Uma entrevista com
Sobre o entrevistado
Álvaro García Linera é o ex-vice-presidente da Bolívia.
Sobre o entrevistador
Martín Mosquera é graduado em filosofia, professor da Universidade de Buenos Aires, membro do conselho editorial da Revista Intersecciones, e um militante da Democracia Socialista.
Álvaro García Linera
Entrevistado por
Martín Mosquera e Florencia Oroz
Álvaro García Linera, Buenos Aires, 2020. (Ariel Feldman) |
Tradução / O ex-vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, é um dos maiores intelectuais da América Latina e um dos atores políticos mais experientes da região. Durante seus catorze anos à frente do governo plurinacional da Bolívia, foi responsável não só por projetar grande parte da estratégia política de Evo Morales, mas também por fornecer as bases teóricas para o partido governista MAS (Movimento ao Socialismo).
Durante a década de 1980, García Linera liderou, junto com outros companheiros, o Exército de Guerrilha marxista Túpac Katari; devido à sua atividade política, grande parte de seu tempo de formação intelectual ocorreu atrás das grades, enquanto cumpria uma pena de cinco anos pelo suposto envolvimento em uma insurreição armada contra o governo de Jaime Paz Zamora. Foi nesses anos que García Linera se dedicou ao estudo de Marx e do marxismo; e escreveu seu já clássico Forma Valor e Forma Comunidade.
As influências intelectuais de García Linera são bem variadas e ecléticas: marxismo e indigenismo, o pensamento autonomista de Toni Negri e o socialismo democrático de Nicos Poulantzas. Segundo muitos relatos, García Linera é um dos pensadores mais originais da esquerda — latino-americana e além.
Antes de retornar à Bolívia, onde se reuniria com Luis Arce em sua posse presidencial, García Linera sentou-se com os editores da Jacobin América Latina, em Buenos Aires, para uma ampla discussão, onde trouxe as lições aprendidas com o golpe na Bolívia, o estado dos governos progressistas na América Latina, e a ampla estratégia política de como melhor preparar o caminho rumo a um futuro socialista.
Gostaríamos de começar abordando os recentes eventos na Bolívia. Em sua análise do golpe de 2019, você tende a focar no papel desempenhado pela chamada “classe média tradicional” (em oposição à nova classe média formada sob o governo do MAS). Em que medida a vitória de Luis Arce em 2020 confirmou ou alterou sua primeira leitura do golpe?
Primeiramente, embora golpes de estado sejam sempre maquinações de pequenos grupos, sua viabilidade final depende de outros fatores. Eles contam com grupos sociais mais amplos para possibilitar o golpe — um setor que possa criar uma vontade geral de romper com a ordem constitucional e a democracia.
No grupo conspiratório responsável pelo golpe de 2019, havia um conjunto de interesses distinto: generais do exército, um grupo de empresários que havia comprado oficiais e comandantes de tropas, Luis Almagro [da OEA – Organização dos Estados Americanos], o Departamento de Estado, membros da Igreja Católica, e vários ex-presidentes. Este grupo central orquestrou e uniu as forças necessárias para realizar o ato.
Mas o golpe não veio do nada: nos últimos quatro anos, assistimos ao crescimento de um setor social que se opõe cada vez mais à democracia. Este grupo é, como você mesmo diz, a classe média tradicional da Bolívia. Ao disseminar uma linguagem sectária e racista, nas redes sociais e em outros veículos, a classe média tradicional criou um clima favorável para o que acabou sendo uma derrubada armada e autoritária.
Esse grupo social ainda está presente na Bolívia. Eles foram para a frente dos quartéis, convocar outro golpe. Alegaram fraude depois que saíram os resultados das eleições de 2020 — para eles, apesar da ausência de qualquer evidência, se os indígenas ganham é porque houve fraude eleitoral. Claro, eles foram derrotados e continuarão a ser derrotados, porque são uma minoria, e são decadentes.
