Uma entrevista com
Franck Gaudichaud
Entrevistado por
Rosa Moussaoui
https://internacional.laurocampos.org.br/2021/04/a-america-latina-entrou-em-um-periodo-de-novas-polarizacoes-sociais-e-politicas/
Professor de História e Estudos Latino-Americanos Contemporâneos na Universidade de Toulouse-Jean-Jaurès, membro do conselho editorial da revista ContreTemps e co-presidente da associação France Amérique Latine (www.franceameriquelatine.org), Franck Gaudichaud editou recentemente duas obras coletivas que oferecem uma avaliação crítica dos projetos políticos “progressistas” que questionaram a hegemonia neoliberal no continente. Nesta entrevista, ele analisa algumas das dinâmicas sociais e políticas do último período e os desafios atuais que a região enfrenta.
Rosa Moussaou
Qual é o quadro político comum do que você chama as experiências progressistas do início do século 21 na América Latina?
Franck Gaudichaud
A caracterização é um tanto enganosa. Retomamo-la porque são os protagonistas que a utilizam, desde Kirchner na Argentina até Álvaro García Linera na Bolívia. Estes atores, em sua diversidade, construíram um espaço político comum que decidiram chamar de “progressista”. Neste sentido, esta categoria nos parece legítima, mesmo que os diferentes governos progressistas e esquerdistas nos remetam a experiências muito diferentes. Por um lado, as experiências nacionais e populares mais ou menos radicais da Venezuela, Equador e Bolívia. E por outro lado, as experiências mais orientadas para o centro-esquerda, e mesmo para formas de sócio-liberalismo, entre as quais podemos citar a Frente Ampla do Uruguai (sob o mandato, entre outros, de José Pepe Mujica), o caso do Brasil sob o governo de Lula e depois sob Dilma Roussef. Entretanto, além da categoria, é possível observar pontos em comum durante a era dourada do progressivismo: o retorno do Estado, a crítica ao neoliberalismo e as perspectivas desenvolvimentistas. Tudo isso dentro da estrutura de práticas políticas que eram de fato muito heterogêneas.
R. M.
Como você explica a longevidade desses governos em contextos tradicionalmente marcados pela instabilidade política?
Franck Gaudichaud
Agora que temos a vantagem da distância crítica neste ciclo, que durou aproximadamente de 1998 (eleição de Chávez) até 2016 (remoção de Dilma Roussef), e que está longe de terminar, podemos ver que ela coincidiu por um longo período com o aumento dos preços das commodities. Esta bênção, juntamente com o crescimento das exportações, tornou possível, a médio prazo, o retorno de programas sociais (muitas vezes descritos como assistencialistas), planos para combater a pobreza e políticas de desenvolvimento. Houve uma situação econômica internacional favorável e, ao mesmo tempo, uma busca por respostas para a crise de hegemonia que atingiu o neoliberalismo no final dos anos 90. Neste contexto, algumas forças políticas progressistas tentaram renovar ou criar laços com os movimentos populares a partir do zero, e buscaram o apoio de uma nova base social nas revoltas plebeias do período (especialmente nos casos da Bolívia e do Equador) para enfrentar a direita neoliberal e conservadora.
R. M.:
Então as políticas de redistribuição e inclusão social só foram possíveis nesta fase de prosperidade econômica?
Franck Gaudichaud
Em qualquer caso, esta é uma das contradições e o calcanhar de Aquiles destas recentes experiências latino-americanas. O que aconteceu naquela época não foi nem uma perpetuação do neoliberalismo nem uma transformação com perspectivas anti-capitalistas. No fundo, foi a instituição de um novo pacto social, certamente mais redistributivo, mas que incluiu as classes dominantes que também se beneficiaram enormemente do boom econômico (sua riqueza aumentou consideravelmente no Brasil, Equador, e em outros lugares). No âmbito deste novo pacto social ou equilíbrio sócio-político, foram implementadas respostas positivas à emergência social e, em alguns países, as oligarquias foram deslocadas definitivamente (por exemplo, na Venezuela). Mas este equilíbrio era frágil na medida em que as fronteiras sociais e o domínio de classe (assim como raça e gênero) eram mantidos. E era frágil devido à forte dependência que ligava essas políticas redistributivas à situação internacional no âmbito de uma divisão internacional do trabalho profundamente violenta.
R. M.: Qual foi o obstáculo para deixar para trás esta dependência de matérias-primas, particularmente das receitas de petróleo e gás?
