9 de abril de 2021

Interregno estadunidense

Uma entrevista com Nancy Fraser sobre Covid, BLM e Biden.

Nancy Fraser



TraduçãoQuais tendências você vê surgindo das crises social, sanitária e econômica produzidas pelo Covid-19? O que as reconstruções pós-pandemia podem nos dizer sobre a "crise do cuidado"?

Tanto a pandemia quanto a resposta a ela representam a irracionalidade e a destrutividade do capitalismo. A crise do cuidado já estava evidente antes da epidemia do Covid, mas foi bastante exacerbada por ela. A condição pré-existente, por assim dizer, era o capitalismo financeirizado - a forma especialmente predatória que tem dominado os últimos quarenta anos, progressivamente erodindo nossa infraestrutura de assistência pública pelo desinvestimento, em nome da "austeridade". Na verdade, toda forma de sociedade capitalista funciona permitindo que as empresas peguem carona no trabalho de cuidado não pago. Ao subordinar a geração de pessoas à geração de lucros, ela abriga uma tendência embutida para a crise da reprodução social.

Mas o mesmo é válido para a atual crise ecológica, que reflete a profunda dinâmica estrutural que estimula o capital a parasitar a natureza, sem se preocupar com sua recuperação ou reconstituição, desestabilizando periodicamente ecossistemas e as comunidades por eles sustentadas. O mesmo pode ser dito sobre nossa atual crise política, que reflete o severo enfraquecimento dos poderes públicos causado pelas megacorporações, instituições financeiras, revoltas fiscais por parte dos ricos, resultando na paralisia e no subinvestimento em infraestrutura essencial. Apesar de agravado pela neoliberalização, isso expressa a tendência à crise política que é imbricada a qualquer forma de sociedade capitalista. A crise do cuidado estáinextricavelmente entrelaçada com outras disfunções - ecológica, política, étnico-racial - que se somam a uma crise geral da ordem social.

Os efeitos da Covid nos humanos seriam horríveis sob quaisquer condições. Mas foram exacerbados pelo fato de o capital ter canibalizado o poder público neste período - as capacidades coletivas que poderiam ter sido usadas para mitigar os efeitos da pandemia. Como resultado, a reação necessária foi atravancada em muitos países, incluindo os EUA, em decorrência de décadas de desinvestimento em infraestrutura essencial da saúde pública. Há uma tendência nos EUA de culpar o Trump. Mas isso é um erro. O desinvestimento já ocorre há décadas.

O governo Clinton nos anos 1990 deu os primeiros passos nessa direção.

Sim, uma série de governos - do Partido Democrata, mas também do Partido Republicano - promoveram o desinvestimento da infraestrutura essencial de saúde pública. Eles reduziram os estoques de equipamentos essenciais como os EPIs, ventiladores, máscaras de proteção, esgotaram capacidades vitais - rastreamento de contatos, armazenamento e distribuição de vacinas - e subfinanciaram instituições fundamentais, como centros de pesquisa, hospitais públicos, unidades de UTI, agências governamentais de saúde. Os cientistas estavam alertando sobre a probabilidade de outra epidemia viral, mas ninguém escutou. Então, quando o Covid chegou, os Estados Unidos estavam completamente despreparados. Não tínhamos praticamente nenhum rastreamento de contato - e ainda não temos, depois de mais de um ano [de pandemia]. As autoridades de saúde pública simplesmente não tinham capacidade de se organizar e ainda não conseguiram desenvolvê-la.

O colapso da rede de seguridade social já enfraquecida jogou todos os fardos de volta às famílias e comunidades - e especialmente às mulheres, que ainda fazem a maior parte do trabalho de cuidado3 (carework) não remunerado. Sob o lockdown, as creches e escolas de repente foram transferidas para dentro das casas das pessoas, fazendo com que as mulheres assumissem esse fardo, além de outras responsabilidades - e o fizessem em pequenos espaços domésticos, incapazes de suportar tamanha carga. Muitas mulheres acabaram se demitindo de seus empregos para poderem cuidar de seus filhos e outros parentes; muitas outras foram demitidas. Um terceiro grupo de mulheres, sortudas o suficiente para manterem seus empregos e trabalharem remotamente de casa enquanto também realizavam o trabalho de cuidado, inclusive para crianças que não ficavam confinadas em casa, tiveram que levar o multi-tasking para novos patamares de loucura. Um quarto grupo, "trabalhadoras essenciais", enfrenta o risco de infecção diariamente na linha de frente, temerosas de trazer o vírus para casa, para suas famílias, enquanto fazem o que precisava ser feito, muitas vezes por um salário muito baixo, para que outros, mais privilegiados, possam acessar os bens e serviços que precisam para se isolar em casa. Quais mulheres se enquadraram em qual grupo tem tudo a ver com classe e raça. É como se alguém tivesse injetado contraste no sistema circulatório do capitalismo, iluminando todas suas falhas constitutivas.

