Andre Pagliarini
Resenha de Securing Democracy: My Fight for Press Freedom and Justice in Bolsonaro’s Brazil de Glenn Greenwald (Haymarket Books, 2021).
O ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva em 13 de fevereiro de 2020 em Roma, Itália. (Filippo Monteforte / AFP via Getty Images) |
Resenha de Securing Democracy: My Fight for Press Freedom and Justice in Bolsonaro’s Brazil de Glenn Greenwald (Haymarket Books, 2021).
Tradução / Em outubro de 1930, Paul Vanorden Shaw, historiador e jornalista nascido em São Paulo mas que fez carreira nos EUA, procurou explicar por que cidadãos norte-americanos não vão às ruas para protestar contra a corrupção como seus pares na América Latina. “Com toda franqueza”, escreveu na New York Times Magazine, “admitamos que houve governos municipais, estaduais e nacionais nos Estados Unidos tão corruptos quanto os que foram derrubados na América Latina. No entanto, os latino-americanos se revoltaram e os cidadãos americanos não. Por que?”
Andre Pagliarini foi professor assistente visitante de história moderna da América Latina na Brown University em 2018-19 e iniciará um curso no Dartmouth College neste outono. Atualmente está preparando o manuscrito de um livro sobre o nacionalismo brasileiro do século XX.
Shaw levantou uma série de argumentos pseudocientíficos que hoje rejeitaríamos categoricamente, como a ideia de que os latino-americanos amadurecem mais rápido do que as pessoas em climas mais frios, levando a explosões políticas mais intensas abaixo do equador. Mas o cerne de sua explicação merece certa atenção:
Que o americano não se revolte não é porque ele é um covarde. Seus interesses comerciais e instintivos desenvolvem nele uma aversão à desordem... Quando ele se depara com desvios e corrupção, ele geme de raiva, mas faz uma nota mental para votar contra o partido do infrator na próxima eleição e também para pedir a Smith [seus pares] que ajude a expulsar os bandidos com seu voto.
Nos EUA, sugere Shaw, a abundância material gera complacência cívica. Em contraste, os latino-americanos são profundamente céticos de que seus governos atuem honestamente, o que Shaw atribui à fragilidade improvisada das instituições democráticas na região. Ao contrário do cidadão médio dos EUA, o latino-americano está ansioso para agir dramaticamente de acordo com seus interesses políticos. “Ele luta porque descobriu que lutar é a única maneira de conseguir o que quer.”
A análise de Shaw está repleta de anacronismos, mas acerta um detalhe chave: atacar a corrupção é um ato inerentemente político impulsionado por agendas individuais. Uma nação que ignora esse ponto essencial vagueia por terrenos perigosos, como deixa claro a história recente da maior nação da América Latina.
A partir de 2014, o Brasil foi engolido por um impulso moralizante anticorrupção alimentado e explorado por forças reacionárias para alcançar seus próprios objetivos. Segundo essa narrativa, a Operação Lava Jato revelou as entranhas da corrupção oficial maciça em quase todos os níveis de governo. Promotores, a imprensa e políticos conservadores apresentaram o Partido dos Trabalhadores (PT), no poder desde 2003, como excepcionalmente nefasto. Em 2016, quando manifestantes entupiram as artérias das principais cidades do Brasil, pedindo a remoção de Dilma Rousseff, então cumprindo seu segundo mandato como a primeira mulher presidente do país, eles alegaram estar agindo em nome da boa governança. Ingênuo ou clínicos (ou ambos), esse movimento pretendia acabar com a corrupção no Brasil de uma vez por todas.
Mas setores progressistas sentiram algo errado com a investigação. Por um lado, a escala da corrupção descoberta sugeria que a má conduta era sistêmica, envolvendo representantes de praticamente todas as correntes políticas. O PT, no entanto, parecia ser o único verdadeiramente debilitado pelas revelações. Observadores que apontaram a natureza parcial dessa cruzada foram rotulados como apologistas de um vasto aparato criminoso operando dentro do governo federal.
