Wolfgang Streeck
Sidecar
Os italianos, diz-se, voltam-se para uma perspectiva da política que chamam de dietrismo. "Dietro" significa "por trás do pano" e dietrismo significa uma convicção habitual de que o que é visto está projetado para esconder o que em verdade se articula por meio de poderes que operam atrás de uma cortina. O pano divide o mundo em um palco e um atrás-do-palco, sendo aí, nesse segundo lugar, é onde se encontra a ação real. Assim, o primeiro é propositalmente mal apresentado para ocultar o segundo. Quando um dietrista lê algo ou ouve sobre isso no rádio ou na TV, ele, bem treinado nessa "lógica", se pergunta, não tanto sobre o que está sendo dito, mas porque isso está sendo dito e por que agora.
Hoje em dia, depois de três anos de Covid e um ano da guerra ucraniana, parece que todos nos tornamos italianos já que o dietrismo agora se tornou tão universal quanto o macarrão. Ao lermos as "narrativas" produzidas em nosso benefício pelos governos e pelos seus meios de comunicação, não mais nos fiamos no que dizem, mas indagamos pelo que podem significar: imagens distorcidas da realidade que, no entanto, parecem significar algo, um pouco como as sombras na parede da caverna de Platão.
Veja-se, por exemplo, o relato semioficial da sabotagem dos oleodutos Nord Stream, publicado pelo New York Times e entregue ao semanário alemão Die Zeit: os supostos culpados foram seis pessoas, ainda desconhecidas. Elas, num iate polaco alugado algures na Alemanha Oriental, deixaram convenientemente vestígios na mesa da cozinha do barco dos poderosos explosivos que tinham levado para o local do crime. Além dos verdadeiros crentes e, claro, dos fiéis fabricantes do consentimento público, não foi preciso pensar muito para ver que a história havia sido inventada para excluir o relato apresentado por Seymour Hersh, o imortal repórter investigativo. Este, como se sabe, mostrou e provou que o culpado era a CIA.
O que se mostra excitante para a mente dietrista é que o relato se afigura como tão obviamente ridículo que ele não poderia ser produto de incompetência - nem mesmo da CIA. Ao contrário, a coisa se mostra bastante intencional, levantando a questão de saber por que teria sido preparada. Talvez, sugeriram os cínicos políticos, o objetivo fosse humilhar o governo alemão e seu Ministério Público Federal, quebrando assim sua vontade, fazendo-o endossar publicamente esse absurdo óbvio como se fosse uma pista valiosa a seguir no seu esforço incansável para resolver o mistério do atentado do Nord Stream.
Outra característica intrigante da história foi que os supostos alugadores de barcos teriam talvez alguma conexão com "grupos pró-ucranianos". Embora de acordo com o relatório não houvesse indícios de que se tratava de ligações com o governo ou com os militares ucranianos; ora, qualquer conhecedor dos livros de Le Carré sabe que, quando os serviços secretos estão envolvidos, qualquer evidência pode ser facilmente descoberta, se isso for mesmo necessário. Sem surpresa, o relatório causou pânico em Kiev, onde foi lido, provavelmente com razão, como um sinal dos Estados Unidos de que a sua paciência com a Ucrânia e sua atual liderança não era ilimitada.
De fato, mais ou menos na mesma época, havia relatórios crescentes sobre corrupção na Ucrânia emanados dos Estados Unidos, coincidindo e reforçando a crescente resistência entre os republicanos no Congresso contra a quantidade de dólares americanos, cada vez maiores, que estavam sendo desviados do orçamento de defesa ucraniano - como se a corrupção na Ucrânia não tivesse sido sempre notoriamente desenfreada.
A partir de janeiro deste ano, o Washington Post e o New York Times publicaram uma série de artigos sobre os ultrajes praticados por ucranianos, incluindo o fato de que comandantes do exército usaram dólares americanos para comprar diesel russo barato para tanques ucranianos, embolsando assim a diferença. Volodymyr Zelensky, chocado, demitiu imediatamente dois ou três funcionários de alto escalão, prometendo demitir mais quando se tornasse necessário.
