Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
Os resultados da eleição de 2022 e a candidatura Lula-Alckmin
May 2023 (Volume 75, Number 1) |
Os resultados da eleição de 2022 e a candidatura Lula-Alckmin
No segundo turno das eleições presidenciais de 30/10/2022, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República pela terceira vez, fato inédito na história do Brasil. A diferença com relação ao seu oponente, Jair Bolsonaro, foi de apenas 2.139.645 votos, menor do que a ocorrida na disputa entre Dilma Rousseff e Aécio Neves, em 2014. Também é a primeira vez, desde a redemocratização do país, que um presidente não foi reeleito. Em relação ao primeiro turno, Bolsonaro ampliou os votos em mais de 7 milhões (7.134.009), enquanto Lula em 3.086.495. Para isso, o então presidente se valeu de todos os expedientes possíveis, entre os quais se destaca o uso político de benefícios dirigidos à população de baixa renda em alguns municípios brasileiros e a tentativa de impedir que parte dos eleitores da região Nordeste do Brasil tivessem acesso aos locais de votação, criando obstáculos a sua mobilidade em diversas estradas. Ao final, Lula obteve 60.345.999 votos e Bolsonaro 58.206.354 votos.
Lula ganhou em 13 dos 26 Estados, especialmente na Região Nordeste do país (uma das mais pobres), registrando 1 vitória no Norte, outra no Centro-Oeste e ainda outra no Sudeste. Comparado ao resultado de 2018, quando Bolsonaro derrotou Fernando Haddad, candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Lula ampliou sua votação nos demais Estados. Dessa forma, o resultado favorável a Lula foi decorrente tanto da esmagadora adesão dos eleitores a sua candidatura no Nordeste, como da ampliação do apoio recebido em outras regiões do país. As Regiões Sudeste e Sul reúnem, respectivamente, 42,64% e 14,42% do eleitorado do país. Assim como Lula recebeu 76,83% dos votos válidos no Piauí e 72,11% na Bahia, ambos estados do Nordeste, Bolsonaro obteve 69,27% em Santa Catarina e 62,40% no Paraná, estados localizados na Região Sul. Em termos de renda, as pesquisas prévias à eleição apontavam predomínio de intenção de voto em Lula entre eleitores de renda mais baixa, com até 2 salários mínimos; entre católicos; entre os eleitores com escolaridade baixa; e entre a parcela dos mais jovens, de 16 a 24 anos, na faixa de idade de 45 a 59 anos, e entre os com 60 anos a mais. Entre o segmento mais afetado pelo desemprego e pela precarização do trabalho, com idade entre 25 e 44 anos, Bolsonaro receberia o maior percentual de intenção de votos.
As eleições de 2022, no plano federal, também compreenderam a eleição de deputados e de parte dos senadores. Seu resultado não pode ser desconsiderado, pois a composição da Câmara de Deputados e do Senado é um dos aspectos que precisa ser levado em conta para se entender o nível de dificuldades que Lula irá enfrentar durante seu governo. Não só as forças que apoiaram sua candidatura não detém a maioria nas duas Casas, como foram eleitos quadros absolutamente identificados com as políticas mais negacionistas e retrógradas do governo Bolsonaro, tais como seus ex-ministros do Meio Ambiente (Ricardo Salles, para deputado federal), da Saúde (general Eduardo Pazuello, para deputado federal) e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (Damares Alves, para o Senado), responsáveis, respectivamente, pela destruição e o abandono de qualquer cuidado com relação à natureza e ao meio ambiente, pela atitude genocida no tratamento da pandemia de Covid-19 e pelo retrocesso, de fato, com relação aos direitos da mulher e aos direitos humanos. A esses se soma a eleição de Sérgio Moro, para o Senado, ex-juiz que foi responsável pela farsa montada contra Lula, que resultou na sua prisão por 580 dias. Um de seus comparsas nessa farsa, Deltan Dallagnol, foi eleito para deputado federal. Sem falar no vicepresidente de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, eleito para o Senado
Lula foi eleito por uma Frente Ampla democrática (com o nome de Coligação Brasil Esperança) que reuniu forças políticas dos mais diferentes matizes, inclusive lideranças políticas que até há pouco tempo não se falavam. Não se trata, portanto, da reprodução da candidatura de Lula de 2002, que representava basicamente a força construída pelo PT junto aos sindicatos, associações, movimentos sociais, enfim, à sociedade brasileira. Naquele momento, a mão estendida para além de suas bases políticas, foi simbolicamente representada por seu vice, José Alencar, do inexpressivo Partido Liberal. Seu vice em 2022, Geraldo Alckmin, até pouco tempo estava no Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que sempre se colocou como oposição ao PT e que participou do golpe impetrado contra Dilma Rousseff. Hoje, Alckmin está no Partido Socialista Brasileiro (PSB), mas toda sua trajetória política anterior foi feita enquanto PSDB, tendo governado por anos os mais populosos estado e cidade do país (ambos com o nome de São Paulo) e implementado ações e medidas de cunho neoliberal. Há quem diga que, hoje, Alckmin é um "novo homem". O que isso irá significar em termos de lealdade a Lula e aos objetivos de sua candidatura, só o tempo dirá. Mas, para além do seu vice, Lula obteve apoio, especialmente no segundo turno, da esquerda mais radical a personalidades situadas no campo do neoliberalismo, sem falar das inúmeras manifestações feitas por diferentes segmentos da sociedade, entre as quais se destaca a realizada pelos bispos da igreja católica.
A união de tão diferentes origens e classes expressa o reconhecimento de que era absolutamente necessário impedir a continuidade de Bolsonaro no governo. Dizia-se que era uma luta entre civilização e barbárie. Além do desmonte do Estado que promoveu (e estamos usando a palavra no seu sentido literal e não figurado), e da redução brutal, antes impensável, dos recursos para a área da educação, ciência e tecnologia, para programas voltados para as mulheres, e um número enorme de outros, armou a população, promoveu o maior desmatamento da região amazônica da história do país, e insuflou o racismo, o machismo, a intolerância religiosa, os ataques aos indígenas e o ódio contra os LGBTQIA+.
No plano econômico e social, a destruição não foi menor. Para se ter uma ideia, basta dizer que o nível de desindustrialização do país e do investimento (privado e público) nunca foi tão baixo, e que o Brasil voltou ao Mapa da Fome, da Pobreza e da Insegurança Alimentar. Nas principais cidades brasileiras, milhares de pessoas e famílias moram nas ruas e chegam ao extremo de procurarem comida no lixo e de fazerem fila para terem acesso a ossos (primeiro, distribuídos gratuitamente e, depois cobrados por comerciantes sem escrúpulos). No mercado de trabalho, não só se amplia a informalidade como é cada vez maior o contingente precarizado.
Essa situação, aqui brevemente descrita, não quer dizer que não houve segmentos da sociedade que se beneficiaram das políticas implantadas por Bolsonaro e, antes dele, por Michel Temer, que assumiu a presidência da República quando do afastamento de Dilma Rousseff. Muito pelo contrário. Além do capital portador de juros (na figura dos grandes bancos nacionais, dos fundos de pensão e de investimento estrangeiros e dos acionistas da Petrobras, que vinculou sua política de preços ao mercado internacional), foram atendidos os interesses do agronegócio (liberação do uso de agrotóxicos como nunca antes visto e abandono das ações de vigilância e de multas que inibiam a exploração em terras da Floresta Amazônica), da mineração sem freios (adentrando terras indígenas e da Floresta Amazônica), dos envolvidos com a produção e comercialização de armas e mesmo com a criminalidade associada ou desenvolvida pelas milícias em importantes capitais e cidades. Isso sem mencionar que empresas de todos os tipos se beneficiaram da nova realidade do mercado de trabalho promovida pela reforma empreendida durante o governo de Temer, que retirou direitos dos trabalhadores e enfraqueceu o poder dos sindicatos, permitindo que os empregadores avançassem deteriorando os salários e as condições de trabalho. No plano dos costumes, os evangélicos foram os grandes favorecidos, o que resultou em mudanças na legislação quanto ao aborto, ao tratamento da saúde mental e aos adictos, e na flexibilização do conteúdo da educação de primeiro e segundo graus, para dar alguns exemplos.
