31 de janeiro de 2021

Um historiador revolucionário do mundo muçulmano

O historiador francês Maxime Rodinson nasceu neste dia em 1915. Ele transformou nossa compreensão do mundo muçulmano com livros como Muhammad e Islã e Capitalismo e seu trabalho, baseado no uso criativo das ideias marxistas, é ainda hoje um guia incontornável para entender a política no Oriente Médio.

Jean Batou

Jacobin

O legado intelectual de Rodinson é de particular importância para a esquerda hoje. (Rob Mieremet/Anefo)

Tradução / Maxime Rodinson foi um dos maiores especialistas internacionais da região, no mundo árabe e no Islã, com uma reputação mundial entre os estudiosos desta área. Nascido em 26 de janeiro de 1915 em Paris, ele morreu em Marseille com a idade de 89 anos, em 2004.

O historiador francês deixou para trás uma bibliografia de mais de mil obras, incluindo cerca de 20 livros autorais, 6 dos quais foram traduzidos para o inglês, e várias coleções de ensaios. Seus temas variaram desde a Arábia do século VII até os estados e movimentos do Oriente Médio moderno.

Esse legado intelectual é de particular importância para a esquerda hoje porque Rodinson procurou explicar os principais desenvolvimentos políticos e sociais nas sociedades árabes com a ajuda de conceitos marxistas, aplicados com um espírito criativo e não dogmático.

Rodinson não foi um acadêmico destacado. Sua contribuição mais influente pode ter sido seu relato politicamente engajado sobre as origens e a trajetória de Israel em livros como Israel: Um Estado Colonial? e Israel e os árabes. Muitas pessoas que nunca ouviram falar de Rodinson, no entanto, conhecem sem saber sua avaliação crítica do sionismo, que ele combinou com uma visão clara das falhas do nacionalismo árabe.

Essa foi apenas uma parte do trabalho de Rodinson. Seus livros e ensaios são ferramentas inestimáveis para qualquer um que queira compreender as sociedades do Oriente Médio, do passado até o presente. Aqui vai uma introdução aos principais sinais políticos e intelectuais da longa e notável carreira de Rodinson.

Uma vida contra a maré

Os pais de Rodinson, humildes alfaiates socialistas de origem judaica, fugiram dos pogroms da Rússia no final do século XIX para se estabelecerem na França, onde aderiram ao Partido Comunista (PCF) em 1920. Aos 13 anos de idade, armado apenas com um certificado de conclusão da escola primária, Rodinson tornou-se um moço de recados e aprendeu sozinho, esperanto, inglês, grego e latim.

Ele devorava os livros que pegava emprestados e procurava os conselhos dos professores sempre que podia. Aos 17 anos, ele passou no exame de admissão para a École Nationale des Langues Orientales Vivantes em Paris. Quatro anos depois, formou-se em ge’ez, amárico, árabe clássico, árabe oriental, árabe norte-africano e turco.

Em 1937, Rodinson recebeu uma bolsa de estudos do Conselho Nacional de Pesquisa – no mesmo ano que ele entrou para o PCF. Como ele lembrou mais tarde, o PCF tinha uma cultura fortemente “operária”, e ele se sentia muito mais próximo dos membros da classe trabalhadora do partido do que dos intelectuais de famílias burguesas: “Pelo menos assim eu acreditava. Mas os ‘intelectuais de tempo integral’, no entanto, me consideravam um intelectual, um portador de todos os vícios inerentes à categoria.”

Rodinson deixou a França logo após a Segunda Guerra Mundial ter começado para trabalhar na Síria e no Líbano. Foi seu domínio do árabe que lhe permitiu escapar da deportação para os campos sob a ocupação nazista. Muitos de seus parentes não foram tão afortunados, inclusive seus pais, que morreram enquanto eram transportados para Auschwitz em 1943.

Durante seus anos no Oriente Médio, Rodinson lecionou em uma escola secundária e colaborou com a Missão Arqueológica da França Livre. Foi lá que ele começou seu estudo sobre o Islã a partir de uma perspectiva materialista. De volta a Paris, em 1948, tornou-se chefe do Departamento de Publicações Orientais da Biblioteca Nacional e depois diretor de estudos na École Pratique des Hautes Études.

Ao longo de sua carreira docente, Rodinson avançou para se tornar professor de etíope clássico e sul arábico, e finalmente professor de Etnografia Histórica do Oriente Próximo. Ele inspirou muitos alunos e, em 1971, ele supervisionou simultaneamente mais de 70 teses de doutorado.

Rodinson permaneceu membro do PCF até sua expulsão do partido em 1958 por mostrar uma linha de pensamento cada vez mais independente, especialmente após o “discurso secreto” do líder soviético Nikita Khrushchev em 1956, que denunciou alguns dos abusos do governo de Stálin. Em 1981, ele escreveu uma longa e intransigente autocrítica de seu período stalinista, explicando que agora via Stalin como um “tirano sádico” responsável por crimes terríveis, enquanto insistia na sinceridade de muitos militantes comunistas da época, que haviam acreditado que estavam lutando por um mundo melhor.

O historiador disse que ele não aceitaria “a condenação farisaica” de figuras que apoiavam as injustiças do status quo. Entretanto, Rodinson declarou seu respeito por aqueles militantes cujo entendimento do stalinismo havia sido mais lúcido do que o seu na época: “Aceito apenas as lições daqueles que se mostraram mais lúcidos ao dirigir melhor sua indignação e rebeldia.”

O marxismo criativo

Rodinson foi acima de tudo um pesquisador de campo dedicado aos “exercícios concretos de investigação” (coleta e análise de fontes e leitura crítica). Ele guardava sua independência de espírito. Quando tive a oportunidade de falar longamente com ele no final dos anos 70, ele confidenciou que não se considerava mais um marxista, talvez ecoando o famoso comentário de Karl Marx de que ele não era um “marxista” pelos padrões de alguns discípulos autoproclamado em seu próprio tempo.

Rodinson foi em todo caso um dos primeiros “marxistas” do pós-guerra a defender uma abordagem da história baseada na análise de formações sociais concretas. De sua perspectiva, o modo de produção dominante certamente determinava a realidade social, mas os subordinados também poderiam influenciá-la. Além disso, as “superestruturas” políticas e ideológicas de sociedades não eram rigidamente determinadas por suas “bases” econômicas, como as formas mais rigorosas da teoria marxista a querem. Estas ideias ajudaram a tirar o marxismo do impasse estéril no qual o dogma stalinista o havia aprisionado.

Sendo “modestamente” capaz, como ele disse, de ler cerca de 30 línguas, Rodinson odiava as fronteiras nacionais tanto quanto as fronteiras disciplinares. Ele era ao mesmo tempo um linguista, um historiador, um antropólogo e um sociólogo. Como especialista em línguas semitas, ele também se interessava pelo mundo turco, Ásia Central e Etiópia, islamismo e judaísmo, sionismo, Israel e a questão palestina, assim como classes sociais, economia, grupos étnicos e racismo, medicina, culinária, feitiçaria, magia, mitos e os rituais.

Suas duas obras mais importantes, Muhammad, publicada em 1961, e Islã e capitalismo, de 1966, marcaram um ponto de virada na historiografia do mundo muçulmano, avançando uma análise materialista de sua evolução e recusando-se a dar à religião um status privilegiado. Rodinson descartou “a concepção idealista da religião como um conjunto de ideias flutuando sobre as realidades terrestres e animando constantemente o espírito e as ações de todos os seus seguidores” – uma concepção que foi (e continua sendo) especialmente prevalecente na discussão das sociedades muçulmanas:

“Existe um fosso considerável entre o Islã, como veio a ser, e a inspiração original. Não fosse assim, como se poderia explicar os apelos ao ihya [renascimento] e ao tajdid [renovação] que se repetem ao longo da história do Islã? Esta dinâmica se aplica a todas as religiões. De fato, ela é mais ou menos válida para todas as ideologias e movimentos ideológicos, incluindo o marxismo!”

Em 1972, ele publicou o Marxismo e o Mundo Muçulmano. Esta coleção de artigos, conferências e ensaios escritos entre 1958 e 1972, e atualizados pelo autor para publicação, trata das formações sociais e ideologias dos Estados de maioria muçulmana. Ele também escreveu Os Árabes, 1979, uma monografia que tenta ilustrar o retrato antropológico, sociológico, histórico e político de um povo em sua infinita diversidade, juntamente com o livro Europa e a Mística do Islã, de 1980, que traça a evolução das perspectivas ocidentais sobre o mundo muçulmano desde os primeiros encontros até a era moderna.

Muhammad em carne e sangue

A biografia de Rodinson sobre o profeta do Islã marcou uma partida no pensamento de seu tempo, na medida em que apresentou aos leitores um homem de carne e osso. O livro descrevia Muhammad fisicamente como se ele estivesse diante de nós: “Ele era de altura média, com uma cabeça grande, mas um rosto que não era nem redondo nem gordo. Seu cabelo era ligeiramente encaracolado e seus olhos eram grandes, pretos e bem abertos sob longas pestanas”.

O autor passou a oferecer um retrato psicológico de Muhammad:

“Ele não estava contente. A felicidade, com suas limitações, sua aceitação calma ou ansiosa, não é feita para aqueles que estão sempre olhando além do que são e do que têm, cujo espírito de busca está sempre alcançando as próximas coisas a serem desejadas. E uma infância pobre, carente, órfã como a de Maomé, estava destinada a fomentar o crescimento desta capacidade infinita de desejo. Somente o sucesso em uma escala extraordinária, pode-se até dizer sobrenatural, poderia satisfazê-lo.”

Rodinson tentou dar uma explicação materialista ao nascimento do Islã em um lugar e em uma época em que e quando ideias bíblicas e caravanas mercantes se cruzavam. Em 610, quando fez 40 anos, Muhammad começou a recitar as mensagens que ele acreditava que Deus lhe havia ditado, dando a luz ao Alcorão. Este novo credo alegou reunir verdadeiros monoteístas, revisitando e transcendendo as tradições judaicas e cristãs e fornecendo uma identidade espiritual compartilhada a todos os árabes através de suas barreiras tribais.

Em 622, tendo anteriormente forçado o novo profeta ao exílio em Medina, a aristocracia de Meca se mobilizou em torno de sua liderança. Muhammad e seus sucessores lideraram um poderoso exército de beduínos na conquista do Oriente Médio, do Norte da África e da Espanha. Ao mesmo tempo, porém, o Islã permaneceu ligado a sua posição original igualitária, muitas vezes impedindo o poder absoluto dos Califas, os líderes Emir e Sultões que vieram depois.

No capítulo final do livro, Rodinson rejeitou o tipo de “determinismo primitivo” às vezes associado ao marxismo, segundo o qual “se Muhammad nunca tivesse nascido, a situação teria se chamado outro Muhammad”. Esta era uma clara alusão ao filósofo marxista russo George Plekhanov, cujo influente ensaio “Sobre o papel do indivíduo na história” tinha feito a mesma afirmação sobre Napoleão.

