Tehreem Abedi
É difícil saber quanto dano é causado a milhões de mulheres nos EUA e no mundo que têm de combinar o stress e a emoção do parto com cuidados de saúde inadequados. (Diego Cerro Jiménez/Getty Images) |
Tradução / Com dois anos de diferença dei à luz duas crianças em duas cidades, Nova Iorque e Londres. Na minha primeira gravidez vivia no bairro de Upper East Side, em Manhattan. Estava a aclimatar-me ao nosso novo apartamento duplex quando recebi uma chamada. Perguntaram-me se queria marcar uma visita ao hospital. Para mim, a ideia de visitar um hospital antes de dar à luz — como se fosse um hotel onde se estivesse deliberadamente a fazer check-in — soava absurda. Que poderia eu querer ver?
Cresci no Reino Unido numa altura em que o Serviço Nacional de Saúde (National Health Service, NHS) era ainda bem financiado e predominava um serviço “tamanho único”, através do qual todos recebiam o melhor tratamento possível. Rodeada pelo brilho e o glamour dos serviços de saúde privados americanos, o meu espanto europeu cedo deu lugar ao entusiasmo de ter o poder de influenciar o processo de nascimento do meu primeiro filho.
Enquanto andávamos às voltas pelo Mount Sinai West — um imponente edifício de dez andares na 10ª Avenida, bairro de Upper West Side, Manhattan — quem me guiava tentava vender-me o hospital. A maternidade, disseram-me, estava no topo dos rankings e a suite de partos estava desenhada para criar um ambiente familiar confortável.
Parecia claramente melhor do que simplesmente ser-me dito em que hospital subfinanciado do Reino Unido eu iria parir, como foi a experiência de algumas das minhas pares que haviam recentemente dado à luz. A “guia turística” não percebeu que não precisava de ser tão entusiasta a vender-me o produto — o hospital, com o seu chão brilhante de tão branco e as suas casas de banho espaçosas falava por si mesmo.
O aspeto daquele lugar tornava muito mais fácil imaginar os nossos primeiros momentos como uma família de três. Dar à luz no equivalente hospitalar do Ritz não seria, previsivelmente, barato: passar a noite custar-me-ia 900 dólares, fora todos os custos relativos ao parto e cuidados ambulatórios.
Dois anos depois, a meio de uma pandemia, dei por mim dentro de uma casa de banho do Hospital de Chelsea e Westminster, em Londres onde mal conseguia virar-me. O edifício onde esperava a minha primeira consulta parecia datado; não tinha o brilho do Mount Sinai West. Estava a poucas semanas do parto e decidi deixar-me estar no Reino Unido, onde vivia a minha família próxima. O meu marido e eu não conseguíamos imaginar como seria gerir sozinhos uma criança enérgica e um recém-nascido.
Enquanto me deitava para ser examinada, fiquei horrorizada ao ver a médica obstetra puxar de uma fita métrica para medir o crescimento do bebé. Senti que tinha voltado atrás no tempo: não haveria algo menos analógico para fazer aquele trabalho? Estava habituada a fazer ecografias de rotina em todas as minhas consultas. Fiquei chocada ao saber que, em Inglaterra, as grávidas fazem, em média, duas ecografias durante toda a gravidez. Foi um contraste enorme com o que se passou em Nova Iorque, onde a minha gravidez foi gerida ao pormenor por um médico que encontrei após horas de pesquisa, leitura de avaliações e críticas e comparação de qualificações.
Como o Mohsin nasceu de parto natural, presumi que da segunda vez seria igual. A primeira vez foi bastante direta ao assunto, portanto aquela também deveria ser tranquila. Outras mulheres muito mais pobres e muito menos saudáveis que eu costumavam dar à luz oito, nove, ou mesmo dez crianças sem qualquer droga. Haveria de me preocupar com o quê?
Em Londres, ao analisar o historial da minha gravidez, a médica obstetra fez uma pausa prolongada quando percebeu a magnitude das minhas lesões. Assegurou-me, gentilmente, que aquelas informações seriam discutidas por uma equipa médica.