F. G.: Este é o outro grande debate, que muitas vezes é apresentado em termos caricaturados. A alternativa não é entre o extrativismo desenfreado em nome do desenvolvimento e uns mendigos que dormem em uma montanha de ouro, para usar uma expressão do ex-presidente equatoriano Rafael Correa. O trabalho do economista Pierre Salama, assim como o de muitos outros, traz à tona um grande paradoxo. Historicamente, na América Latina, a esquerda se opôs à dependência e às relações herdadas do colonialismo. Entretanto, esses dez ou quinze anos de progressivismo reforçaram a matriz extrativista. É verdade que o Estado ganhou espaço sobre os agentes privados. Mas a dependência de matérias-primas foi reforçada, as multinacionais conseguiram sair de sua situação difícil, e os efeitos da desindustrialização e da financeirização da agricultura intensiva foram notados, particularmente nos casos da Argentina e do Brasil. Claramente, chovia divisas estrangeiras. Mas ao preço de impactos sociais, políticos e ambientais significativos. Agora, o problema não é apenas econômico: o extrativismo é um regime político que favorece o autoritarismo, incentiva a corrupção, gera tensões com movimentos sociais e indígenas, destrói territórios inteiros e fragmenta as classes populares. Entretanto, também é claro que nenhum país latino-americano pode sair do extrativismo e do neocolonialismo da noite para o dia. Isto levanta a questão da cooperação regional e internacional. Exigir que a Bolívia desista de todo seu lítio no Salar de Uyuni, que simplesmente desista, sem nenhuma alternativa concreta, sem nenhuma renda que lhe permitisse enfrentar a emergência social, seria absurdo. Portanto, a questão que se coloca é a das transições ecosociais e tecnológicas necessárias.
R. M.: Estas experiências progressivas assumiram, em muitos casos, um tom soberanista. No âmbito deste impulso político, em que sentido foi decisiva a aspiração à independência nacional?
F. G.: A questão nacional era central diante da agenda dos Estados Unidos, do neoliberalismo e do consenso de Washington como foi imposto nos anos 90 e no início do milênio. Houve uma reação nacional e popular. Assim, o chavismo está claramente inscrito em uma genealogia histórica latino-americana que é a de grandes movimentos como o peronismo na Argentina ou o cardinismo no México. Portanto, havia nestas experiências uma dimensão populista no sentido histórico do termo. A imprensa usa esta noção de forma pejorativa e normativa, para desqualificar os governos, mas se o assunto for levado a sério, o populismo de esquerda estava no centro destes processos, no sentido das teorias de Ernesto Laclau. Daí o interesse em prestar atenção aos debates e usos impróprios que esta noção suscita. É possível afirmar fazer parte do povo sem que surjam estas contradições? O populismo pode deixar as diferenças de classe aplainadas? Do meu ponto de vista, isto não é possível. É uma das tensões que se manifestaram no decorrer dessas experiências políticas. A questão do caudilhismo, do hiperpresidencialismo, a encarnação exclusiva da vontade popular em um líder carismático, nos coloca problemas quando se trata de proclamar a autonomia dos movimentos sociais, a participação e a invenção democrática. Isto é assim mesmo quando figuras como Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa ou Lula permitiram, por um certo tempo, que momentos de mudança política anti-oligárquica se cristalizassem.
R. M.: Os processos constituintes dos anos 2000 na Bolívia e no Equador consagraram um estado plurinacional. Que implicações isso teve na prática? Abriu o caminho para autênticas tentativas de descolonização?
F. G.: O estado plurinacional marcou um claro avanço nesta direção ao reconhecer a diversidade linguística e os direitos da comunidade. Mas ainda há um longo caminho a percorrer. A historiadora boliviana Silvia Rivera Cusicanqui resume este desafio nos seguintes termos: “Decolonial é um neologismo que está na moda, pós-colonial é um desejo, anticolonial é uma luta”. Tudo ainda está por fazer e as mudanças constitucionais são apenas uma etapa. No entanto, devemos ser cautelosos e não essencializar o movimento indígena, cujas decisões e comportamentos políticos também são plurais e contraditórios, como podemos ver neste momento na campanha presidencial no Equador.
R. M.: Em 8 de março, imagens surpreendentes circularam do México: Andrés Manuel López Obrador isolado no palácio presidencial em frente aos manifestantes que escreveram os nomes de milhares de mulheres assassinadas nos arredores. Por que a esquerda latino-americana no poder permaneceu surda às exigências feministas que, no entanto, deram forma a poderosos movimentos sociais?