Por que isso havia sido agora apresentado como notícia, embora há muito seja de conhecimento geral que a Ucrânia está entre os países mais corruptos do mundo? Somando-se ao que, visto de Kiev, deve ter parecido cada vez mais com um escrito sinistro na parede: documentos secretos americanos vazados na segunda quinzena de abril mostraram que a confiança dos militares dos EUA na capacidade da Ucrânia de lançar uma contraofensiva bem-sucedida na primavera, quanto mais vencer a guerra, tal como seu governo havia prometido a seus cidadãos e patrocinadores internacionais, estava no nível mais baixo de todos os tempos.
Para os opositores americanos da guerra, republicanos e democratas, os documentos confirmaram que manter o exército ucraniano em ação pode ficar inaceitavelmente caro. Até o final de 2022, estima-se que os Estados Unidos gastaram algo como US$ 46,6 bilhões em ajuda militar à Ucrânia; espera-se que muito mais seja necessário à medida que o conflito se arraste.
Já é sabido também que ambos os partidos políticos nos Estados Unidos concordaram que seu país tem de se preparar para, mais cedo ou mais tarde, travar uma guerra muito maior, qual seja ela, enfrentar os chineses no Pacífico. Para os ucranianos e seus apoiadores europeus, parecia difícil, portanto, evitar a conclusão de que os Estados Unidos poderiam em breve se despedir do campo de batalha, entregando o problema europeu infindável aos habitantes da própria Europa.
É claro que, em comparação com o Afeganistão, Síria, Líbia e lugares semelhantes, o que os americanos provavelmente abandonarão não se afigura tão desastroso. Trabalhando com os países bálticos e a Polônia, os Estados Unidos conseguiram nos últimos meses empurrar a Alemanha para algo como uma posição de liderança europeia, sob a condição de que ela assumisse a responsabilidade de organizar e, principalmente, financiar a contribuição europeia para a guerra. Passo a passo, ao longo do ano passado, a União Europeia foi simultaneamente transformada em auxiliar da OTAN – responsável, entre outras coisas, pela guerra econômica – enquanto a OTAN se tornou, mais do que nunca, um instrumento da política americana – sinalizada, entretanto, como “ocidental”.
Quando, em meados de 2023, o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, for recompensado pelo seu trabalho árduo atual com uma merecida sinecura, a presidência do banco central norueguês, há rumores de que Ursula von der Leyen, atual presidente da Comissão Europeia, será promovida para o suceder nesse cargo. Isso completaria a subordinação da União Europeia à OTAN – uma organização internacional muito mais poderosa com sede em Bruxelas que, ao contrário da União Europeia, é de fato dominada pelos Estados Unidos. Em sua vida anterior, Ursula von der Leyen foi, claro, ministra da Defesa alemã sob Angela Merkel, embora, segundo a impressão geral, uma das mais incompetentes.
Se, nessa qualidade, ela dividiu a responsabilidade pela atuação supostamente sóbria das forças armadas alemãs no início da guerra ucraniana. Agora, foi aparentemente perdoada por causa de seu ardente americanismo-com-europeísmo ou, conforme o caso, europeísmo-com-americanismo. De qualquer forma, um acordo de cooperação reforçada foi assinado pela União Europeia e pela OTAN em janeiro de 2023, o que foi possível nomeadamente pelo fim da neutralidade entre a Finlândia e a Suécia. O acordo estabelece “em termos inequívocos a prioridade da Aliança no que diz respeito à defesa coletiva da Europa”, consagrando assim o papel de liderança dos Estados Unidos na política de segurança europeia, definida de modo amplo.
O governo alemão está agora ocupado em montar batalhões prontos para entrar no campo de batalha com tanques de diferentes construções europeias. Sabe-se que tanques americanos M1 Abrams devem chegar em poucos meses – quantos meses exatamente é mantido em segredo. De qualquer modo, as suas tripulações ucranianas serão treinadas nas bases militares alemãs. Também fornecerá e manterá em bom estado de conservação os aviões de combate que a Alemanha, juntamente com os Estados Unidos, até agora se recusou a entregar à Ucrânia (embora não por muito mais tempo se a experiência for um guia).