Cresci no Reino Unido numa altura em que o Serviço Nacional de Saúde (National Health Service, NHS) era ainda bem financiado e predominava um serviço “tamanho único”, através do qual todos recebiam o melhor tratamento possível. Rodeada pelo brilho e o glamour dos serviços de saúde privados americanos, o meu espanto europeu cedo deu lugar ao entusiasmo de ter o poder de influenciar o processo de nascimento do meu primeiro filho.
Enquanto andávamos às voltas pelo Mount Sinai West — um imponente edifício de dez andares na 10ª Avenida, bairro de Upper West Side, Manhattan — quem me guiava tentava vender-me o hospital. A maternidade, disseram-me, estava no topo dos rankings e a suite de partos estava desenhada para criar um ambiente familiar confortável.
Parecia claramente melhor do que simplesmente ser-me dito em que hospital subfinanciado do Reino Unido eu iria parir, como foi a experiência de algumas das minhas pares que haviam recentemente dado à luz. A “guia turística” não percebeu que não precisava de ser tão entusiasta a vender-me o produto — o hospital, com o seu chão brilhante de tão branco e as suas casas de banho espaçosas falava por si mesmo.
O aspeto daquele lugar tornava muito mais fácil imaginar os nossos primeiros momentos como uma família de três. Dar à luz no equivalente hospitalar do Ritz não seria, previsivelmente, barato: passar a noite custar-me-ia 900 dólares, fora todos os custos relativos ao parto e cuidados ambulatórios.
Dois anos depois, a meio de uma pandemia, dei por mim dentro de uma casa de banho do Hospital de Chelsea e Westminster, em Londres onde mal conseguia virar-me. O edifício onde esperava a minha primeira consulta parecia datado; não tinha o brilho do Mount Sinai West. Estava a poucas semanas do parto e decidi deixar-me estar no Reino Unido, onde vivia a minha família próxima. O meu marido e eu não conseguíamos imaginar como seria gerir sozinhos uma criança enérgica e um recém-nascido.
Enquanto me deitava para ser examinada, fiquei horrorizada ao ver a médica obstetra puxar de uma fita métrica para medir o crescimento do bebé. Senti que tinha voltado atrás no tempo: não haveria algo menos analógico para fazer aquele trabalho? Estava habituada a fazer ecografias de rotina em todas as minhas consultas. Fiquei chocada ao saber que, em Inglaterra, as grávidas fazem, em média, duas ecografias durante toda a gravidez. Foi um contraste enorme com o que se passou em Nova Iorque, onde a minha gravidez foi gerida ao pormenor por um médico que encontrei após horas de pesquisa, leitura de avaliações e críticas e comparação de qualificações.
Como o Mohsin nasceu de parto natural, presumi que da segunda vez seria igual. A primeira vez foi bastante direta ao assunto, portanto aquela também deveria ser tranquila. Outras mulheres muito mais pobres e muito menos saudáveis que eu costumavam dar à luz oito, nove, ou mesmo dez crianças sem qualquer droga. Haveria de me preocupar com o quê?
Em Londres, ao analisar o historial da minha gravidez, a médica obstetra fez uma pausa prolongada quando percebeu a magnitude das minhas lesões. Assegurou-me, gentilmente, que aquelas informações seriam discutidas por uma equipa médica.
Mesmo assim, enquanto a data do parto se aproximava, lembrei-me de anteriormente ter sofrido algo chamado laceração perineal de quarto grau após ter dado à luz o meu primeiro filho. Esta informação estava num pedaço de papel enfiado ou guardado num lugar qualquer. Passaram seis semanas após o nascimento do Mohsin até eu saber, numa consulta de rotina, que lesões havia sofrido durante o parto. Não me lembro, garantidamente, de alguém se sentar comigo, em Nova Iorque, para me explicar as implicações a longo prazo.
Em Londres, ao analisar o historial da minha gravidez, a médica obstetra fez uma pausa prolongada quando percebeu a magnitude das minhas lesões. Assegurou-me, gentilmente, que aquelas informações seriam discutidas por uma equipa médica. No dia seguinte, um funcionário nervoso ligou-me para explicar que queriam que eu fosse urgentemente fazer um exame para perceber o tamanho da laceração. Era a melhor maneira de perceber se um parto natural seria seguro para mim. Ao ouvir isto, fiquei surpreendida por saber que esse exame existia. Aliás, se existia, porque é que a equipa do hospital privado nem sequer o mencionou? No Reino Unido, apesar do imenso subfinanciamento dos serviços públicos de saúde, o princípio que ditava os procedimentos médicos a fazer era a necessidade do paciente. Nos Estados Unidos, pelo contrário, era a exigência do paciente pelo tipo certo de apoio ao cliente, e aquilo que o seu seguro cobria, que decidia que cuidados receberia.