Nos Estados Unidos, a deflagração do Covid foi seguida por uma impressionante onda de protestos, em sua maioria liderados por jovens negros, contra a violência policial racista. O slogan Black Lives Matter4 (Vidas Negras Importam) assumiu um significado diferente durante a pandemia?

Essa é uma pergunta importante. Por que o ressurgimento da atividade militante antirracista nos Estados Unidos coincidiu com a pandemia do Covid? O assassinato de pessoas negras5 pela polícia vem acontecendo há muito tempo, assim como as lutas contra ele. Então por que os protestos se tornaram tão grandes e contínuos naquele exato momento, em meio a uma terrível crise sanitária? Alguns têm sugerido que os meses de lockdown criaram uma intensa pressão psicológica, que encontrou uma mais que necessária válvula de escape nas ruas. Mas eu acho que há razões mais profundas, que provocaram grandes oportunidades de insights políticos. A compreensão de que essas duas aparentemente distintas expressões do racismo estrutural - a desigual vulnerabilidade à morte pelo vírus e à morte pela violência policial - estavam, na verdade, associadas, de que ambas estavam enraizadas no mesmo sistema social. Quando os protestos eclodiram em maio de 2020, já estava nítido que os estadunidenses não-brancos, e negros em particular, estavam desproporcionalmente contraindo e morrendo de Covid. Eles receberam pior assistência médica e apresentavam uma taxa mais alta de comorbidades, ligadas à pobreza e discriminação e associadas a casos mais graves de Covid - asma, obesidade, estresse, pressão alta. Eles enfrentaram maiores riscos de exposição, graças aos empregos de linha de frente que não podiam ser realizados remotamente e às condições de moradia sobrelotada. Tudo isso tem sido amplamente divulgado na mídia. E ressoado na sociedade, conferindo um novo significado a Black Lives Matter.

O slogan circula desde 2014, quando o assassinato de Michael Brown pela polícia de Ferguson, Missouri, desencadeou o movimento em defesa das vidas negras (Movement for Black Lives). Desde então, houve muita organização, incluindo grupos de conscientização e de leitura, formando uma nova geração de combativos ativistas antirracistas, em especial de jovens não-brancos. Esse era o contexto, a atmosfera na qual as notícias do impacto racializado do Covid foram recebidas e processadas. Para além disso, veio o assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis, em Minnesota, registrado para o mundo todo ver naquele vídeo enfurecedor e desolador. E assim a faísca foi acesa. Em outras palavras, o momento (timing) não foi coincidência.

A convergência da pandemia e dos protestos contra a violência policial expressou uma expansão, um aprofundamento do Black Lives Matter. Um primeiro nível de significado era o de que, se vidas negras realmente importassem para o sistema criminal de "justiça", então as múltiplas formas de violência racializada em seu interior não existiriam. Quando a pandemia chegou, também passou a significar: vidas negras não deveriam ser desproporcionalmente perdidas e encurtadas por essa mistura letal de exposição à infecção e problemas de saúde pré-existentes - apontando também para condições estruturais subjacentes.

O impacto eleitoral do Black Lives Matter foi extremamente positivo, mais obviamente no estado da Geórgia, que virou de profundo vermelho para azul,6 dando seus votos eleitorais ao Biden e trocando duas cadeiras do Senado, dando uma a um afro-americano e outra a um judeu (o que é uma grande novidade no Sul profundo7) - e, portanto, entregando aos democratas o controle do Senado. As dinâmicas em ação aqui incluíram a repulsa suburbana branca contra Trump, assim como a participação maciça das pessoas negras. Participação esta sem dúvidas galvanizada pelo Black Lives Matter, mas também preparada por anos de militância voltada à promoção do comparecimento às urnas8 naquele estado - o resultado do trabalho duro e contínuo de ativistas de base, como Stacey Abrams.