Enquanto isso, a Rheinmetall anunciou que construirá uma fábrica de tanques na Ucrânia com capacidade para 400 tanques de batalha de última geração por ano. Além disso, na véspera da reunião de 21 de abril do grupo de apoio Ramstein, a Alemanha assinou um acordo com a Polônia e a Ucrânia sobre uma oficina de reparação, localizada na Polônia, para que os “leopardos” danificados na frente ucraniana possam entrar em funcionamento já no final de 2023 (obviamente sob o pressuposto de que a guerra não terá terminado até lá).
Acrescente-se a isso a promessa, livremente renovada por Ursula Von der Leyen em nome da União Europeia, de que a Ucrânia será reconstruída após a guerra às custas da Europa, ou seja, da Alemanha – sem mencionar, aliás, uma contribuição dos oligarcas ucranianos, não muitos em número, mas cada um deles rico o suficiente para ajudar. De fato, uma visita no início de abril a Kiev do ministro da Economia alemão, Robert Habeck, juntamente com uma delegação de CEOs de grandes empresas alemãs, proporcionou uma oportunidade para explorar futuras oportunidades de negócios na reconstrução da Ucrânia quando a guerra terminar.
No entanto, isso pode não acontecer tão cedo. Os documentos americanos recentemente vazados e os pronunciamentos do comentário semioficial indicam que uma “endsieg” [vitória final] ucraniana não é esperada para logo, se é que é esperada. A entrega ocidental de equipamento militar parece estar ajustada para permitir que o exército ucraniano mantenha sua posição; quando os russos ganharem território, a Ucrânia receberá tanta artilharia, munição, tanques e aviões de combate quanto precisar para empurrá-los para trás. Uma vitória ucraniana, no entanto, declarada essencial para a sobrevivência do povo ucraniano por seu partido governante, parece não estar mais na lista de prioridades americana.
Olhando para os cronogramas de entrega de tanques e caças-bombardeiros Abrams, na medida em que eles podem ser obtidos a partir de anúncios oficiais, a expectativa é de algo como uma guerra de trincheiras prolongada com derramamento de muito sangue de ambos os lados. É interessante neste contexto que, em um momento aparentemente mais solto, durante um de seus discursos diários na televisão, Volodymyr Zelensky, exigindo como sempre mais apoio militar ocidental, argumentou que a Ucrânia deve vencer a guerra antes do final de 2023 porque o povo ucraniano pode não estar disposto a suportar seu fardo por muito mais tempo.
À medida que os Estados Unidos avançam para a europeização da guerra, caberá à Alemanha não apenas organizar o apoio ocidental à Ucrânia, mas também convencer o governo ucraniano de que, no final das contas, esse apoio pode não ser suficiente para o tipo de vitória que os nacionalistas ucranianos afirmam que a nação ucraniana precisa. Como franqueada dos EUA para levar a guerra adiante, a Alemanha será a primeira na fila para assumir a culpa se seu resultado ficar aquém das expectativas públicas no Leste Europeu, nos Estados Unidos, entre militantes pró-ucranianos alemães e, certamente, na própria Ucrânia. Essa perspectiva deve ser ainda mais desconfortável para o governo alemão, já que parece cada vez mais improvável que o fim da guerra seja decidido na Europa.
Um ator importante e possivelmente decisivo no pano de fundo será a China, com suas políticas de longa data de se opor a qualquer uso de armas nucleares e se abster de entregar armas a países em guerra, incluindo a Rússia. Após uma curta visita a Pequim, Olaf Scholz afirmou que se tratava de concessões à Alemanha, embora elas tenham se originado muito mais tempo atrás. De fato, a aparente relutância americana em permitir que a Ucrânia busque uma vitória total, deixando a reabilitação pós-operacional para a Alemanha, pode ser motivada por um desejo de permitir que a China mantenha sua política – o que talvez não fosse capaz de fazer se a Rússia e seu regime fossem, em algum momento, empurrados contra a parede. Se isso não fosse apenas um entendimento tácito, mas sim algum tipo de acordo negociado, certamente não seria tornado público em um momento em que o governo Biden está se preparando para entrar em guerra com a China.