Aquele setembro em Londres estava glorioso, surpreendentemente soalheiro. Era óptimo, porque significava que o Mohsin podia continuar a passar tempo ao ar livre, a brincar nos jardins de Redcliff ou a seguir o meu marido ou a minha mãe por Chelsea e Fulham, enquanto faziam recados ou se encontravam com amigos. Ainda faltava uma semana para as quarenta, mas já me preparava para o parto. O Mohsin nasceu uma semana antes do suposto e não queria ser apanhada desprevenida.
E assim foi: as contrações tornaram-se mais frequentes exatamente uma semana antes da data prevista. Passei o dia a caminhar pelos lindos jardins do nosso prédio para aliviar as dores até que as águas, inevitavelmente, rebentaram. Já tinha preparado o saco para a maternidade e estava pronta para sair. Peguei no telefone e liguei para lá. “As minhas águas rebentaram”, expliquei, calmamente. E sublinho “calmamente” porque, ainda que fosse a nossa segunda criança, o meu marido ainda não tinha percebido que entre rebentarem as águas e parir poderia passar muito tempo. “Okay, ficamos à sua espera”, respondeu suavemente a médica obstetra.
Despedi-me da minha mãe com um abraço e o meu marido chamou um táxi, apesar do hospital estar a curta distância, facilmente percorrida a pé. Ao contrário do que aconteceu em Nova Iorque, não tive de andar com um plano de nascimento detalhado. Só sabia que queria dar à luz naturalmente, mas os resultados dos exames não tinham chegado à hora em que entrei em trabalho de parto. Não havia maneira de saber se seria seguro.
Deitei-me na cama do hospital com os dentes cerrados enquanto as enfermeiras tentavam determinar o quão dilatada eu estava. As contrações pioraram. Fechei os olhos e murmurei as orações que me vieram à cabeça. Subitamente, duas médicas agitadas apareceram à minha cabeceira. Disseram-me que queriam conversar comigo sobre os resultados dos exames. Com o olhar pedi ao meu marido que as fizesse desaparecer dali, mas elas afirmaram que era imperativo e vital falar sobre os resultados daqueles exames naquele preciso momento.
Segundo as análises que fizeram eu tinha sofrido uma lecaração perineal em quarto grau, a mais grave possível, na minha última gravidez. Outro parto natural poderia ter implicações na minha saúde, para a vida inteira. A minha cabeça começou a andar à roda. Tudo o que percebi foi que recomendavam seriamente uma cesariana. Em último lugar, disseram-me os médicos, a decisão seria minha. Então decidi: não, não queria que me abrissem. A jovem enfermeira australiana suspirou enquanto olhava para a colega, e ambas concordaram que eu precisava de algum tempo para pensar.
Quando voltaram, dez minutos depois, eu continuava irredutível. O tempo passava e se fosse para fazer a cesariana tinha de tomar uma decisão imediatamente. Olhei para o meu marido, que continuou calado. Percebi, pela tensão no seu corpo, que temia por mim. Será que um parto natural faria de mim, realmente, uma mãe melhor? Ou provaria que, de facto, dei à luz?
No Reino Unido, apesar do imenso subfinanciamento dos serviços públicos de saúde, o princípio que ditava os procedimentos médicos a fazer era a necessidade do paciente. Nos Estados Unidos, era a exigência do paciente pelo tipo certo de apoio ao cliente, e aquilo que o seu seguro cobria, que decidia que cuidados receberia.
Abanei a cabeça e reafirmei a minha decisão. Queria um parto natural. A vida é minha, e iria sempre sofrer se algo corresse mal. Uma memória de Nova Iorque aflorou na minha cabeça. Na altura, escrevi em letras maiúsculas que não queria epidural; queria um parto o mais natural possível. Ainda assim, lembro-me de uma enfermeira desafiar essa intenção, perguntando-me o que esperava alcançar com isso, porque jamais havia tido uma paciente que não quisesse aliviar a sua dor. Ainda que essa fosse uma decisão menor, percebi que — e ainda que seja possível escolher previamente fazer uma cesariana, no Reino Unido — os constrangimentos orçamentais faziam com que o pessoal médico não as oferecesse a menos que houvesse uma boa razão. Eu precisava de uma cesariana, mas quando recusei as enfermeiras e as médicas respeitaram a minha decisão.
