Ricardo Lewandowski
Folha de S.Paulo
O autoritarismo do regime imposto à nação, em abril de 1964, atingiu o seu ápice, pouco mais de quatro anos depois, com a edição do Ato Institucional nº 5, que suspendeu diversas franquias constitucionais, dentre elas o habeas corpus para crimes políticos e as garantias da magistratura, além de autorizar o presidente da República a decretar o recesso do Congresso Nacional e a cassar mandatos eletivos. Ao todo, foram 17 atos institucionais e mais de 100 complementares, que se colocavam acima da Constituição.
Em 1973, a crise do petróleo, originada nas guerras do Oriente Médio, provocou uma sensível desvalorização do dólar, desorganizando a economia internacional. Como consequência, o Brasil sofreu um declínio no crescimento, um recrudescimento da inflação e um aumento no desemprego, gerando intensa insatisfação social. Em meio a esse contexto, ascendeu ao poder o presidente Ernesto Geisel, que iniciou uma abertura institucional “lenta, gradual e segura”, articulada pelo chefe da Casa Civil de seu governo, general Golbery do Couto e Silva, enfrentando forte reação dos integrantes da ala mais radical do regime.
Já perto do final do mandato, em outubro de 1978, Geisel fez aprovar a Emenda Constitucional nº 11, que, entre outras medidas, revogou os atos institucionais e complementares, embora preservando os seus efeitos, insuscetíveis de apreciação judicial. Ademais, introduziu na Carta de 1967 determinadas salvaguardas, com destaque para o estado de emergência, que permitia a suspensão de direitos e garantias fundamentais, quando fossem “exigidas providências imediatas, em caso de guerra ou para preservar a integridade e a independência do país, bem como para impedir ou repelir as atividades subversivas”.
Dando continuidade à abertura iniciada por seu antecessor, o presidente João Figueiredo, também sob forte pressão popular, sancionou a lei 6.683/79, concedendo uma anistia “ampla, geral e irrestrita” aos acusados da prática de crimes políticos ou delitos conexos. Com o agravamento da recessão econômica e o advento de uma hiperinflação, enfrentada pelas autoridades com um implacável arrocho salarial, a oposição acabou alcançando expressivo avanço no pleito de 1982. Na sequência, ganhou força um movimento nacional pela restauração da democracia, a começar pela imediata convocação de eleições presidenciais diretas, que levou dezenas de milhares de pessoas às ruas e praças públicas durante todo o ano de 1983.
Nesse ambiente, em meados de dezembro, promulgou-se a lei 7.170/83, que ainda vigora nos dias atuais, definindo os crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social. Tal texto normativo corresponde à última versão de uma série de outros sobre o mesmo tema, que se iniciou com uma lei de 1935, engendrada pelo então presidente Getúlio Vargas, pouco antes de implantar a ditadura do Estado Novo.
Apesar de várias vezes alterada ao longo do tempo, os distintos diplomas legais que a substituíram jamais destoaram da tônica original marcada pela ênfase na repressão a inimigos internos.
Esse verdadeiro espectro jurídico, cuja principal característica é a tipificação excessivamente aberta de certos crimes, como, por exemplo, “incitar a subversão da ordem política”, assim como a remessa do julgamento deles à Justiça Militar, continua a assombrar os cidadãos brasileiros, mesmo após a redemocratização do país. Resta saber se suas disposições continuam compatíveis com o espírito e a letra da Constituição Cidadã” de 1988.
Sobre o autor
Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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