Uma entrevista com
Raquel Varela
Uma entrevista de
Raquel Varela
Tradução / Hoje marca o aniversário da libertação de Portugal da ditadura. Em 25 de abril de 1974, soldados do Movimento das Forças Armadas (MFA) dissidente removeram o ditador Marcelo Caetano, exigindo que Portugal abandonasse suas fracassadas guerras coloniais na África. Um regime que remonta à época de Mussolini e Hitler finalmente chegou ao fim, juntamente com o último império do estilo antigo da Europa.
A revolta no exército foi o gatilho imediato para a queda do regime, e as imagens de cidadãos jubilosos entregando cravos aos soldados acabariam por simbolizar o nascimento da própria democracia portuguesa. No entanto, a Revolução dos Cravos, que prosseguiu até novembro de 1975, foi mais do que um simples golpe de estado, ou mesmo uma transição para uma nova ordem parlamentar.
Ao invés disso, a quebra do antigo regime abriu caminho para uma reflexão muito mais ampla sobre como a sociedade deveria ser administrada. Com os órgãos da ditadura imediatamente varridos, novos órgãos de democracia em massa floresceram, envolvendo milhões de pessoas. Os trabalhadores impuseram seu controle sobre seus locais de trabalho e conselhos de residentes assumiram o controle dos problemas da vida cotidiana.
Essa democracia — não apenas um voto a cada poucos anos, mas um poder popular contínuo e direto — mostrou como os trabalhadores poderiam administrar uma economia moderna. Ela impôs inúmeros direitos, no entanto, a mobilização em massa acabou por murchar, e Portugal se tornou mais parecido com outros países europeus liberal-democráticos.
No aniversário da revolução, David Broder, da Jacobin, conversou com a historiadora Raquel Varela sobre seu legado para Portugal hoje. Eles discutiram o papel dos soldados dissidentes em dividir o antigo estado, as mudanças duradouras que conseguiu impor e o que essa experiência nos diz sobre o que a transformação socialista significaria hoje.
David Broder
A revolta anticolonial foi um gatilho fundamental para a revolução, pois a dissidência dentro do exército português — expressa na criação do MFA — forçou uma divisão dentro do regime. Mas mesmo depois que o MFA derrubou a ditadura em 25 de abril de 1974, ele manteve uma identificação popular contínua, e os partidos de esquerda também se alinharam com figuras do exército. Mas como esse movimento de soldados teve uma base de apoio tão ampla? E por que não conseguiu manter o controle do processo revolucionário?
Raquel Varela
A formação do MFA deveu-se não à ideologia de esquerda, mas sim à guerra colonial de Portugal entre 1961 e 1974. O país passou treze anos a lutar contra as revoluções anticoloniais na Guiné, Moçambique e Angola, com mais de um milhão de soldados mobilizados, mais de oito mil mortos do lado português e cem mil mortos do lado africano.
Costuma-se dizer que houve uma revolução sem sangue, já que em 25 de abril de 1974 quase ninguém morreu na metrópole portuguesa. No entanto, a Revolução dos Cravos realmente começou com as revoluções anticoloniais treze anos antes, que de fato fazem parte do mesmo processo.
Revolução significa conflito: e o MFA derrubou a ditadura com tropas e tanques nas ruas. Mas seus membros eram em sua maioria da pequena burguesia e pouco politizados, seus objetivos limitando-se a acabar com a guerra. Essa foi a conquista deles em 25 de abril de 1974, quando oficiais de médio escalão deram um golpe de estado. Isso, porém, também lançou um processo revolucionário mais amplo, com a entrada em cena das massas trabalhadoras e populares. Isso também alterou o equilíbrio de forças entre as classes sociais.
Portugal estava mergulhado numa crise nacional, e a brecha que se abriu na classe dominante não foi resolvida pelo golpe. O que começou em 25 de abril — um clássico golpe de Estado — levou a uma revolução democrática, pois em poucos dias ou semanas a substituição da ditadura por um sistema político democrático estava praticamente assegurada. Esta foi também a semente de uma revolução social, implicando mudanças nas relações de produção mais amplas.