Em 2018, Luiz Inácio Lula da Silva, o popular ex-presidente que estava a frente nas pesquisas pro pleito presidencial, foi preso por acusações frágeis apenas vagamente relacionadas ao Lava Jato. Isso possibilitou a eleição de Jair Bolsonaro, um ex-capitão do Exército de extrema direita que serviu no Congresso sem distinção por décadas. Bolsonaro completou sua ascensão ao nomear o juiz que sentenciou Lula à prisão, Sergio Moro, como seu ministro da Justiça, desnudando assim a relação incestuosa entre a política da direita e uma agenda messiânica anticorrupção.
Agora, é claro, sabemos que essa campanha anticorrupção foi, de fato, congenitamente falha. Como reparei em 2019, “não é todo dia que uma leitura dos fatos descartados como teoria da conspiração por tantas vozes sensatas do establishment é ratificada por extensa documentação”. Mas foi exatamente isso que o The Intercept Brasil fez quando divulgou uma série de reportagens explosivas baseados em conversas hackeadas entre promotores e o juiz encarregado dos casos mais importantes decorrentes da Lava Jato.
As descobertas do The Intercept confirmaram as suspeitas de que a acusação contra Lula foi motivada por animosidade política e sustentada por evidências fracas. Com base em materiais inéditos, o veículo informou que o juiz Sergio Moro, saudado no Brasil, na lista Time 100, e no programa de televisão americano 60 Minutes em 2017 como um modelo de coragem e virtude cívica, auxiliou secretamente os procuradores no caso do Lula, uma flagrante violação ética em um sistema de justiça que depende da imparcialidade do magistrado.
Os primeiros artigos trouxeram os heróis festejados internacionalmente da Lava Jato desabando para a terra. Desde então, Lula recuperou seus direitos políticos, e o juiz que supervisionou seu caso foi considerado parcial pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Hoje está em plena campanha no pleito presidencial e é difícil imaginar como tudo isso teria acontecido sem a prova incontestável apresentada por um punhado de destemidos jornalistas.
Enquanto forças conservadoras tentaram desconsiderar as acusações contra a Lava Jato, o cenário político mudou sob seus pés. Hoje, Lula lidera todas as pesquisas para a eleição presidencial desse ano, assim como fez em 2018, quando foi impedido de concorrer. Esta saga arrebatadora seria impossível de ser contada sem mencionar Glenn Greenwald, o impetuoso jornalista norte-americano que vive no Brasil há mais de 15 anos. Por isso, o que quer que se pense da iconoclastia política pessoal de Greenwald, seu novo livro, Em defesa da democracia: minha batalha por justiça e liberdade de expressão no país da Lava Jato, é um artefato historicamente significativo de nossa tumultuada época, com implicações que se estendem além das fronteiras do sexto país mais populoso do mundo.
A medida de um jornalista
Os críticos de Greenwald estão certos sobre algumas coisas. Ele é espinhoso e muitas vezes agressivamente do contra. Ele também é inegavelmente importante, trazendo à tona não só uma, mas duas histórias de profundo interesse global. Ele começa seu sexto livro refletindo sobre a absoluta improbabilidade dessa distinção.
“Tenho certeza de que você já sabe disso mas vou enfatizar de qualquer maneira: essa história do Snowden é um furo único na vida”, disse Carl Bernstein, jornalista veterano que cobriu o caso Watergate com seu parceiro Bob Woodward, a Greenwald durante um jantar em 2015. “Você nunca terá nada tão grande ou impactante como isso novamente. Portanto, aproveite enquanto dura.” É difícil imaginar que Greenwald tenha curtido exatamente as repercussões das reportagens do The Intercept sobre a Lava Jato. Ele e sua família sofreram terríveis violações de sua privacidade, e os guarda-costas se tornaram uma parte essencial de sua vida.