É dentro desse contraditório de interesses que a Frente Ampla encabeçada por Lula foi realizada. Para parte de representantes da classe dominante e para importantes instituições da sociedade brasileira, não era mais possível assistir à continuidade da deterioração do tecido social, a que se somavam crescente negacionismo científico e total desprezo por aquilo que se convencionou chamar de direitos humanos e princípios democráticos da sociedade ocidental.
Em relação ao Programa dessa Frente Ampla, claramente marcado pelo peso das ideias do PT, há que se diferenciar as “promessas de campanha”, que deveriam ser implementadas imediatamente, daquelas que têm como propósito reverter o quadro social, econômico, e mesmo de destruição do aparato estatal, que foram resultado dos últimos seis anos de governo. Além disso, há as questões estruturais de nossa sociedade, que os últimos anos demonstraram não poderem mais ser toleradas, pois constituem a base sob a qual se apoia o racismo, o feminicídio, a extrema desigualdade existente no país e o genocídio dos povos indígenas. Além disso, se somam os aspectos relativos à condição de eterna dependência do país aos interesses do grande capital internacional.
A reação da direita radical e a contraofensiva de Lula
Realizada a eleição e declarado o vencedor, Bolsonaro manteve-se em total silêncio. Seu primeiro pronunciamento oficial foi realizado em 01/11/22, durou exatos dois minutos e neles não reconheceu a vitória de seu oponente. O segundo pronunciamento ocorreu em 30/12/23, no qual afirmou que nem tudo estava perdido. Um dia depois, desembarcou na Flórida, nos Estados Unidos, e lá permanece até hoje (13/02/23).
Em paralelo, desde a madrugada do dia 31/10 (segunda-feira), um dia depois das eleições do segundo turno, caminhoneiros, a maioria de frotas de grandes empresários, bloquearam importantes rodovias em 22 estados em protesto contra o resultado das eleições. Junto a eles, somavam-se adeptos de Bolsonaro, que também se fizeram presentes em algumas cidades. Foi necessário que o Ministro Alexandre Moraes, presidente do Supremo Tribunal Eleitoral (STE), ordenasse a imediata desobstrução das rodovias pelas forças policiais estaduais e locais, sob pena de pesadas multas, ordem inclusive dirigida ao diretor da Polícia Rodoviária Federal (que estava claramente comprometido com o movimento e que permitiu o atraso do deslocamento de eleitores nos estados em que Lula tinha franco apoio, tal como mencionado acima). A decisão de Moraes foi imediatamente referendada pela maioria do Supremo Tribunal Federal (STF). Na manhã de quarta-feira, várias estradas continuaram com bloqueios e se concentravam em estados onde Bolsonaro ganhou por larga margem. Em vários locais, estradas foram liberadas pela ação de torcidas organizadas que estavam se deslocando para assistir jogos de campeonatos de futebol. Também houve casos em que metalúrgicos e moradores de favelas fizeram o mesmo.
Apesar da ordem de Moraes, em vários estados, a desobstrução era seguida por novos bloqueios, no mesmo lugar ou em pontos diferentes das rodovias. Durante todo o tempo, vídeos que circulavam nas redes sociais mostravam o pouco empenho dos policiais em realizar a desobstrução e, em alguns casos, sua socialização com os bolsonaristas. Somente em 23 de novembro, pode-se dizer que a mobilidade nas estradas voltou à normalidade.
Ao mesmo tempo em que as estradas foram bloqueadas, bolsonaristas se reuniram em frente aos quartéis do exército brasileiro nas principais capitais do país (inclusive em Brasília, capital do país, no Distrito Federal). Lá permaneceram até 09/01/23, um dia depois da invasão e depredação dos edifícios dos três poderes da República (Congresso Nacional, Palácio do Planalto e STF). A longa permanência dos bolsonaristas na frente dos quartéis, com toda a infraestrutura, em nada lembrando acampamentos de movimentos sociais da esquerda, só foi possível porque o próprio exército lhe deu guarida e não permitiu que as forças policiais os desalojassem.
Um dia antes da diplomação de Lula, em 11/12/22, bolsonaristas tentaram invadir a Polícia Federal sob o pretexto de resgatar um militante da direita que fora preso, queimaram carros e ônibus. As forças repressivas demoraram para chegar e os dispersarem, mas não houve nenhuma prisão. Na véspera do Natal, uma bomba foi encontrada na via de acesso ao aeroporto de Brasília. No momento em que escrevemos essas notas, os três envolvidos no atentado estavam presos, aguardando julgamento.
Mas o auge das ações dos adeptos de Bolsonaro foi, sem dúvida, o que ocorreu em 08/01/23, uma semana após a posse de Lula. Além da depredação brutal, houve cenas escatológicas, de total barbárie e a destruição de quadros famosos e peças únicas, insubstituíveis. Os bolsonaristas que participaram desse ato de barbárie vieram de várias partes do país, mas mais fortemente dos estados nos quais Bolsonaro teve votação estrondosa e, não por coincidência, onde a população se vangloria publicamente de estar fortemente armada. De classes de renda distintas, mas com predomínio do que se considera como classe média, seus participantes tinham, em média, mais de 46 anos, com uma presença masculina um pouco maior que a feminina. Não há, até o momento, informações relativas às atividades por eles exercidas, mas os vídeos por eles mesmos vinculados nas redes sociais permitiram identificar, militares, pastores evangélicos, professores, envolvidos na extração de minérios em regiões de conflito, entre outras profissões.
A facilidade com que os bolsonaristas chegaram à Praça dos três Poderes, adentraram em suas instalações e passaram a destruir o que encontrassem pela frente somente é explicada pela leniência e, em alguns casos, pelo franco apoio recebido das forças de segurança que deveriam impedi-los, inclusive do próprio Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República. Os registros em vídeo - feitos pelos próprios bolsonaristas ou pelas câmeras de segurança - não deixam dúvida sobre isso.
Além disso, apesar de diferentes órgãos de inteligência terem informado sobre a possibilidade de grande ato em Brasília por parte dos adeptos de Bolsonaro, o efetivo inicial previsto para conter a investida foi praticamente desmobilizado sem que o Ministro da Justiça de Lula tomasse conhecimento.
Ao caos criado pelos bolsonaristas em Brasília, era esperado, ao que tudo indica, que o governo Lula respondesse com a decretação de situação de Garantia da Lei e da Ordem em Brasília, mas, com isso, a capital ficaria sob o comando das Forças Armadas, o que seria, no mínimo, temerário. No lugar disso, Lula decretou intervenção federal no DF e afastou seu governador, o que foi, logo depois, sancionado pelos deputados e senadores. Essas medidas foram completadas pelas ações encaminhadas por Alexandre de Moraes, que definiu, entre outras ações, a prisão em flagrante dos participantes das invasões, a abertura de investigação para determinar quem foram os responsáveis pela desmobilização das forças para impedir a realização de atos na Esplanada dos Ministérios, de seus organizadores e financiadores, a prisão do comandante da Polícia Militar e do Secretário de Segurança Pública do DF e a completa desmobilização dos acampamentos ainda existentes em frente aos quartéis. Os mandados de prisão dos envolvidos, bem como dos que publicamente se manifestaram (e ainda se manifestam) por um golpe militar e pela invalidação das eleições presidenciais, continuam a ser cumpridos em todos o território nacional. Também foram abertos inquéritos policiais militares para apurar a conduta e omissão de comandantes, subcomandantes e outros policiais. Na sociedade, diferentes instituições e personalidades se posicionaram contra as invasões e movimentos sociais, associações, centrais sindicatos e partidos convocaram mobilizações para o dia seguinte nas principais capitais e cidades do país.