F.G.: Estes governos não conseguiram superar os reflexos patriarcais, ou seja, machistas, reflexos de sociedades ainda muito conservadoras, nas quais as Igrejas ainda mantêm um peso político decisivo e nas quais o lado das feministas não é necessariamente popular. Os movimentos feministas foram construídos dentro e por autonomia, muitas vezes em confronto com as forças da esquerda que encontram dificuldades para se livrar da cultura machista (tanto dentro das organizações quanto em seu discurso). Mas, infelizmente, isto não é específico para a América Latina. Desse ponto de vista, a legalização da interrupção voluntária da gravidez na Argentina representa um ponto de inflexão. Esta conquista é o resultado da mobilização das mulheres: foi a pressão de um poderoso movimento que fez com que o kirchnerismo, que durante muito tempo manteve uma posição ambígua sobre o assunto, acabasse assumindo este gesto político. A força das feministas chilenas também é exemplar neste sentido.
R. M.: Que caminhos se abrem para a revolta popular no Chile e para o processo constituinte atualmente em curso, especialmente quando você considera que este é um país que foi o laboratório do neoliberalismo no continente e no mundo inteiro?
F. G.: A força da revolta de outubro de 2019 deslocou todas as fronteiras de forma imprevisível. Esta irrupção popular remodelou completamente o cenário político e fez tremer a oligarquia, a começar pelo presidente conservador, Sebastián Piñera. Entretanto, o paradoxo é que uma grande parte dos representantes do movimento social poderia ser deixada de fora da futura Convenção Constitucional devido ao fechamento, no topo, de um “Acordo de Paz Social e da Constituição” ao qual a maioria das forças políticas representadas no Parlamento subscreveu. Este acordo visa diluir o poder desta rebelião popular nas estruturas institucionais, mas também limitar o escopo das próximas eleições constituintes. Uma parte da esquerda se prestou a este jogo (este não é o caso do Partido Comunista do Chile). Tudo isso foi colocado em prática para restringir a representatividade das forças mobilizadas e dos candidatos independentes e para garantir a hegemonia dos grandes partidos. A ala direita garantiu a si mesma uma minoria com poder de veto na Convenção, que será eleita em meados de abril, já que cada artigo terá que ser validado por uma maioria qualificada de dois terços dos eleitores… Para realmente desafiar o neoliberalismo herdado de Pinochet e o poder incontestado das classes dominantes no Chile, é necessário construir uma relação de forças de considerável magnitude. Especialmente em um contexto no qual os níveis de repressão e violência estatal eram, e são, extremamente altos. Em qualquer caso, os horizontes emancipatórios permanecem abertos: as feministas chilenas, por exemplo, decidiram participar deste processo propondo candidaturas para denunciar os limites desta Convenção Constitucional e insistir na necessidade de continuar organizando “de baixo”, através de assembleias territoriais. Este é apenas o começo de um longo caminho.
R. M.: Atualmente, a Venezuela, que foi a referência quando essas experiências de transformação social começaram na América Latina, é considerada pela direita neoliberal como o pior dos monstros. O fracasso estratégico da direita insurrecional liderada por Juan Guaidó é evidente. Podemos esperar, com a alternância em Washington, uma redução ou o levantamento completo das sanções que estrangulam o país? Esta parece ser uma condição indispensável para qualquer saída da crise.
F. G.: Este é o drama venezuelano. O país vive atualmente um terrível impasse e uma crise. Em primeiro lugar, a estratégia de bloqueio imperialista (e ilegal) escolhida pelos Estados Unidos é um fracasso e o autoproclamado presidente interino Juan Guaidó levou a oposição a um naufrágio. Os setores da direita insurrecional incentivados por Trump falharam: Nicolás Maduro, em grande parte devido ao apoio das forças armadas e ao rígido controle do aparato estatal, é muito mais resistente do que seus cálculos haviam previsto. Ao mesmo tempo, esta crise venezuelana também prejudicou as perspectivas, legitimidade e intenções da esquerda latino-americana, especialmente aquela que ainda se recusa a abrir os olhos. A crise é evidentemente devida a causas externas e geopolíticas centrais: a agressão americana e a estratégia de boicote econômico adotada por Washington. Mas algumas tendências claramente autoritárias, bonapartistas e regressivas do madurismo também foram fortemente acentuadas: o enriquecimento através da corrupção das novas classes dirigentes, que levou ao surgimento de uma “boliburguesia” que tira centenas de milhões de dólares do país a cada ano, o papel das forças policiais na vigilância dos bairros populares e a criminalização dos dissidentes. Além das práticas de extrativismo maciço e concessões de mineração nas margens do Orinoco, o governo implantou nos últimos meses uma verdadeira política de ajuste neoliberal e privatizações, o que é um paradoxo para alguém que afirma justificar a revolução bolivariana. A lei anti-bloqueio de outubro de 2020, destinada a atrair investimentos estrangeiros, é também uma legislação supraconstitucional que abre ainda mais o país ao capital privado (especialmente chinês, iraniano e russo) e à desregulamentação e privatização de bens comuns que estão sob controle público. Esta tendência poderia ser consolidada com o recente anúncio da criação de novas zonas econômicas especiais, que nada mais é do que uma forma de reconhecer a negligência generalizada na gestão de muitas grandes empresas públicas, entre as quais a PDVSA. Não podemos pensar em alternativas ao neoliberalismo na América Latina se nos contentamos em simplesmente denunciar os ditames odiosos de Washington e fechar os olhos para a situação interna e o drama que está sendo vivido pelo povo venezuelano.