Para Rodinson, o curso dos acontecimentos históricos não podia ser explicado de forma tão clara:

“Um Maomé diferente, vinte anos depois, talvez tivesse encontrado o Império Bizantino consolidado, pronto para combater com sucesso os ataques das tribos do deserto. A Arábia poderia ter sido convertida ao cristianismo. A situação exigia soluções para uma série de problemas cruciais, como vimos; mas essas soluções poderiam facilmente ter sido diferentes daquelas que realmente ocorreram. Um lançamento diferente dos dados e do acaso toma outro rumo.”

Novas controvérsias

Rodinson baseou sua análise materialista da tradição muçulmana em particular em duas obras originais sobre a vida de Muhammad em Meca e Medina publicadas nos anos 50 pelo historiador britânico William Montgomery Watt. Na época, a historiografia ocidental aceitava este ponto de vista em suas linhas gerais. Desde o final dos anos 70, alguns estudiosos proeminentes, como John Wansbrough, Michael Cook e Patricia Crone, têm submetido esse material a fortes críticas.

Estas figuras retratam a “pré-história” do Islã como um movimento messiânico que reunia judeus e cristãos e que levou à conquista árabe. Seu trabalho datou a escrita do Alcorão de um período com cerca de dois séculos depois, e até questionou o papel de Muhammad e Meca no nascimento do Islã.

No entanto, pesquisas recentes não fornecem um apoio substancial para um revisionismo histórico tão radical. Pelo contrário, ela tende a confirmar que o Alcorão teve origem na Arábia Central, e que a maior parte de seu conteúdo data do século VII, embora provavelmente tenha havido revisões textuais em uma etapa posterior.

Em 1972, a restauração da Grande Mesquita do Sanaa no Iêmen descobriu um palimpsesto provavelmente datado do final do século VII, que continha cerca da metade do Alcorão. Um professor alemão aposentado revelou então no início dos anos 90 a existência de um arquivo fotográfico essencial de fragmentos do antigo Alcorão que acreditava-se ter desaparecido nos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Esta descoberta deu um novo impulso à pesquisa sobre as origens do Alcorão.

Ao ler hoje a biografia de Rodinson sobre Muhammad, é preciso ter em mente estas controvérsias. Ela permanece amplamente compatível com o trabalho mais atual, particularmente o de Fred M. Donner ou Angelika Neuwirth.

Orientalismo e subdesenvolvimento

Islã e capitalismo, publicado em 1966, foi sem dúvida o livro de Rodinson que gerou os debates mais apaixonados. Sua tese central fez eco nos debates dos anos 60 sobre as principais causas do subdesenvolvimento, particularmente no mundo muçulmano. Para Rodinson, o Islã não havia impedido o crescimento econômico, seja por meio de suas instituições ou de suas práticas seculares.

Aqueles que argumentam o contrário apontaram um fator doutrinário central que eles acreditavam ter inibido o desenvolvimento do capitalismo nos países muçulmanos, a saber, a proibição de empréstimos remunerados. De acordo com a pesquisa de Rodinson, esta regra tinha sido, na prática, amplamente contornada por meios legais. O Islã sempre defendeu a propriedade privada e o enriquecimento individual desde que os ricos fossem caridosos e prestassem ajuda aos órfãos ou aos pobres.

Seguindo o caminho de investigação aberto por Rodinson, historiadores como Jairus Banaji procuraram mostrar que o Islã medieval, de fato, fez a ponte entre o próspero comércio da antiguidade tardia e o das cidades-estado italianas, Portugal e Holanda centenas de anos mais tarde. Este papel de ponte envolveu práticas comerciais, inovações legais e instituições.

A partir do século XIX, a Europa Ocidental e os Estados Unidos passaram a dominar a economia mundial. Para Rodinson, o status hegemônico desses poderes explicava porque o capital comercial nas sociedades muçulmanas, que existiam em quantidades substanciais, não podia produzir uma forma autossustentável de capitalismo industrial.

A espetacular tentativa de industrialização do Egito na primeira metade do século XIX dá apoio a sua argumentação. Nos anos 1830, o país teve uma das indústrias modernas mais desenvolvidas do mundo, especialmente em setores como a fiação e a tecelagem do algodão. Entretanto, uma poderosa intervenção diplomática e militar da Grã-Bretanha e de outras potências ocidentais encurtou esta experiência na década de 1840.

O Islã e o capitalismo mostram a importância do raciocínio do Alcorão, numa época em que os fundadores do Islã estavam envolvidos em um diálogo com a sociedade árabe do século VII. Esta forma de pensar se desenvolveu em resposta à ascensão do comércio e das finanças. A instigação do Alcorão para pensar, confrontar ideias e se engajar em um esforço intelectual para encontrar a verdade decorre da necessidade de promover uma compreensão mais universal do mundo.

Será que o Alcorão realmente defende o fatalismo, uma passividade contrária ao espírito empreendedor, como muitos estudiosos têm sugerido? Suponhamos que o destino do ser humano depende de Deus, o criador de todas as coisas, o onisciente. Se este é o caso, então a ideia de predestinação no Islã (como em outras religiões) não contradiz o chamado à ação, já que a agência humana é em si mesma um produto da vontade de Deus. A palavra jihad não se refere apenas à guerra santa, mas, sobretudo, ao esforço para melhorar a si mesmo e a sociedade.

“Exclusividade possessiva”

Rodinson foi um daqueles pensadores que acreditava que a busca da verdade através de métodos científicos é uma prerrogativa universal da humanidade, assim como a crítica às ideologias que impedem seu desenvolvimento. Ele apreciou o trabalho de Edward Said, Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente, publicado em 1978, que se tornou um texto extremamente influente nas humanidades:

“Seu grande mérito, a meu ver, foi sacudir a auto-satisfação de muitos orientalistas, apelar para eles (com questionável sucesso), considerar as fontes e as conexões de suas ideias, deixar de vê-las como uma conclusão natural, sem preconceitos, dos fatos.”

No entanto, Rodinson expressou algumas críticas sobre o método de Said. Plenamente consciente dos preconceitos coloniais de muitos pesquisadores europeus em relação ao Oriente, ele estava, no entanto, desconfiado de uma abordagem que poderia levar à invalidação a priori da ciência ocidental.

Em La fascination de l’islam, de 1980, que foi traduzido para o inglês como Europa e a Mística do Islã, ele expôs explicitamente essas preocupações. Na opinião de Rodinson, embora fosse importante reconhecer e desafiar o efeito de distorção do colonialismo tanto na escolha dos dados quanto em sua interpretação pelos estudiosos, isto não deveria significar a adoção do conceito de “duas ciências”.

Ele estava se referindo a uma ideia promovida pelo tenente Andrei Zhdanov de Stalin no final dos anos 40. Zhdanovismo submeteu a sociedade soviética a uma verdadeira inquisição ao dividir os campos da ciência e da cultura em duas categorias, “proletário” e “burguês”, rejeitando a ideia de investigação acadêmica objetiva e dando aos comissários do partido o direito de julgar a linha correta, mesmo em campos como a biologia e a física.

Em um artigo de 1985, “Orientalismo Reconsiderado”, Said insistiu que as críticas de Rodinson a sua abordagem eram infundadas. Entretanto, ele retomou uma advertência formulada por Myra Jehlen a partir de uma perspectiva feminista, abordando a questão de “se, ao identificar e trabalhar através de críticas antidominantes, os grupos subalternos – mulheres, negros e assim por diante – podem resolver o dilema dos campos autônomos de experiência e conhecimento que são criados como consequência”.

Segundo Said, aqueles que trabalham em tais campos teriam que se precaver contra uma dupla tentação:

“Um duplo tipo de exclusivismo possessivo poderia se instalar: o sentido de ser um insider excludente em virtude da experiência (somente as mulheres podem escrever sobre e para as mulheres, e somente a literatura que trata bem as mulheres ou os orientais é boa literatura), e em segundo lugar, ser um insider excludente em virtude do método (somente as marxistas, anti-orientalistas e feministas podem escrever sobre economia, orientalismo, literatura feminina).”

Em todos os debates polêmicos trocados entre eles, Rodinson teria concordado com isso.

Islamismo e política

No Islã e capitalismo, Rodinson já havia escrito uma nota cautelosa sobre a forma que o Islã político provavelmente assumiria, nadando contra a corrente do que ele considerava ser um terceiro mundo ingenuamente otimista:

“Os intérpretes reacionários das escrituras gozam do benefício de toda a herança do passado, do peso de séculos de interpretação no sentido tradicional, do prestígio dessas interpretações, do hábito estabelecido de relacioná-las à religião geralmente aceita por razões que não são de modo algum religiosas. Estes fatores só poderiam ser eliminados após um radical aggiornamento da religião muçulmana.”

Aggiornamento, um termo italiano para “modernização” ou “atualização”, foi usado em 1959 pelo Papa João XXIII para descrever seu plano de renovação da Igreja Católica.

Como Rodinson explicou mais de uma vez em seus textos, “islamismo” não era um fenômeno unidimensional. O islã político poderia assumir orientações conflitantes, dependendo de quais atores sociais alegavam ser seus defensores e quais líderes políticos e intelectuais se apresentavam para articular seu programa. Não havia uma única doutrina religiosa, internamente consistente, que pudesse ser aplicada ao domínio da política.

A tradição construída em torno das ações e ditos do Profeta, seus companheiros e os primeiros Califas, compilados cerca de 150 a 200 anos depois, formou a Sharia. Enquanto este corpo de pensamento tendia a defender interesses privados privilegiados e defender a submissão total à autoridade, as exigências de um credo nascido em um contexto relativamente igualitário muitas vezes seguiram na direção oposta, oferecendo a base para a crítica social. Por outro lado, os Califas, os Emir e Sultões cujo poder autocrático havia reinado sobre o mundo islâmico a partir de meados do século VII quiseram ser os únicos juízes capacitados para ditar o rumo adequado a ser seguido pelos muçulmanos.

As religiões não são escritas em pedra pelo texto de suas escrituras fundadoras. Elas evoluem com as sociedades que as adotam, cujas classes dominantes têm uma influência decisiva em suas formas institucionais e doutrinárias. Esta cooptação de clérigos – o ulemá – pelos poderosos não é algo exclusivo do Islã, mesmo que tenha assumido uma forma particular no mundo muçulmano. As “heresias” que proclamam um retorno à “verdadeira fé” também alimentaram muitos movimentos de resistência social dentro do Islã, assim como fizeram em outras religiões.

Teologias da Libertação e da Opressão

O Islã está condenado a ser um instrumento de políticas reacionárias? Não necessariamente, insistiu Rodinson. Sob o impacto da Revolução Russa e das lutas de libertação que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, certos setores do mundo muçulmano desenvolveram uma espécie de “Teologia de Libertação” com conotações socialistas.

Rodinson prestou especial atenção a estes desenvolvimentos, olhando para a carreira do militante político do Tatar Mir Sayit Sultan-Galiev. Sultan-Galiev foi um porta-voz dentro do Partido Bolchevique para as exigências nacionais e religiosas dos muçulmanos russos:

Ele via a sociedade muçulmana, com exceção de alguns grandes proprietários feudais e burgueses, como uma unidade que tinha sido oprimida coletivamente pelos russos sob o czarismo. Portanto, não fazia sentido dividi-la com diferenças criadas artificialmente e lutas de classes… de fato, a revolução socialista deveria se adaptar a uma sociedade tão impregnada de tradições muçulmanas. O próprio Sultão-Galiev, ateu, recomendava, portanto, que o Islã fosse tratado suavemente, através de uma gradual “desfanatização” e secularização.