As bases dessa revolução foram lançadas pelos trabalhadores e setores populares e estudantis. Eles haviam se juntado ao processo por trás do exército e, portanto, podiam agir sem medo. No entanto, ao entrarem em massa no palco, essas camadas logo passaram à frente do próprio MFA, que estava tentando restaurar a ordem no mesmo estado que ajudou a colocar em crise.
O Partido Comunista (PCP), a maior oposição clandestina durante a ditadura, defendia uma abordagem de frente popular. Defendia uma “aliança MFA-povo” — que equivalia a manter a liderança de parte do exército sobre o povo. Isso foi muito semelhante à linha de seu partido irmão francês na França em 1945 a 1947, quando seguiu uma política de unidade nacional em prol da “reconstrução nacional” logo após a Resistência.
No entanto, o conflito entre diferentes fontes de poder persistiu. A partir do início da revolução portuguesa surgiram novas formas de poder popular que iam muito além do projeto institucional do PCP, graças a auto-organização da classe trabalhadora em comissões de trabalhadores, moradores e, posteriormente, militares. Estas eram formas de poder dual fora do Estado central, e até parte do MFA se separou para se juntar a eles.
Mas enquanto formas paralelas de poder surgiram durante a revolução, elas não se desenvolveram e se coordenaram nacionalmente, como uma alternativa viável ao poder do estado central. De fato, se o Estado entrou em uma enorme crise, não entrou em colapso. Essa falta de alternativa foi uma das razões pelas quais, em 25 de novembro de 1975, a direita foi tão facilmente capaz de restaurar a “ordem” à custa dessas formas de poder dual.
David Broder
Seu trabalho enfatiza a história vista de baixo — o papel inesperado que as massas desempenharam, mesmo sem organização política formal por décadas. Mas em que sentido a revolução portuguesa foi um processo de mudança mais profundo do que a transição espanhola para a democracia no mesmo período? Na Espanha, foram os elementos da classe dominante que lideraram o processo, embora sua tentativa de derrubar um regime atrasado também tenha levado a uma democratização mais ampla da vida pública.
Raquel Varela
É revelador que, enquanto o arquivo de Francisco Franco está nas mãos de sua família, os papéis do ditador português António Salazar estão disponíveis ao público. O que começou em 25 de abril como um golpe de estado levou imediatamente ao desmonte completo do regime político da ditadura, mas mais do que isso, foi também a semente de uma revolução social.
O que aconteceu em Portugal em 1974 – 1975 foi a última revolução na Europa a pôr em causa a propriedade privada dos meios de produção. De acordo com dados oficiais, isso resultou em uma mudança considerável no equilíbrio das forças de classe — cerca de 18% da renda nacional foi transferida do capital para o trabalho.
Foram conquistados ganhos como a garantia do direito ao trabalho, salários dignos (acima apenas do nível de subsistência ou reprodução biológica) e acesso igualitário e universal à educação, saúde e previdência social.
O que diferencia o período revolucionário português de um processo de transição democrática como o espanhol não foi a realização das eleições nem os seus resultados, mas sim a dinâmica global visível neste período.
A realização das eleições foi, obviamente, uma grande conquista, depois de quarenta e oito anos de ditadura: na primeira disputa, 95 por cento das pessoas compareceram para votar! Mas o que diferencia uma revolução de outros processos é a maneira como a população se envolve e assume diretamente suas vidas em suas próprias mãos.
Paul Valéry costumava dizer que a política é a arte de afastar os cidadãos de suas próprias vidas. Uma revolução é precisamente o oposto, um momento único na história. Promulgamos uma das revoluções mais importantes do século XX. O direito de voto era um de seus elementos, mas o mais importante foi que, durante dezenove meses, três milhões de pessoas participaram diretamente de conselhos de trabalhadores, moradores e soldados, que decidiam o que fazer no dia a dia.