Concordámos, então, que a epidural seria essencial para controlar o desfecho do parto. Deitei-me de lado e uma anestesista ordenou-me que retesasse o meu corpo enquanto a agulha entrava. Passados 15 minutos já não sentia nada. Meio acordada, meio a dormir, via a luz ao fundo do túnel cada vez mais próxima. A enfermeira australiana assumiu a tarefa de controlar todo o processo para conseguir tirar o bebé. A gravidade faria a sua parte; pediram-me apenas que ficasse deitada e que deixasse o bebé descer o mais naturalmente possível.
Parte de mim questionava-se se não estaria a gastar o tempo daqueles profissionais de saúde. Certamente teriam outros pacientes para atender. Por outro lado, admirava a dedicação que aquela equipa demonstrava. Estava a ir contra os conselhos que me deram, e mesmo assim era o centro de todos os cuidados.
E assim nasceu o Mustafa, numa sexta-feira, 10 de setembro, às 4h10 da manhã. O meu corpo sobreviveu, miraculosamente. Apenas tive de levar alguns pontos. Os meus olhos começaram a enxergar a renovada sala de partos com outros olhos.
Olhando para trás, a decisão de não fazer a cesariana não terá sido das mais inteligentes que já tomei. Tive muita sorte em ter escapado de quaisquer lesões sérias ou complicações para a vida. Ainda assim, o apoio e o cuidado que recebi durante todo o trabalho de parto foram para lá do que havia imaginado.
Eram 8h30 quando me transferiram para a ala pós-parto, já de banho tomado e roupa lavada. Tinha algumas reservas sobre partilhar um quarto com outras cinco mães e os seus cinco recém-nascidos. Lembro-me de ter sido difícil partilhar espaço com outra mãe no Mount Sinai West, que me mandava calar sempre que se sentia incomodada. Assim que me senti nos lençóis lavados, a enfermeira chefe veio ter comigo e apresentou-se. Deu-me os parabéns e disse-me que toda a equipa estava preparada para ajudar as mães com a amamentação. Quando lhe falei sobre a alta, ela expressou um ar de confusão. “Não há pressa”, disse-me. Poderia ficar até me sentir confortável e pronta para ir embora.
Foi apenas depois de dar à luz no Reino Unido, um país com um sistema de saúde público funcional, que pude experienciar uma alternativa genuína. Ficou claro o valor dos serviços financiados publicamente: libertam-nos do terror de ter de calcular os custos das nossas necessidades mais básicas.
No Mount Sinai West, passaram-se horas até ser atendida por uma consultora especializada em lactação, que passou apenas alguns momentos comigo a dizer-me o que deveria fazer. Não parecia entender que eu tinha sido mãe pela primeira vez, que não sabia como funcionava a amamentação, e que todo o meu corpo me doía intensamente. Olhando para trás, isso explica alguns dos problemas que tive na amamentação do meu primeiro filho. Passei três meses tentando combinar a amamentação com o biberon, até desistir.
Em Londres, fiquei quatro noites no hospital depois de dar à luz. Durante esse tempo, não pensei na soma dos custos — porque não havia. Em vez disso, foquei a minha atenção em ficar boa e em ser mãe. Tinha três refeições por dia, com entradas, parto principal e sobremesa. Não estaria isso mais próximo de uma estadia num hotel do que a experiência que tive naquele hospital de ladrilhos brilhantes em Nova Iorque? De médicas a enfermeiras, havia um batalhão de gente pronta a ajudar-me. Os múltiplos chuveiros eram lavados diariamente. Estava longe de ser o caos que achei que seria.
Enquanto me preparava para receber alta, ofereceram-me um livrinho vermelho, charmosamente desatualizado, onde deveria registar o historial de vacinas e procedimentos médicos do bebé. Ri-me sozinha ao pensar que o sistema do boletim vermelho não tinha sido atualizado para refletir a era digital em que vivemos.