R. M.: A crise venezuelana deu origem a um êxodo maciço. A pobreza, a desigualdade e a frequência dos desastres naturais ligados à mudança climática deram origem a um grande movimento migratório em busca do sonho americano. Será que esses movimentos se acelerarão?
F. G.: Infelizmente, todas as indicações são de que eles o farão. Estudos recentes da Comissão Econômica da ONU para a América Latina e o Caribe (CEPAL) mostram um desastre humanitário e uma aceleração dos movimentos migratórios. Em dez anos, o número de imigrantes na região dobrou. Quando a crise venezuelana começou, cerca de cinco milhões de pessoas deixaram o país, a maior migração intra-latino-americana da história! Mais de 40 milhões de pessoas no continente vivem agora longe de seu país, com um número impressionante de pessoas se mudando da América Central para os Estados Unidos. Esses migrantes são vítimas de múltiplas formas de violência e estão à mercê de redes criminosas muitas vezes ligadas à prostituição e ao tráfico de drogas. Mulheres e crianças estão no centro da tempestade. A crise climática, cujos efeitos estão sendo sentidos severamente na América Latina, amplificará estes fenômenos no futuro. E isto está trazendo de volta à cena a responsabilidade dos países do Norte.
R. M.: Na equação do que você diagnosticou como o esgotamento dessas experiências alternativas, como está distribuído o peso da interferência externa e dos fatores políticos internos?
F.G.: Este é um dos grandes debates que a esquerda latino-americana vem travando há quase uma década. Onde colocar o cursor? É necessário pensar dialecticamente e em escalas diferentes, o que não é novidade, mas uma certa prevalência da lente geopolítica tende a esmagar o resto nas análises feitas por certos intelectuais ou militantes. Tem havido um refluxo, ou seja, uma crise de governos progressistas, mesmo que não seja o fim de um ciclo. Neste momento estamos assistindo a uma notável recuperação (Bolívia, Argentina, México, ao qual talvez o Equador e o Brasil serão acrescentados). No entanto, decidimos falar do fim de uma era dourada, que combinava alta renda, crescimento econômico, redução da pobreza, articulação entre movimentos e governos, nova integração regional e cooperação Sul-Sul, retirada da influência dos EUA, etc. Algumas pessoas culpam unilateralmente o imperialismo e a política externa dos EUA pelos reveses e reveses, adotando assim uma perspectiva campista. Outros – entre eles eu mesmo – consideram que este é um diagnóstico reducionista e prestam atenção às contradições e impasses internos: perda da ligação com os movimentos populares, burocratização ou o surgimento de novas castas, autoritarismo, neo-extrativismo desenfreado, etc. A esquerda, que queria mudar o equilíbrio de poder, estava presa na verticalidade da máquina estatal e também no capitalismo estatal, que sugou parte da força viva dos movimentos sociais. Algo também deve ser dito sobre o problema da corrupção maciça, que causou muitos males. Muitos elementos contribuíram para as relações tensas entre líderes políticos e aqueles setores que os levaram ao poder: as classes populares mobilizadas, os movimentos indígenas e camponeses, os sindicatos de trabalhadores, feministas e intelectuais críticos, ambientalistas, e assim por diante. Nos casos mais extremos, estas tensões se traduziram em repressão estatal aberta, como no caso da Nicarágua de Daniel Ortega. Em outros eles simplesmente geraram uma relativa estagnação do consenso social-democrata, como no caso da Frente Amplio do Uruguai. Entre os dois, há milhares de marizes e cinzas.
R. M.: Sob a administração de Donald Trump, e mesmo antes, com Barack Obama, os Estados Unidos se envolveram em um relativo desinvestimento no Oriente Médio e movimentaram algumas batatas fichas na América Latina, que eles consideram seu quintal. Quais foram as consequências políticas deste movimento no continente?