Muitas pessoas ficaram surpresas ao ver que o golpe não encontrou grande resistência por parte das forças populares nem do governo do MAS. Será que não se trata de uma repetição do dilema de Salvador Allende, algo como uma confiança excessiva na “neutralidade das Forças Armadas”? Em outras palavras, dado o fato de que sempre haverá tentativas de golpe imperialista da direita contra os governos populares, como deveríamos enfrentar ações conspiratórias como a que ocorreu em novembro de 2019?
Em novembro de 2019 houve a derrota militar de um projeto popular nacional. Forças conservadoras foram mobilizadas para ocupar cidades e territórios. O governo do MAS enfrentou essa tentativa de maneira não coercitiva; tentou estimular uma ação coletiva que funcionasse como uma corrente contrária às manifestações da direita. Nossa esperança era de que perdessem o fôlego.
Nossa resposta foi política — e se os acontecimentos que levaram ao golpe tivessem sido mantidos no plano político, teríamos saído vitoriosos. O que não levamos em consideração — e esse foi nosso grande erro político — foi que as forças políticas ultraconservadoras iriam encontrar apoio entre os militares. Essa foi a verdadeira novidade de 2019. Quando eles tentaram lançar um golpe em 2008, empregamos duas táticas: primeiro, contenção política, tentando isolar essas forças até que finalmente se esgotassem; e em segundo lugar, apelamos à mobilização social em massa para dominá-los.
Mas antes que as forças conservadoras pudessem ser enfraquecidas, eles procuraram os militares e a polícia. E isso não estava em nossos cálculos — que eles iriam subornar as forças armadas.
Quando optaram pela via militar, nos deram duas alternativas: convocar ou não mobilizações para enfrentar policiais e militares. Essa decisão cabe ao presidente. Naqueles primeiros dias, nos dias 9 e 10 de novembro, o presidente pensou: “Não vou mandar meus camaradas para a morte”. Houve uma decisão consciente baseada no que era essencialmente uma visão moral. Hipoteticamente, poderíamos ter nos envolvido em um confronto aberto, mas teria havido grandes perdas, com muitas mortes. Portanto, decidimos não nos mobilizar e o presidente preferiu renunciar.
A primeira lição é exatamente essa: é preciso neutralizar politicamente essas células de operação. Você tem que tentar neutralizar as causas subjacentes que dirigem esses grupos numa inclinação fascista, enquanto ainda mantém as políticas que favorecem a igualdade. Se você começa a recuar nos esforços que promovem a igualdade social e os direitos indígenas, não pode mais se chamar de governo progressista. Porém, o que você pode fazer é manter políticas de mobilidade social para as classes populares e trabalhadoras e, ao mesmo tempo, promover mobilidade e rotação para a classe média tradicional, compensando assim sua tendência ao ultraconservadorismo.
A questão policial e militar é mais complicada. Você nunca conseguirá impedir um ou outro empresário rico de suborná-los com milhões de dólares. Os militares estão aí pra ficar; e seu poder é garantido pelo Estado. Eles têm sua própria dinâmica, mas é preciso que existam políticas em vigor para contê-la — políticas que respeitem o status institucional dos militares, ao mesmo tempo que criem um esprit de corps menos suscetível ao suborno e, portanto, mais solidário para com os interesses do povo. Em suma, a composição de classes das Forças Armadas deve ser alterada.
Em parte, os militares apoiaram o golpe porque, com o passar dos dias, não houve mobilização social. Não parecia um grande problema para nós na época — vimos muitas tentativas similares ao longo dos anos. Mas o ponto é basicamente esse: não confie em si mesmo ou em experiências anteriores. Quando a classe empresarial começa a conspirar junto com os militares e a se conectar com a classe média tradicional mais conservadora, ela precisa enfrentar uma mobilização social em massa.
Me refiro a uma moral social bem mais profunda: temos que nos mobilizar para defender o que temos. Vimos a prática dessa realidade em agosto de 2020 [quando os apoiadores do MAS fizeram protestos e bloqueios de estradas para impedir o adiamento das eleições]. O MAS convocou as organizações sociais e os indivíduos a enfrentarem militares e policiais no exercício do controle territorial, assim como aconteceu no ano 2000.