As pessoas votaram e discutiram o que fazer por horas e horas. Tudo isso possibilitou que nossa revolução realizasse coisas maravilhosas. Para dar apenas um exemplo, veja as mulheres organizadas nos conselhos de moradores.
Os bancos foram nacionalizados e expropriados sem nenhuma indenização. E o direito ao tempo livre era absolutamente fundamental. Veja o caso da manifestação dos padeiros que trabalhavam longas horas, cujo slogan era “queremos dormir com nossas esposas”.
Como slogan é muito interessante, porque hoje em dia achamos que às onze da noite há gente a vender meias nos supermercados ou a trabalhar nas linhas de montagem da Volkswagen.
As pessoas conquistaram não apenas o congelamento de preços para que pudessem ter refeições decentes, mas o direito ao lazer e à cultura. Eles também conquistaram o direito à moradia, inclusive ocupando casas vazias destinadas à especulação.
Até os juízes às vezes os apoiavam, como na cidade de Setúbal. Relembro que hoje em Portugal existem setecentas mil casas devolutas, propriedade de fundos imobiliários, que não pagam impostos.
Além de quatro mil conselhos de trabalhadores, havia 360 empresas administradas por seus próprios trabalhadores. As áreas de cultivo de sequeiro triplicaram, à medida que os camponeses ocupavam a terra. Essas ocupações obviamente contrastam com o que temos hoje: a paralisação da produção durante a crise. Em meio ao desemprego em massa, as pessoas são pagas para parar de produzir.
O ano de 1979 veria também a criação de um Serviço Nacional de Saúde. No entanto, a unificação de um sistema universal de saúde foi introduzida no rescaldo do 25 de abril.
O primeiro responsável por isso foi uma figura absolutamente maravilhosa no Movimento das Forças Armadas, Cruz Oliveira. Ele tirou os hospitais das mãos das instituições de caridade e os transformou em um único serviço, e proibiu a venda de sangue — desde então, o sangue usado nos hospitais é doado. Tudo isso aconteceu com as pessoas em situação de rua, reivindicando que o acesso à saúde não fosse um bem mercantilizado, mas sim um direito universal.
David Broder
Você descreve a revolução como relevante tanto para o século XXI quanto para o século XX e observa também um florescimento da consciência dos interesses de classe durante essa convulsão. No entanto, pode-se argumentar que a experiência portuguesa estava ligada a uma história mais antiga e a um modelo de organização de classe enraizado nos grandes locais de trabalho fordistas. Isso chegou ao fim da onda de lutas que se abriu em 1968. Na verdade, ideias como autogestão nas fábricas foram amplamente difundidas na esquerda internacional da época. Em que sentido esse movimento aponta para o futuro e não é o último suspiro da revolução operária na Europa antes de uma investida que desmantelou sua base social histórica?
Raquel Varela
Um dos meus principais argumentos em meu livro é distinguir o controle dos trabalhadores da autogestão. Há uma longa história de experiências de controle operário, de Petrogrado em 1917 à Itália em 1919 – 1920, onde os trabalhadores impõem seus padrões à administração da empresa.
Este fenômeno — pouco estudado no caso português — foi, no entanto, um dos elementos mais interessantes da revolução portuguesa, desenvolvendo-se nas empresas nacionalizadas, nas grandes empresas de engenharia, e para além de fevereiro de 1975. Isso diferia das empresas que os trabalhadores tomavam diretamente em suas mãos (autogestão), o que era mais comum em empresas com dificuldades financeiras reais e empresas menores.
A revolução portuguesa baseou-se na classe operária, não nos camponeses ou num partido militarizado. É a revolução mais moderna que ocorreu na Europa. Dos dez milhões de habitantes de Portugal, três milhões pertenciam aos setores envolvidos na revolução, incluindo uma proporção maciça de mulheres (representando cerca de 40% da força de trabalho, devido à guerra e à emigração) e um setor de serviços que teve grande expansão nos últimos anos.