Os supernacionalistas em Kiev, contudo, já podem sentir o cheiro desagradável. Logo após a última reunião do grupo Ramstein, o vice-ministro das Relações Exteriores, Andriy Melnyk, representante do fascismo clássico, originário de Stepan Bandera, no governo ucraniano, expressou a gratidão de seu país pelas entregas de armas prometidas. Ao mesmo tempo, deixou claro que eram lamentavelmente insuficientes para garantir uma vitória ucraniana em 2023; para isso, insistiu Andriy Melnyk, seriam necessários nada menos que dez vezes mais tanques, aviões, obuses e afins.
Novamente aplicando a hermenêutica dietrística, Andriy Melnyk, formado na Universidade de Harvard, deve ter sabido que isso estava fadado a irritar seus patronos americanos. O fato de ele não parecer se importar implica que ele e seus companheiros de armas considerem o “pivô para a Ásia” de Washington já está em andamento. Também sinaliza tanto o desespero da camarilha ucraniana governante em relação às perspectivas da guerra, quanto sua disposição de lutar até o fim amargo, impulsionada pela crença nacionalista-radical de que as nações reais crescem no campo de batalha, regadas com o sangue de seus melhores.
A aproximação do ultranacionalismo ucraniano sinaliza a emergência de uma nova ordem global, cujos contornos, incluindo o lugar da Europa e da União Europeia, só podem ser discernidos ao trazer a China para a cena. Eis que os Estados Unidos dirigem agora a sua atenção principal para o Pacífico, pois tem como objetivo construir uma aliança global para cercar a China e para evitar que Pequim conteste o controle americano do Pacífico.
Ora, essa mudança geopolítica substituiria, de início, o mundo unipolar do neoconservadorismo americano – consubstancializado no “Projeto para um Novo Século Americano” –, que fracassou, pelo projeto de um mundo bipolar: a globalização e, na verdade, a hiper globalização, teria assim dois centros, de um modo muito parecido com a antiga Guerra Fria. Ter-se-ia, assim, a I Nova Ordem Mundial. Manter-se-ia, no entanto, uma remota perspectiva de retorno à unipolaridade, talvez depois de outra guerra quente, consumando desse modo uma II Nova Ordem Mundial.
O capitalismo, devemos lembrar-nos, transformou-se e reformou-se mais fundamental e eficazmente do que nunca na sequência das duas Grandes Guerras do século XX, em 1918 e em 1945, assegurando a sua sobrevivência sob uma nova forma; certamente deve haver alguma memória nos centros da grande estratégia capitalista dos efeitos rejuvenescedores da guerra.
O projeto geoestratégico da China, ao contrário, parece ser um mundo multipolar. Por razões geográficas e de capacidade militar, o objetivo da política externa e de segurança chinesa não pode ser realmente uma ordem bipolar, com a China lutando contra os Estados Unidos pelo domínio global, nem um mundo unipolar com ela mesma no centro.
Como uma potência terrestre que faz fronteira com muitas nações potencialmente hostis, ela precisa, antes de tudo, de algo como um cordão sanitário, pelo qual seus países vizinhos se ligariam à China por meio de uma infraestrutura física compartilhada, crédito concedido gratuitamente e um compromisso de ficar fora de alianças com potências externas potencialmente hostis – em oposição ao desejo americano de submeter o mundo como um todo a uma Doutrina Monroe globalizada.
Note-se que os Estados Unidos têm apenas dois vizinhos, Canadá e México, que dificilmente se transformarão em aliados chineses. Além disso, a China incentiva ativamente a formação de algo como uma liga de potências regionais não alinhadas, incluindo Brasil, África do Sul, Índia e outros: um novo Terceiro Mundo que se manteria fora de um confronto sino-americano e, o que é importante, se recusaria a aderir às sanções econômicas americanas contra a China e seu novo Estado cliente, a Rússia.
Na verdade, as indicações são de que a China preferiria ser vista como uma potência neutra entre outras, em vez de um dos dois combatentes pela dominação mundial, pelo menos enquanto não puder ter certeza de que não perderia uma guerra contra os Estados Unidos. O desejo de evitar um novo bipolarismo nos moldes da primeira Guerra Fria explicaria a recusa da China em fornecer armas à Rússia, embora a Ucrânia esteja sendo armada até os dentes pelos Estados Unidos.