O povo — não os líderes políticos, nem o partido — percebeu que uma nova onda de repressão só poderia ser combatida se tivéssemos o território. Essa foi a fonte da nossa força em agosto de 2020: havia um conhecimento prático e tático implantado pela sociedade para evitar outro massacre ou operação militar sangrenta dos golpistas.
Este tipo de conhecimento coletivo precisa ser reforçado e fortalecido. Não é tanto uma questão militar, mas de como você cria as lições táticas para a ação coletiva contra a ameaça de um conflito armado. Em um país como a Bolívia — com uma grande população rural, “setores urbanos empobrecidos” e apenas uma classe trabalhadora escassamente organizada nos centros industriais — é por meio da organização coletiva que as pessoas encontraram uma maneira de se defender. No futuro, devemos expandir e melhorar esse tipo de ação para neutralizar os golpes militares e policiais.
Como você caracteriza a situação política atual na América Latina? Embora pareça haver um “novo ciclo progressivo” em andamento, ele também parece ser nitidamente mais moderado e conciliador do que o anterior. Você concorda com essa visão?
Prefiro muito mais falar em ondas do que em ciclos, porque os “ciclos” sugerem determinismo, enquanto que as “ondas” são algo mais fluido e dinâmico. Marx usou o conceito de ondas em 1848 para mostrar que dentro de uma revolução existem movimentos, e que estes vêm em ondas.
Não podemos esperar que esta nova onda seja uma repetição da primeira, por vários motivos. Por um lado, o boom dos recursos acabou e os últimos anos testemunharam uma recessão econômica sem precedentes. Além disso, hoje temos que lidar com um elenco diferente de pessoas, incluindo novos líderes.
Mas há uma questão ainda mais profunda em jogo: diferente do período de 2005 a 2015, quando a direita foi esmagada pela onda progressista, ela agora está começando a encontrar um ponto de apoio — improvisado e míope, talvez, mas que não deixa de ser. Sua resposta é antidemocrática, uma espécie de neoliberalismo violento, misógino, racista e conservador.
A direita não tinha soluções significativas para as crises políticas e econômicas que afetam a região. Passou uma década dando o mesmo conjunto de prescrições neoliberais, que ninguém na época queria tomar. Hoje, a direita não mudou, mas passou a aceitar que enfrenta um inimigo diferente: a Maré Rosa.
Isso significa que agora entramos em um novo período de ondas e contraondas. Hoje, a Maré Rosa está fragmentada, mas a maré conservadora também está. Os dois lados ficarão travados na batalha por algum tempo. Nesse sentido, seria um erro supor que o consenso progressista previamente estabelecido será, simplesmente, restabelecido como antes. Trata-se de uma expectativa impossível, porque, na política, todas as vitórias são temporárias.
Há outro assunto que também devemos considerar. Na minha opinião, neste momento, estamos vivendo uma espécie de suspensão. Quando não temos qualquer tipo de horizonte, como nos ocorre agora, não há uma linha do tempo, não há nenhuma seta apontando para um ponto final. Por que não temos essa orientação? Porque hoje todos se sentem inseguros sobre praticamente tudo — se terão um emprego amanhã, se haverá outra pandemia e assim por diante.
O cenário que eu descrevo é aquele em que a política se torna taticamente intensa e estrategicamente suspensa. Taticamente, o que deveria ter levado dez anos na Bolívia, aconteceu em um. Um ciclo conservador que deveria ter durado quatorze anos na Argentina, acabou em quatro [a presidência de apenas um mandato de Mauricio Macri]. O mesmo vale para o atual ciclo progressista: não sabemos se vai durar para além dos próximos quatro anos. O mesmo pode-se dizer da Bolívia: quem sabe se vai durar dois, quatro ou seis anos?