Nesta revolução, os trabalhadores das fábricas controlavam hospitais e médicos. A revolução portuguesa combinou assim um grande atraso — o desmoronamento do mais anacrônico (aliás, o último) império colonial — com a modernidade, numa revolução no coração da Europa em plena Guerra Fria.
Hoje, este passado revolucionário — quando os mais pobres, os mais precários, aliás muitas vezes analfabetos, ousavam arriscar a vida — é uma espécie de pesadelo histórico para as classes dominantes portuguesas de hoje. A maioria das pessoas estava exultante. Uma das características das fotos da revolução portuguesa, ilustradas na capa do livro, é que as pessoas estão quase sempre a sorrir para a câmara.
Não por acaso, Chico Buarque cantou: “Tô sabendo que tá de festa, cara”. No entanto, no quadragésimo aniversário, insistiu-se em que apenas se comemorassem as ações dos soldados no dia 25 de abril, esquecendo-se de que este era apenas o primeiro dia dos mais surpreendentes dezenove meses da história de Portugal.
David Broder
Os partidos social-democratas de outros países, mas também o governo dos EUA, temiam o contágio de Portugal para outros países. Até que ponto isso era realista e que pressão foi usada para sufocar a energia da revolução de fora?
Raquel Varela
Podemos ver o que aconteceu nos arquivos americanos que agora foram abertos. Portugal foi, a par do Vietname, o país mais acompanhado pelo Departamento de Estado. Nas palavras de Gerald Ford, Washington temia um “Mediterrâneo vermelho” se espalhando a partir de Portugal. O que ele temia era frequentemente algo negligenciado na história das revoluções — a força do exemplo. As imagens das pessoas das favelas sorrindo de braços abertos ao lado dos soldados encheram de esperança o povo da Espanha, Grécia, Brasil.
A esquerda global, da social-democracia aos Partidos Comunistas, grupos à esquerda destes, sindicatos, grupos de direitos humanos, setores progressistas da Igreja, democratas e republicanos viram em Portugal uma alternativa aos banhos de sangue perpetrados sob as botas das ditaduras militares latino-americanas e asiáticas. Apenas sete meses após os sangrentos eventos no Chile em 11 de setembro de 1973, um povo na Europa estava realmente ganhando.
Por outro lado, sabemos hoje que a maior soma de dinheiro dispendida pela Social Democracia Alemã (SPD) na sua história foi dedicada à construção de um Partido Socialista em Portugal em 1974 – 1975. Isso, não para promover a revolução, mas para criar um partido que pudesse servir como chefe civil de seu descarrilamento.
Os estados americanos e alemães perceberam que não havia como parar a revolução repetindo a repressão ao estilo chileno — Portugal estava na Europa. A estratégia da “contra-revolução democrática” foi implementada sob a liderança de um Partido Socialista, pacificando as massas com concessões de bem-estar enquanto minava as formas populares de poder ao insistir que apenas a política parlamentar era legítima.
David Broder
Você reproduz a famosa charge de João Abel Manta mostrando Portugal sendo estudado pelos grandes revolucionários da história e mostra até que ponto foi foco da esquerda internacional. No entanto, como você também notou, não entrou para a história da mesma forma que a experiência chilena como um exemplo dos problemas do poder do Estado.
Por que você acha que é isso? Será que os grupos de extrema-esquerda da época simplesmente propuseram uma revolução ao estilo de 1917 em Portugal e, portanto, não acrescentaram nada de novo? Ou será que outros grandes partidos (por exemplo, os comunistas italianos) observavam a experiência chilena como mais compatível com os perigos que eles próprios enfrentavam?
Raquel Varela
O Partido Comunista Português, ainda mais do que os maoístas, criou a ideia de que havia o perigo do regresso do fascismo. Eles usaram isso como um meio de pressão para defender a estratégia da frente popular (ou seja, uma ampla aliança contra o fascismo que se estende através das divisões de classe) e, assim, restringir a dimensão conflituosa da revolução social.