Lenin apoiou o Sultão-Galiev, mas mais tarde ele se chocou com a liderança soviética. Sob o governo de Stalin, ele foi preso e acabou sendo baleado. Rodinson viu o revolucionário tártaro como o homem que primeiro reconheceu a importância da questão nacional nos países coloniais, e “a relevância internacional para o socialismo daqueles movimentos nacionais que não contemplam imediatamente uma completa guerra de classes e socialização”.

Rodinson acreditava que era possível prever um “islamismo de libertação” na mesma linha da Teologia de Libertação cristã da América Latina. Isto poderia acontecer enquanto o portador de tal tendência fosse um movimento popular cuja liderança iria romper conscientemente com a longa tradição de colaboração dos ulemá com a classe dominante e o poder estatal.

Com isto em mente, Rodinson criticou Amar Ouzegane, um dos fundadores do Partido Comunista Argelino. Em sua opinião, Ouzegane certamente estava certo em reconhecer os sentimentos religiosos generalizados que o movimento nacionalista mobilizou contra o colonialismo francês em seu livro Le Meilleur Combat (O Melhor Combate) de 1962. No entanto, Rodinson se opôs ao apoio de Ouzegane às autoridades muçulmanas tradicionais na Argélia. Ele advertiu que estes clérigos defenderiam inevitavelmente os interesses das novas classes dominantes argelinas após a independência, assim como os valores sociais reacionários.

Em uma entrevista de 1986 para o marxista libanês Gilbert Achcar, Rodinson lembrou uma viagem que havia feito à Argélia em 1965, quando o primeiro presidente do país, Ahmed Ben Bella, estava “fazendo tentativas cautelosas para promover a igualdade das mulheres”:

“Uma organização oficial de mulheres – não a organização falsa que elas têm hoje – estava realizando um congresso na capital. Quando o congresso estava fechando, Ben Bella veio para marchar à frente de uma procissão de mulheres pelas ruas da Argélia. Das calçadas de ambos os lados, homens enojados assobiavam e zombavam.”

Rodinson acreditava que o apoio provisório de Ben Bella à igualdade de gênero havia sido um fator significativo por trás do golpe liderado por Houari Boumedienne que o expulsou mais tarde naquele ano. Ele viu isso como um exemplo precoce de um fenômeno muito mais amplo: “Uma razão pela qual o fundamentalismo islâmico teve um apelo sedutor em quase todos os lugares é que os homens estão sendo despojados de seus privilégios tradicionais pelas ideologias modernistas”.

A ascensão do fundamentalismo islâmico

As sementes que Rodinson detectou no rescaldo da independência argelina floresceram plenamente após a Revolução Iraniana de 1978-79 com a consolidação do regime fundamentalista xiita do Ayatollah Khomeini. Como o movimento revolucionário iraniano vinha se desenvolvendo nos dois anos anteriores, alguns intelectuais ocidentais de esquerda o saudaram com uma mistura de entusiasmo e fascínio. Eram tanto mais entusiasmados quanto tinham visto as esperanças políticas dos anos sessenta revolucionários se tornarem amargas em outros lugares.

Rodinson viu imediatamente os perigos de uma reação ingênua e mal informada. Em três artigos publicados em dezembro de 1978 para o Le Monde, ele descreveu o fundamentalismo islâmico como uma espécie de “fascismo arcaico” baseado na “vontade de estabelecer um Estado autoritário e totalitário cuja polícia política manteria ferozmente a ordem moral e social”, ao mesmo tempo em que impunha “a conformidade com as normas da tradição religiosa interpretada no sentido mais conservador”.

Os partidários de Khomeini eram de duas variedades, acreditava Rodinson: alguns atribuíam importância primordial à “renovação da fé” por meios artificiais e coercivos, enquanto outros a viam como um “suplemento psicológico” que facilitaria uma “reforma social retrógrada”. Em fevereiro de 1979, no jornal francês Le Nouvel Observateur, ele ofereceu um comentário irônico sobre o entusiasmo de Michel Foucault pelo que estava acontecendo no Irã sob a liderança de Khomeini:

“A esperança, há muito morta ou moribunda, de uma revolução mundial que liquidaria a exploração e a opressão do homem pelo homem, ressurgiu, primeiro timidamente, depois com maior segurança. Será que, mais inesperadamente, esta esperança está agora sendo encarnada neste Oriente muçulmano até então pouco promissor e, mais precisamente, neste velho perdido em um mundo medieval de pensamento?”

Ruhollah Khomeini no final dos anos 1970.

Também no Irã, marxistas e liberais pareciam surpreendidos pelo poder mobilizador dos slogans religiosos – “cobrindo os motivos mais materiais de insatisfação e revolta”, segundo Rodinson – em nome dos quais as massas tinham enfrentado o exército do xá com suas próprias mãos. Muitos intelectuais progressistas iranianos há muito tempo tentavam encontrar pontos de convergência entre o Islã, particularmente o xiismo, e o socialismo.

Alguns o fizeram com toda sinceridade, como Ali Shariati, cujas ideias eram influentes entre o grupo de esquerda chamado Organização dos Mujahedin do Povo do Irã. Outros seguiram esta abordagem por razões táticas, na esperança de conquistar o coração das massas. Após a chamada Revolução Branca de 1962-63, um programa de reformas sociais e econômicas liberais lançado pela ditadura pró-ocidental do Xá, outros ainda tentaram formar alianças religiosas em oposição a seu governo.

No entanto, todos eles haviam negligenciado a posição social e a ideologia da liderança religiosa do Irã, que estava próxima à burguesia, principalmente comercial. Na década de 1970, Ruhollah Khomeini havia conquistado os mullahs para sua concepção de um “governo islâmico” que estaria sujeito à autoridade inquestionável de um guia supremo.

Para Rodinson, não se tratava de tentar impedir os muçulmanos de buscar seu futuro em alguma versão do Islã, “cuja nova face eles teriam que formar com suas próprias mãos”. No caso iraniano, não era o termo “islâmico” na formulação de Khomeini que deveria ter chamado a atenção dos observadores, mas sim a palavra “governo”, que Khomeini tinha investido firmemente com um conteúdo autocrático em seus discursos e escritos.

Rodinson via o fundamentalismo islâmico como um produto dos impasses da modernidade em suas diversas formas – colonial, neocolonial, nacional, ou mesmo “socialista” – seja na região árabe, Turquia, Irã, Ásia Central, ou África subsaariana. Em 1986, ele advertiu que isso permaneceria por muito tempo como uma característica do cenário político nos países muçulmanos:

“O fundamentalismo islâmico é um movimento temporário, transitório, mas pode durar mais trinta ou cinqüenta anos – não sei quanto tempo. Onde o fundamentalismo não está no poder, ele continuará sendo um ideal, enquanto persistir a frustração e o descontentamento básicos que levam as pessoas a tomar posições extremas. Você precisa de uma longa experiência com o fundamentalismo para finalmente ficar farto dele – veja quanto tempo levou na Europa! Os fundamentalistas islâmicos continuarão a dominar o período por um longo tempo. Se um regime fundamentalista islâmico fracassasse de forma muito visível e introduzisse uma tirania óbvia, uma sociedade abjetamente hierárquica, e também experimentasse retrocessos em termos nacionalistas, isso poderia levar muitas pessoas a se voltarem para uma alternativa que denunciasse esses fracassos. Mas isso exigiria uma alternativa credível que entusiasme e mobilize as pessoas. Não vai ser fácil.”

Nisso, é claro, ele estava certo.

“Duvidar de tudo!”

A vida e a trajetória intelectual de Rodinson foram marcadas por uma busca constante da verdade dentro de uma crença na emancipação coletiva. Sem hesitação, ele teria retomado a célebre injunção de Marx: duvidar de tudo! Ele desconfiava de teorias abstratas que não tinham uma base concreta e sempre se esforçou para basear suas próprias concepções em incansáveis pesquisas empíricas. Tampouco aceitava a ideia de que o pensamento crítico sobre um determinado assunto poderia ser prerrogativa de um grupo de pessoas, pois somente elas haviam experimentado essa forma de exploração ou opressão.

Rodinson rejeitou firmemente a ideia do marxismo como um pensamento acabado ou doutrinário que já continha todas as respostas para as importantes questões políticas, “um pouco como uma daquelas placas eletrônicas nas estações de metrô de Paris, que indicam o caminho correto de um ponto a outro”. Em seu entendimento, havia “não apenas um marxismo, mas vários marxismos, todos com um núcleo comum, é verdade, mas também com muitas divergências, sendo cada versão tão legítima quanto qualquer outra”.

De sua própria fase stalinista, ele tirou a lição de que os altos ideais políticos não eram “nenhuma garantia contra as armadilhas da auto-satisfação e do narcisismo coletivo, nem contra o delírio ideológico e os lapsos morais aos quais até mesmo os mais admiráveis dos compromissos podem levar”. Entretanto, o ceticismo de Rodinson em relação aos dogmas ideológicos não o levou à neutralidade política. Como ele escreveu na introdução ao marxismo e ao mundo muçulmano:

“Quando é evidente que calamidades inaceitáveis são o resultado direto de estruturas opressoras e exploradoras fundamentais, então o remédio deve ser radical; deve, como Marx disse, ir à raiz das coisas. E nesse caso, só há uma postura válida para aqueles que não conseguem resignar-se a aceitar o sofrimento evitável da humanidade: ser um rebelde.”

Sobre o autor

Jean Batou é professor de história internacional moderna na Universidade de Lausanne.

Quando os camponeses búlgaros liam Karl Kautsky

A história da Segunda Internacional é geralmente vista através do prisma do Partido Social-Democrata da Alemanha, um partido de massas em uma potência industrial. Mas os militantes nos Bálcãs tiveram que adaptar suas lições às suas próprias realidades locais - e nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, eles foram os primeiros socialistas a enfrentar os perigos iminentes da questão nacional.

Julia Damphouse

Jacobin

Camponeses perto de Tirnovo, Bulgária, 1906. (William Le Queux)

Resenha de The Lost World of Socialists at Europe's Margins: Imagining Utopia, 1870s - 1920s por Maria Todorova (Bloomsbury Academic, 2020).

Em 1911, uma senhora idosa em trajes típicos de camponesa entra em uma livraria socialista na pequena cidade búlgara de Vrats. “Avó, não temos os livros que você está procurando”, comenta o dono da loja, quando finalmente a notou. Imperturbável por sua respota rude, ela calmamente pede uma cópia do Anti-Dühring de Friedrich Engels e pergunta se eles têm uma obra particular de Karl Kautsky em mãos. A lojista, um tanto perplexa, atende seus pedidos - e ela sai satisfeita da loja.

Esta história é um entre muitos vislumbres da vida dos primeiros socialistas búlgaros incluídos em The Lost World of Socialists at Europe’s Margins, de Maria Todorova. A camponesa mencionada, Angelina Boneva, é um dos temas de seus detalhados capítulos biográficos, que retratam uma rica história de militantes socialistas de fora do núcleo do movimento na Europa Ocidental. Na verdade, embora este episódio seja uma curiosidade divertida, também se mostra uma metáfora adequada para o movimento social-democrata da Bulgária na virada do século.

