, como sabemos quando é que chegamos a esse ponto, em que é tudo ou nada? Porque, por outro lado, tu e eu também concordamos, e tu escreves isso neste livro, nunca será tarde demais para resistir, nunca será tarde demais para lutar contra as forças do capital fóssil, seja qual for a temperatura atingida. Então, não há também o dever de viver para lutar num outro dia?

Andreas Malm

Quero dizer, se algum dia este tipo de tática escalada atingir um nível que induza uma mudança política, claramente isso só acontecerá depois de enfrentar aquele tipo de repressão massiva que sugeres, em que o Estado irá reprimir tudo o que cheire a movimento climático envolvido neste tipo de sabotagem. Há na história uma abundância de exemplos dos movimentos que são esmagados dessa forma, portanto claramente isso pode acontecer.

Mas penso que, tudo pesado - e eu posso estar a ser completamente ingénuo aqui, mas essa é uma das lições esperançosas que tirei de 2019 – aquilo com que temos de contar, se acreditarmos em algum tipo de razão e instinto de sobrevivência na humanidade, é que o influxo de pessoas para o movimento climático não irá parar, mas sim aumentar, com a evidência da crescente gravidade da crise. E assim, imagino que mais pessoas estariam prontas a entrar no movimento climático e a assumir o lugar daquelas que fossem presas ou levadas pela polícia. Posso estar a ser incrivelmente ingénuo, mas acho difícil ser de outro modo - quer dizer, qualquer outro tipo de previsão equivaleria quase à desistência. Mas estás, é claro, completamente correto ao afirmar que é muito difícil dizer quando é que temos demasiado a perder para que o movimento se aventure nestes terrenos perigosos, e quando é que já não temos mesmo mais nada a perder.

Wen Stephenson é um jornalista independente, ensaísta e ativista norte-americano. Colaborador frequente d arevista The Nation, escreveu para muitas publicações, incluindo Slate, The New York Times Book Review, The Boston Globe, The Boston Phoenix, Grist e The Baffler. É o autor do livro What We're Fighting For Now Is Each Other: Dispatches from the Front Lines of Climate Justice, Beacon Press, 2015.

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