Alguns da extrema esquerda se alinharam com essa abordagem, mas outros não. Não apenas os maoistas e trotskistas, mas também o Partido Comunista e o MFA estavam muito divididos entre apoiar o poder popular contra o estado central e apoiar a linha oficial comunista-MFA defendendo este estado contra a ameaça “fascista”.
Multidões em Lisboa durante a Revolução dos Cravos, Portugal, em abril de 1974. Wikimedia Commons |
Uma entrevista de
Raquel Varela
Tradução / Hoje marca o aniversário da libertação de Portugal da ditadura. Em 25 de abril de 1974, soldados do Movimento das Forças Armadas (MFA) dissidente removeram o ditador Marcelo Caetano, exigindo que Portugal abandonasse suas fracassadas guerras coloniais na África. Um regime que remonta à época de Mussolini e Hitler finalmente chegou ao fim, juntamente com o último império do estilo antigo da Europa.
A revolta no exército foi o gatilho imediato para a queda do regime, e as imagens de cidadãos jubilosos entregando cravos aos soldados acabariam por simbolizar o nascimento da própria democracia portuguesa. No entanto, a Revolução dos Cravos, que prosseguiu até novembro de 1975, foi mais do que um simples golpe de estado, ou mesmo uma transição para uma nova ordem parlamentar.
Ao invés disso, a quebra do antigo regime abriu caminho para uma reflexão muito mais ampla sobre como a sociedade deveria ser administrada. Com os órgãos da ditadura imediatamente varridos, novos órgãos de democracia em massa floresceram, envolvendo milhões de pessoas. Os trabalhadores impuseram seu controle sobre seus locais de trabalho e conselhos de residentes assumiram o controle dos problemas da vida cotidiana.
Essa democracia — não apenas um voto a cada poucos anos, mas um poder popular contínuo e direto — mostrou como os trabalhadores poderiam administrar uma economia moderna. Ela impôs inúmeros direitos, no entanto, a mobilização em massa acabou por murchar, e Portugal se tornou mais parecido com outros países europeus liberal-democráticos.
No aniversário da revolução, David Broder, da Jacobin, conversou com a historiadora Raquel Varela sobre seu legado para Portugal hoje. Eles discutiram o papel dos soldados dissidentes em dividir o antigo estado, as mudanças duradouras que conseguiu impor e o que essa experiência nos diz sobre o que a transformação socialista significaria hoje.
David Broder
A revolta anticolonial foi um gatilho fundamental para a revolução, pois a dissidência dentro do exército português — expressa na criação do MFA — forçou uma divisão dentro do regime. Mas mesmo depois que o MFA derrubou a ditadura em 25 de abril de 1974, ele manteve uma identificação popular contínua, e os partidos de esquerda também se alinharam com figuras do exército. Mas como esse movimento de soldados teve uma base de apoio tão ampla? E por que não conseguiu manter o controle do processo revolucionário?
Raquel Varela
A formação do MFA deveu-se não à ideologia de esquerda, mas sim à guerra colonial de Portugal entre 1961 e 1974. O país passou treze anos a lutar contra as revoluções anticoloniais na Guiné, Moçambique e Angola, com mais de um milhão de soldados mobilizados, mais de oito mil mortos do lado português e cem mil mortos do lado africano.
Costuma-se dizer que houve uma revolução sem sangue, já que em 25 de abril de 1974 quase ninguém morreu na metrópole portuguesa. No entanto, a Revolução dos Cravos realmente começou com as revoluções anticoloniais treze anos antes, que de fato fazem parte do mesmo processo.
Revolução significa conflito: e o MFA derrubou a ditadura com tropas e tanques nas ruas. Mas seus membros eram em sua maioria da pequena burguesia e pouco politizados, seus objetivos limitando-se a acabar com a guerra. Essa foi a conquista deles em 25 de abril de 1974, quando oficiais de médio escalão deram um golpe de estado. Isso, porém, também lançou um processo revolucionário mais amplo, com a entrada em cena das massas trabalhadoras e populares. Isso também alterou o equilíbrio de forças entre as classes sociais.