Mas por que uma velha camponesa se interessaria pelas obras dos marxistas alemães? E o que uma nação de pequenas propriedades camponesas se beneficiaria com o socialismo marxista, com seu foco na organização da classe trabalhadora industrial? As respostas têm muito a nos dizer sobre o projeto socialista desta época, muito além da Bulgária.

Ação coletiva

Ao longo da década de 1920, a economia búlgara era primária e obstinadamente agrícola. Durante as quatro décadas entre a independência de fato do país do Império Otomano em 1878 e sua saída da Primeira Guerra Mundial, a parcela da economia nacional empregada na agricultura quase não mudou (na verdade, passou de 69 por cento em 1890 para 66,4 por cento em 1911). Mas o aumento do crescimento populacional e a queda da mortalidade significavam que o número absoluto de pessoas empregadas na indústria aumentava constantemente. Este foi o contexto em que o movimento socialista cresceu.

O livro de Todorova é focado no biográfico ao invés do estatístico; se baseia em um banco de dados de quase 3.500 indivíduos envolvidos na política socialista na Bulgária de 1870 a 1920. Estes eram em sua maioria membros e companheiros de viagem do Partido Social-Democrata dos Trabalhadores da Bulgária (BWSDP) antes da guerra, que se dividiu em partidos "Estreito" e "Amplo" nos primeiros anos do novo século. Mas eles também incluem narodniks de influência russa, anarquistas e outros radicais agrários e nacionalistas.

A imagem que emerge do desenvolvimento do socialismo búlgaro é uma transição lenta de pequenos grupos socialistas ecléticos de influências ideológicas variadas para uma organização mais estável, extraindo força e estabilidade dos laços com a Segunda Internacional. O movimento socialista lutou pela adesão em massa em face da repressão, lutou com sua crença no papel central do proletariado industrial e enfrentou a questão de como desenvolver uma posição socialista em relação à questão nacional no contexto único e multinacional dos Bálcãs.

A primeira geração de socialistas que Todorova discute não tinha organizações partidárias substanciais ou movimento sindical significativo. Foi necessária a consolidação dos partidos "Estreito" e "Amplo", e seus respectivos sindicatos, para que se desenvolvesse um número substancial de membros da classe trabalhadora. Antes da Primeira Guerra Mundial, os socialistas eram menos frequentemente proletários ou camponeses industriais, e mais frequentemente trabalhadores urbanos de vários tipos (o pessoal ferroviário empregado pelo Estado é um exemplo ilustrativo); muitos eram intelectuais de classe média baixa, como professores de origem pobre ou camponesa. Aqueles com formação universitária eram, na maioria das vezes, advogados.

Antes das Guerras dos Bálcãs de 1912-1913 - e especialmente antes da virada do século - a forma mais comum de exposição ao socialismo era a influência de um professor primário ou por meio de grupos de estudo socialistas compostos por alunos do ensino médio. Professor era a ocupação individual mais comum entre os socialistas antes da guerra (19% do total), embora, como um todo, vários tipos de trabalhadores os superassem significativamente (42%).

A mulher da anedota de abertura é um exemplo esclarecedor: Angelina Boneva nasceu em uma família de camponeses pobres, mas conseguiu fugir aos 23 anos. Só então ela conseguiu o ensino fundamental e, posteriormente, uma bolsa para se formar como professora. Mais tarde, ela se tornou membro de uma organização de professores social-democratas em 1908-1910 - segundo todos os relatos, ela permaneceu uma socialista dedicada até sua morte em 1938.

A prevalência de professores e outros intelectuais no movimento socialista da Bulgária significava que, Todorova nos diz, "uma das questões mais debatidas na primeira década do século XX foi se os professores e a intelectualidade como um todo pertenciam ao proletariado ou ao pequena burguesia.” Sem surpresa, eles não foram capazes de resolver este debate, que ainda hoje preocupa os socialistas. Outro resultado foi a proliferação de círculos de leitura marxista nas escolas, tanto entre meninos como meninas.

As organizações socialistas não foram proibidas. Mas funcionários públicos poderiam ser demitidos se suas atividades políticas fossem conhecidas - e professores “problemáticos” poderiam ser removidos por funcionários antipáticos. Os advogados eram mais livres do que professores e funcionários públicos para agir publicamente em nome de um partido socialista - e com sua renda independente, eles podiam defender ideias socialistas sem riscos catastróficos para seus meios de vida.

O caminho russo

Embora a Bulgária tenha permanecido um país totalmente agrícola, isso não levou necessariamente ao crescimento avassalador de um pensamento socialista centrado nos camponeses. Isso foi verdade na Rússia, onde antes do crescimento do socialismo de influência marxista na década de 1890, a principal organização política radical eram os narodniks (literalmente “populistas”, um termo que o autor evita por causa de suas conotações contemporâneas). Esses intelectuais visavam fomentar uma ação radical entre a maioria camponesa empobrecida do império czarista.

Given Russia’s wider force of example, it’s easy to imagine that before the Socialist International gained strength and spread the gospel of Marxism, the socialist tradition more rooted in rural and peasant traditions would have been popular in Bulgaria, too.

Some historians do portray the development of Bulgarian socialism as following a similar pattern to that of Russia.

Thus, instead of socialists grappling with how to draw landless agricultural laborers into their own political organizations, the key strategic question after the turn of the century was how and when to cooperate with the main party of small agricultural interests: the Bulgarian Agrarian National Union (BANU). Rather than following a Russian path of development, Bulgarian socialism grew from a unique combination of influences: occasionally Russian, at times German, and often totally homegrown in the Balkans.

Conspiratorial Reading Groups

The influence from Germany may seem surprising, given that it was, unlike Bulgaria, already a leading — and rising — industrial power. Yet a key connection with German-style social democracy, hegemonic in the Second International, founded in 1889, was a commitment to operating within the existing legal structure as much as possible and fighting for more democratic and political rights. Bulgarian socialists were able to freely form parties and run in elections, securing over 20 percent of the vote in 1913. If harsh Tsarist repression led Russian radicals toward conspiratorial tactics out of necessity, the same could not be said of relatively free Bulgaria.

This context makes the stories of some of the earlier Bulgarian radical groups particularly intriguing. Spiro Gulabchev, the founder of several circles in the 1880s, believed in a relatively nonviolent form of political activity. While early Russian Narodniks trusted in revolutionary action, Gulabchev believed in the power of the word. He especially championed the power of radical education — meaning the appropriate consciousness would have to be imparted before any real revolution could successfully take place.

Nevertheless, the form his clubs took was itself thoroughly conspiratorial. A group in any one town had no direct contact with any of the others, and individual members were not to form relationships or get to know other members personally. But if they weren’t planning any imminent bombings or assassinations (and the historical record shows they were not), what accounts for all the secrecy? According to one historian writing in the 1970s, it was for the psychological effect: if young people couldn’t be enticed to join an organization and undergo its political education with the excitement of the deed, they could at least be made to feel very revolutionary by being secretive.

While Gulabchev’s circles were certainly inspired in some ways by the Russian example, in Bulgaria this form of organization fell in significance after the turn of the century. Todorova insists that rather than a change in perspective of key figures toward a more Marxist or social-democratic viewpoint, this largely owed to different sets or generations of radicals beginning to succeed in organizing differently.

In short: Those who adopted Marxism in the 1890s and 1900s had largely been revolutionary nationalists disillusioned with Bulgaria’s path of independence. And rather than a Russian influence giving way to a German one, the Russian influence continued to exist, but in an increasingly anarchist and often explicitly anti-Marxist direction (through Gulabchev’s organizations and his book and pamphlet publishing venture, which endured until 1905).

The National Question

So, Bulgarian socialists looked to the international movement for guidance, if not necessarily imitating it entirely. This is clear from the story of Angelina Boneva, who went into the shop searching for a book by Karl Kautsky, a prominent member of the German social-democratic party and one of the international socialist movement’s foremost intellectuals.

Todorova’s extended introduction contains a fascinating collection of information on what socialist literature was made available in the Balkans in the 1880–1914 period. She shows that many of the reading materials made available to Bulgarian socialists were translated works shared through Second International networks. Here, by far the greatest number of works were translations from German — amounting to around 40 percent in the Bulgarian case.

When it comes to specific authors, Kautsky topped the list of most-translated works, with fifty-one texts in these decades, as compared to Georgi Plekhanov’s forty-two, Karl Marx’s twenty-one and Engels’s seventeen. Todorova uses this to make a compelling case that Bulgarian socialists and their organizations were often more influenced by German socialism and the socialism of the Second International writ large than by Russian socialism in particular.

But this is not to move Bulgaria out from the shadow of Russia only to put it under a German one. One area where the Bulgarian and Balkan socialists more generally could not find guidance from foreign theoreticians concerned their particular problems of nationalism and national autonomy.

Austrian Social Democrats, in particular Otto Bauer, are recognized for their early attempts to engage with and elaborate a position on the national question, at least in the context of the Austro-Hungarian Empire. But Todorova shows how the small Bulgarian movement in fact influenced the thinking of the leading European socialists.

Many of the socialist movement’s most influential figures were also members of the Internal Macedonian Revolutionary Organization (IMRO), which wanted autonomy from the Ottoman Empire for the Macedonian region, but was skeptical of a future for the Balkans consisting of a patchwork of small, fully independent nation states.

Instead, some Bulgarian and Macedonian socialists began advocating the idea of a Balkan federation. The federative idea was widely shared in Bulgaria and often debated. It has much in common with the more well-known Austro-Marxist idea, but had been around since as early as the 1860s and was prominent in the movement from the 1880s onward.

Dimitar Blagoev and Christian Rakovsky published on this very theme and attempted to get the International to pay attention to the Macedonian question. But when it came to making practical interventions or even symbolic resolutions, the International was wary of weighing in on issues of national self-determination when it had the potential to feed great-power animosity that could even lead to war.

So, although in principle socialists supported national self-determination, the Balkans was seen as a particularly risky terrain for the International to intervene. Many thought the International should instead focus on its “more important and more immediate interest, that of the proletariat,” as the Austrian Victor Adler put it.

Despite such attempts to evade this decisive question, Todorova insists that the federative idea should be considered one of the Bulgarian movement’s main theoretical contributions to socialist thinking in the Second International. She refers to this movement’s most famed figure, Kautsky, advocating this same idea as early as 1909 — and while some accounts have almost credited him with coming up with the idea, it should not be forgotten that its origins lie outside the movement’s German core. Kautsky, the purported “pope of Marxism,” just gave it his blessing.

Against the War

The Bulgarian movement was faced with a unique and challenging organizing context. Unlike some leading Second International parties at the turn of the century, its vision of its future could not easily ignore or subordinate the challenges of nationalism and national self-determination.

So, despite its country’s marginality, it found themselves particularly well-equipped to face the realities of nationalism and war. As Todorova notes, “the Bulgarian socialist parties and factions on the eve of the Balkan Wars espoused the pacifist orientation of the International in support of the status quo as a guarantee against a general conflagration.”

