Belén Fernández
Profissionais da saúde vacinam membros da área médica contra COVID-19 no Centro Médico Sourasky de Tel Aviv em 20 de dezembro de 2020 em Tel Aviv, Israel. (Amir Levy / Getty Images) |
Tradução / No primeiro dia do ano novo, a Bloomberg publicou um artigo opinativo de Daniel Gordis – vice-presidente sênior do Shalem College de Jerusalém – intitulado “O milagre da vacinação traz Israel de volta às suas raízes”.
O “milagre” em questão se refere à campanha agressiva de vacinação contra o coronavírus em Israel, graças à qual lidera, atualmente, o mundo em vacinações per capita. E enquanto as “raízes” literais de Israel residem no desenraizamento e massacre de palestinos, Gordis prefere uma versão mais mitológica do passado israelense: “raízes socialistas primitivas” que cultivaram um “senso de coesão social e destino compartilhado”, uma nação que se via “como uma família” e que sabia “como se unir ao enfrentar um inimigo mortal”.
Gordis viu seu próprio “Israel do passado” na arena esportiva em Jerusalém, onde foi administrada a vacina: “Olhei nos olhos de outras pessoas que esperavam, seus rostos escondidos atrás de suas máscaras, poderia dizer que não fui o único dominado por um profundo sentimento de gratidão por fazer parte deste país.” O antigo Israel também foi incorporado pelo “pequeno exército de enfermeiras e técnicos médicos injetando uma pessoa após a outra com total eficiência”.
Eficiente ou não, a campanha de vacinação apenas ressaltou como as raízes de Israel estão amarradas a opressão palestina: os quase 5 milhões de palestinos que vivem na Cisjordânia ocupada por Israel e na Faixa de Gaza estão sendo criminalmente excluídos do programa. Conforme observa a Amnistia Internacional, o artigo 56 da Quarta Convenção de Genebra exige que os poderes de ocupação garantam e mantenham “os estabelecimentos e serviços médicos e hospitalares, a saúde pública e a higiene no território ocupado, com particular referência à adoção e aplicação de medidas profiláticas e medidas preventivas necessárias para combater a propagação de doenças contagiosas e epidemias”.
Não que Israel já tenha feito muito pelos serviços e postos médicos palestinos. Junto com bombardeios de hospitais, ambulâncias e equipes médicas, Israel impôs um bloqueio paralisante em Gaza nos últimos 13 anos que impede a importação de equipamentos e suprimentos médicos necessários. Mesmo antes da pandemia, o sistema de saúde do enclave já estava à beira do colapso. Os israelenses invocam os Acordos de Oslo ao afirmar que os palestinos são responsáveis por escolher suas próprias vacinas, mas isso é como cortar as pernas de uma pessoa e depois mandá-la pular corda.
De acordo com o jornal britânico The Independent, Israel rejeitou um “apelo informal” da Organização Mundial da Saúde (OMS) para ajudar a vacinar os trabalhadores de saúde palestinos, quase 8 mil dos quais foram infectados com COVID-19. O Wall Street Journal, por sua vez, relata que Israel comprou 8 milhões de doses da vacina Pfizer, 6 milhões da variante Moderna e 10 milhões de doses da Oxford-AstraZeneca. (A necessidade do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu de reabilitar sua imagem manchada antes das próximas eleições provavelmente tem algo a ver com a essa postura irresponsável.)
Não é nada chocante, neste mundo encantadoramente capitalista, que os países ricos estejam recebendo vacinas enquanto os países pobres estão se ferrando. No entanto, dá ânsia de vômito ler que Israel está vacinando colonos judeus ilegais “dentro da Cisjordânia“, enquanto 2,7 milhões de palestinos na Cisjordânia estão condenados a total insegurança (ou, pior, um estado de insegurança ainda mais letal do que quando Israel estava simplesmente matando palestinos e destruindo suas casas).
A OMS estima o número total de casos de coronavírus nos territórios palestinos ocupados em mais de 160.000, com mais de 1.700 mortes. De acordo com o Ministério da Saúde Palestino em Gaza, o diminuto território responde por quase 47.000 dos casos e mais de 460 das fatalidades.