Essa incerteza estratégica é um elemento novo com o qual a nova onda progressiva deve lidar. Em 2005, na ausência de respostas conservadoras, o ciclo progressivo parecia a substituição definitiva do neoliberalismo. Mas hoje não é o único projeto disponível — há também o movimento ultraconservador.
De certa forma, o que aconteceu com Trump nos Estados Unidos revela os limites de um discurso político conservador movido pelo ódio. O neoliberalismo conservador de Trump é um paliativo, mas o mesmo acontece com todos os outros projetos políticos existentes hoje. Em meio a esse caos, é importante que os projetos progressistas se questionem, tentem superar suas fraquezas e construam a partir daquilo que estão fazendo direito.
Em outras palavras, é um falso debate discutir se este ciclo é de fato novo ou se o anterior poderia ser revivido. Aqui, acho que a Bolívia oferece uma lição poderosa. Em meio a esse caos, as perspectivas de um projeto progressista de esquerda dependerão de duas coisas, uma das quais já discutimos: deve haver um estágio de ação coletiva antes de que qualquer projeto progressista possa se estabelecer. A segunda, é que esse projeto deve ser de poder popular — um projeto não para as classes populares, mas das classes populares.
A Bolívia nos mostrou isso: podem ocorrer golpes e reveses temporários, mas se o governo indígena popular for o projeto dos setores subalternos, no final, você vai vencer. Se você conseguir isso, você terá muito combustível histórico para trabalhar. Se você sempre tiver em mente que se trata do seu projeto, sua organização e sua capacidade de tomar decisões sobre seu próprio futuro, seus inimigos até podem colocar todos os obstáculos que quiserem, mas você será capaz de se recuperar.
Há um amplo debate sobre como os governos populares na América Latina deveriam lidar com as classes dominantes quando elas partem para a ofensiva. Isso inevitavelmente se resume a fazer concessões a fim de ampliar a base de apoio político de alguém? Ou, pelo contrário, trata-se de radicalizar o conflito para criar condições mais favoráveis para derrotar as forças reacionárias?
A questão de como lidar com a oligarquia é complicada. Revoluções conquistadas por meio de façanhas militares nunca tiveram que lidar com esse assunto — a vitória militar resolve essas questões dissolvendo a oligarquia. Por outro lado, quando se trata de transformação política por meio de eleições democráticas, esse é um problema que vai persistir durante todo o seu governo, porque você tem que conviver com a classe empresarial. Precisamos ser claros sobre isso: você tem que conviver com eles, dadas as condições pelas quais você chegou ao poder, e você não vai ter capacidade de dissolver uma classe social inteira. Este é, simplesmente, o pano de fundo sobre o qual se dá a transformação social e política na América Latina (e continuará sendo assim).
A ideia de socialismo democrático deve ser concebida de acordo com essas mesmas linhas. Enquanto a transformação social tiver de seguir o caminho eleitoral democrático, os governos progressistas terão de encontrar métodos práticos para coexistir com o setor empresarial. Isto acontece não só por essa classe gozar de recursos e propriedades constitucionalmente reconhecidos — ela também possui a capacidade de impulsionar o desenvolvimento, e a mera nacionalização de indústrias não resolve a questão do sistema econômico. A nacionalização dos meios de produção apenas passa essas coisas pras mãos de um monopólio. O Estado é um monopólio — o monopólio dos monopólios — enquanto que a socialização trata da democratização dos meios de produção.
O Estado pode ajudar a defender um processo de transformação social e neutralizar certas pressões empresariais, mas essas são apenas medidas táticas e circunstanciais. Um governo progressista pode e deve adotar essas medidas. E para fazer isso — se não quiser ser completamente subjugado ao poder econômico existente — precisará de um Estado que possa controlar pelo menos parte do PIB e possa exercer certas medidas: tributação, política fiscal, investimento e, quando necessário, nacionalização.