F. G.: É verdade que houve, por parte de Washington, um desejo de revalorizar a América Latina na tentativa de contrariar a concorrência chinesa e reativar a Doutrina Monroe. A política que a administração Biden está implantando nesta área deve ser lida à luz desta guerra econômica total contra Pequim. Os golpes de Estado institucionais que começaram em 2009 e 2012 em Honduras e no Paraguai acabaram sendo legitimados pelos Estados Unidos. Há também uma agressão implacável contra a Venezuela (e a Bolívia) que tem consequências criminosas sobre a população, para não falar da infame continuação donbloqueio contra Cuba. É necessário analisar a permanência de uma densa rede de bases militares em toda a região, o papel da OEA (por exemplo, no impeachment de Evo Morales), e até mesmo a implantação da quarta frota. Mas, correndo o risco de ser muito insistente, repito que tudo isso não esgota as contradições estratégicas do progressivismo. A ferida aberta pela crise do processo bolivariano deve ser analisada neste sentido.
R. M.: Você menciona a feroz competição entre Pequim e Washington na América Latina. A China está repetindo a mesma estratégia que implantou em outras regiões do Sul global, por exemplo, na África?
F.G.: Este é um dos grandes debates que a esquerda latino-americana vem travando há quase uma década. Onde colocar o cursor? É necessário pensar dialecticamente e em escalas diferentes, o que não é novidade, mas uma certa prevalência da lente geopolítica tende a esmagar o resto nas análises feitas por certos intelectuais ou militantes. Tem havido um refluxo, ou seja, uma crise de governos progressistas, mesmo que não seja o fim de um ciclo. Neste momento estamos assistindo a uma notável recuperação (Bolívia, Argentina, México, ao qual talvez o Equador e o Brasil serão acrescentados). No entanto, decidimos falar do fim de uma era dourada, que combinava alta renda, crescimento econômico, redução da pobreza, articulação entre movimentos e governos, nova integração regional e cooperação Sul-Sul, retirada da influência dos EUA, etc. Algumas pessoas culpam unilateralmente o imperialismo e a política externa dos EUA pelos reveses e reveses, adotando assim uma perspectiva campista. Outros – entre eles eu mesmo – consideram que este é um diagnóstico reducionista e prestam atenção às contradições e impasses internos: perda da ligação com os movimentos populares, burocratização ou o surgimento de novas castas, autoritarismo, neo-extrativismo desenfreado, etc. A esquerda, que queria mudar o equilíbrio de poder, estava presa na verticalidade da máquina estatal e também no capitalismo estatal, que sugou parte da força viva dos movimentos sociais. Algo também deve ser dito sobre o problema da corrupção maciça, que causou muitos males. Muitos elementos contribuíram para as relações tensas entre líderes políticos e aqueles setores que os levaram ao poder: as classes populares mobilizadas, os movimentos indígenas e camponeses, os sindicatos de trabalhadores, feministas e intelectuais críticos, ambientalistas, e assim por diante. Nos casos mais extremos, estas tensões se traduziram em repressão estatal aberta, como no caso da Nicarágua de Daniel Ortega. Em outros eles simplesmente geraram uma relativa estagnação do consenso social-democrata, como no caso da Frente Amplio do Uruguai. Entre os dois, há milhares de marizes e cinzas.
G.: Sim, é uma estratégia semelhante, embora enfrente desafios geopolíticos ainda maiores do que no caso da África, já que a China está disputando oportunidades econômicas e geoestratégicas com os Estados Unidos no que estes últimos historicamente consideravam seu quintal: trata-se de competir com o gigante norte-americano em seu próprio terreno. Pequim ultrapassou a UE para se tornar o segundo maior parceiro comercial do subcontinente. É também o principal parceiro comercial do gigante brasileiro e do Chile, e ocupa o segundo lugar em termos de volume de transações do México, que, no entanto, ainda está ligado aos Estados Unidos por um acordo de livre comércio. Tudo isso é muito significativo. Xi Jin Ping projeta um crescimento do investimento na América Latina equivalente a US$ 250 bilhões até 2025: o movimento acelerou-se a um ritmo vertiginoso. Além dos investimentos, o que a China quer são matérias-primas, embora também esteja interessada no controle das principais empresas e mercados em solo latino-americano, e em geral em todo o continente, incluindo os Estados Unidos. Neste campo, independentemente dos embelezamentos discursivos, as práticas implementadas pelo Império Médio referem-se mais à hegemonia e assimetria agressivas do que à solidariedade Sul-Sul. A diferença em relação aos Estados Unidos, nesta fase, é que os chineses não estabelecem bases militares na região.