Yet once war became pan-European, the same could not be said of other socialist parties, almost all of which supported their own national governments’ calls to arms. When Bulgaria broke its neutrality and joined the war in 1915, its “Narrow” socialist party was one of few parties anywhere in Europe that stood up against the slaughter.

Sobre a autora

Julia Damphouse is Jacobin’s Reading Groups Coordinator and a History MA student at Humboldt University Berlin.

Os escritos originais de Mariátegui

A obra de José Carlos Mariátegui, como a de Antonio Gramsci, é fruto de uma reconstrução póstuma. Felizmente, agora temos acesso aos escritos originais desse primoroso revolucionário latino-americano.

Ricardo Portocarrero Grados


José Carlos Mariátegui continua a exercer larga influência na identidade política e na ação de diversos movimentos sociais e organizações de esquerda em toda América Latina. Reprodução do Archivo José Carlos Mariátegui.

Tradução / Na América Latina e no mundo, a obra de José Carlos Mariátegui segue suscitando interesse e gerando novos debates. A rigor, ela nunca deixou de existir. Hoje não apenas nasce um renovado interesse pelas ideias do marxista peruano, mas também no apaixonante – e mal compreendido – processo de escritura e método criativo do Amauta [título para professores do império Inca]. Por isso é tão salutar contar com o inédito acesso aos escritos originais de José Carlos Mariátegui.

O Arquivo José Carlos Mariátegui já tem esses textos para consulta pública. Repleto de correções, marcações, comentários e outros elementos que nos convidam a repensar o processo criativo por detrás da célebre obra de Mariátegui, espera-se que abra uma nova etapa na investigação e apreciação do maior marxista latino-americano do século passado.

Uma história editorial acidentada

Com a morte de José Carlos Mariátegui, em 16 de abril de 1930, ele recebeu o reconhecimento de sua vida e obra, com uma massa de pessoas acompanhando seu funeral, o que seria seu último lugar de descanso. Seus apoiadores propuseram a publicação póstuma de dois livros que Mariátegui vinha preparando nos últimos meses de sua vida, através da Editorial Minerva. No ano seguinte, um acordo multipartidário no Congresso Constituinte de 1931 aprovou a proposta de Víctor Andrés Belaúnde, um de seus opositores políticos, de conceder uma bolsa aos filhos de Mariátegui para que completassem seus estudos e, depois, coletassem e publicassem seus escritos, dispersos em numerosas revistas do Peru e do continente.

Esses projetos não se concretizaram. O impulso da “desmariateguização” do Partido Comunista promovido por Eudocio Ravines, a crise econômica mundial e a brutal repressão dos governos oligárquico-militares entre 1931 e 1956 não o permitiram. Mariátegui tornou-se um autor proscrito e perseguido. Alguns amigos, no Peru e no estrangeiro, promoveram e difundiram sua obra durante as duas décadas seguintes à sua morte, sobretudo de forma clandestina.

A espera durou até meados da década de 1950 para que, a pedido de sua viúva, Anna Chiappe, e de seus filhos, e por meio da Livraria e Editorial Minerva, iniciasse o mais importante projeto editorial desenvolvido no Peru para difundir a obra de um escritor peruano. Este projeto teve início com a compilação, ordenamento e publicação das Obras Completas de José Carlos Mariátegui em vinte volumes de edição popular, que vendeu aproximadamente dois milhões de exemplares (apenas as edições de 7 ensayos tinham tiragens de 50 mil exemplares).

(Viúva de Mariátegui, Anna Chiappe [Arquivo José Carlos Mariátegui])

A divulgação das edições impressas de Mariátegui tem seu auge com a publicação de dois volumes de Mariátegui Total (quase quatro mil páginas) no contexto do centenário de seu nascimento, em 1994. A edição incluiu os Escritos Juveniles, sua Correspondencia e um álbum fotográfico, que ainda estão circulando nas livrarias.

Paralelamente à publicação das edições impressas da obra de Mariátegui, foram publicadas edições fac-símiles das revistas Amauta, Nuestra Época, Claridad e a quinzenal Labor. Cabe notar que seu livro mais famoso, 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana, teve mais de sessenta edições, incontáveis edições piratas e uma vintena de traduções para outras línguas. Para concluir, trata-se de um dos acervos documentais mais importantes do país que, além disso, não contou com o apoio do Estado para seu desenvolvimento. Somam-se numerosas antologias publicadas no Peru e no exterior, em espanhol e em outras línguas. O mais recente de Martín Bergel, apareceu no ano passado (Siglo XXI, Argentina, 2020).

O arquivo do Amauta

Apesar da ampla divulgação de sua obra, que lhe permitiu ser um dos autores peruanos mais lidos nacional e internacionalmente – ao lado de César Vallejo, José María Arguedas e Mario Vargas Llosa – seus herdeiros consideraram que ainda havia muito por fazer. E essas novas tarefas vieram de mãos dadas com as novas tecnologias. Em 1994, 7 ensaios tornou-se o primeiro livro de um autor peruano que pode ser consultado e lido na íntegra na Internet, disponível no site da Rede Científica Peruana (RCP).

Nos últimos cinco anos, o Archivo José Carlos Mariátegui assumiu a tarefa, após um processo longo de compilação, ordenamento e classificação, de digitalizar grande parte da documentação sobre José Carlos Mariátegui. Sua correspondência, fotografias, a reconstrução da sua biblioteca, a bibliografia de e sobre Mariátegui, a edição integral da revista Amauta, sua documentação administrativa e outros podem ser consultados de maneira livre e gratuita na internet (www.mariategui.org). Dessa maneira, a obra de Mariátegui está na vanguarda do Peru em termos de digitalização de arquivos pessoais.

Em julho de 2020, o Arquivo José Carlos Mariátegui iniciou uma nova fase de reorganização e recomposição da obra de Mariátegui. Até essa data está disponível na sua plataforma digital (para acesso gratuito a todas pessoas interessadas) 134 artigos em manuscritos originais de José Carlos Mariátegui digitalizados e indexados para consulta em qualquer dispositivo eletrônico.

Por que retornar aos escritos originais?

Para o pesquisador, o acesso aos escritos originais é imprescindível. Existe a ideia aceita de que o fundamental para conhecer e estudar um autor é consultar sua obra impressa. E assim foi no caso de Mariátegui: a edição de suas Obras Completas e de Mariátegui Total, junto com as numerosas antologias, tornaram-se a principal fonte de consulta de seus escritos. No entanto, Mariátegui somente publicou dois livros em vida e deixou em preparação outros três; a maior parte de seus escritos permaneceram dispersos em inúmeras revistas do Peru e no exterior, principalmente Mundial e Variedades.

Isso significa que as principais edições da obra de Mariátegui não foram organizadas por ele, com os quais os critérios de compilação, seleção e ordenação foram estabelecidos por terceiros. Isso fez com que, muitas vezes, essas edições fossem consideradas erroneamente como livros “orgânicos”. Não se pode deixar de mencionar que essa é uma nova semelhança entre Mariátegui e Antonio Gramsci com seus famosos Cadernos do cárcere.

Uma contrapartida dessa reconsideração da obra de Mariátegui é recordar que o peruano foi fundamentalmente um jornalista, profissão a qual se dedicou por toda a vida desde muito jovem. Foi a partir dos espaços próprios do periodismo (a oficina, a redação, a direção) que desenvolveu sua formação política e intelectual. Muitos marxistas clássicos (Marx, Lenin, Trotsky, Luxemburgo, Gramsci) também tiveram essa atividade como o centro de sua ação política para produzir, difundir e debater ideias, a fim de convencer e contribuir para formar um movimento político de massas. Ou seja, em seu afã político, Mariátegui raramente escreveu “obras” que hoje se apresentam como o horizonte de sua intervenção intelectual.

Os espaços jornalísticos têm uma íntima relação com os métodos de trabalho. Pela sua formação jornalística, Mariátegui escrevia páginas diariamente, reelaborava constantemente, fazia leituras comentadas (muitas vezes nas margens de seus livros), preparava fichas onde resumia algumas ideias que considerava pertinentes. Não fez extensos resumos em cadernos, como Karl Marx, mas trabalhou com fichas e, sobretudo, através da prática diária do jornalismo.

Esses espaços também diferem das áreas próprias do mundo universitário (a sala de aula, a cátedra, a biblioteca, a administração). Repetiu-se a exaustão que Mariátegui é um antiacadêmico. Mas não ao ponto de desdenhar a cultura escrita, a academia, a pesquisa ou o estudo, mas nesse sentido banal, da lógica própria do Peru nas primeiras décadas do século XX, onde a universidade estava controlada por elites agrupadas em torno do Partido Civil.

Esses escritos permitem ter uma ideia aproximada de sua forma de redação de textos e de seu sistema de trabalho. As correções e emendas após uma primeira redação em uma máquina de escrever, por exemplo, oferecem uma ideia aproximada de seu processo criativo. Ainda mais quando, em casos de alguns artigos republicados posteriormente em outras revistas, for possível confrontar as novas correções que também podem contribuir para a compreensão do desenvolvimento de suas ideias.

(Manuscrito de “Trotsky e a oposição comunista [Arquivo José Carlos Mariátegui])

Nesse sentido, conhecer o processo de elaboração da escrita de um autor – desde sua redação até sua impressão – para compreender seu pensamento, suas ideias e abordagens é fundamental. Ter hoje 134 de seus escritos originais, ainda que seja uma amostra mínima dos mais de três mil que escreveu em vida, é muito importante para compreender seu processo criativo e lembrar que Mariátegui, enquanto jornalista, dirigiu sua escrita quase diária para um público muito amplo. A imediatez era uma característica necessária de seus artigos, muito diferente daqueles longos períodos de reflexão e revisão próprios do autor acadêmico.

Porque tão poucos escritos originais sobreviveram?

Ao contrário da imagem idílica de Mariátegui como um intelectual que trabalhava tranquilamente em sua casa, ele foi constantemente assediado e perseguido pela ditadura de Augusto B. Leguía (1919-1930). De forma contínua, a polícia reteve sua correspondência, roubou seus documentos e até invadiu sua casa em algumas ocasiões, confiscando parte de seu arquivo pessoal, como artigos, cartas, revistas e livros. Para constatar isso, basta revisar sua correspondência na qual reclamava constantemente dessa situação que, finalmente, motivaria sua decisão – frustrada – de transferir a revista Amauta para Buenos Aires.

No contexto da denúncia do suposto “complô comunista” de junho de 1927 por parte do governo de Leguía, escreveu ao argentino Samuel Glusberg:

Tratarei de retomar a publicação do Amauta, em Lima. Se não puder reconsiderar seu fechamento, me dedicarei a preparar minha viagem a Buenos Aires para estabelecer ali a revista, que tem ampla base de circulação americana, e certo sucesso no Peru, onde a considerável importação de revistas argentinas permite que seja introduzido em larga escala, mesmo que sua entrada seja proibida. Seria absolutamente impossível para mim permanecer sufocado aqui material e intelectualmente. Minha presença no Peru deve ter um objetivo. Se perder, nada se justifica.