Ainda como desdobramento do dia 08/01, registre-se que o comandante do Exército não permitiu que, à noite desse dia, fossem presos os bolsonaristas que haviam voltado para o acampamento em frente ao quartel de Brasília. Essa atitude e o fato de não ter anulado a nomeação do ajudante de ordens de Bolsonaro (realizada ao final de seu governo) para o comando do 1º Batalhão de Ações de Comando, em Goiânia (que fica ao lado de Brasília), levou a que ele fosse exonerado do cargo em 21/01. Esse batalhão, assim como o de operações especiais, constitui uma tropa de elite que pode ser acionada rapidamente para debelar ameaças convencionais e não-convencionais no território nacional. Enfim, um comando estratégico, que seria assumido pelo principal assessor de Bolsonaro.
A invasão dos Três Poderes também determinou que Lula acelerasse a troca do comando de superintendências regionais da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e da chefia da Polícia Federal em 26 estados do país, instituições sabidamente receptivas às ideias bolsonaristas. Além de nomear diretores que haviam sido afastados anteriormente por Bolsonaro, chama atenção o fato de 9 mulheres terem sido nomeadas na PRF. Em relação ao GSI, responsável pela segurança do presidente da República, de seus familiares e dos prédios do executivo, Lula, até o momento em que redigimos essa Nota, dispensou e/ou exonerou mais de 60 integrantes militares, inclusive trocando seu secretárioexecutivo. Dessa forma, a tentativa de golpe foi controlada. Pelo menos, até o momento.
A posse de Lula, o trabalho da equipe de transição e os novos ministérios
A resposta do governo Lula foi, nos primeiros dias de seu governo, tornar prioritário o enfrentamento dessa questão, formando uma força tarefa que envolve diversos ministérios. Além da prioridade de prover alimentos e atenção à saúde, o governo exonerou os militares que chefiavam as coordenações regionais, nomeou a indígena Joenia Wapichana para presidir a Funai, tomou providências para ampliar o seu quadro de funcionários e para enfrentar o garimpo ilegal. É a primeira vez que a Funai será presidida por uma representante indígena e, no caso, uma mulher.
Os objetivos de Lula, expressos na campanha presidencial e no relatório do Gabinete de Transição, vão muito além de “simplesmente” desfazer, no plano legal e institucional, o que foi realizado durante os últimos anos. Com isso, evidentemente, não estamos dizendo que esse “desfazer” seja fácil de ser executado, pois o nível de destruição empreendido foi tal em algumas áreas - seja por redução do número de funcionários ou de recursos, seja por mudança de prioridade - que a reconstrução da gestão do Estado e das políticas não será tarefa de poucos dias ou meses. Ocorre que, simultaneamente a esse desafio, há que enfrentar aspectos da sociedade e da economia que têm raízes estruturais e/ou foram aprofundados nesses últimos anos de aplicação de políticas neoliberais das mais extremas.
Como enfrentar a enorme desigualdade que faz do Brasil um dos países menos equitativos do mundo sob qualquer critério que se queira aplicar? Como fazer frente à enorme desindustrialização e à especialização crescente na produção de comodities? Depois do golpe empreendido contra Dilma Rousseff, o neoliberalismo avançou aceleradamente: não só foi promovida uma reforma nas relações entre o capital e o trabalho, flexibilizando ainda mais a gestão da força de trabalho, como os gastos do governo federal foram congelados por vinte anos, pela EC 95/2016, e foi aprovada a independência do Banco Central. É sob esse arcabouço institucional (que em última análise rege a política fiscal e a monetária do país) que o novo governo Lula deve atuar. É mais do que óbvio que, para o Estado brasileiro estimular ou induzir a reindustrialização do país, e incorporando as tecnologias mais modernas, se faz necessária a mudança dessas regras ou institucionalidades. Certamente Lula enfrentará forte oposição a essas mudanças.
Dessa forma, embora o novo governo possa avançar na recomposição de políticas públicas anteriormente bem sucedidas, sua margem de manobra parece ser menor do que no passado. De um lado, houve avanço no sentido do regramento das possibilidades da ação do Estado; de outro, a sociedade já não é mais igual a de vinte anos atrás. Ao contrário, aquilo que estava anteriormente latente e já se podia observar desde o segundo governo Lula, se consolidou: parte substantiva da população brasileira não coaduna com políticas que tenham como premissa a igualdade, a solidariedade e o direito emanado da cidadania. Além disso, o avanço da ação capitalista selvagem está presente em todo o território nacional e não somente na região Norte do país. A ação dos garimpeiros na região yanomami é “apenas” o exemplo mais extremo. O contexto estrutural e a luta de classes
Além das restrições mais conjunturais para a implementação de medidas paliativas de compensação mediante o Programa Bolsa Família, por exemplo, as condições estruturais são as maiores barreiras para uma política mais progressista. Essas condições não foram enfrentadas nem na saída da ditadura com a Constituição de 1988 e nem nos posteriores governos mais progressistas. Assim, segundo a OXFAM, "O 1% mais rico concentra 48% de toda a riqueza nacional e os 10% mais ricos ficam com 74%. Por outro lado, 50% da população brasileira possui cerca de 3% da riqueza total do País" e "seis brasileiros possuem a mesma riqueza que a soma do que possui a metade mais pobre da população, mais de 100 milhões de pessoas." Uma das frações de classe que se coloca mais à direita do espectro político são os proprietários de terras. Em 2006, os grandes estabelecimentos somam apenas 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com área inferior a 10 hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos do país, mas ocupam menos de 2,3% da área total.
As eleições de 2022, no plano federal, também compreenderam a eleição de deputados e de parte dos senadores. Seu resultado não pode ser desconsiderado, pois a composição da Câmara de Deputados e do Senado é um dos aspectos que precisa ser levado em conta para se entender o nível de dificuldades que Lula irá enfrentar durante seu governo. Não só as forças que apoiaram sua candidatura não detém a maioria nas duas Casas, como foram eleitos quadros absolutamente identificados com as políticas mais negacionistas e retrógradas do governo Bolsonaro, tais como seus ex-ministros do Meio Ambiente (Ricardo Salles, para deputado federal), da Saúde (general Eduardo Pazuello, para deputado federal) e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (Damares Alves, para o Senado), responsáveis, respectivamente, pela destruição e o abandono de qualquer cuidado com relação à natureza e ao meio ambiente, pela atitude genocida no tratamento da pandemia de Covid-19 e pelo retrocesso, de fato, com relação aos direitos da mulher e aos direitos humanos. A esses se soma a eleição de Sérgio Moro, para o Senado, ex-juiz que foi responsável pela farsa montada contra Lula, que resultou na sua prisão por 580 dias. Um de seus comparsas nessa farsa, Deltan Dallagnol, foi eleito para deputado federal. Sem falar no vicepresidente de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, eleito para o Senado
Lula foi eleito por uma Frente Ampla democrática (com o nome de Coligação Brasil Esperança) que reuniu forças políticas dos mais diferentes matizes, inclusive lideranças políticas que até há pouco tempo não se falavam. Não se trata, portanto, da reprodução da candidatura de Lula de 2002, que representava basicamente a força construída pelo PT junto aos sindicatos, associações, movimentos sociais, enfim, à sociedade brasileira. Naquele momento, a mão estendida para além de suas bases políticas, foi simbolicamente representada por seu vice, José Alencar, do inexpressivo Partido Liberal. Seu vice em 2022, Geraldo Alckmin, até pouco tempo estava no Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que sempre se colocou como oposição ao PT e que participou do golpe impetrado contra Dilma Rousseff. Hoje, Alckmin está no Partido Socialista Brasileiro (PSB), mas toda sua trajetória política anterior foi feita enquanto PSDB, tendo governado por anos os mais populosos estado e cidade do país (ambos com o nome de São Paulo) e implementado ações e medidas de cunho neoliberal. Há quem diga que, hoje, Alckmin é um "novo homem". O que isso irá significar em termos de lealdade a Lula e aos objetivos de sua candidatura, só o tempo dirá. Mas, para além do seu vice, Lula obteve apoio, especialmente no segundo turno, da esquerda mais radical a personalidades situadas no campo do neoliberalismo, sem falar das inúmeras manifestações feitas por diferentes segmentos da sociedade, entre as quais se destaca a realizada pelos bispos da igreja católica.