Ao sair do hospital em Chelsea, pensei naquele janeiro frio de Nova Iorque, quando me arrastei, manca, para fora de casa, até à primeira consulta pediátrica do Mohsin. Não percebia que nos Estados Unidos não havia o conceito de um cuidador vir até nós. Ainda hoje, ao conversar com amigas americanas que também são mães, elas se surpreendem ao ouvir que em quase toda a Europa não é esperado que uma mãe leve o seu recém-nascido onde quer que seja.
Sempre que o Mustafa tinha uma visita marcada, uma enfermeira ligava para mim na manhã desse dia para agendar uma hora oportuna para a consulta. Era um sistema genial. Ficava em casa, confortavelmente, era observada ao alimentá-lo, e podia perguntar sobre tudo o que me preocupava.
É difícil saber a magnitude do dano causado a milhões de mulheres nos Estados Unidos e no resto mundo que têm de combinar a pressão e a emoção de serem mães com um serviço de saúde inadequado. O problema das baixas expectativas é privar as pessoas de conceberem sequer que há alternativas. Em Nova Iorque fiquei impressionada sobre o que achava ser o melhor cuidado médico possível, melhor do que a maioria dos americanos tem acesso. Mas os serviços mais básicos, como uma cama pela qual não tenho de pagar, nem me pareceu naquele momento uma possibilidade. Pareceu normal.
Foi apenas depois de dar à luz no Reino Unido, um país com um sistema de saúde público funcional (ainda que mal financiado), que pude experienciar uma alternativa genuína. Ficou claro, para mim, o valor dos serviços financiados publicamente: libertam-nos do terror de ter de calcular os custos das nossas necessidades mais básicas.
Em Londres, ao analisar o historial da minha gravidez, a médica obstetra fez uma pausa prolongada quando percebeu a magnitude das minhas lesões. Assegurou-me, gentilmente, que aquelas informações seriam discutidas por uma equipa médica. No dia seguinte, um funcionário nervoso ligou-me para explicar que queriam que eu fosse urgentemente fazer um exame para perceber o tamanho da laceração. Era a melhor maneira de perceber se um parto natural seria seguro para mim. Ao ouvir isto, fiquei surpreendida por saber que esse exame existia. Aliás, se existia, porque é que a equipa do hospital privado nem sequer o mencionou? No Reino Unido, apesar do imenso subfinanciamento dos serviços públicos de saúde, o princípio que ditava os procedimentos médicos a fazer era a necessidade do paciente. Nos Estados Unidos, pelo contrário, era a exigência do paciente pelo tipo certo de apoio ao cliente, e aquilo que o seu seguro cobria, que decidia que cuidados receberia.
Aquele setembro em Londres estava glorioso, surpreendentemente soalheiro. Era óptimo, porque significava que o Mohsin podia continuar a passar tempo ao ar livre, a brincar nos jardins de Redcliff ou a seguir o meu marido ou a minha mãe por Chelsea e Fulham, enquanto faziam recados ou se encontravam com amigos. Ainda faltava uma semana para as quarenta, mas já me preparava para o parto. O Mohsin nasceu uma semana antes do suposto e não queria ser apanhada desprevenida.
E assim foi: as contrações tornaram-se mais frequentes exatamente uma semana antes da data prevista. Passei o dia a caminhar pelos lindos jardins do nosso prédio para aliviar as dores até que as águas, inevitavelmente, rebentaram. Já tinha preparado o saco para a maternidade e estava pronta para sair. Peguei no telefone e liguei para lá. “As minhas águas rebentaram”, expliquei, calmamente. E sublinho “calmamente” porque, ainda que fosse a nossa segunda criança, o meu marido ainda não tinha percebido que entre rebentarem as águas e parir poderia passar muito tempo. “Okay, ficamos à sua espera”, respondeu suavemente a médica obstetra.
Despedi-me da minha mãe com um abraço e o meu marido chamou um táxi, apesar do hospital estar a curta distância, facilmente percorrida a pé. Ao contrário do que aconteceu em Nova Iorque, não tive de andar com um plano de nascimento detalhado. Só sabia que queria dar à luz naturalmente, mas os resultados dos exames não tinham chegado à hora em que entrei em trabalho de parto. Não havia maneira de saber se seria seguro.