Muitas vezes descrita como a “maior prisão a céu aberto do mundo”, Gaza é um dos lugares mais densamente povoados da Terra, e as condições abarrotadas e pouco higiênicas nas quais Israel forçou a população a viver em um local ideal para a propagação do vírus. No início de dezembro, quando o vírus saiu de controle e Gaza ficou sem oxigênio, leitos de UTI e testes de coronavírus – além de todas as faltas habituais relacionadas ao bloqueio e frequente falta de eletricidade – o Ministro da Saúde declarou ser a “pior crise de saúde que já enfrentamos”.
O programa COVAX liderado pela OMS se comprometeu a ajudar os palestinos na vacinação de uma parte de sua população; no entanto, não está claro em que ponto no futuro distante isso pode acontecer de forma realista. Parece que seria do interesse de Israel fornecer vacinas aos palestinos, visto que dezenas de milhares deles, como sabemos, trabalham em Israel.
Mas, é claro, as autoridades israelenses descobriram que é politicamente conveniente retratar os palestinos como uma doentes e a era do coronavírus já proporcionou a Israel muitas oportunidades empolgantes para aperfeiçoar sua capacidade de vigilância estatal para atropelar as liberdades civis. Por exemplo, o Shin Bet, a agência de segurança interna de Israel, foi encarregada de “caçar” pessoas suspeitas de exposição ao COVID-19 usando medidas e tecnologia de contraterrorismo.
Perto do fim deste artigo repleto de baboseiras publicado na Bloomberg, Gordis conta uma história comovente sobre um médico árabe da Galiléia que disse ao amigo de Gordis o seguinte: “Normalmente, quando Israel vai para a guerra, não estamos no Exército e não podemos ajudar. Mas desta vez, Israel foi para a guerra novamente e nós árabes temos que ser soldados também!” O leitor da Bloomberg pode concluir que os árabes israelenses estão inteiramente satisfeitos em serem cidadãos de Israel de segunda classe, exceto quando isso significa que eles não podem ajudar Israel a matar seus companheiros árabes.
Não há como negar: a guerra de Israel contra o coronavírus é também uma guerra contra os palestinos. E não há nada de milagroso no coronapartheid.
Sobre a autora
Belén Fernández é a autora de The Imperial Messenger: Thomas Friedman at Work (O Mensageiro Imperial: Thomas Friedman no Trabalho), Marytrs Never Die: Travels through South Lebanon (Mártires Nunca Morrem: Viagens pelo Sul do Líbano) e, mais recentemente, Exile: Rejecting America and Finding the World (Exílio: Rejeitando a América e Descobrindo o Mundo). Ela é editora colaboradora da Jacobin.
O “milagre” em questão se refere à campanha agressiva de vacinação contra o coronavírus em Israel, graças à qual lidera, atualmente, o mundo em vacinações per capita. E enquanto as “raízes” literais de Israel residem no desenraizamento e massacre de palestinos, Gordis prefere uma versão mais mitológica do passado israelense: “raízes socialistas primitivas” que cultivaram um “senso de coesão social e destino compartilhado”, uma nação que se via “como uma família” e que sabia “como se unir ao enfrentar um inimigo mortal”.
Gordis viu seu próprio “Israel do passado” na arena esportiva em Jerusalém, onde foi administrada a vacina: “Olhei nos olhos de outras pessoas que esperavam, seus rostos escondidos atrás de suas máscaras, poderia dizer que não fui o único dominado por um profundo sentimento de gratidão por fazer parte deste país.” O antigo Israel também foi incorporado pelo “pequeno exército de enfermeiras e técnicos médicos injetando uma pessoa após a outra com total eficiência”.
Eficiente ou não, a campanha de vacinação apenas ressaltou como as raízes de Israel estão amarradas a opressão palestina: os quase 5 milhões de palestinos que vivem na Cisjordânia ocupada por Israel e na Faixa de Gaza estão sendo criminalmente excluídos do programa. Conforme observa a Amnistia Internacional, o artigo 56 da Quarta Convenção de Genebra exige que os poderes de ocupação garantam e mantenham “os estabelecimentos e serviços médicos e hospitalares, a saúde pública e a higiene no território ocupado, com particular referência à adoção e aplicação de medidas profiláticas e medidas preventivas necessárias para combater a propagação de doenças contagiosas e epidemias”.