A união de tão diferentes origens e classes expressa o reconhecimento de que era absolutamente necessário impedir a continuidade de Bolsonaro no governo. Dizia-se que era uma luta entre civilização e barbárie. Além do desmonte do Estado que promoveu (e estamos usando a palavra no seu sentido literal e não figurado), e da redução brutal, antes impensável, dos recursos para a área da educação, ciência e tecnologia, para programas voltados para as mulheres, e um número enorme de outros, armou a população, promoveu o maior desmatamento da região amazônica da história do país, e insuflou o racismo, o machismo, a intolerância religiosa, os ataques aos indígenas e o ódio contra os LGBTQIA+.
No plano econômico e social, a destruição não foi menor. Para se ter uma ideia, basta dizer que o nível de desindustrialização do país e do investimento (privado e público) nunca foi tão baixo, e que o Brasil voltou ao Mapa da Fome, da Pobreza e da Insegurança Alimentar. Nas principais cidades brasileiras, milhares de pessoas e famílias moram nas ruas e chegam ao extremo de procurarem comida no lixo e de fazerem fila para terem acesso a ossos (primeiro, distribuídos gratuitamente e, depois cobrados por comerciantes sem escrúpulos). No mercado de trabalho, não só se amplia a informalidade como é cada vez maior o contingente precarizado.
Essa situação, aqui brevemente descrita, não quer dizer que não houve segmentos da sociedade que se beneficiaram das políticas implantadas por Bolsonaro e, antes dele, por Michel Temer, que assumiu a presidência da República quando do afastamento de Dilma Rousseff. Muito pelo contrário. Além do capital portador de juros (na figura dos grandes bancos nacionais, dos fundos de pensão e de investimento estrangeiros e dos acionistas da Petrobras, que vinculou sua política de preços ao mercado internacional), foram atendidos os interesses do agronegócio (liberação do uso de agrotóxicos como nunca antes visto e abandono das ações de vigilância e de multas que inibiam a exploração em terras da Floresta Amazônica), da mineração sem freios (adentrando terras indígenas e da Floresta Amazônica), dos envolvidos com a produção e comercialização de armas e mesmo com a criminalidade associada ou desenvolvida pelas milícias em importantes capitais e cidades. Isso sem mencionar que empresas de todos os tipos se beneficiaram da nova realidade do mercado de trabalho promovida pela reforma empreendida durante o governo de Temer, que retirou direitos dos trabalhadores e enfraqueceu o poder dos sindicatos, permitindo que os empregadores avançassem deteriorando os salários e as condições de trabalho. No plano dos costumes, os evangélicos foram os grandes favorecidos, o que resultou em mudanças na legislação quanto ao aborto, ao tratamento da saúde mental e aos adictos, e na flexibilização do conteúdo da educação de primeiro e segundo graus, para dar alguns exemplos.
É dentro desse contraditório de interesses que a Frente Ampla encabeçada por Lula foi realizada. Para parte de representantes da classe dominante e para importantes instituições da sociedade brasileira, não era mais possível assistir à continuidade da deterioração do tecido social, a que se somavam crescente negacionismo científico e total desprezo por aquilo que se convencionou chamar de direitos humanos e princípios democráticos da sociedade ocidental.
Em relação ao Programa dessa Frente Ampla, claramente marcado pelo peso das ideias do PT, há que se diferenciar as “promessas de campanha”, que deveriam ser implementadas imediatamente, daquelas que têm como propósito reverter o quadro social, econômico, e mesmo de destruição do aparato estatal, que foram resultado dos últimos seis anos de governo. Além disso, há as questões estruturais de nossa sociedade, que os últimos anos demonstraram não poderem mais ser toleradas, pois constituem a base sob a qual se apoia o racismo, o feminicídio, a extrema desigualdade existente no país e o genocídio dos povos indígenas. Além disso, se somam os aspectos relativos à condição de eterna dependência do país aos interesses do grande capital internacional.
A reação da direita radical e a contraofensiva de Lula
Realizada a eleição e declarado o vencedor, Bolsonaro manteve-se em total silêncio. Seu primeiro pronunciamento oficial foi realizado em 01/11/22, durou exatos dois minutos e neles não reconheceu a vitória de seu oponente. O segundo pronunciamento ocorreu em 30/12/23, no qual afirmou que nem tudo estava perdido. Um dia depois, desembarcou na Flórida, nos Estados Unidos, e lá permanece até hoje (13/02/23).
Em paralelo, desde a madrugada do dia 31/10 (segunda-feira), um dia depois das eleições do segundo turno, caminhoneiros, a maioria de frotas de grandes empresários, bloquearam importantes rodovias em 22 estados em protesto contra o resultado das eleições. Junto a eles, somavam-se adeptos de Bolsonaro, que também se fizeram presentes em algumas cidades. Foi necessário que o Ministro Alexandre Moraes, presidente do Supremo Tribunal Eleitoral (STE), ordenasse a imediata desobstrução das rodovias pelas forças policiais estaduais e locais, sob pena de pesadas multas, ordem inclusive dirigida ao diretor da Polícia Rodoviária Federal (que estava claramente comprometido com o movimento e que permitiu o atraso do deslocamento de eleitores nos estados em que Lula tinha franco apoio, tal como mencionado acima). A decisão de Moraes foi imediatamente referendada pela maioria do Supremo Tribunal Federal (STF). Na manhã de quarta-feira, várias estradas continuaram com bloqueios e se concentravam em estados onde Bolsonaro ganhou por larga margem. Em vários locais, estradas foram liberadas pela ação de torcidas organizadas que estavam se deslocando para assistir jogos de campeonatos de futebol. Também houve casos em que metalúrgicos e moradores de favelas fizeram o mesmo.
Apesar da ordem de Moraes, em vários estados, a desobstrução era seguida por novos bloqueios, no mesmo lugar ou em pontos diferentes das rodovias. Durante todo o tempo, vídeos que circulavam nas redes sociais mostravam o pouco empenho dos policiais em realizar a desobstrução e, em alguns casos, sua socialização com os bolsonaristas. Somente em 23 de novembro, pode-se dizer que a mobilidade nas estradas voltou à normalidade.
Ao mesmo tempo em que as estradas foram bloqueadas, bolsonaristas se reuniram em frente aos quartéis do exército brasileiro nas principais capitais do país (inclusive em Brasília, capital do país, no Distrito Federal). Lá permaneceram até 09/01/23, um dia depois da invasão e depredação dos edifícios dos três poderes da República (Congresso Nacional, Palácio do Planalto e STF). A longa permanência dos bolsonaristas na frente dos quartéis, com toda a infraestrutura, em nada lembrando acampamentos de movimentos sociais da esquerda, só foi possível porque o próprio exército lhe deu guarida e não permitiu que as forças policiais os desalojassem.