A isso se somam as vicissitudes das mudanças de seu arquivo após sua morte (removidas por Anna Chiappe e seus filhos devido a mudanças de endereço), bem como o processo editorial para a impressão das diferentes edições de suas obras e, finalmente, consultas e empréstimos a diversos pesquisadores e colegas.

Que tipo de informação contém os escritos originais?

As informações que se podem obter com o sistema de busca são muito diversas. Mencionaremos algumas a título de exemplo. Mais da metade dos textos foram publicados na Variedades e outros tantos no Mundial; cinco, em outras revistas e uma permaneceu inédita até sua morte – Roma y el arte gótico – como parte de seu projeto para publicar El alma matinal y otras estaciones del hombre de hoy na Editorial Babel, de Buenos Aires, de seu amigo e correspondente Samuel Glusberg. Posteriormente, esse artigo foi incorporado ao livro na coleção Obras Completas.

Dos 134 artigos, 99 correspondem à Europa (França 32, Itália 26, Alemanha 24, Inglaterra 19, Espanha 19, Rússia / União Soviética 14), 47 à América do Norte, 20 à América Latina, 9 ao Peru e 3 à Ásia. Esse predomínio de temas europeus não é surpreendente, pois se sabe que a maioria dos escritos jornalísticos de Mariátegui entre 1920 e 1930, em termos relativos, versam sobre o continente europeu. Isso poderia ser interpretado como expressão de seu suposto “europeísmo”. Mas também se pode pensar que, em geral (e até hoje), os especialistas em questões europeias são muito escassos, razão pela qual Mariátegui foi muito procurado.

Além disso, deve-se levar em conta que Mariátegui estava muito interessado na Europa porque era a principal sede, junto com Estados Unidos, dos países imperialistas. Seus escritos versam sobre seu papel no reordenamento europeu do pós-guerra, o pagamento de indenizações dos aliados, suas políticas coloniais e imperialistas e seus intelectuais, entre outros temas.

Finalmente, deve ser mencionado o número significativo de artigos dedicados a determinados personagens. Entre os mais citados encontram-se Benito Mussolini, Primo Tivera e Miguel de Unamuno. Embora a amostra de artigos originais de Mariátegui não seja representativa, essa informação é expressão do grande interesse de Mariátegui em estudar os partidos e regimes de extrema direita, particularmente o fascismo, que naqueles anos predominava no continente europeu. Um tema sobre o qual o saudoso crítico literário italiano, Antonio Melis, reconheceu seu valor e importância, inclusive para o público italiano. O terceiro lugar de Miguel Unamuno nessas referências é um fato significativo o suficiente para reabrir o debate sobre a influência do filósofo espanhol na obra e no pensamento de Mariátegui.

Mas as tarefas do Arquivo José Carlos Mariátegui não foram concluídas. Ainda há muito material para trabalhar. Aqui pode-se citar, por exemplo, a correspondência com sua irmã Guillermina durante sua viagem à Europa, o que nos permite um acompanhamento da sua jornada europeia. Também as fichas e anotações das conferências proferidas por Mariátegui nas Universidades González Prada, e os recortes de seus artigos publicados nas revistas Mundial e Variedades. Existem pequenos acervos documentais (correspondências, artigos de jornal) pertencentes a vários personagens ligados a Mariátegui que foram deixados em suas mãos por diversas circunstâncias (como Víctor Raúl Haya de la Torre, Eudocio Ravines, Ricardo Martínez de la Torre ou Luis Bustamante). E há também sua coleção de jornais e revistas, que sobreviveram aos constantes saques da polícia ou aos empréstimos que ele fez entre seus colegas.

Sobre o autor

Ricardo Portocarrero Grados é historiador peruano.

30 de janeiro de 2021

Revisitando o maoísmo e a esquerda global

Contra quase um século de debates sobre o stalinismo, a esquerda internacional nunca chegou a um acordo com o maoísmo, especialmente seu impacto global.

Kevin B. Anderson


By: Julia Lovell
Alfred A. Knopf, 2019

Em contraposição ao quase um século de debates sobre o stalinismo, nunca a esquerda internacional ajustou contas com o maoísmo, especialmente com o seu impacto mundial. A desilusão quanto ao stalinismo é marcada por certas datas trágicas da política internacional: o Pacto Hitler-Stalin de 1939, que lançou a Segunda Guerra Mundial, a supressão da Revolução Húngara de 1956, o esmagamento da Primavera de Praga em 1968. São eventos bastante lembrados, por vezes debatidos, aqui e em outros espaços. Quanto ao maoísmo, as seguintes datas, ainda que não recebam a merecida atenção, também marcam trágicos eventos para a esquerda mundial: o colapso do Partido Comunista Maoísta Indonésio, em 1965, devido à repressão assassina dos militares auxiliados pela CIA, a reaproximação da China e do imperialismo dos Estados Unidos, em 1971-1972, enquanto Nixon assolava o Vietnã com bombardeios e embarcava na campanha para a reeleição, o autogenocídio do Khmer Vermelho, a aproximação de Mao, da África do Sul e do Zaire de Mobuto contra os revolucionários africanos, em 1975-1976. Decerto, o fato de que esses eventos, impactados pelo maoísmo, não ocorreram nos países da Europa ocidental e central, mas sim nos do Sul Global, já explica a relativa falta de atenção. Não é justificável, porém, que se perpetue uma tal marginalização.

Nos anos 1960, o maoísmo tornou-se um polo que atraía os Panteras Negras e os Estudantes para uma Sociedade Democrática, nos Estados Unidos, alguns revolucionários e nacionalistas africanos, a extrema-esquerda francesa, entre outros. Muitos viam a China maoísta como produto de uma revolução socialista exitosa e levada a cabo por pessoas não-brancas. E se ela gradativamente perdia seu brilho como fenômeno internacional, isso se dava mais como um bulício do que como um estrondo, sem os furiosos debates que marcaram os anos de 1939, 1956 e 1968. O fato de não existir um balanço claro ajudou a influência ideológica maoísta a subsistir, muitas vezes indiretamente, até os dias de hoje.

Acha-se um exemplo nas teorias estruturalistas e pós-estruturalistas, que impactaram muitos campos acadêmicos e postulavam uma concentração naquilo que marxistas ortodoxos denominavam de superestrutura, especialmente nas dimensões cultural e ideológica. Essa afinidade com o maoísmo não se assenta meramente no fato de que alguns dos intelectuais associados ao estruturalismo – como Louis Althusser, Michel Foucault e, no início, Jacques Derrida – foram influenciados pelo maoísmo; assenta-se também em uma posição teórica indiscutível: que o pensamento maoísta buscava colocar a superestrutura no lugar da estrutura, notadamente com a Revolução Cultural.

Outro exemplo é o extremo voluntarismo do maoísmo: de slogans como “Ousar Lutar, Ousar Vencer” ou “O Imperialismo dos Estados Unidos é um Tigre de Papel” até o aventureirismo, ou pior, na esfera da política revolucionária, como o Partido Comunista Indonésio e o Camboja de Pol Pot. Se poucos da atual esquerda ativista são os que se identificam com o maoísmo – à parte grupos como os Naxalitas na Índia, os partidos comunistas no Nepal e o Partido Comunista das Filipinas – o seu espírito voluntarista subsiste, mais sutil e indiretamente, em alguns rincões da Antifa e do anarquismo. É essa continuidade que torna importante para a esquerda, e não só em termos históricos, o brilhante livro de Julia Lovell.

Se são incontáveis as histórias do comunismo internacional que põem em foco os partidos, grupos e intelectuais associados ao stalinismo dos anos 1920 em diante, o livro de Julia Lovell preenche uma importante lacuna por ser a primeira história do maoísmo como fenômeno mundial. É produto de pesquisa arquivística, de entrevistas e de uma cuidadosa síntese de estudos anteriores. Julia Lovell não faz parte da esquerda radical, é uma historiadora acadêmica, cujo livro, não obstante, nos é da maior importância. E alguns de seus achados são mesmo reveladores.

Um deles concerne à gestação do relato hagiográfico de Edgar Snow, em 1937, logo depois da Grande Marcha: Red Star Over China [Estrela Vermelha sobre a China]. Lovell mostra que o livro de Snow foi dirigido e editado de perto por Mao e por oficiais do partido: “A transcrição de Snow, em inglês, da versão do tradutor das palavras de Mao” era “traduzida para o chinês, corrigida por Mao e retraduzida para o inglês” (p. 76). Representantes do partido, segue o livro, continuaram a moldar a narrativa: “No curso do inverno de 1936, à medida que Snow trabalhava na cópia das anotações, os seus entrevistados continuavam a remeter-lhe uma torrente de emendas: que removesse qualquer traço de dissenso com a política do Comintern, que expungisse qualquer elogio a intelectuais chineses caídos em desgraça, que baixasse o tom da crítica a inimigos políticos que se tornaram aliados, que exaltasse o patriotismo antijaponês” (p. 76-77). Eis a primeira, mas não a última, romantização do maoísmo pela esquerda mundial.

Outro acontecimento central que Julia Lovell elucida é o massacre de meio milhão de indonésios de esquerda, ou de tal suspeitos, pelo exército e por seus aliados islâmicos, com considerável auxílio da CIA, em 1965. O que se sabia acerca disso? No início dos anos 1960, sabia-se que Mao havia formado uma aliança com Sukarno, um nacionalista com inclinações de esquerda que patrocinara a conferência de Bandung, dos países “Não Alinhados”, em 1954 – aliás, em Bandung, um importante marco do nascimento do terceiro-mundo, compareceram os representantes chineses, mas não os soviéticos.

Também corria na esquerda que o Partido Comunista da Indonésia (PKI) – de massas, legal e que, depois da cisão sino-soviética, se tornou o maior aliado da China entre os partidos comunistas do mundo – foi surpreendido de guarda baixa pela ferocidade da repressão, em 1965-1966. Naquele momento, a esquerda revolucionária também via a Indonésia como o maior fracasso do maoísmo enquanto movimento internacional, pois percebia que o PKI não agira tão diferentemente dos partidos comunistas pró-Moscou quando se alinhou, de modo oportunista, a um ditador nacionalista, sem que antes houvesse construído suficiente capacidade política ou militar independente. A verdade, porém, revela-se mais complexa – e mais danosa para Mao.

Os eventos que levaram à revolução abortada liderada pelo PKI e à repressão brutal que se seguiu ficaram, por muito tempo, amortalhados em segredo. Julia Lovell não logrou revelar totalmente o segredo, dada a supressão da própria história pelo regime chinês. Ainda assim, ela reúne suficiente evidência para também imputar a Mao tanto a derrota da esquerda indonésia como a da liderança do PKI, cujos desastrosos erros de cálculo foram impactados pelo voluntarismo do próprio Mao.

A fim de demonstrá-lo, Julia Lovell reproduz a versão de uma conversa entre Mao e o líder do PKI, D.N. Aidit, em agosto de 1965, na qual Mao pede para que Aidit “aja rápido” contra os líderes militares conservadores, sendo que naquele momento o estado de saúde de Sukarno colocava a aliança com o PKI em risco (p. 178). Se isso for verdade, Mao cometeu um grave erro de cálculo, comparável à decisão de Stálin de não permitir que os comunistas alemães se aliassem com os sociais-democratas enquanto Hitler chegava ao poder. Seja como for, a influência do maoísmo no PKI não deixa de ser deletéria.