O momento-chave para o surgimento de um governo progressista é quando ele pode assumir força econômica suficiente e não se ver cercado por potências econômicas maiores. O Estado precisa controlar 30% do PIB. Isso permite um envolvimento com o setor empresarial a partir de uma posição de poder, e não de subordinação. E caso esses setores adotem medidas conspiratórias, é preciso agir com medidas de defesa e contenção: investigando seus registros de impostos, propriedades, contas bancárias e assim por diante.
Agora, quando é que um movimento progressista pode ir além desse tipo de coexistência tática? Quando a própria sociedade é capaz de dominar o setor empresarial; quando a sociedade em geral — não um governo progressista, não um partido — se agarra à possibilidade de democratizar a riqueza. Se a sociedade não insistir nessa demanda, o governo só irá substituir um monopólio por outro. O formato será diferente — não um monopólio privado, mas um monopólio de recursos comuns. Na verdade, o Estado é exatamente essa dualidade: um monopólio dos bens comuns.
Se você nacionalizar certos setores, esses recursos serão comuns, mas vão pertencer ao Estado como monopólio. No limite, a distância entre o trabalhador e os meios de produção não é eliminada. A possibilidade de mudar para um regime de propriedade diferente depende da sociedade poder ou não pressionar pela gestão social da riqueza. E isso, por sua vez, depende dos trabalhadores de cada setor (bancário, industrial, e assim por diante) e da sociedade como um todo. Se eles estão dispostos a ir nessa direção, o papel de um governo progressista é guiar as coisas e acompanhar esse processo. Então, para a sua pergunta “um governo progressista deveria agir para desestabilizar a classe empresarial?”, a resposta é: sim, mas só quando a sociedade estiver caminhando nessa direção.
Em última instância, você está enfatizando que as transformações sociais emanam da sociedade civil e não do Estado. Isso levanta uma questão delicada: se o escopo radical de um projeto de governo progressista depende de uma sociedade mobilizada, e se o Estado, por sua vez, existe para lidar exclusivamente com os “assuntos de Estado”, nessa visão, a sociedade não fica reduzida a uma espécie de deus ex machina? De acordo com essa concepção, como podemos esperar que a sociedade civil permaneça mobilizada e pressione por transformações mais radicais quando a esquerda chegar ao poder?
O Estado é um estado da sociedade: assim como existe um estado líquido, gasoso e sólido da matéria, o Estado é um dos estados da sociedade. Pensar sobre o Estado dessa maneira nos ajuda a evitar leituras instrumentalistas, anti-estatistas ou certas leituras marxistas, ingênuas, do Estado. Isso anda de mãos dadas com a compreensão de Marx do Estado como uma comunidade ilusória: é uma comunidade, mas é ilusória na medida em que é feita de monopólios — independentemente do quanto essa ideia possa parecer um paradoxo.
Os anarquistas e alguns marxistas dirão que não devemos tomar o poder, porque o poder já é o que uma sociedade possui em comum. Mas, por exemplo, o que o povo argentino realmente tem em comum? Tudo o que eles têm em comum já está no Estado: um idioma, instituições, história, riqueza natural, impostos, sistema de saúde, direitos e assim por diante. Tudo isso está no Estado, sem ser algo que veio do Estado.
Agora, o Estado centraliza tudo o que é comunitário, ele se apropria do Comum. O Estado é apenas isso: a faculdade de monopolizar e centralizar o que vem da sociedade. Não se pode imaginar o Estado além da sociedade porque, como eu disse antes, o Estado é uma forma de ser da sociedade.
Tanto a força quanto a fraqueza de um Estado, materialmente falando, derivam da própria sociedade. Na América Latina, os recursos foram nacionalizados quando a sociedade chegou à conclusão de isso era necessário, porque eles pertencem aos bolivianos, equatorianos, venezuelanos, etc. Antes de Evo, Correa ou Chávez, o povo já começava a pensar assim.