O trabalho corajoso que Greenwald fez no Brasil refuta qualquer um que o descarta categoricamente. Greenwald instiga e muitas vezes é alvo de muita encrenca online com progressistas nos EUA por vários motivos, incluindo seu ceticismo em relação às acusações de que a campanha presidencial de Donald Trump teria conspirado com o governo russo durante as eleições de 2016 e sua disposição incansável de aparecer na Fox News, canal de notícias de extrema direita.
No Brasil, no entanto, Greenwald é muito mais claramente identificado com a esquerda. Seu marido, David Miranda, atuou durante anos no Congresso como membro do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), mudando recentemente para o Partido Democrático Trabalhista (PDT) para, entre outras razões, apoiar a candidatura presidencial de Ciro Gomes.
Glenn Greenwald falando em Tucson, Arizona, em 2012. (Gage Skidmore / Flickr) |
Greenwald tem sido um crítico aberto da homofobia e das inclinações autoritárias do presidente Bolsonaro. “Seu instinto,” escreveu Ian Parker sobre Greenwald em um perfil do New Yorker de 2018, “é identificar, em qualquer conflito, o lado que está reivindicando autoridade ou incumbência e, em seguida, jogar seu peso contra essa afirmação, em favor do não autorizado ou o não licenciado — o intruso”. Essa tendência greenwaldiana valeu a pena quando o segundo furo de peso excepcional cruzou seu caminho em 2019.
Assim como sua reportagem vencedora do Prêmio Pulitzer sobre os vazamentos de Edward Snowden, a reportagem de Greenwald no Brasil começou quando “emergiu uma fonte anônima que alegou convincentemente ter um arquivo maciço de informações secretas sobre figuras e instituições políticas poderosas”. O livro não chega a captar a voz de Greenwald, mas ele relata vários momentos de dúvida ao longo do processo de reportagem. Por exemplo, Greenwald lembra a preocupação do marido em publicar artigos envolvendo o então ministro da Justiça de Bolsonaro. Afinal, quando Greenwald começou a receber as conversas hackeadas, o governo Bolsonaro estava em seus primórdios. Moro era um dos homens mais populares e poderosos do país. Que consequências poderiam enfrentar Greenwald e Miranda, dois homens cuja própria união é um repúdio a tudo que Bolsonaro representa?
Outra preocupação era que “simplesmente não havia nada na cultura ou na história do Brasil que fornecesse um roteiro de como as reportagens sobre um arquivo vazado seriam recebidas”. Novamente, seguindo a abordagem estabelecida com o caso Snowden, Greenwald procurou parceiros locais para ajudar a pequena equipe do The Intercept a trabalhar com milhares de páginas de material. Eles acabaram fechando um acordo com a Folha de S.Paulo.
À medida que novos artigos foram sendo publicados intermitentemente ao longo de várias semanas, o país inteiro aguardava ansiosamente por mais revelações. O livro de Greenwald inclui imagens de vários tweets para transmitir a energia desse momento tenso, um período em que aqueles que prestavam atenção aos acontecimentos no Brasil podiam sentir uma mudança na direção do vento. Certos leitores podem torcer o nariz ao se depararem com memes e screenshots do Twitter no livro, mas eles servem a um propósito. Em grande medida, a ascensão de Bolsonaro foi impulsionada pelo domínio das redes sociais. A reportagem do The Intercept foi sem dúvida o primeiro desafio sério à capacidade do Bolsonaro de conduzir uma narrativa nessas plataformas.
Recepção e legado
Eleitores anti-Lula e pró-Bolsonaro — há muita sobreposição entre essas duas categorias, mas não são exatamente a mesma coisa — descartaram as reportagens como criminais e ilegítimas, produtos de meras diferenças ideológicas com o presidente. Naturalmente, esse discurso teria sido menos plausível para muita gente se Greenwald não fosse casado com um político de esquerda.