Veja-se que a China pode se dar ao luxo disso porque a Rússia não tem outra escolha a não ser se alinhar com ela. A China pode armar ou não a sua aliada, pois não importa o preço que a Rússia precisa pagar pela proteção chinesa. Nesse contexto, a conversa telefônica de uma hora entre Xi Jinping e Volodymyr Zelensky em 26 de abril, mencionada apenas de passagem pela maioria da imprensa europeia, pode ter sido uma espécie de ponto de inflexão.
Aparentemente, Xi Jinping se ofereceu como mediador na guerra russo-ucraniana, com base em um plano de paz chinês de doze pontos que havia sido considerado trivial e inútil pelos líderes ocidentais, se é que eles tomaram conhecimento. Surpreendentemente, Zelensky chamou a conversa de “significativa”, elaborando que “foi dada especial atenção às formas de cooperação possível para estabelecer uma paz justa e sustentável para a Ucrânia”. Se bem-sucedida, a intervenção chinesa pode ter um significado formativo para a ordem global emergente após o fim do fim da história.
Nos últimos meses, a ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock, tem cruzado o mundo com a missão de levar o maior número possível de países para o campo americano de uma bipolaridade renovada, apelando a valores liberais – “ocidentais”, oferecendo apoio diplomático, econômico e militar e ameaçando sanções econômicas. Na sua qualidade de embaixadora itinerante dos Estados Unidos, a credibilidade de Annalena Baerbock exige que o seu próprio país siga rigorosamente a linha americana, incluindo cortar a China da economia global.
Isso, no entanto, está em conflito fundamental com os interesses da indústria alemã e, por extensão, da Alemanha como país, forçando Annalena Baerbock a trilhar uma linha desajeitada, muitas vezes totalmente contraditória, em relação à China. Por exemplo, embora tenha enquadrado a sua recente visita a Pequim numa retórica agressiva e até hostil tanto antes da sua chegada como depois da sua partida – tanto que o seu homólogo chinês sentiu necessidade de lhe explicar numa conferência de imprensa conjunta que a última coisa de que a China precisava era de palestras do Ocidente –, também aparentemente indicou que as sanções alemãs poderiam ser seletivas em vez de abrangentes, de tal modo que as relações comerciais em vários sectores industriais continuarão mais ou menos inabaláveis.
De olho no que pode estar acontecendo nos bastidores, pode-se especular se Olaf Scholz poderia ter conseguido que os Estados Unidos dessem alguma corda à Alemanha em suas relações com seu mercado de exportação mais importante, como recompensa por executar o esforço de guerra europeu na Ucrânia de acordo com as exigências americanas.
Por outro lado, os produtores alemães parecem ter perdido recentemente participação de mercado na China, dramaticamente nos automóveis, onde os clientes chineses estão rejeitando novos veículos elétricos da Alemanha em favor dos nacionais. Embora isso possa ser porque os modelos alemães são considerados menos atraentes, a retórica anti-chinesa alemã pode ter desempenhado um papel em um país com forte sentimento nacionalista e anti-ocidental. Se assim for, isso sugere que o problema da dependência demasiado dependente da indústria alemã em relação à China pode estar prestes a mudar.
A política alemã para a China, seguindo o projeto político mundial bipolar dos EUA, causa conflitos não apenas internos, mas também internacionais, sobretudo com a França, onde ameaça dilacerar ainda mais a União Europeia. As aspirações francesas de “autonomia estratégica” para a “Europa” (e “soberania estratégica” para a França) só têm chance em um mundo multipolar povoado por um bom número de países não alinhados politicamente significativos, bastante semelhante ao que os chineses parecem querer. Até que ponto isso implica algum tipo de equidistância em relação aos Estados Unidos e à China é uma questão deixada em aberto, provavelmente deliberadamente, por Emmanuel Macron.