Com o tempo, o governo nacionaliza indústrias e recursos, e há dinheiro para construir escolas e hospitais, pagar melhores salários e assim por diante. As coisas melhoram, mas não muda o fato de que existe um monopólio executando essa melhoria. Não há controle direto da riqueza, exceto por um monopólio — um monopólio no qual as pessoas podem se sentir representadas ou com o qual podem até se envolver, mas que não deixa de ser um monopólio. É dentro dessas margens que um governo progressista deve sempre trabalhar.
É verdade que sempre haverá uma margem limitada de autonomia para qualquer governo. Um governo enraizado nas pessoas será mais direto em sua expansão de direitos, do bem comum, das nacionalizações e assim por diante. Mas um governo progressista de qualquer tipo estará sempre na crista de uma onda social.
Isso nos leva a outra questão: por que um governo progressista não pode ir mais longe? Por que eles não podem partir para o horizonte socialista?
Nesse caso, qual o significado de socialismo? Significa que nacionalizamos bancos, empresas e indústria? Mas o socialismo nunca foi sobre isso. Quando se olha para 1917 ou, ainda antes, para a Comuna de Paris de 1871, encontramos a mesma ideia marxista: socialismo não é nacionalização. O socialismo não é a democratização do acesso aos bens, mas a democratização do controle, propriedade, uso e gestão deles.
Portanto, a questão é: como adentrar essa comunidade de bens? Por meio de um decreto executivo? Obviamente que não, porque um decreto é algo imposto por burocracia ou por alguma elite, mesmo que essa elite seja popular, revolucionária, etc. Mas uma coisa que aprendemos com as revoluções sociais do século XX é o seguinte: você não pode dizer: “Eu represento a classe trabalhadora”. Não posso me atribuir a representação da classe trabalhadora, ou das mulheres, ou dos indígenas. O movimento das mulheres será levado adiante pelas mulheres, o movimento indígena pelos indígenas e o movimento operário pelos trabalhadores.
O século XX mostrou que você não pode suplantar a sociedade com o Estado. Então, para onde isso nos leva? Um governo só pode ser conduzido numa direção radical quando a própria sociedade ordena que é disso que ela precisa.
E essa virada vai acontecer? Esperamos que sim, porque é o sonho do socialismo democrático. O socialismo democrático não é um conjunto particular de políticas; é a possibilidade de um crescendo de transformações sociais se unindo para alcançar a vitória. É a ideia de um transbordamento da democracia: da esfera eleitoral ao Estado, do Estado à economia, e então para as fábricas, bancos, dinheiro, propriedade… e assim por diante.
Não é perigoso exagerar esses riscos de uma abordagem política centrada no Estado? Você parece sugerir que certas formas sociais — dinheiro, mercado, valor — não podem ser mudadas simplesmente por decreto governamental ou nacionalização espontânea, e que deve haver um processo mais longo de transformação.
Mas mesmo se a nacionalização trouxer seus próprios problemas, essas medidas não seriam necessárias para conter o tipo de pressão empresarial que pode ser usada contra o Estado? Como Fred Block e outros colocam, será que não ficamos vulneráveis a uma “greve de capital” enquanto não agirmos decisivamente sobre os monopólios capitalistas? Vimos esse problema surgir com Allende no Chile e, mais recentemente, na Venezuela, mas também com governos muito mais moderados, onde os programas de reforma acabam se chocando com o imperativo do lucro. No limite, será que a estabilidade dos processos transformativos não depende da desestabilização da burguesia como classe econômica dominante?
A abordagem de Block é interessante porque, ao contrário de outras interpretações marxistas, ele considera uma realidade prática, real e concreta: quando um governo progressista chega ao poder, os capitalistas como classe — mesmo sem se falar entre si — naturalmente, tendem a esconder seu dinheiro.
Mas, aí já estamos supondo que governos de esquerda ou progressistas chegam ao poder em momentos de estabilidade capitalista, quando, na verdade, é o oposto. Eles surgem em momentos de crise — isto é, quando os capitalistas não estão gastando ou contratando, quando o governo e a economia não estão funcionando.