Portugal estava mergulhado numa crise nacional, e a brecha que se abriu na classe dominante não foi resolvida pelo golpe. O que começou em 25 de abril — um clássico golpe de Estado — levou a uma revolução democrática, pois em poucos dias ou semanas a substituição da ditadura por um sistema político democrático estava praticamente assegurada. Esta foi também a semente de uma revolução social, implicando mudanças nas relações de produção mais amplas.
As bases dessa revolução foram lançadas pelos trabalhadores e setores populares e estudantis. Eles haviam se juntado ao processo por trás do exército e, portanto, podiam agir sem medo. No entanto, ao entrarem em massa no palco, essas camadas logo passaram à frente do próprio MFA, que estava tentando restaurar a ordem no mesmo estado que ajudou a colocar em crise.
O Partido Comunista (PCP), a maior oposição clandestina durante a ditadura, defendia uma abordagem de frente popular. Defendia uma “aliança MFA-povo” — que equivalia a manter a liderança de parte do exército sobre o povo. Isso foi muito semelhante à linha de seu partido irmão francês na França em 1945 a 1947, quando seguiu uma política de unidade nacional em prol da “reconstrução nacional” logo após a Resistência.
No entanto, o conflito entre diferentes fontes de poder persistiu. A partir do início da revolução portuguesa surgiram novas formas de poder popular que iam muito além do projeto institucional do PCP, graças a auto-organização da classe trabalhadora em comissões de trabalhadores, moradores e, posteriormente, militares. Estas eram formas de poder dual fora do Estado central, e até parte do MFA se separou para se juntar a eles.
Mas enquanto formas paralelas de poder surgiram durante a revolução, elas não se desenvolveram e se coordenaram nacionalmente, como uma alternativa viável ao poder do estado central. De fato, se o Estado entrou em uma enorme crise, não entrou em colapso. Essa falta de alternativa foi uma das razões pelas quais, em 25 de novembro de 1975, a direita foi tão facilmente capaz de restaurar a “ordem” à custa dessas formas de poder dual.
David Broder
Seu trabalho enfatiza a história vista de baixo — o papel inesperado que as massas desempenharam, mesmo sem organização política formal por décadas. Mas em que sentido a revolução portuguesa foi um processo de mudança mais profundo do que a transição espanhola para a democracia no mesmo período? Na Espanha, foram os elementos da classe dominante que lideraram o processo, embora sua tentativa de derrubar um regime atrasado também tenha levado a uma democratização mais ampla da vida pública.
Raquel Varela
É revelador que, enquanto o arquivo de Francisco Franco está nas mãos de sua família, os papéis do ditador português António Salazar estão disponíveis ao público. O que começou em 25 de abril como um golpe de estado levou imediatamente ao desmonte completo do regime político da ditadura, mas mais do que isso, foi também a semente de uma revolução social.
O que aconteceu em Portugal em 1974 – 1975 foi a última revolução na Europa a pôr em causa a propriedade privada dos meios de produção. De acordo com dados oficiais, isso resultou em uma mudança considerável no equilíbrio das forças de classe — cerca de 18% da renda nacional foi transferida do capital para o trabalho.
Foram conquistados ganhos como a garantia do direito ao trabalho, salários dignos (acima apenas do nível de subsistência ou reprodução biológica) e acesso igualitário e universal à educação, saúde e previdência social.
O que diferencia o período revolucionário português de um processo de transição democrática como o espanhol não foi a realização das eleições nem os seus resultados, mas sim a dinâmica global visível neste período.
A realização das eleições foi, obviamente, uma grande conquista, depois de quarenta e oito anos de ditadura: na primeira disputa, 95 por cento das pessoas compareceram para votar! Mas o que diferencia uma revolução de outros processos é a maneira como a população se envolve e assume diretamente suas vidas em suas próprias mãos.