R. M.: Com a chegada de Joe Biden à Casa Branca, podemos esperar uma inflexão nas políticas dos EUA em relação à América Latina?
F. G.: É verdade que a derrota de Trump implica um revés para as declinações mais exageradas da direita e da extrema-direita na América, com Bolsonaro à frente. Dito isto, não há nenhuma razão para ter expectativas nesta alternância. Isto não é um juízo de valor: basta ouvir o que Joe Biden e seu Secretário de Estado, Antony Blinken, estão dizendo. Eles estão determinados a recuperar sua posição na América Latina em relação à China, recorrendo a métodos intervencionistas. Para eles, esta é uma questão geoestratégica central. Eles estão mantendo o bloqueio contra Caracas, em meio a uma pandemia, sufocando ainda mais o sistema de saúde deste país, e continuam a reconhecer o líder golpista Juan Guaidó como o legítimo representante da Venezuela, na mesma linha do Trump. Quanto ao embargo contra Cuba, pelo menos até agora, não houve uma verdadeira flexibilização. De fato, além dos discursos de Biden com sotaques multilateralistas, destinados a seduzir os aliados da OTAN, os elementos fundamentais permanecem e a doutrina Monroe 2.0 prevalece em toda a América Latina: apoio ao Plano Colômbia, política de agressão contra governos considerados hostis, perspectivas hegemônicas sobre todo o continente, sustentação de um imenso deslocamento militar, fortalecimento do poder brando e apoio a certas organizações da sociedade civil em nome da “democracia”, etc.
R. M.: Nesta estratégia hegemônica de Washington, a Colômbia ainda é importante?
F. G.: Washington depende de governos amigos, ou seja: Santiago do Chile, Bogotá e Brasília, para aumentar sua influência na região. Os Estados Unidos cultivam esta influência através da OEA. A Colômbia, cujo presidente Iván Duque dinamizou os acordos de paz assinados em Havana (2016) com os antigos guerrilheiros das FARC, representa para os Estados Unidos, militarmente, uma plataforma estratégica fundamental para toda a região (este não é o caso do Brasil, e esta é uma diferença notável). A Colômbia é uma ponte essencial e recebe centenas de milhões de dólares para este fim, tanto militarmente como em termos de cooperação entre estados ou através de ONGs. Cenáculos como o Grupo Lima traduzem assim a vontade de promover grupos de influência que reúnem países alinhados com Washington. Mas com a alternância de poder no México, o retorno da esquerda na Bolívia, talvez logo no Equador e eventualmente também no Brasil (com o retorno de Lula à cena política), estes cálculos parecem estar ficando mais complicados. O governo dos Estados Unidos vê com alguma apreensão o possível retorno de estruturas de integração regional mais autônomas (como a UNASUR ou CELAC), caso um eixo progressivo seja reativado. Mas nada indica que esta nova dinâmica vai realmente ser desencadeada e a crise econômica e a pandemia estão causando estragos que cada país está enfrentando à sua própria maneira.
R. M.: A restauração neoliberal produziu desastres econômicos, recessões e a explosão da dívida tóxica em todos os lugares. A eficiência econômica é agora uma característica que pertence ao campo progressivo?
F.G.: Este é um dos grandes debates que a esquerda latino-americana vem travando há quase uma década. Onde colocar o cursor? É necessário pensar dialecticamente e em escalas diferentes, o que não é novidade, mas uma certa prevalência da lente geopolítica tende a esmagar o resto nas análises feitas por certos intelectuais ou militantes. Tem havido um refluxo, ou seja, uma crise de governos progressistas, mesmo que não seja o fim de um ciclo. Neste momento estamos assistindo a uma notável recuperação (Bolívia, Argentina, México, ao qual talvez o Equador e o Brasil serão acrescentados). No entanto, decidimos falar do fim de uma era dourada, que combinava alta renda, crescimento econômico, redução da pobreza, articulação entre movimentos e governos, nova integração regional e cooperação Sul-Sul, retirada da influência dos EUA, etc. Algumas pessoas culpam unilateralmente o imperialismo e a política externa dos EUA pelos reveses e reveses, adotando assim uma perspectiva campista. Outros – entre eles eu mesmo – consideram que este é um diagnóstico reducionista e prestam atenção às contradições e impasses internos: perda da ligação com os movimentos populares, burocratização ou o surgimento de novas castas, autoritarismo, neo-extrativismo desenfreado, etc. A esquerda, que queria mudar o equilíbrio de poder, estava presa na verticalidade da máquina estatal e também no capitalismo estatal, que sugou parte da força viva dos movimentos sociais. Algo também deve ser dito sobre o problema da corrupção maciça, que causou muitos males. Muitos elementos contribuíram para as relações tensas entre líderes políticos e aqueles setores que os levaram ao poder: as classes populares mobilizadas, os movimentos indígenas e camponeses, os sindicatos de trabalhadores, feministas e intelectuais críticos, ambientalistas, e assim por diante. Nos casos mais extremos, estas tensões se traduziram em repressão estatal aberta, como no caso da Nicarágua de Daniel Ortega. Em outros eles simplesmente geraram uma relativa estagnação do consenso social-democrata, como no caso da Frente Amplio do Uruguai. Entre os dois, há milhares de matizes e zonas cinzentas.