Quando um governo de esquerda chegou ao poder havendo pleno emprego? Os governos progressistas surgem precisamente quando o capital foge do país, quando não há investimento e a especulação é galopante, quando há desemprego em massa e uma mobilização social generalizada. O governo de esquerda responde à demanda do povo para lidar com a situação. É a fonte de sua legitimidade.
Se eles não atenderem a essas demandas, não será porque foram limitados pelas classes dominantes; é porque esse governo não estava disposto a ir longe demais ou tinha medo das consequências. Em outras palavras, as restrições estão dentro do próprio governo, em sua visão de mundo e autoconfiança.
Na Bolívia, assumimos o poder em meio a uma crise econômica. Se não tivéssemos nacionalizado setores-chave, a crise teria se prolongado por mais dez anos. Da onde íamos tirar dinheiro? Das telecomunicações, energia elétrica e hidrocarbonetos. Com essas energias sob o controle do Estado, você consegue estabelecer políticas públicas.
Rapidamente, os salários tornam-se um obstáculo. Mas, ao longo de catorze anos, nunca nos reunimos com os patrões a fim de negociar salários — fizemos isso com a COB (Central dos Trabalhadores Bolivianos). Claro, você também tem que calcular como estão as vendas em um determinado setor, como estão os lucros, como os impostos estão sendo cobrados, como a economia está crescendo. Você pode apertar a classe empresarial de um lado, mas tem que devolver esse dinheiro do outro, com subsídios para as contas de luz, transporte, gás e assim por diante. Assim, quando a classe empresarial começar a protestar, você poderá lhes dizer: “Estou te dando gás e água a preços subsidiados. Você diz que não vai aumentar os salários? Então, por que não cortamos seus subsídios e equilibramos as coisas?”
Um dos monopólios do Estado é o poder de fixar preços, e taxas de conversão para propriedades, moedas e serviços. É preciso usar todas essas faculdades porque, como foi o nosso caso, o horizonte de um governo de esquerda é diferente.
Aumentamos os salários reais em 450%, de 50 para 306 dólares. “Por que não mais?”, você pode questionar... Mas quando se aumentam os salários de forma contínua, corre-se o risco — como aconteceu — de afetar pequenas empresas cujas taxas de lucro são muito menores. Queríamos um salário mínimo de 400 dólares, mas logo vimos que pequenas empresas com, digamos, quatro funcionários sairiam prejudicadas. Um governo popular tem que estar sempre zelando pelos trabalhadores, mas também pelos que estão acima deles: os setores médios, os pequenos empresários. Em nossa sociedade esse setor faz parte do bloco popular e deve ser cuidado.
É nos setores dominantes que você pode usar a austeridade. Nacionalizamos empresas estrangeiras e mudamos os bancos: estabelecemos um imposto de 50% sobre seus lucros. O sistema bancário também pode ser um entrave aos lucros, então, você precisa forçá-los a conceder empréstimos para atividades produtivas — como nós fizemos. Assim, 60% de todos os empréstimos foram para o setor produtivo, e o restante para especulação, taxas de juros e assim por diante. Este é o monopólio que o Estado possui, para estimular o crescimento econômico com dinheiro privado que você canaliza para certos setores. Em outras palavras, onde você perceber que há poder suficiente para os capitalistas exercerem o veto empresarial, é preciso intervir, separá-los e criar empresas estatais.
No entanto, a questão central dos governos progressistas ainda é se há energia social suficiente para ir além dessas medidas regulatórias. Não depende do Estado. Alguns de meus camaradas da esquerda latino-americana rotulam o ciclo progressivo de “revolução passiva”, como se existisse uma poderosa onda de ação coletiva pressionando por novas relações de propriedade e democratização radical; na visão deles, os governos progressistas estavam de alguma forma simplesmente reprimindo sua inevitável marcha para a frente.