Às vezes o governante francês parece querer equidistância, às vezes ele nega que queira isso mesmo. De qualquer forma, essa perspectiva é anatematizada por militantes pró-ocidentais alemães, sobretudo pelos Verdes, que agora controlam a política externa alemã. Entre eles, pairam as suspeitas dos protestos ocasionais de Emmanuel Macron de que a “autonomia estratégica” é compatível com a lealdade transatlântica, em um momento de crescente confronto entre o “Ocidente” e o novo “Império do Mal” do Leste Asiático. Como resultado, a França está mais isolada do que nunca na União Europeia.
Emmanuel Macron, como os anteriores presidentes franceses, sempre soube que, para dominar a União Europeia, a França precisa da Alemanha do seu lado, ou mais precisamente, no jargão de Bruxelas: ficar no banco de trás de uma dupla franco-alemã com a Alemanha no banco da frente. O problema dele é que a Alemanha já desmontou a bicicleta e o fez de uma vez por todas.
Sob a liderança dos Verdes, a Alemanha sonha, juntamente com a Polônia e os países bálticos em particular, entregar Vladimir Putin ao Tribunal Penal Internacional de Haia, que exige que tanques ucraniano-alemães entrem em Moscou, tal como os tanques soviéticos chegaram a Berlim. Emmanuel Macron, em vez disso, quer permitir que Putin “salve a cara” e espera oferecer à Rússia uma retomada das relações econômicas, após um cessar-fogo mediado, se não pela França, então talvez por uma coalizão de países não alinhados do “Sul Global”, ou mesmo pela China.
A Götterdämmerung [ou seja, o crepúsculo dos deuses] do domínio franco-alemão da União Europeia, e a transformação das suas ruínas numa infraestrutura econômica e militar anti-russa gerida por países da Europa de Leste em nome do transatlântico americano, nunca foi mais visível do que na viagem de Emmanuel Macron à China a 6 de abril, depois de Olaf Scholz (4 de novembro) e antes de Annalena Baerbock (13 de abril).
Estranhamente, Emmanuel Macron permitiu que Von der Leyen o acompanhasse, segundo alguns como um governante alemão encarregado de impedi-lo de abraçar Xi Jinping com muita paixão, segundo outros para demonstrar aos chineses que a presidente da União Europeia não era uma presidente de verdade, mas um subordinado ao presidente da França, governando não apenas seu próprio país, mas toda a União Europeia com ele.
Os chineses, que podem ou não ter entendido os sinais de Emmanuel Macron, trataram-no com deferência especial, embora estivessem indubitavelmente cientes de seus problemas domésticos. Ursula Von der Leyen, conhecida como atlantista de linha-dura, recebeu um tratamento frio. Enquanto voava de volta no avião presidencial – Ursula Von der Leyen não estava viajando mais com ele –, Emmanuel Macron explicou à imprensa que o acompanhava que os aliados americanos não são vassalos americanos.
Ora, essa última observação foi amplamente entendida como se afirmasse que a posição da Europa devesse ser de igual distância da China e dos Estados Unidos. No governo alemão e, em primeiro lugar e acima de tudo, a sua ministra dos negócios estrangeiros, Annalena Baerbock, ficou chocada. E deixou isso claro, sem restrições. Os meios de comunicação social alemães seguiram o seu exemplo de forma obediente e unânime.
Poucos dias depois, em 11 de abril, Annalena Baerbook participou da reunião dos ministros das Relações Exteriores do G7 no Japão. Lá, ela conseguiu que seus colegas, incluindo o da França, prometessem o máximo de lealdade humanamente possível à bandeira americana, para que o mundo permanecesse indivisível, com liberdade e justiça para todos.
A essa altura, Macron, observando que sua batalha retórica contra a vassalagem francesa havia passado despercebida aos opositores de sua reforma da Previdência, já havia recuado e, novamente, professado lealdade eterna à Otan e aos Estados Unidos. Não há razão, no entanto, para acreditar que isso mudará o Zeitenwende [ou seja, o ponto de inflexão] da União Europeia com relação à guerra da Ucrânia: a divisão entre França e Alemanha e a ascensão dos Estados-membros do Leste Europeu ao domínio europeu após o retorno dos Estados Unidos à Europa sob Joe Biden. Tudo parece preparar um confronto global com a Terra de Xi no incansável esforço americano para tornar o mundo seguro para a democracia.
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