No livro, Greenwald relata várias maneiras repugnantes em que sua vida pessoal virou ponto de discordância publica depois que o The Intercept publicou suas bombásticas revelações. O caso mais emblemático ocorreu na Jovem Pan quando Augusto Nunes disse que “o Glenn Greenwald passa o dia tendo chiliques no Twitter, ou trabalhando como receptador de mensagens roubadas. Esse David fica em Brasília lidando com rachadinhas, que essa é a suspeita, que isso dá trabalho. Quem é que cuida das crianças que eles adotaram? Isso aí um juizado de menores deveria investigar” (Nunes depois insistiu que essa colocação homofóbico foi apenas uma piada). Os dois subsequentemente partiram para um confronto físico transmitido ao vivo no programa Pânico. No livro, Greenwald exibe a seus leitores a engrenagem da “máquina de ataque online muito potente e bem orquestrada de Bolsonaro”.
A despeito das tentativas da direita de neutralizar a Vaza Jato, como ficou conhecida a serie de reportagens do The Intercept, quase imediatamente algumas coisas surpreendentes começaram a acontecer no cenário político. Colunistas de revistas e jornais passaram a cobrar o afastamento do outrora irrepreensível ex-juiz. A Folha de S.Paulo informou que membros STF diziam que as chances do Moro ser nomeado para o Supremo, antes bastante altas, ficaram “próximas do zero”. Enquanto o presidente e seus apoiadores se uniam para defender o ex-juiz, a enxurrada de provas contundentes desgastou sua imagem até então imaculada.
Quando Moro rompeu com Bolsonaro, acusando-o de tentar manipular a Polícia Federal para proteger seus familiares do escrutínio legal, restavam poucos no Brasil e no exterior que viam Moro como alguém que valesse a pena defender. A queda memorável do juiz culminou com sua saída do país em desgraça para encontrar um emprego lucrativo no setor privado dos EUA.
Como Greenwald observa no encerramento de seu livro, “Bolsonaro continua sendo um demagogo eficaz e, com uma rede de notícias falsas sitiada, embora ainda poderosa e bem organizada, ele conseguiu controlar mensagens suficientes para evitar um impeachment e um colapso em larga escala de seu apoio popular”. Isso significa que a Vaza Jato, que mostrou cabalmente que o rival mais forte de Bolsonaro em 2018 foi injustamente tirado da disputa, foi em vão? É obvio que não. Enquanto o processo legal contra Lula se desenrolava em 2017 e 2018, aqueles inclinados a enxergar Moro como um modelo a ser seguido afirmavam que o ex-presidente estava sendo tratado como qualquer outro cidadão, com todos os direitos e proteções legais devidos. Uma vez que ficou claro que a conduta de Moro foi caracterizada por um flagrante lapso ético após o outro, eles insistiram que é claro que Lula tinha que ser tratado de forma diferente senão jamais seria punido.
Se Greenwald e sua equipe do The Intercept são culpados de alguma coisa, é de expor a hipocrisia, a falsidade e, em última análise, o medo nos segmentos mais altos da política — medo de que Lula não possa ser vencido em uma eleição justa. Greenwald não afirma ter resolvido nenhum dos problemas estruturais que atormentam a sociedade brasileira. Mas, em um momento de franca reflexão, ele reconhece sua incrível sorte, em termos de ser um cidadão americano branco morando no Brasil e ter visibilidade publica e recursos para assegurar sua proteção.
"Se, com todas essas ferramentas, não vou enfrentar governos corruptos, poderosos e perigosos, e aqueles que ameaçam a democracia brasileira, quem devemos esperar que o faça?"
Sobre o autor
Andre Pagliarini foi professor assistente visitante de história moderna da América Latina na Brown University em 2018-19 e iniciará um curso no Dartmouth College neste outono. Atualmente está preparando o manuscrito de um livro sobre o nacionalismo brasileiro do século XX.
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