Mas esses meus camaradas precisam ser capazes de demonstrar, de maneira concreta, como a sociedade estaria indo além das formas predominantes de propriedade e administração. Por exemplo: em determinado momento, no último governo do MAS, alguns mineiros do estanho, em Huanini, estavam pressionando para romper com as formas dominantes de propriedade e gestão, e assim o governo rapidamente somou-se a seus esforços. Mas o resultado foi exatamente o oposto do que meus camaradas imaginam: no fim, tínhamos cinco mil mineiros autogerindo uma mina com fundos públicos e desfrutando de todos os lucros para eles. Nada disso voltou para a sociedade. A modalidade de autogestão do trabalhador ocorrida de 2010 a 2011, e novamente de 2017 a 2018, terminou em forma de apropriação privada.
Não existe o risco de tornar o governo um representante passivo da sociedade? Não existe um ponto intermediário, entre uma visão vanguardista do Estado e a de simplesmente acompanhar o movimento da sociedade? Se imaginarmos o governo como um agente ao invés de um representante da sociedade, ele não deixa de ter um papel a desempenhar na oscilação das forças sociais?
Com certeza, um governo progressista pode colocar certas questões no topo da agenda e, dessa forma, lançar luz sobre coisas que a própria sociedade vem experimentando. Existem infinitas coisas que um governo pode fazer além de simplesmente governar. Mas o socialismo é uma experiência enraizada na sociedade.
Nesta questão, eu sou leninista — não o Lenin do comunismo de guerra, mas o Lenin da NEP (Nova Política Econômica). Essa foi a grande confissão de Lenin: não importa quão radical seja a vanguarda, nem quantas medidas avançadas ela venha a implementar. Você só poderá ir para além do capitalismo quando a sociedade sentir na pele essa necessidade.
Tem um texto ótimo do Lenin, de 1923, “Melhor menos, mas melhor”. Ele avalia o comunismo de guerra e faz um balanço daqueles anos turbulentos em que se pensava que bastava um conjunto de medidas totalmente audaciosas para superar o capitalismo. Ele olha para trás e, basicamente, diz: “Bem, na verdade, acabamos criando o capitalismo de Estado”. Podemos fazer todas as nacionalizações que quisermos, mas não vamos superar o capitalismo enquanto não houver pessoas trabalhando no setor econômico para construir uma comunidade real.
O socialismo é isso: construir comunidades. Não se trata de construir comunidades desde cima, mas da única maneira possível, que é entre as pessoas. O Estado é, por definição, a negação da comunidade, na medida em que é um monopólio. Claro, o Estado pode colaborar nessa construção, apontando na direção certa, mas nós já sabemos o que acontece quando você tenta construir uma comunidade desde cima.
Os debates em Cuba nos últimos dez anos tendem a girar em torno desta questão: como implementar medidas para ir além das decisões do Estado. Porque, como diria Lenin, isso é capitalismo de Estado.
Aqui, nos encontramos lutando com a questão de como encorajar o crescimento das comunidades na sociedade. O mundo indígena e camponês tem um legado — por mais danificado que esteja — de comunidade. O mundo urbano tem suas próprias comunidades no nível local da vizinhança. O que temos são fragmentos de comunidades, e esses fragmentos podem servir como ponto de partida para uma nova sociedade coletiva. O Estado pode ajudar nesse processo, mas não pode substituí-lo, porque só existe comunidade na medida em que existe a criação gratuita e associada de produtores.
Portanto, a resposta à sua pergunta está em Lênin. O que Lênin queria dizeré que é preciso estar sempre um passo, e não mais do que um passo, à frente do povo. Não dois, não quatro. A um passo do que as pessoas estão sentindo e pensando. Gosto da expressão de Lenin: nunca dê mais do que um passo além dos trabalhadores e da sociedade.
Sobre o entrevistado
Álvaro García Linera é o ex-vice-presidente da Bolívia.
Sobre o entrevistador
Martín Mosquera é graduado em filosofia, professor da Universidade de Buenos Aires, membro do conselho editorial da Revista Intersecciones, e um militante da Democracia Socialista.
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