Deitei-me na cama do hospital com os dentes cerrados enquanto as enfermeiras tentavam determinar o quão dilatada eu estava. As contrações pioraram. Fechei os olhos e murmurei as orações que me vieram à cabeça. Subitamente, duas médicas agitadas apareceram à minha cabeceira. Disseram-me que queriam conversar comigo sobre os resultados dos exames. Com o olhar pedi ao meu marido que as fizesse desaparecer dali, mas elas afirmaram que era imperativo e vital falar sobre os resultados daqueles exames naquele preciso momento.
Segundo as análises que fizeram eu tinha sofrido uma lecaração perineal em quarto grau, a mais grave possível, na minha última gravidez. Outro parto natural poderia ter implicações na minha saúde, para a vida inteira. A minha cabeça começou a andar à roda. Tudo o que percebi foi que recomendavam seriamente uma cesariana. Em último lugar, disseram-me os médicos, a decisão seria minha. Então decidi: não, não queria que me abrissem. A jovem enfermeira australiana suspirou enquanto olhava para a colega, e ambas concordaram que eu precisava de algum tempo para pensar.
Quando voltaram, dez minutos depois, eu continuava irredutível. O tempo passava e se fosse para fazer a cesariana tinha de tomar uma decisão imediatamente. Olhei para o meu marido, que continuou calado. Percebi, pela tensão no seu corpo, que temia por mim. Será que um parto natural faria de mim, realmente, uma mãe melhor? Ou provaria que, de facto, dei à luz?
No Reino Unido, apesar do imenso subfinanciamento dos serviços públicos de saúde, o princípio que ditava os procedimentos médicos a fazer era a necessidade do paciente. Nos Estados Unidos, era a exigência do paciente pelo tipo certo de apoio ao cliente, e aquilo que o seu seguro cobria, que decidia que cuidados receberia.
Abanei a cabeça e reafirmei a minha decisão. Queria um parto natural. A vida é minha, e iria sempre sofrer se algo corresse mal. Uma memória de Nova Iorque aflorou na minha cabeça. Na altura, escrevi em letras maiúsculas que não queria epidural; queria um parto o mais natural possível. Ainda assim, lembro-me de uma enfermeira desafiar essa intenção, perguntando-me o que esperava alcançar com isso, porque jamais havia tido uma paciente que não quisesse aliviar a sua dor. Ainda que essa fosse uma decisão menor, percebi que — e ainda que seja possível escolher previamente fazer uma cesariana, no Reino Unido — os constrangimentos orçamentais faziam com que o pessoal médico não as oferecesse a menos que houvesse uma boa razão. Eu precisava de uma cesariana, mas quando recusei as enfermeiras e as médicas respeitaram a minha decisão.
Concordámos, então, que a epidural seria essencial para controlar o desfecho do parto. Deitei-me de lado e uma anestesista ordenou-me que retesasse o meu corpo enquanto a agulha entrava. Passados 15 minutos já não sentia nada. Meio acordada, meio a dormir, via a luz ao fundo do túnel cada vez mais próxima. A enfermeira australiana assumiu a tarefa de controlar todo o processo para conseguir tirar o bebé. A gravidade faria a sua parte; pediram-me apenas que ficasse deitada e que deixasse o bebé descer o mais naturalmente possível.
Parte de mim questionava-se se não estaria a gastar o tempo daqueles profissionais de saúde. Certamente teriam outros pacientes para atender. Por outro lado, admirava a dedicação que aquela equipa demonstrava. Estava a ir contra os conselhos que me deram, e mesmo assim era o centro de todos os cuidados.
E assim nasceu o Mustafa, numa sexta-feira, 10 de setembro, às 4h10 da manhã. O meu corpo sobreviveu, miraculosamente. Apenas tive de levar alguns pontos. Os meus olhos começaram a enxergar a renovada sala de partos com outros olhos.
Olhando para trás, a decisão de não fazer a cesariana não terá sido das mais inteligentes que já tomei. Tive muita sorte em ter escapado de quaisquer lesões sérias ou complicações para a vida. Ainda assim, o apoio e o cuidado que recebi durante todo o trabalho de parto foram para lá do que havia imaginado.