Um dia antes da diplomação de Lula, em 11/12/22, bolsonaristas tentaram invadir a Polícia Federal sob o pretexto de resgatar um militante da direita que fora preso, queimaram carros e ônibus. As forças repressivas demoraram para chegar e os dispersarem, mas não houve nenhuma prisão. Na véspera do Natal, uma bomba foi encontrada na via de acesso ao aeroporto de Brasília. No momento em que escrevemos essas notas, os três envolvidos no atentado estavam presos, aguardando julgamento.
Mas o auge das ações dos adeptos de Bolsonaro foi, sem dúvida, o que ocorreu em 08/01/23, uma semana após a posse de Lula. Além da depredação brutal, houve cenas escatológicas, de total barbárie e a destruição de quadros famosos e peças únicas, insubstituíveis. Os bolsonaristas que participaram desse ato de barbárie vieram de várias partes do país, mas mais fortemente dos estados nos quais Bolsonaro teve votação estrondosa e, não por coincidência, onde a população se vangloria publicamente de estar fortemente armada. De classes de renda distintas, mas com predomínio do que se considera como classe média, seus participantes tinham, em média, mais de 46 anos, com uma presença masculina um pouco maior que a feminina. Não há, até o momento, informações relativas às atividades por eles exercidas, mas os vídeos por eles mesmos vinculados nas redes sociais permitiram identificar, militares, pastores evangélicos, professores, envolvidos na extração de minérios em regiões de conflito, entre outras profissões.
A facilidade com que os bolsonaristas chegaram à Praça dos três Poderes, adentraram em suas instalações e passaram a destruir o que encontrassem pela frente somente é explicada pela leniência e, em alguns casos, pelo franco apoio recebido das forças de segurança que deveriam impedi-los, inclusive do próprio Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República. Os registros em vídeo - feitos pelos próprios bolsonaristas ou pelas câmeras de segurança - não deixam dúvida sobre isso.
Além disso, apesar de diferentes órgãos de inteligência terem informado sobre a possibilidade de grande ato em Brasília por parte dos adeptos de Bolsonaro, o efetivo inicial previsto para conter a investida foi praticamente desmobilizado sem que o Ministro da Justiça de Lula tomasse conhecimento.
Ao caos criado pelos bolsonaristas em Brasília, era esperado, ao que tudo indica, que o governo Lula respondesse com a decretação de situação de Garantia da Lei e da Ordem em Brasília, mas, com isso, a capital ficaria sob o comando das Forças Armadas, o que seria, no mínimo, temerário. No lugar disso, Lula decretou intervenção federal no DF e afastou seu governador, o que foi, logo depois, sancionado pelos deputados e senadores. Essas medidas foram completadas pelas ações encaminhadas por Alexandre de Moraes, que definiu, entre outras ações, a prisão em flagrante dos participantes das invasões, a abertura de investigação para determinar quem foram os responsáveis pela desmobilização das forças para impedir a realização de atos na Esplanada dos Ministérios, de seus organizadores e financiadores, a prisão do comandante da Polícia Militar e do Secretário de Segurança Pública do DF e a completa desmobilização dos acampamentos ainda existentes em frente aos quartéis. Os mandados de prisão dos envolvidos, bem como dos que publicamente se manifestaram (e ainda se manifestam) por um golpe militar e pela invalidação das eleições presidenciais, continuam a ser cumpridos em todos o território nacional. Também foram abertos inquéritos policiais militares para apurar a conduta e omissão de comandantes, subcomandantes e outros policiais. Na sociedade, diferentes instituições e personalidades se posicionaram contra as invasões e movimentos sociais, associações, centrais sindicatos e partidos convocaram mobilizações para o dia seguinte nas principais capitais e cidades do país.
Ainda como desdobramento do dia 08/01, registre-se que o comandante do Exército não permitiu que, à noite desse dia, fossem presos os bolsonaristas que haviam voltado para o acampamento em frente ao quartel de Brasília. Essa atitude e o fato de não ter anulado a nomeação do ajudante de ordens de Bolsonaro (realizada ao final de seu governo) para o comando do 1º Batalhão de Ações de Comando, em Goiânia (que fica ao lado de Brasília), levou a que ele fosse exonerado do cargo em 21/01. Esse batalhão, assim como o de operações especiais, constitui uma tropa de elite que pode ser acionada rapidamente para debelar ameaças convencionais e não-convencionais no território nacional. Enfim, um comando estratégico, que seria assumido pelo principal assessor de Bolsonaro.
A invasão dos Três Poderes também determinou que Lula acelerasse a troca do comando de superintendências regionais da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e da chefia da Polícia Federal em 26 estados do país, instituições sabidamente receptivas às ideias bolsonaristas. Além de nomear diretores que haviam sido afastados anteriormente por Bolsonaro, chama atenção o fato de 9 mulheres terem sido nomeadas na PRF. Em relação ao GSI, responsável pela segurança do presidente da República, de seus familiares e dos prédios do executivo, Lula, até o momento em que redigimos essa Nota, dispensou e/ou exonerou mais de 60 integrantes militares, inclusive trocando seu secretárioexecutivo. Dessa forma, a tentativa de golpe foi controlada. Pelo menos, até o momento.
A posse de Lula, o trabalho da equipe de transição e os novos ministérios
A posse de Lula ocorreu em 01/01/2023, como previsto. Apesar da bomba armada uma semana antes por bolsonaristas, Lula não deixou de desfilar em carro aberto e de subir a rampa de acesso ao Palácio do Planalto. A presença da população no ato foi bem maior do que em suas posses anteriores e nas de Dilma Rousseff.
Lula subiu a rampa acompanhado pelo povo brasileiro, nas pessoas do cacique Raoni (91 anos), do povo Kayapó, uma das maiores lideranças indígenas do país; por um menino negro de 6 anos; por um deficiente; por um metalúrgico; por um professor; por uma integrante da Vigília Lula Livre (movimento que ficou em frente ao local onde Lula esteva preso durante todo o tempo de seu encarceramento) e por uma catadora de materiais recicláveis. A faixa presidencial lhe foi entregue por essa última.
Em seu discurso proferido à população, Lula resumiu os principais pontos defendidos durante sua campanha e reiterados pelos grupos de trabalho que formaram sua equipe de transição. Desde dezembro de 2002 (lei 10.609/20020, é garantido que o (a) candidato (a) eleito (a) forme uma equipe de transição com 50 cargos para que não ocorra uma ruptura entre um governo e outro. A equipe de Lula foi mais numerosa do que o costumeiro, somando-se inúmeras outras pessoas àquelas que assumiram cargos (apenas 22), das mais diversas formações e expertises e em caráter voluntário.
A equipe, chamada de Gabinete de Transição no relatório final apresentado à sociedade brasileira, foi formada de 32 grupos temáticos, com caráter setoriais e transversais, de um Conselho Político e de um Conselho de Participação Social. Seu principal intuito era definir ações e estratégias considerando a situação efetiva dos órgãos e entidades da Administração Pública Federal e das políticas públicas, além de um diagnóstico da situação. O resultado encontrado foi estarrecedor. Nos últimos anos, houve deliberada desconstrução institucional, desmonte do Estado e desorganização das políticas públicas.
Lula subiu a rampa acompanhado pelo povo brasileiro, nas pessoas do cacique Raoni (91 anos), do povo Kayapó, uma das maiores lideranças indígenas do país; por um menino negro de 6 anos; por um deficiente; por um metalúrgico; por um professor; por uma integrante da Vigília Lula Livre (movimento que ficou em frente ao local onde Lula esteva preso durante todo o tempo de seu encarceramento) e por uma catadora de materiais recicláveis. A faixa presidencial lhe foi entregue por essa última.