A derrota de Trump na eleição foi considerada uma vitória, mas não parece que o mesmo entusiasmo foi suscitado pela vitória de Biden. Como você lê o resultado das eleições americanas? O "neoliberalismo progressista" ganhou definitivamente contra o populismo reacionário do bloco de Trump e contra o populismo progressista de Sanders?

Nós continuamos, para usar os termos de Gramsci, em um interregno em que o velho está morrendo, mas o novo não tem como nascer. Em uma situação como essa, você tende a ter uma série de oscilações políticas, oscilações de vaivém entre alternativas esgotadas e que não são capazes de ter êxito. No momento, contudo, ainda não voltamos do Trumpismo para o "neoliberalismo progressista" em sua plenitude, personificado pelos governos Clinton e Obama. Isso ainda pode ocorrer, é claro, mas, por enquanto, o movimento do pêndulo de volta ao centro está sendo controlado pela fortalecida ala à esquerda do Partido Democrata. A derrota de Trump foi garantida por uma aliança entre o grupo de centro neoliberal do establishment,9a saber, a ala Clinton-Obama, e sua oposição populista de esquerda, representada pela ala Sanders-Warren-Alexandria Ocasio-Cortez (AOC).

É verdade que os centristas haviam arquitetado a expulsão brutal de Sanders do processo das primárias, apesar - ou por causa - de sua boa performance, a fim de abrir caminho para que o então cambaleante Biden se tornasse o candidato do Partido. Mas, diferentemente de 2016, as duas alas se coalesceram10 para as eleições gerais. A facção de Sanders deu apoio irrestrito a Biden contra Trump e, em troca, ganhou voz na formulação da agenda política.

O resultado é que os populistas progressistas e os neoliberais progressistas estão agora em uma coalizão. Os populistas são o elo mais fraco nessa aliança e não estão representados no gabinete de Biden. Não obstante, sua influência aumentou. Sanders agora lidera o poderoso Comitê de Orçamento do Senado e é frequentemente entrevistado nos canais nacionais de TV, o que é uma novidade - ele nunca foi tratado como um porta-voz ou comentarista central. Também "O Esquadrão", o grupo da AOC no Congresso, dobrou seus números, vencendo algumas disputas parlamentares importantes nas eleições de 2020.

E na política interna, os centristas moveram-se para a esquerda. Os democratas em ambas as casas votaram unanimemente a favor do projeto de lei apresentado por Biden para alívio econômico devido aos impactos do Covid-19, no valor de US$ 1,9 trilhão, que contém vários itens na lista de desejos do populismo progressista. Esse pacote reflete claramente a força e a influência da ala Sanders. Ainda assim, teve o apoio dos consultores econômicos de Biden, que, embora certamente não sejam "de esquerda", representaram pelo menos uma ruptura parcial com os ex-alunos do Goldman-Sachs que dirigiram o Departamento do Tesouro por décadas e nos trouxeram a financeirização. Liderada por Janet Yellen, a orientação da nova equipe é neo ou quase keynesiana; embora ainda comprometidos com o "livre comércio", eles renunciaram, pelo menos temporariamente, à lógica de austeridade e priorizaram o pleno emprego em vez da inflação baixa.

O atual estado do governo Biden representa a formação de uma conciliação.12Sua política de (re)distribuição mescla alguns elementos reativados do pensamento do New Deal com o lado do livre comércio da economia política neoliberal, ao passo que sua política de reconhecimento inclui elementos meritocráticos e igualitários. Existem muitas tensões embutidas aqui, e elas estão fadadas a explodir mais cedo ou mais tarde. Resta saber quando e de que forma - e também se elas podem ser resolvidas e em que termos. Em geral, a aliança esquerda/liberal é instável e não durará para sempre. Mas o que exatamente a substituirá permanece incerto.

Uma variável-chave é até que ponto as políticas de Biden vão satisfazer a população que está cambaleando não apenas pelas consequências econômicas e sanitárias da pandemia, mas também pelas "condições pré-existentes". Quarenta anos de desindustrialização e deslocalização [de empresas e empregos], financeirização, quebra de sindicatos, McEmpregalização, decadência da infraestrutura - assim como violência policial, devastação ambiental, destruição da rede de segurança social: tudo o que tem trabalhado para piorar as condições de vida dos pobres, da classe trabalhadora, e das classes baixas e médias.