R. M.: Sob a administração de Donald Trump, e mesmo antes, com Barack Obama, os Estados Unidos se dedicaram a um relativo desinvestimento no Oriente Médio e movimentaram algumas fichas na América Latina, que eles consideram seu quintal. Quais foram as consequências políticas deste movimento no continente?
F. G.: É verdade que houve, por parte de Washington, um desejo de revalorizar a América Latina na tentativa de contrariar a concorrência chinesa e reativar a Doutrina Monroe. A política que a administração Biden está implantando nesta área deve ser lida à luz desta guerra econômica total contra Pequim. Os golpes de Estado institucionais que começaram em 2009 e 2012 em Honduras e no Paraguai foram finalmente legitimados pelos Estados Unidos. Há também uma agressão implacável contra a Venezuela (e a Bolívia) que tem consequências criminosas sobre a população, para não falar da infame continuação do bloqueio contra Cuba. É necessário analisar a permanência de uma densa rede de bases militares em toda a região, o papel da OEA (por exemplo, no impeachment de Evo Morales), e até mesmo a implantação da quarta frota. Mas, correndo o risco de ser muito insistente, repito que tudo isso não esgota as contradições estratégicas do progressivismo. A ferida aberta pela crise do processo bolivariano deve ser analisada neste sentido.
R. M.: Você menciona a feroz competição entre Pequim e Washington na América Latina. A China está repetindo a mesma estratégia que implantou em outras regiões do Sul global, por exemplo, na África?
F. G.: Sim, é uma estratégia semelhante, embora enfrente desafios geopolíticos ainda maiores do que no caso da África, já que a China está disputando oportunidades econômicas e geoestratégicas com os Estados Unidos no que estes últimos historicamente consideravam seu quintal: trata-se de competir com o gigante norte-americano em seu próprio terreno. Pequim ultrapassou a UE para se tornar o segundo maior parceiro comercial do subcontinente. É também o principal parceiro comercial do gigante brasileiro e do Chile, e ocupa o segundo lugar em termos de volume de transações do México, que, no entanto, ainda está ligado aos Estados Unidos por um acordo de livre comércio. Tudo isso é muito significativo. Xi Jin Ping projeta um crescimento do investimento na América Latina equivalente a US$ 250 bilhões até 2025: o movimento acelerou-se a um ritmo vertiginoso. Além dos investimentos, o que a China quer são matérias-primas, embora também esteja interessada no controle das principais empresas e mercados em solo latino-americano, e em geral em todo o continente, incluindo os Estados Unidos. Neste campo, independentemente dos embelezamentos discursivos, as práticas implementadas pelo Império Médio referem-se mais à hegemonia e assimetria agressivas do que à solidariedade Sul-Sul. A diferença em relação aos Estados Unidos, nesta fase, é que os chineses não estabelecem bases militares na região.
R. M.: Com a chegada de Joe Biden à Casa Branca, podemos esperar uma inflexão nas políticas dos EUA em relação à América Latina?
F. G.: É verdade que a derrota de Trump implica um revés para as declinações mais exageradas da direita e da extrema direita na América, com Bolsonaro à frente. Dito isto, não há nenhuma razão para ter expectativas nesta alternância. Isto não é um juízo de valor: basta ouvir o que Joe Biden e seu Secretário de Estado, Antony Blinken, estão dizendo. Eles estão determinados a recuperar sua posição na América Latina em relação à China, recorrendo a métodos intervencionistas. Para eles, esta é uma questão geoestratégica central. Eles estão mantendo o bloqueio contra Caracas, em meio a uma pandemia, sufocando ainda mais o sistema de saúde deste país, e continuam a reconhecer o líder golpista Juan Guaidó como o legítimo representante da Venezuela, na mesma linha do Trump. Quanto ao embargo contra Cuba, pelo menos até agora, não houve uma verdadeira flexibilização. De fato, além dos discursos de Biden com sotaques multilateralistas, destinados a seduzir os aliados da OTAN, os elementos fundamentais permanecem e a doutrina Monroe 2.0 prevalece em toda a América Latina: apoio ao Plano Colômbia, política de agressão contra governos considerados hostis, perspectivas hegemônicas sobre todo o continente, sustentação de um imenso deslocamento militar, fortalecimento do poder brando e apoio a certas organizações da sociedade civil em nome da “democracia”, etc.