Aludindo ao desastroso esforço de Mao para transformar o campo chinês pela via das “Comunas Populares”, causando a fome massiva dos fins dos anos 1950, relata Julia Lovell: “No estilo voluntarista do ‘Grande Salto Adiante’, Aidit passou a abdicar da mobilização cautelosa e paciente dos anos 1950, em favor de declarações que enfatizavam o alto ‘espírito, resolução e entusiasmo’ do maoísmo” (p. 168). E enquanto Aidit, tal como Sukarno, falava sobre organizar uma força paramilitar para enfrentar o exército regular, e a China prometia grandes quantidades de armamentos, nada de substancial foi realmente feito, mesmo quando o PKI subiu o tom contra os militares.

Então, no dia 30 de setembro de 1965, o PKI, agindo com aparente encorajamento chinês, deu um passo para incapacitar a liderança militar, matando alguns generais; no entanto, sem o apoio das ruas e dos militares, a ação rapidamente retrocedeu, especialmente quando o enfermo Sukarno não se juntou à causa. Isso permitiu que os demais generais indonésios orquestrassem um dos maiores massacres políticos da história e estabelecessem um regime conservador e antitrabalho, que ainda hoje persiste, sob uma forma modificada, com uma institucionalidade algo mais democrática.

Mais outra revelação de Julia Lovell concerne à relação de Mao com Pol Pot e com aquilo que alguns chamam de autogenocídio cambojano, em que até dois milhões de pessoas – um quarto da população – morreram de fome, de sobretrabalho, ou foram executadas, durante os anos de 1975-1979. Quando Nixon estendeu a guerra do Vietnã ao Camboja em 1970, bombardeios massivos matavam um grande número de civis. Como os camponeses fugiam das bombas que choviam nas áreas rurais – onde o Khmer Vermelho, notadamente o Partido Comunista Cambojano, tinha sua base – a população da cidade inchava, fazendo da fome uma realidade.

Quando o esforço de guerra dos Estados Unidos colapsou em 1975, o Khmer Vermelho de Pol Pot tomou o poder, adentrando na capital, Phnom Penh, e evacuando, sob a mira de armas, quase toda população. Foi parte de um esquema insano, inspirado em projetos maoístas como “O Grande Salto Adiante”, para esvaziar as cidades e construir o “socialismo” no campo, baseado em uma combinação de aumento abissal da jornada de trabalho com rações mínimas. Tudo isso veio abaixo em 1979, quando o Vietnã invadiu e derrubou o Khmer Vermelho, instalando uma versão de stalinismo mais racional e próxima do soviético, de que era aliado.

Se há décadas é sabido que o Khmer Vermelho era inspirado pelo maoísmo, Julia Lovell explica-o: “A evacuação das cidades foi uma versão extrema da ruralização da era da Revolução Cultural. A criação dos refeitórios e a abolição da refeição familiar replicaram a coletivização do ‘Grande Salto Adiante’” (p. 255). Além disso, ela mostra que a China maoísta estava profundamente comprometida com o regime de Pol Pot, que foi premiado com o maior pacote de ajuda que Pequim já oferecera: um bilhão em subvenções e empréstimos sem juros. Até mesmo os uniformes impostos pelo regime, vestes pretas parecidas com pijamas, eram importados da China.

Em 1975, assim que o Khmer Vermelho chegou ao poder e evacuou completamente as cidades sob a mira de armas, Pol Pot e Ieng Sary, os principais líderes, reuniram-se com Mao em privado. Consta que Mao lhes disse: “Nós aprovamos vocês! Muitas das suas experiências são melhores que as nossas”; e Pol Pot respondeu: “Os trabalhos do Presidente Mao guiaram todo o nosso partido” (p. 241). Envelhecido e doente, com apenas mais um ano de vida pela frente, Mao parecia sentir-se frustrado com o modo pelo qual teve de desistir do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural: “O que queríamos e não pudemos fazer, vocês estão conseguindo” (p. 241), disse ele. Três anos mais tarde, Pol Pot expressou sentimento similar, ainda sugerindo que ele havia superado até mesmo Mao: “Mao parou sua Revolução Cultural, nós temos uma Revolução Cultural por dia” (p. 259).

Os horrores do regime do Khmer Vermelho levaram a um duro despertar, especialmente na França, para muitos intelectuais de esquerda que haviam abraçado o maoísmo como uma alternativa, mais militante e antiburocrática, ao stalinismo russo. Michel Foucault e outros distanciaram-se não só do maoísmo, mas também do marxismo. Nessa era, os Novos Filósofos de Paris miraram o “totalitarismo” de um modo tal que se tornaram incapazes de apoiar, genuinamente, movimentos como a Revolução Sandinista na Nicarágua, ao passo que se inspiravam no escritor russo Aleksandr Solzhenitsyn, talentoso, mas muito direitista. Isso tudo ajudou a encaminhar um certo neoconservadorismo na França.

O capítulo sobre a África faz a crônica do notável e firme compromisso da China de Mao com o apoio aos africanos nacionalistas e revolucionários nos anos 1960, quase sempre para competir com a União Soviética. A China ganhou o apoio substancial de Julius Nyerere na Tanzânia, um dos poucos países africanos que se libertaram na primeira onda dos movimentos de independência e evitaram tanto um governo militar forte de direita (caso do Congo-Kinshasa [Zaire] e de Gana) como um autoritarismo ostensivo de esquerda (caso do Congo-Brazzaville e da Guiné). Nyerere, que defendia a ujamaa, uma forma de socialismo rural, e que, na condição de líder do principal Estado africano da “linha de frente” na luta contra o apartheid na África do Sul, apoiava movimentos de libertação no sul da África, recebeu considerável ajuda chinesa.

O mesmo ocorreu no Zimbábue, com a União Nacional Africana de Mugabe, partido declarado marxista, mas que depois estabeleceu uma brutal ditadura de esquerda. Julia Lovell faz com que sobressaiam essas relações, pintando um retrato bem mais positivo da política maoísta na África do que em outras regiões, o que tem certa validade, diante de conquistas como a ferrovia TanZam, que foi finalizada em 1975 a um tremendo custo para os chineses, livrando as minas de cobre da Zâmbia da dependência econômica da África do Sul.

Mas Julia Lovell ignora totalmente a maior falha da China maoísta na África, falha que, ao lado dos horrores do regime do Khmer Vermelho, maculou sua reputação no interior da esquerda mundial. Trata-se da guerra de Angola, em 1975, que ocorreu quando esse país rico em minérios rompeu as amarras do colonialismo português. Com o passar dos anos, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) tornou-se, entre os movimentos de libertação dos países da África, o mais de esquerda e o mais profundamente enraizado. Mas por ser o MPLA bancado pela União Soviética, dos anos 1960 em diante a China apoiou a direitista União Nacional para a Total Independência de Angola (UNITA), cuja base era o Zaire de Mobutu.

Mobutu, governante dos mais reacionários e cleptocráticos da África, havia chegado ao poder orquestrando o assassinato do renomado líder da libertação africana, Patrice Lumumba. Portugal começou a sair de Angola e de suas outras colônias em 1975, já com a experiência, em 1974, da sua própria revolução de esquerda, que derrubou um regime fascista no poder desde os anos 1920. Oficiais portugueses revolucionários, radicalizados pelo contato com revolucionários africanos, buscavam entregar o poder ao MPLA.

Naquele momento, bancada não só por Mobutu e pelos Estados Unidos, mas também pelo apartheid da África do Sul, que enviou tropas para o sul de Angola, a UNITA, com outro grupo nacionalista de direita menor, tentou tomar o poder. Isso colocou China e África do Sul do mesmo lado. Quando UNITA, Zaire e África do Sul sofreram a humilhante derrota pelas mãos dos 36.000 combatentes cubanos enviados com ajuda soviética, a humilhação foi também da China, pois expunha Mao ao mundo como aliado da África do Sul.

A traição do movimento de libertação de Angola pela China tornou-se um ponto sem retorno para a esquerda que tinha um compromisso mais firme com a libertação da África e do Terceiro Mundo. Tragicamente, o regime do MPLA, endurecido pelas longas décadas de guerra civil contra a UNITA, que era financiada pelos Estados Unidos, tornou-se um Estado autoritário e cleptocrático; não obstante, o apoio de Mao a forças aliadas da África do Sul desempenhou seu papel na desilusão de muitos setores da esquerda quanto ao maoísmo, especialmente os setores envolvidos na libertação dos negros. Para outros, porém, isso resultou em desilusão quanto ao marxismo.

Não surpreende que Julia Lovell, uma estudiosa da China, caminhe em terreno mais seguro ao analisar o impacto do maoísmo sobre países como Indonésia e Camboja, do que ao tratar da África. Não obstante, ela deve ser elogiada por ter escrito a primeira análise do maoísmo como projeto mundial. No todo, é um trabalho de erudição profunda e julgamento cuidadoso. Contém uma riqueza de materiais indispensáveis para a esquerda do século XXI considerar, caso queira evitar os terríveis erros do passado. E posto que o maoísmo, ou ao menos padrões políticos similares ou derivados, subsiste até hoje, tanto em algumas formas de radicalismo acadêmico como em tendências da esquerda ativista, este livro também a nós nos fala hoje, se for lido com abertura de espírito.

Pós-escrito: Uma nota pessoal. Como parte da esquerda de Nova York, eu participei de alguns dos debates sobre a guerra civil de Angola de 1975, nos quais vi alguns ativistas, que foram por muito tempo simpáticos a Mao – e com quem eu por vezes travara amargas discussões – expressarem uma súbita e aguda desilusão. Angola também foi o assunto do meu primeiro artigo sobre política internacional: “U.S. Imperialism seeks new ways to stifle true Angolan revolution” [“Os Estados Unidos buscam novos caminhos para sufocar a verdadeira revolução angolana”] (News & Letters, Maio de 1976: https://www.marxists.org/history/etol/newspape/news-and-letters/1970s/1976-05.pdf), publicado sob o pseudônimo Kevin A. Barry, com consideráveis conselho e ajuda de Raya Dunayevskaya.

Sobre o autor

Kevin B. Anderson é professor de sociologia e ciência política na Universidade da Califórnia-Santa Bárbara. Autor, entre outros livros, de Marx nas Margens: nacionalismo, etnia e sociedades não ocidentais (Boitempo).

28 de janeiro de 2021

A guerra de classes da Covid-19

A pandemia global empurrou entre 200 e 500 milhões de pessoas para a pobreza extrema, enquanto os mais ricos adicionaram US $ 3,9 trilhões a suas fortunas. Covid-19 não é uma crise que afeta todos nós igualmente - é uma guerra de classes.

Joe Bilsborough



Tradução / Contra o pano de fundo do Reino Unido alcançando a marca trágica e deprimentemente evitável de 100.000 mortes por coronavírus, esta semana vimos o lançamento de um relatório da Oxfam – O Vírus da Desigualdade – que revela a turbulência socioeconômica agravada pelo coronavírus, aumentando-se as fissuras de uma economia global já intensamente desigual. Em suma, esta crise tornou os ricos de grande magnitude mais ricos, enquanto milhões dos mais pobres globalmente foram empurrados para a miséria.