Em seu discurso proferido à população, Lula resumiu os principais pontos defendidos durante sua campanha e reiterados pelos grupos de trabalho que formaram sua equipe de transição. Desde dezembro de 2002 (lei 10.609/20020, é garantido que o (a) candidato (a) eleito (a) forme uma equipe de transição com 50 cargos para que não ocorra uma ruptura entre um governo e outro. A equipe de Lula foi mais numerosa do que o costumeiro, somando-se inúmeras outras pessoas àquelas que assumiram cargos (apenas 22), das mais diversas formações e expertises e em caráter voluntário.
A equipe, chamada de Gabinete de Transição no relatório final apresentado à sociedade brasileira, foi formada de 32 grupos temáticos, com caráter setoriais e transversais, de um Conselho Político e de um Conselho de Participação Social. Seu principal intuito era definir ações e estratégias considerando a situação efetiva dos órgãos e entidades da Administração Pública Federal e das políticas públicas, além de um diagnóstico da situação. O resultado encontrado foi estarrecedor. Nos últimos anos, houve deliberada desconstrução institucional, desmonte do Estado e desorganização das políticas públicas.
É difícil escolher o campo em que o nível de destruição foi maior, mas não há dúvida de que, na educação, saúde, preservação ambiental e defesa dos povos indígenas, foi aplicada uma verdadeira política de terra arrasada, cujos efeitos serão difíceis de reverter no curto prazo. Para dar uma ideia do resultado dessa política, o Brasil, que se destacava mundialmente por seu sistema vacinal, viu a taxa de cobertura da população alvo contra a poliomielite, por exemplo, baixar de 98% (2015) para 52% (setembro de 2022). O país perdeu a certificação de livre do sarampo em 2019.
Com relação ao meio ambiente e ao tratamento dos povos originários, não há maior exemplo do quadro de destruição do que aquele que está ocorrendo com o povo Yanomami no Norte do país. Os yanomamis vivem na maior reserva indígena existente no Brasil, que compreende 9,6 milhões de hectares está situado em Roraima e em parte do estado do Amazonas. Essa reserva foi demarcada em 22/05/1992, depois de um processo que durou15 anos. Durante a ditadura militar, foi desenvolvido o Projeto Radam (Radar na Amazônica), que tinha como objetivo levantar dados sobre os recursos minerais, solos, vegetação, uso da terra e cartografia da região Amazônica. Foi a partir desse levantamento que a região onde viviam os yanomamis foi conhecida como rica em minérios, entre os quais ouro e cassiterita (do qual se extrai estanho, usado no processo de fabricação de inúmeros produtos). Isso provocou uma progressiva invasão garimpeira que, a partir de 1987, converteu-se numa verdadeira corrida do ouro. Quando a reserva foi finalmente demarcada, o garimpo arrefeceu em parte, mas nunca deixou de existir. Contudo, sua presença descarada e brutal, sem receio de ser coibida, fez parte cotidiana dos anos do governo Bolsonaro. Os mineradores ilegais promoviam a contaminação das águas e dos solos da reserva, além dos estupros e mortes de indígenas, forma sistemática de imporem sua presença predatória. Quanto ao governo, Bolsonaro militarizou a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), de modo que 37 das 39 coordenações regionais eram chefiadas por militares e apenas 2 por servidores de carreira. Ele reduziu enormemente o contingente de servidores destinado para ações indigenistas, de preservação do território, da saúde e da cultura dos povos originários. Enfim, foi conivente com o avanço do garimpo e não garantiu o acesso dos yanomamis às ações e serviços de saúde. A mais recente denúncia, que está sendo investigada pelo Ministério da Saúde e pela Polícia Federal, é o desvio, para venda aos garimpeiros, de remédios contra a malária destinada aos yanomamis. O resultado disso tudo hoje é conhecido de todos e internacionalmente: os yanomamis foram submetidos a um verdadeiro genocídio e estão morrendo de inanição e doença.
A resposta do governo Lula foi, nos primeiros dias de seu governo, tornar prioritário o enfrentamento dessa questão, formando uma força tarefa que envolve diversos ministérios. Além da prioridade de prover alimentos e atenção à saúde, o governo exonerou os militares que chefiavam as coordenações regionais, nomeou a indígena Joenia Wapichana para presidir a Funai, tomou providências para ampliar o seu quadro de funcionários e para enfrentar o garimpo ilegal. É a primeira vez que a Funai será presidida por uma representante indígena e, no caso, uma mulher.
Os trabalhos da equipe de transição foram bastante abrangentes. Foi feito um diagnóstico do Desmonte do Estado e das Políticas Sociais, da situação do Desenvolvimento Econômico e da Sustentabilidade Socioambiental e Climática e da Defesa da Democracia, Reconstrução do Estado e da Soberania. Isso foi complementado com um Mapeamento das Emergências Fiscais e do Orçamento Público, Sugestões de Medidas para Revogação e Revisão, e Proposta de nova Estrutura Organizacional dos Ministérios.
Entre as questões emergenciais, destacava-se a necessidade de haver recursos para que a transferência de renda dirigida à população mais carente tivesse continuidade, dado que mais de 33 milhões de brasileiros estavam passando fome e 125,2 milhões conviviam com alguma forma de insegurança alimentar, fruto da piora da situação econômica e social provocada por dois anos de governo Temer e quatro de Bolsonaro. O caráter de emergência decorria, além da questão humanitária, do fato de Bolsonaro não ter incluído essa despesa na proposta orçamentária de 2023 (assim como várias outras, reduzindo em 60% a disponibilidade de recursos para a compra de medicamentos do Programa Farmácia Popular, por exemplo). Frente a isso, antes mesmo de Lula tomar posse, precisou negociar com o Congresso Nacional para que essas Casas aprovassem Emenda Constitucional (EC) que garantisse recursos para o atendimento dessa transferência de renda. Nesse momento, os novos deputados e senadores eleitos em 2022, de perfil ainda mais à direita como mencionamos anteriormente, não tinham sido ainda diplomados.
A necessidade da aprovação de uma EC decorre da emenda constitucional 95/2016 que congelou os gastos do orçamento do governo federal por 20 anos, sendo admitido apenas reajuste de acordo com a inflação. Na prática, desde sua aprovação, o teto do gasto foi rompido cinco vezes. Em duas oportunidades, esse rompimento foi motivado por emergência sanitária, social e econômica decorrente, em ampla medida, da pandemia de covid-19; a última vez, em 2022, embora contemplasse a população mais desfavorecida, incluía também outros segmentos da população, tais como motoristas de táxi e caminhoneiros, o que foi denunciado como uma ação eleitoreira, que visava angariar votos para a reeleição de Bolsonaro.
Lula formou seu governo com 37 Ministérios, com 26 homens e 11 mulheres (superando o primeiro governo Dilma em uma mulher). Desses, 11 são negros e 2 indígenas (Ministério dos Povos Indígenas e Ministério do Desenvolvimento Social). Pela primeira vez na história do Brasil, o Ministério da Saúde será dirigido por uma mulher, Nísea Trindade. Durante a pandemias ela esteve à frente da Fundação Oswaldo Cruz, importante instituição de pesquisa da área da saúde do país, e teve que gerenciar o combate ao negativismo encabeçado por Bolsonaro e produzir a vacina AstraZeneca em território nacional. A presença de mulheres também é registrada em outros cargos. Além da Funai, destacamos a condução por mulheres dos dois principais bancos públicos, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, e da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, dirigida por uma mulher Trans.