Esses são os processos que provocaram a deserção em massa do "neoliberalismo progressista", na revolta populista de duas faces em 2016 - Trump, de um lado, Sanders de outro. E ambos os movimentos continuarão, de uma forma ou de outra, enquanto esses processos continuarem. Por isso, o futuro da conciliação de Biden depende de sua habilidade de fazer concessões suficientes a favor da classe trabalhadora para manter os populistas de esquerda a bordo e enfraquecer os populistas de direita. Além disso, deve também manter feliz a classe de investidores. Não é um trabalho fácil.

A eleição de Kamala Harris provocou reações mistas na esquerda, entre os que enfatizam ter uma mulher negra como Vice-Presidente e aqueles que criticam seus posicionamentos passados sobre a pena de morte e o encobrimento de abusos de autoridade enquanto procuradora-geral da Califórnia. Qual é a sua análise?

Eu nunca fui uma grande fã do que Anne Phillips chamou de "política de presença", isto é, a ideia de que eleger alguém que se parece com você - por exemplo uma mulher ou uma pessoa não-branca - é em si e por si uma grande conquista. Ninguém com um osso feminista em seu corpo apoiou Thatcher. Nós temos maior nitidez quanto a isso agora nos Estados Unidos, eu acho, após termos eleito um afro-americano para a Presidência em 2008. Muitas pessoas votaram com tremendas esperanças de uma grande mudança, que o candidato deliberadamente cultivou através de excepcional retórica de campanha. E o resultado foi uma profunda decepção. Uma vez no poder, Obama rapidamente abandonou o discurso inspirador e governou como um neoliberal progressista. Depois dessa experiência, ninguém que pensa de forma mais aprofundada sobre a política sentirá muito entusiasmo com a ascensão de Harris à Vice-Presidência. Nós temos um velho ditado: "se me enganar uma vez, a culpa ésua; se me enganar pela segunda vez, a culpa é minha".

De qualquer forma, Harris - diferentemente de Obama - não é nem uma incógnita política, nem uma excelente oradora. Ela tem um longo histórico político como promotora e administradora “dura com o crime” - e como uma ambiciosa operadora política. Você teria que ser deliberadamente cego para ver ela como um farol de “esperança e mudança”. Por outro lado, ela é bastante inteligente e flexível, boa em ler as folhas de chá e ajustar seu percurso de acordo com isso. Ela poderia possivelmente se mover um pouco à esquerda se esse percurso servir à sua ambição, o que inclui a Presidência, cargo para o qual ela está sendo agora preparada enquanto braço direito de Biden e sua suposta sucessora. Contudo, considerando que ela é alguém que dança conforme a música, é mais importante analisar a música.

Quando a conciliação de Biden colapsar, como há de acontecer, os liberais provavelmente vão atacar a esquerda e tentar ressuscitar o neoliberalismo progressista sob uma nova roupagem, bem como as forças do Make America Great Again (MAGA) buscarão ressuscitar a alternativa populista-reacionária. Quando chegar a esse ponto, a esquerda enfrentará uma encruzilhada. Em um cenário, a esquerda dobraria a aposta nas formas de políticas identitárias superficiais que impulsionam a cultura do cancelamento e o fetichismo da diversidade. Em outro cenário, faria um esforço expressivo para construir uma terceira via, articulando uma política inclusiva de reconhecimento com uma política igualitária de redistribuição. A ideia seria separar os elementos pró-classe trabalhadora de cada um desses dois blocos e uni-los em uma nova coalizão anticapitalista, comprometida com a luta de toda a classe trabalhadora - não apenas para pessoas não-brancas, imigrantes e mulheres que apoiaram Sanders, mas também cortejando - com base em seus interesses econômicos - os que desertaram para Trump. Tal coalizão poderia ser entendida como uma versão de esquerda do populismo. Mas eu vejo menos como um ponto final e mais como um estágio de transição, a caminho de algo mais radical - uma transformação profunda e estrutural de todo nosso sistema social. Isso exigiria não apenas a política do populismo de esquerda, mas algo mais como um ecossocialismo democrático.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...