Não que Israel já tenha feito muito pelos serviços e postos médicos palestinos. Junto com bombardeios de hospitais, ambulâncias e equipes médicas, Israel impôs um bloqueio paralisante em Gaza nos últimos 13 anos que impede a importação de equipamentos e suprimentos médicos necessários. Mesmo antes da pandemia, o sistema de saúde do enclave já estava à beira do colapso. Os israelenses invocam os Acordos de Oslo ao afirmar que os palestinos são responsáveis por escolher suas próprias vacinas, mas isso é como cortar as pernas de uma pessoa e depois mandá-la pular corda.
De acordo com o jornal britânico The Independent, Israel rejeitou um “apelo informal” da Organização Mundial da Saúde (OMS) para ajudar a vacinar os trabalhadores de saúde palestinos, quase 8 mil dos quais foram infectados com COVID-19. O Wall Street Journal, por sua vez, relata que Israel comprou 8 milhões de doses da vacina Pfizer, 6 milhões da variante Moderna e 10 milhões de doses da Oxford-AstraZeneca. (A necessidade do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu de reabilitar sua imagem manchada antes das próximas eleições provavelmente tem algo a ver com a essa postura irresponsável.)
Não é nada chocante, neste mundo encantadoramente capitalista, que os países ricos estejam recebendo vacinas enquanto os países pobres estão se ferrando. No entanto, dá ânsia de vômito ler que Israel está vacinando colonos judeus ilegais “dentro da Cisjordânia“, enquanto 2,7 milhões de palestinos na Cisjordânia estão condenados a total insegurança (ou, pior, um estado de insegurança ainda mais letal do que quando Israel estava simplesmente matando palestinos e destruindo suas casas).
A OMS estima o número total de casos de coronavírus nos territórios palestinos ocupados em mais de 160.000, com mais de 1.700 mortes. De acordo com o Ministério da Saúde Palestino em Gaza, o diminuto território responde por quase 47.000 dos casos e mais de 460 das fatalidades.
Muitas vezes descrita como a “maior prisão a céu aberto do mundo”, Gaza é um dos lugares mais densamente povoados da Terra, e as condições abarrotadas e pouco higiênicas nas quais Israel forçou a população a viver em um local ideal para a propagação do vírus. No início de dezembro, quando o vírus saiu de controle e Gaza ficou sem oxigênio, leitos de UTI e testes de coronavírus – além de todas as faltas habituais relacionadas ao bloqueio e frequente falta de eletricidade – o Ministro da Saúde declarou ser a “pior crise de saúde que já enfrentamos”.
O programa COVAX liderado pela OMS se comprometeu a ajudar os palestinos na vacinação de uma parte de sua população; no entanto, não está claro em que ponto no futuro distante isso pode acontecer de forma realista. Parece que seria do interesse de Israel fornecer vacinas aos palestinos, visto que dezenas de milhares deles, como sabemos, trabalham em Israel.
Mas, é claro, as autoridades israelenses descobriram que é politicamente conveniente retratar os palestinos como uma doentes e a era do coronavírus já proporcionou a Israel muitas oportunidades empolgantes para aperfeiçoar sua capacidade de vigilância estatal para atropelar as liberdades civis. Por exemplo, o Shin Bet, a agência de segurança interna de Israel, foi encarregada de “caçar” pessoas suspeitas de exposição ao COVID-19 usando medidas e tecnologia de contraterrorismo.
Perto do fim deste artigo repleto de baboseiras publicado na Bloomberg, Gordis conta uma história comovente sobre um médico árabe da Galiléia que disse ao amigo de Gordis o seguinte: “Normalmente, quando Israel vai para a guerra, não estamos no Exército e não podemos ajudar. Mas desta vez, Israel foi para a guerra novamente e nós árabes temos que ser soldados também!” O leitor da Bloomberg pode concluir que os árabes israelenses estão inteiramente satisfeitos em serem cidadãos de Israel de segunda classe, exceto quando isso significa que eles não podem ajudar Israel a matar seus companheiros árabes.
Não há como negar: a guerra de Israel contra o coronavírus é também uma guerra contra os palestinos. E não há nada de milagroso no coronapartheid.
Sobre a autora
Belén Fernández é a autora de The Imperial Messenger: Thomas Friedman at Work (O Mensageiro Imperial: Thomas Friedman no Trabalho), Marytrs Never Die: Travels through South Lebanon (Mártires Nunca Morrem: Viagens pelo Sul do Líbano) e, mais recentemente, Exile: Rejecting America and Finding the World (Exílio: Rejeitando a América e Descobrindo o Mundo). Ela é editora colaboradora da Jacobin.
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