Esses destaques que aqui estamos fazendo não são triviais. Depois de anos de machismo, de racismo e de intolerância em todos os campos, defendidos por atitudes ou palavras proferidas pelo principal representante do país, ver a diversidade representada nos órgãos que irão tocar as políticas do governo federal é um alento e está pleno de esperança. Embora saibamos que, para apagar as marcas recentes do retrocesso e para avançar no sentido do reconhecimento do outro, é preciso muito caminhar, o que somente será possível se a esquerda e os chamados setores progressistas se mantiverem organizados, atentos e dispostos a lutar. É nesse mesmo sentido que a criação dos ministérios da Mulher, dos Direitos Humanos e Igualdade Racial foram festejados.
As medidas dos primeiros vinte dias de governo e os desafios a enfrentar
Lula conseguiu garantir mesmo antes de sua posse os recursos para o pagamento de transferência de renda à população mais pobre, para o ano de 2023, mediante a aprovação da EC 126/22. Assim, nos seus primeiros dias de existência o novo governo centrou suas ações em: revogar as medidas que feriam direitos estabelecidos; desmilitarizar o serviço público; nomear para postos chave pessoas reconhecidas por sua competência na área em questão; reestabelecer secretarias e/ou departamentos que foram extintos durante o governo Bolsonaro ou que haviam perdido importância no organograma de ministérios, o que implicava uma ruptura com relação a certas políticas públicas; aumentar o piso salarial dos professores, que há muito estava defasado; aprovar medidas que viabilizassem a retomada do calendário vacinal e, principalmente, priorizar o atendimento sanitário e alimentar aos yanomamis, somado a ações que têm como propósito coibir a ação do garimpo ilegal em suas terras.
Durante o governo Bolsonaro, houve um aumento expressivo da presença de militares da ativa e da reserva em cargos e funções civis no governo. Em 2020, o último levantamento realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) identificou 6.157 militares exercendo funções civis, sendo eles oriundos das três Forças Armadas. Essa presença militar não só aumentou com relação ao governo anterior, como superou em muito a existente durante a ditadura militar. Para se ter uma ideia do absurdo a que essa presença chegou, o país teve como ministro da Saúde (15/05/2020 a 15/03/2021) um general do exército da ativa, Eduardo Pazuello, como se não houvesse profissionais da área habilitados para dirigir a pasta durante o período mais grave da pandemia de covid-19.
A necessidade da aprovação de uma EC decorre da emenda constitucional 95/2016 que congelou os gastos do orçamento do governo federal por 20 anos, sendo admitido apenas reajuste de acordo com a inflação. Na prática, desde sua aprovação, o teto do gasto foi rompido cinco vezes. Em duas oportunidades, esse rompimento foi motivado por emergência sanitária, social e econômica decorrente, em ampla medida, da pandemia de covid-19; a última vez, em 2022, embora contemplasse a população mais desfavorecida, incluía também outros segmentos da população, tais como motoristas de táxi e caminhoneiros, o que foi denunciado como uma ação eleitoreira, que visava angariar votos para a reeleição de Bolsonaro.
Lula formou seu governo com 37 Ministérios, com 26 homens e 11 mulheres (superando o primeiro governo Dilma em uma mulher). Desses, 11 são negros e 2 indígenas (Ministério dos Povos Indígenas e Ministério do Desenvolvimento Social). Pela primeira vez na história do Brasil, o Ministério da Saúde será dirigido por uma mulher, Nísea Trindade. Durante a pandemias ela esteve à frente da Fundação Oswaldo Cruz, importante instituição de pesquisa da área da saúde do país, e teve que gerenciar o combate ao negativismo encabeçado por Bolsonaro e produzir a vacina AstraZeneca em território nacional. A presença de mulheres também é registrada em outros cargos. Além da Funai, destacamos a condução por mulheres dos dois principais bancos públicos, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, e da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, dirigida por uma mulher Trans.
Esses destaques que aqui estamos fazendo não são triviais. Depois de anos de machismo, de racismo e de intolerância em todos os campos, defendidos por atitudes ou palavras proferidas pelo principal representante do país, ver a diversidade representada nos órgãos que irão tocar as políticas do governo federal é um alento e está pleno de esperança. Embora saibamos que, para apagar as marcas recentes do retrocesso e para avançar no sentido do reconhecimento do outro, é preciso muito caminhar, o que somente será possível se a esquerda e os chamados setores progressistas se mantiverem organizados, atentos e dispostos a lutar. É nesse mesmo sentido que a criação dos ministérios da Mulher, dos Direitos Humanos e Igualdade Racial foram festejados.
As medidas dos primeiros vinte dias de governo e os desafios a enfrentar
Lula conseguiu garantir mesmo antes de sua posse os recursos para o pagamento de transferência de renda à população mais pobre, para o ano de 2023, mediante a aprovação da EC 126/22. Assim, nos seus primeiros dias de existência o novo governo centrou suas ações em: revogar as medidas que feriam direitos estabelecidos; desmilitarizar o serviço público; nomear para postos chave pessoas reconhecidas por sua competência na área em questão; reestabelecer secretarias e/ou departamentos que foram extintos durante o governo Bolsonaro ou que haviam perdido importância no organograma de ministérios, o que implicava uma ruptura com relação a certas políticas públicas; aumentar o piso salarial dos professores, que há muito estava defasado; aprovar medidas que viabilizassem a retomada do calendário vacinal e, principalmente, priorizar o atendimento sanitário e alimentar aos yanomamis, somado a ações que têm como propósito coibir a ação do garimpo ilegal em suas terras.
Durante o governo Bolsonaro, houve um aumento expressivo da presença de militares da ativa e da reserva em cargos e funções civis no governo. Em 2020, o último levantamento realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) identificou 6.157 militares exercendo funções civis, sendo eles oriundos das três Forças Armadas. Essa presença militar não só aumentou com relação ao governo anterior, como superou em muito a existente durante a ditadura militar. Para se ter uma ideia do absurdo a que essa presença chegou, o país teve como ministro da Saúde (15/05/2020 a 15/03/2021) um general do exército da ativa, Eduardo Pazuello, como se não houvesse profissionais da área habilitados para dirigir a pasta durante o período mais grave da pandemia de covid-19.
Entre as ações que revogaram as medidas retrógradas da gestão anterior, na impossibilidade de aqui mencionar todas, destacamos a extinção da exigência de os serviços de saúde comunicarem à polícia quando da realização de aborto em caso de estupro. No Brasil, desde 2012, o aborto é permitido quando a gravidez põe em risco à vida da gestante, quando é resultante de violência sexual e quando há anencefalia fetal. Durante o governo Bolsonaro, não foram poucas as vezes em que se tentou impedir que menores estupradas interrompessem sua gravidez, inclusive mediante iniciativas de autoridades locais.
Os objetivos de Lula, expressos na campanha presidencial e no relatório do Gabinete de Transição, vão muito além de “simplesmente” desfazer, no plano legal e institucional, o que foi realizado durante os últimos anos. Com isso, evidentemente, não estamos dizendo que esse “desfazer” seja fácil de ser executado, pois o nível de destruição empreendido foi tal em algumas áreas - seja por redução do número de funcionários ou de recursos, seja por mudança de prioridade - que a reconstrução da gestão do Estado e das políticas não será tarefa de poucos dias ou meses. Ocorre que, simultaneamente a esse desafio, há que enfrentar aspectos da sociedade e da economia que têm raízes estruturais e/ou foram aprofundados nesses últimos anos de aplicação de políticas neoliberais das mais extremas.