Eram 8h30 quando me transferiram para a ala pós-parto, já de banho tomado e roupa lavada. Tinha algumas reservas sobre partilhar um quarto com outras cinco mães e os seus cinco recém-nascidos. Lembro-me de ter sido difícil partilhar espaço com outra mãe no Mount Sinai West, que me mandava calar sempre que se sentia incomodada. Assim que me senti nos lençóis lavados, a enfermeira chefe veio ter comigo e apresentou-se. Deu-me os parabéns e disse-me que toda a equipa estava preparada para ajudar as mães com a amamentação. Quando lhe falei sobre a alta, ela expressou um ar de confusão. “Não há pressa”, disse-me. Poderia ficar até me sentir confortável e pronta para ir embora.
Foi apenas depois de dar à luz no Reino Unido, um país com um sistema de saúde público funcional, que pude experienciar uma alternativa genuína. Ficou claro o valor dos serviços financiados publicamente: libertam-nos do terror de ter de calcular os custos das nossas necessidades mais básicas.
No Mount Sinai West, passaram-se horas até ser atendida por uma consultora especializada em lactação, que passou apenas alguns momentos comigo a dizer-me o que deveria fazer. Não parecia entender que eu tinha sido mãe pela primeira vez, que não sabia como funcionava a amamentação, e que todo o meu corpo me doía intensamente. Olhando para trás, isso explica alguns dos problemas que tive na amamentação do meu primeiro filho. Passei três meses tentando combinar a amamentação com o biberon, até desistir.
Em Londres, fiquei quatro noites no hospital depois de dar à luz. Durante esse tempo, não pensei na soma dos custos — porque não havia. Em vez disso, foquei a minha atenção em ficar boa e em ser mãe. Tinha três refeições por dia, com entradas, parto principal e sobremesa. Não estaria isso mais próximo de uma estadia num hotel do que a experiência que tive naquele hospital de ladrilhos brilhantes em Nova Iorque? De médicas a enfermeiras, havia um batalhão de gente pronta a ajudar-me. Os múltiplos chuveiros eram lavados diariamente. Estava longe de ser o caos que achei que seria.
Enquanto me preparava para receber alta, ofereceram-me um livrinho vermelho, charmosamente desatualizado, onde deveria registar o historial de vacinas e procedimentos médicos do bebé. Ri-me sozinha ao pensar que o sistema do boletim vermelho não tinha sido atualizado para refletir a era digital em que vivemos.
Ao sair do hospital em Chelsea, pensei naquele janeiro frio de Nova Iorque, quando me arrastei, manca, para fora de casa, até à primeira consulta pediátrica do Mohsin. Não percebia que nos Estados Unidos não havia o conceito de um cuidador vir até nós. Ainda hoje, ao conversar com amigas americanas que também são mães, elas se surpreendem ao ouvir que em quase toda a Europa não é esperado que uma mãe leve o seu recém-nascido onde quer que seja.
Sempre que o Mustafa tinha uma visita marcada, uma enfermeira ligava para mim na manhã desse dia para agendar uma hora oportuna para a consulta. Era um sistema genial. Ficava em casa, confortavelmente, era observada ao alimentá-lo, e podia perguntar sobre tudo o que me preocupava.
É difícil saber a magnitude do dano causado a milhões de mulheres nos Estados Unidos e no resto mundo que têm de combinar a pressão e a emoção de serem mães com um serviço de saúde inadequado. O problema das baixas expectativas é privar as pessoas de conceberem sequer que há alternativas. Em Nova Iorque fiquei impressionada sobre o que achava ser o melhor cuidado médico possível, melhor do que a maioria dos americanos tem acesso. Mas os serviços mais básicos, como uma cama pela qual não tenho de pagar, nem me pareceu naquele momento uma possibilidade. Pareceu normal.
Foi apenas depois de dar à luz no Reino Unido, um país com um sistema de saúde público funcional (ainda que mal financiado), que pude experienciar uma alternativa genuína. Ficou claro, para mim, o valor dos serviços financiados publicamente: libertam-nos do terror de ter de calcular os custos das nossas necessidades mais básicas.
Colaborador
Tehreem Abedi é uma educadora do ensino médio que se tornou dona de casa e criou seus filhos em dois continentes.
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