Para os mais ricos, esta crise acabou – e em tempo recorde. Demorou cinco anos, após o crash de 2008, para a riqueza bilionária atingir seu pico anterior, mas desta vez levou apenas nove meses para os 1.000 bilionários mais ricos do mundo recuperarem toda a riqueza que perderam nos primeiros lockdowns. Na verdade, como observa o relatório da Oxfam, um indicador revelador para onde estamos indo é a notícia de que estamos tendo vendas recordes de jatos particulares.

Para os mais pobres, não há luz no fim do túnel: as estimativas sugerem que entre 200 e 500 milhões de pessoas em todo o mundo foram empurradas para a pobreza extrema; e que pode levar mais de uma década para que os mais pobres do mundo se recuperem desta crise. Na verdade, a medida que um nacionalismo vacinal epidemiologicamente incoerente e moralmente abominável se instala, até mesmo obter acesso à vacina é agora uma questão de intensa desigualdade.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) já alertou que enfrentamos uma “falha moral catastrófica” à medida que a desigualdade da vacina em nível internacional se aprofunda, com pesquisas recentes sugerindo que as nações em desenvolvimento podem ter que esperar até 2024 para obter a vacinação completa. Algumas dessas nações podem nunca chegar a este ponto.

Tudo isso fala para um acordo político-econômico que está profundamente quebrado: entregar as mercadorias para um grupo cada vez menor no topo; oferecendo uma miséria cada vez maior para aqueles que estão na base. Embora o acesso equitativo à vacina não deva ter como premissa o interesse próprio das nações ricas, é surpreendente que – ao não apoiar as nações em desenvolvimento nos esforços de vacinação – as nações mais ricas devem alcançar suas próprias recuperações econômicas.

Investigando os detalhes do relatório da Oxfam, as descobertas são duras. O aumento da riqueza dos dez bilionários mais ricos desde o início da crise é suficiente para evitar que alguém caia na pobreza por causa do coronavírus, além de poder pagar vacina para todos no planeta. Jeff Bezos – que ganhou US$ 13 bilhões em um único dia no ano passado, quando o preço das ações da Amazon disparou – poderia ter pago a cada funcionário da Amazon (876.000 pessoas) um bônus de US$ 105.000 e ainda permanecer tão rico quanto antes da pandemia. Entre 18 de março e o final de 2020, a riqueza dos bilionários aumentou globalmente em US$ 3,9 trilhões. Para colocar isso em perspectiva, sua riqueza total – quase US$ 12 trilhões – é equivalente à quantia que os governos do G20 gastaram para responder à pandemia.

Como parte de sua pesquisa, a Oxfam entrevistou cerca de 300 economistas de 79 países: a maioria acha que desigualdade de gênero, renda, riqueza e raça estão prestes a aumentar. Eles estão naturalmente interconectados e evidentemente em seu nível mais extremo no nível global.

Entre as economias desenvolvidas, no entanto, o Reino Unido se sente cada vez mais numa tentativa quase aceleracionista de elevar a desigualdade a um nível quase insuportável. Como os colaboradores da Tribune notaram ao longo desta crise, a economia política da Grã-Bretanha está destruída por níveis de desigualdade profundos, arraigados e extremamente prejudiciais que estão sendo exacerbados a cada passo por uma mistura tóxica de ideologia governamental e intransigência.

Claro, essas tendências – tanto em nível global quanto doméstico – não são inevitáveis. Uma pré-condição para sua oposição, no entanto, é que o conhecimento sobre a escala dessas desigualdades – conforme encontrado no relatório da Oxfam – precisa ser disseminado, e os métodos para desfazê-las popularizados. Claro, no Reino Unido é mais fácil falar do que fazer: já escrevi para esta revista que a política britânica é excepcionalmente ruim – por causa de uma guarda jornalística pretoriana que protege o triste Boris Jonhson de quaisquer consequências do desastroso número de mortos no Reino Unido e as invocações cada vez mais perturbadas de que tudo isso teria sido muito pior com Jeremy Corbyn no comando representam apenas os últimos pontos negativos de uma mídia cada vez mais dedicada a defender o Partido Conservador.

É neste contexto que devemos procurar formular estratégias e narrativas que nos livrem desta crise, que nos preparem para as crises que se aproximam e lancem as bases para uma economia genuinamente democrática e equitativa. Tawney chamou a Grã-Bretanha de “a plutocracia mais dura do mundo” na década de 1930 – responder a esses desafios está longe de ser uma novidade para a esquerda britânica. O que é novo, no entanto, é uma liderança trabalhista respondendo a uma crise geracional com tanta indiferença.

Após a Segunda Guerra Mundial, o Partido Trabalhista não se desculpou ao argumentar que a turbulência econômica entre as guerras era resultado da “concentração de muito poder econômico nas mãos de poucos homens”. De fato, mesmo sob Tony Blair, o Trabalhismo implementou um imposto sobre o lucro inesperado nas indústrias privatizadas – algo, crucial, que o partido vinha defendendo nos cinco anos anteriores às eleições de 1997.

Comparar as propostas do Partido Trabalhista de hoje com as recomendações pedidas pela Oxfam para garantir uma recuperação equitativa do coronavírus é um exercício, no entanto, decepcionante. Uma das medidas que a Oxfam observa é um imposto sobre grandes fortunas, como o o que foi recentemente introduzido na Argentina: uma pesquisa divulgada em dezembro mostra que tal imposto no Reino Unido poderia arrecadar £ 260 bilhões. Não está claro, entretanto, qual é a posição do Partido Trabalhista nessa questão. Em algumas ocasiões, o partido rejeitou tal curso; em outras, deu o que generosamente pode ser lido como apoio morno, mas sem qualquer convicção real: “Estamos dizendo ao governo para olhar para a ideia do imposto sobre a fortuna [...] Mas, nesta fase, quatro anos antes das eleições, não vamos começar a definir [nosso] regime tributário.”

Os contornos de uma social-democracia contemporânea desprovida de conteúdo são necessariamente sombrios: bandeira e família podem ressoar em grupos específicos, mas – ao contrário da narrativa de “os adultos estão de volta no comando” – continua sendo uma estratégia fundamentalmente arriscada colocar um advogado capitalista do realismo contra a fantasia nacionalista em tempos de crise intensa.

O que o relatório da Oxfam deixa claro é a magnitude deste momento – um período com o “potencial de levar a um aumento da desigualdade em quase todos os países de uma só vez, a primeira vez que isso aconteceu desde que os registros começaram”. O Partido Trabalhista precisa responder em conformidade. Qualquer coisa menor não é apenas um abandono moral, mas também um erro estratégico desastroso que permite que o futuro para o período pós-pandêmico seja definido por uma direita insurgente e cada vez mais descarada.

Ao concentrar seus ataques até agora na competência, os trabalhistas se deixaram reféns da sorte. Ataques forenses a um primeiro-ministro desajeitado podem receber aplausos quando a nação é mergulhada em repetidos bloqueios, mas essa linha de ataque parece decididamente menos convincente em um ponto em que o Reino Unido é um verdadeiro líder mundial na vacinação de sua população.

As desigualdades retratadas no relatório da Oxfam não podem ser ridicularizadas como abstrações esquerdistas ou vôos da fantasia corbynianas: esta é a realidade do mundo que o neoliberalismo moldou e o coronavírus exacerbou. Falhar em definir uma resposta para as desigualdades tanto globais quanto domésticas afetadas por esta crise representaria uma falha histórica.

Sobre autor

Joe Bilsborough é colunista da Tribune. Ele também é assistente de pesquisa em história econômica na University of Southern Denmark.

Para onde vai a Selic?

Queda na atividade levará a nova expansão fiscal, que elevará o dólar e, depois, os juros

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo


O Copom indicou aumento da Selic mais cedo do que a maioria dos analistas esperava. A elevação dos juros pode vir em março, o que agradou a alguns economistas que acham que o BC errou em derrubar e manter a taxa básica de juro em 2% no ano passado.

Continuo achando que o BC acertou em colocar a Selic em 2% no ano passado. O repique inflacionário do final de 2020 está mais relacionado a choques de oferta (por exemplo: alimentos e energia) do que a pressões de demanda.

E o câmbio? Selic baixa leva a real desvalorizado, devido à arbitragem de taxa de juros entre o Brasil e o resto do mundo. Parte da depreciação verificada em 2020 veio, portanto, da política monetária, o que fez alguns colegas, ortodoxos e heterodoxos, pedirem elevação de juro para evitar elevação da taxa de câmbio. Os colegas estavam errados.

No regime de metas de inflação, a política monetária se pauta pela expectativa de inflação, não pela taxa de câmbio. Variações cambiais geram resposta monetária quando afetam as expectativas de inflação e, mesmo com a depreciação recente do real, a inflação esperada para 2021 e 2022 continua na meta do governo.

Por que, então, elevar a Selic? Segundo o Copom, porque o cenário indica que a expectativa de inflação pode superar as metas de 3,75% e 3,5%, estabelecidas para 2021 e 2022, respectivamente. Por enquanto isso ainda não aconteceu, mas o BC acha que o "balanço de riscos" está mais inflacionário do que desinflacionário (perdão pelo "copomnês").

Especificamente, o Copom acha que nova flexibilização fiscal pode gerar mais depreciação, batendo na inflação. Isso é possível se não houver outra âncora fiscal, garantindo que uma saída mais gradual das medidas emergenciais é compatível com o controle da dívida pública a médio prazo (quatro anos).

Além da questão fiscal, o efeito defasado da inflação passada sobre alguns preços monitorados também cria risco de a inflação esperada superar a meta do governo, requerendo resposta do Copom. Mesmo que a origem do choque não seja de demanda, o BC tem que atuar para evitar que a elevação pontual de preços se transforme em aumento permanente da inflação.

Do lado deflacionário, o ano começou com perspectiva de recessão técnica (dois trimestres de "crescimento negativo" do PIB) e desemprego ainda elevado. Esses dois fatores geram baixa inflação de serviços, ajudando o BC a cumprir a meta de inflação mesmo com comportamento desfavorável de preços administrados e de itens comercializáveis.

É difícil dizer o que prevalecerá, mas, como economistas vivem de fazer cenários, lá vai o meu: a queda do nível de atividade forçará o governo a adotar nova expansão fiscal "emergencial" neste ano, que, por sua vez, gerará ajuste adicional do câmbio para cima.

Não será algo que "quebre" o Brasil, pois somos credores em dólares, mas suficiente para justificar aumento da Selic, sob aplauso da Faria Lima, que culpará o Congresso por salvar vidas e empregos em vez de aprofundar o arrocho no meio da segunda onda da pandemia (por isso seres humanos não gostam de farialimers).

A dúvida é se a mudança fiscal chegará a tempo de evitar baixo crescimento e mais desemprego, bem como se o alívio de curto prazo será acompanhado por reformas de longo prazo (na despesa e sobretudo na receita) que garantam o controle da dívida pública mais à frente.

Por enquanto, governo e Faria Lima se comportam como avestruz, ignorando a necessidade de mudança fiscal, o que, ironicamente, aumenta o risco de descontrole fiscal quando a mudança inevitável ocorrer.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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