Paul Valéry costumava dizer que a política é a arte de afastar os cidadãos de suas próprias vidas. Uma revolução é precisamente o oposto, um momento único na história. Promulgamos uma das revoluções mais importantes do século XX. O direito de voto era um de seus elementos, mas o mais importante foi que, durante dezenove meses, três milhões de pessoas participaram diretamente de conselhos de trabalhadores, moradores e soldados, que decidiam o que fazer no dia a dia.
As pessoas votaram e discutiram o que fazer por horas e horas. Tudo isso possibilitou que nossa revolução realizasse coisas maravilhosas. Para dar apenas um exemplo, veja as mulheres organizadas nos conselhos de moradores.
Os bancos foram nacionalizados e expropriados sem nenhuma indenização. E o direito ao tempo livre era absolutamente fundamental. Veja o caso da manifestação dos padeiros que trabalhavam longas horas, cujo slogan era “queremos dormir com nossas esposas”.
Como slogan é muito interessante, porque hoje em dia achamos que às onze da noite há gente a vender meias nos supermercados ou a trabalhar nas linhas de montagem da Volkswagen.
As pessoas conquistaram não apenas o congelamento de preços para que pudessem ter refeições decentes, mas o direito ao lazer e à cultura. Eles também conquistaram o direito à moradia, inclusive ocupando casas vazias destinadas à especulação.
Até os juízes às vezes os apoiavam, como na cidade de Setúbal. Relembro que hoje em Portugal existem setecentas mil casas devolutas, propriedade de fundos imobiliários, que não pagam impostos.
Além de quatro mil conselhos de trabalhadores, havia 360 empresas administradas por seus próprios trabalhadores. As áreas de cultivo de sequeiro triplicaram, à medida que os camponeses ocupavam a terra. Essas ocupações obviamente contrastam com o que temos hoje: a paralisação da produção durante a crise. Em meio ao desemprego em massa, as pessoas são pagas para parar de produzir.
O ano de 1979 veria também a criação de um Serviço Nacional de Saúde. No entanto, a unificação de um sistema universal de saúde foi introduzida no rescaldo do 25 de abril.
O primeiro responsável por isso foi uma figura absolutamente maravilhosa no Movimento das Forças Armadas, Cruz Oliveira. Ele tirou os hospitais das mãos das instituições de caridade e os transformou em um único serviço, e proibiu a venda de sangue — desde então, o sangue usado nos hospitais é doado. Tudo isso aconteceu com as pessoas em situação de rua, reivindicando que o acesso à saúde não fosse um bem mercantilizado, mas sim um direito universal.
David Broder
Você descreve a revolução como relevante tanto para o século XXI quanto para o século XX e observa também um florescimento da consciência dos interesses de classe durante essa convulsão. No entanto, pode-se argumentar que a experiência portuguesa estava ligada a uma história mais antiga e a um modelo de organização de classe enraizado nos grandes locais de trabalho fordistas. Isso chegou ao fim da onda de lutas que se abriu em 1968. Na verdade, ideias como autogestão nas fábricas foram amplamente difundidas na esquerda internacional da época. Em que sentido esse movimento aponta para o futuro e não é o último suspiro da revolução operária na Europa antes de uma investida que desmantelou sua base social histórica?
Raquel Varela
Um dos meus principais argumentos em meu livro é distinguir o controle dos trabalhadores da autogestão. Há uma longa história de experiências de controle operário, de Petrogrado em 1917 à Itália em 1919 – 1920, onde os trabalhadores impõem seus padrões à administração da empresa.
Este fenômeno — pouco estudado no caso português — foi, no entanto, um dos elementos mais interessantes da revolução portuguesa, desenvolvendo-se nas empresas nacionalizadas, nas grandes empresas de engenharia, e para além de fevereiro de 1975. Isso diferia das empresas que os trabalhadores tomavam diretamente em suas mãos (autogestão), o que era mais comum em empresas com dificuldades financeiras reais e empresas menores.