Como enfrentar a enorme desigualdade que faz do Brasil um dos países menos equitativos do mundo sob qualquer critério que se queira aplicar? Como fazer frente à enorme desindustrialização e à especialização crescente na produção de comodities? Depois do golpe empreendido contra Dilma Rousseff, o neoliberalismo avançou aceleradamente: não só foi promovida uma reforma nas relações entre o capital e o trabalho, flexibilizando ainda mais a gestão da força de trabalho, como os gastos do governo federal foram congelados por vinte anos, pela EC 95/2016, e foi aprovada a independência do Banco Central. É sob esse arcabouço institucional (que em última análise rege a política fiscal e a monetária do país) que o novo governo Lula deve atuar. É mais do que óbvio que, para o Estado brasileiro estimular ou induzir a reindustrialização do país, e incorporando as tecnologias mais modernas, se faz necessária a mudança dessas regras ou institucionalidades. Certamente Lula enfrentará forte oposição a essas mudanças.
Dessa forma, embora o novo governo possa avançar na recomposição de políticas públicas anteriormente bem sucedidas, sua margem de manobra parece ser menor do que no passado. De um lado, houve avanço no sentido do regramento das possibilidades da ação do Estado; de outro, a sociedade já não é mais igual a de vinte anos atrás. Ao contrário, aquilo que estava anteriormente latente e já se podia observar desde o segundo governo Lula, se consolidou: parte substantiva da população brasileira não coaduna com políticas que tenham como premissa a igualdade, a solidariedade e o direito emanado da cidadania. Além disso, o avanço da ação capitalista selvagem está presente em todo o território nacional e não somente na região Norte do país. A ação dos garimpeiros na região yanomami é “apenas” o exemplo mais extremo. O contexto estrutural e a luta de classes
Além das restrições mais conjunturais para a implementação de medidas paliativas de compensação mediante o Programa Bolsa Família, por exemplo, as condições estruturais são as maiores barreiras para uma política mais progressista. Essas condições não foram enfrentadas nem na saída da ditadura com a Constituição de 1988 e nem nos posteriores governos mais progressistas. Assim, segundo a OXFAM, "O 1% mais rico concentra 48% de toda a riqueza nacional e os 10% mais ricos ficam com 74%. Por outro lado, 50% da população brasileira possui cerca de 3% da riqueza total do País" e "seis brasileiros possuem a mesma riqueza que a soma do que possui a metade mais pobre da população, mais de 100 milhões de pessoas." Uma das frações de classe que se coloca mais à direita do espectro político são os proprietários de terras. Em 2006, os grandes estabelecimentos somam apenas 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com área inferior a 10 hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos do país, mas ocupam menos de 2,3% da área total.
Essas frações das classes dominantes no Brasil foram as beneficiárias do crédito subsidiado para investimentos de longo prazo, financiamentos imobiliários e crédito rural. O saldo total de crédito em dezembro de 2022, era de R$ 5,3 trilhões ou 54% do PIB, desse total, 40,4% era subsidiado à uma taxa média anual de juros de 11,9% para pessoas jurídicas e 11,3% para pessoas físicas enquanto o crédito livre cobrava taxas de 23,1% e 55,8%, respectivamente. Uma parte importante dos recursos para esse subsídio são fundos dos trabalhadores, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, outra parte são recursos do Tesouro Nacional. Do total de empréstimos subsidiados, destaca-se o crédito rural para os proprietários de terras num total de R$ 405,7 bilhões ou 28,8% dos empréstimos subsidiados para pessoas físicas.
Enquanto isso, a taxa básica de juros fixada pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central está fixada em 13,75% ao ano e serve para remunerar os títulos da dívida pública. Uma parte desses títulos, ou 23,8% de R$ 5,2 trilhões está na carteira do Banco Central como colateral para as operações compromissadas de overnight no mercado aberto. Esse mercado, que remunera todo o capital monetário ocioso, movimentou diariamente R$ 1,68 trilhão ou 17,1% do PIB, em dezembro de 2022.
Na saída da crise da dívida dos anos 1980, o Brasil retirou da Constituição a distinção entre capital nacional e capital estrangeiro em 1995. Assim, todos capitais passaram a ter direito aos benefícios, como o crédito subsidiado, e seus proprietários receberam isenção do pagamento do imposto de renda sobre lucros e dividendos distribuídos. Assim, as frações mais ricas do Brasil e também os estrangeiros posteriormente deixaram de pagar imposto sobre a renda, aprofundando o grau de regressividade do sistema tributário, concebido originalmente durante a ditadura militar nos anos 1964-1967. Além disso, foi introduzido um regime chamado de juros sobre o capital próprio em que os acionistas podem receber juros ou dividendos, de acordo com decisões das empresas.
Esses dados nos permitem interpretar a ferocidade que a luta de classes no Brasil atingiu na defesa desses interesses. Pela primeira vez, políticos, empresários, religiosos, jornalistas, outros intelectuais e frações da pequena burguesia perderam a vergonha de autointitular-se de direita. Mais ainda, de defender um conjunto de ideias retrógradas e o retrocesso do próprio processo civilizador. O núcleo central, de extrema-direita, reuniu-se em organizações e movimentos, partidos políticos e outras formas assumindo a direção de uma parte do movimento de massas. Esse movimento, que apareceu inicialmente em 2013, foi conquistando parcelas cada vez maiores da população, que elegeu Bolsonaro em 2018 e concedeu quase 50% dos votos em 2022. É esse o contexto que o governo Lula está enfrentando e, mesmo que ele desfaça uma grande parte das medidas criadas no último governo, as condições estruturais da economia, com sua extrema desigualdade e privilégios, e as contradições explicitadas pela luta de classes devem permanecer e dificultar a adoção de medidas mais progressistas.
Enquanto isso, a taxa básica de juros fixada pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central está fixada em 13,75% ao ano e serve para remunerar os títulos da dívida pública. Uma parte desses títulos, ou 23,8% de R$ 5,2 trilhões está na carteira do Banco Central como colateral para as operações compromissadas de overnight no mercado aberto. Esse mercado, que remunera todo o capital monetário ocioso, movimentou diariamente R$ 1,68 trilhão ou 17,1% do PIB, em dezembro de 2022.
Na saída da crise da dívida dos anos 1980, o Brasil retirou da Constituição a distinção entre capital nacional e capital estrangeiro em 1995. Assim, todos capitais passaram a ter direito aos benefícios, como o crédito subsidiado, e seus proprietários receberam isenção do pagamento do imposto de renda sobre lucros e dividendos distribuídos. Assim, as frações mais ricas do Brasil e também os estrangeiros posteriormente deixaram de pagar imposto sobre a renda, aprofundando o grau de regressividade do sistema tributário, concebido originalmente durante a ditadura militar nos anos 1964-1967. Além disso, foi introduzido um regime chamado de juros sobre o capital próprio em que os acionistas podem receber juros ou dividendos, de acordo com decisões das empresas.
Esses dados nos permitem interpretar a ferocidade que a luta de classes no Brasil atingiu na defesa desses interesses. Pela primeira vez, políticos, empresários, religiosos, jornalistas, outros intelectuais e frações da pequena burguesia perderam a vergonha de autointitular-se de direita. Mais ainda, de defender um conjunto de ideias retrógradas e o retrocesso do próprio processo civilizador. O núcleo central, de extrema-direita, reuniu-se em organizações e movimentos, partidos políticos e outras formas assumindo a direção de uma parte do movimento de massas. Esse movimento, que apareceu inicialmente em 2013, foi conquistando parcelas cada vez maiores da população, que elegeu Bolsonaro em 2018 e concedeu quase 50% dos votos em 2022. É esse o contexto que o governo Lula está enfrentando e, mesmo que ele desfaça uma grande parte das medidas criadas no último governo, as condições estruturais da economia, com sua extrema desigualdade e privilégios, e as contradições explicitadas pela luta de classes devem permanecer e dificultar a adoção de medidas mais progressistas.
Rosa Maria Marques é professora do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em São Paulo, Brasil, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política e da Sociedade Brasileira de Economia da Saúde. Paulo Nakatani é professor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo em Vitória, Brasil.
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