R. M.: Nesta estratégia hegemônica de Washington, a Colômbia ainda é importante?
F. G.: Washington depende de governos amigos, ou seja: Santiago do Chile, Bogotá e Brasília, para aumentar sua influência na região. Os Estados Unidos cultivam esta influência através da OEA. A Colômbia, cujo presidente Iván Duque dinamizou os acordos de paz assinados em Havana (2016) com os antigos guerrilheiros das FARC, representa para os Estados Unidos, militarmente, uma plataforma estratégica fundamental para toda a região (este não é o caso do Brasil, e esta é uma diferença notável). A Colômbia é uma ponte essencial e recebe centenas de milhões de dólares para este fim, tanto militarmente como em termos de cooperação entre estados ou através de ONGs. Cenáculos como o Grupo Lima traduzem assim a vontade de promover grupos de influência que reúnem países alinhados com Washington. Mas com a alternância de poder no México, o retorno da esquerda na Bolívia, talvez logo no Equador e eventualmente também no Brasil (com o retorno de Lula à cena política), estes cálculos parecem estar ficando mais complicados. O governo dos Estados Unidos vê com alguma apreensão o possível retorno de estruturas de integração regional mais autônomas (como a UNASUR ou CELAC), caso um eixo progressivo seja reativado. Mas nada indica que esta nova dinâmica vai realmente ser desencadeada e a crise econômica e a pandemia estão causando estragos que cada país está enfrentando à sua própria maneira.
R. M.: A restauração neoliberal produziu desastres econômicos, recessões e a explosão da dívida tóxica em todos os lugares. A eficiência econômica é agora uma característica que pertence ao campo progressivo?
F. G.: Embora seja necessário fazer um olhar crítico sobre as experiências progressivas para pensar no futuro, também é necessário dizer que a restauração neoliberal conservadora foi catastrófica. O direito se mostrou incapaz de criar as condições para a possibilidade de qualquer estabilidade econômica e se conformou com práticas cada vez mais autoritárias. Isto é um fracasso em todos os sentidos da palavra: tanto nos casos em que chegou ao poder através das urnas, como Mauricio Macri na Argentina ou no Uruguai, nos casos em que chegou ao poder através de um golpe de Estado, como na Bolívia, ou onde aproveitou meses de desestabilização institucional e democrática, como no Brasil. Isto abre a porta para o retorno do progressivismo, que é apresentado como uma alternativa desejável ou pelo menos possível para milhões de pessoas. E onde os de direita permanecem no poder (Chile ou Colômbia, por exemplo), eles enfrentam grandes mobilizações populares. Este é um problema para as classes dirigentes, especialmente em um período de profunda crise e pandemia: os direitistas não incorporam uma alternativa confiável que garanta estabilidade ao capital. E mesmo nos casos em que o fazem, é sob a forma de uma direita extrema e fascistizante, como o de Jair Bolsonaro no Brasil. Entretanto, a irrupção do progressivismo tardio, como López Obrador no México, ou o retorno eleitoral do centro-esquerda em alguns países, não garantem o retorno de um período de crescimento e estabilidade: a América Latina – como o resto do mundo – entrou em um período de forte turbulência, que combina uma crise econômica gigantesca, a crise sanitária, o aprofundamento da crise ecológica e uma nova polarização social, política e ideológica. Tudo isso contra o pano de fundo de um aumento alarmante dos setores reacionários, dos evangelistas e da extrema direita “alternativa”, que estão mobilizando porções cada vez maiores dos estratos populares. Tanto para as esquerdas emancipatórias quanto para os movimentos sociais, a questão da democracia está em jogo aqui.
Sobre o autor
Sobre o autor
Frank Gaudichaud é doutor em ciência política e professor de estudos latino-americanos na universidade Toulouse 2 Jean Jaurès. Ele é membro do conselho editorial da revista ContreTemps (Paris) e colaborador da Jacobin América Latina.
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