A revolução portuguesa baseou-se na classe operária, não nos camponeses ou num partido militarizado. É a revolução mais moderna que ocorreu na Europa. Dos dez milhões de habitantes de Portugal, três milhões pertenciam aos setores envolvidos na revolução, incluindo uma proporção maciça de mulheres (representando cerca de 40% da força de trabalho, devido à guerra e à emigração) e um setor de serviços que teve grande expansão nos últimos anos.
Nesta revolução, os trabalhadores das fábricas controlavam hospitais e médicos. A revolução portuguesa combinou assim um grande atraso — o desmoronamento do mais anacrônico (aliás, o último) império colonial — com a modernidade, numa revolução no coração da Europa em plena Guerra Fria.
Hoje, este passado revolucionário — quando os mais pobres, os mais precários, aliás muitas vezes analfabetos, ousavam arriscar a vida — é uma espécie de pesadelo histórico para as classes dominantes portuguesas de hoje. A maioria das pessoas estava exultante. Uma das características das fotos da revolução portuguesa, ilustradas na capa do livro, é que as pessoas estão quase sempre a sorrir para a câmara.
Não por acaso, Chico Buarque cantou: “Tô sabendo que tá de festa, cara”. No entanto, no quadragésimo aniversário, insistiu-se em que apenas se comemorassem as ações dos soldados no dia 25 de abril, esquecendo-se de que este era apenas o primeiro dia dos mais surpreendentes dezenove meses da história de Portugal.
David Broder
Os partidos social-democratas de outros países, mas também o governo dos EUA, temiam o contágio de Portugal para outros países. Até que ponto isso era realista e que pressão foi usada para sufocar a energia da revolução de fora?
Raquel Varela
Podemos ver o que aconteceu nos arquivos americanos que agora foram abertos. Portugal foi, a par do Vietname, o país mais acompanhado pelo Departamento de Estado. Nas palavras de Gerald Ford, Washington temia um “Mediterrâneo vermelho” se espalhando a partir de Portugal. O que ele temia era frequentemente algo negligenciado na história das revoluções — a força do exemplo. As imagens das pessoas das favelas sorrindo de braços abertos ao lado dos soldados encheram de esperança o povo da Espanha, Grécia, Brasil.
A esquerda global, da social-democracia aos Partidos Comunistas, grupos à esquerda destes, sindicatos, grupos de direitos humanos, setores progressistas da Igreja, democratas e republicanos viram em Portugal uma alternativa aos banhos de sangue perpetrados sob as botas das ditaduras militares latino-americanas e asiáticas. Apenas sete meses após os sangrentos eventos no Chile em 11 de setembro de 1973, um povo na Europa estava realmente ganhando.
Por outro lado, sabemos hoje que a maior soma de dinheiro dispendida pela Social Democracia Alemã (SPD) na sua história foi dedicada à construção de um Partido Socialista em Portugal em 1974 – 1975. Isso, não para promover a revolução, mas para criar um partido que pudesse servir como chefe civil de seu descarrilamento.
Os estados americanos e alemães perceberam que não havia como parar a revolução repetindo a repressão ao estilo chileno — Portugal estava na Europa. A estratégia da “contra-revolução democrática” foi implementada sob a liderança de um Partido Socialista, pacificando as massas com concessões de bem-estar enquanto minava as formas populares de poder ao insistir que apenas a política parlamentar era legítima.
David Broder
Você reproduz a famosa charge de João Abel Manta mostrando Portugal sendo estudado pelos grandes revolucionários da história e mostra até que ponto foi foco da esquerda internacional. No entanto, como você também notou, não entrou para a história da mesma forma que a experiência chilena como um exemplo dos problemas do poder do Estado.
Por que você acha que é isso? Será que os grupos de extrema-esquerda da época simplesmente propuseram uma revolução ao estilo de 1917 em Portugal e, portanto, não acrescentaram nada de novo? Ou será que outros grandes partidos (por exemplo, os comunistas italianos) observavam a experiência chilena como mais compatível com os perigos que eles próprios enfrentavam?
Raquel Varela
O Partido Comunista Português, ainda mais do que os maoístas, criou a ideia de que havia o perigo do regresso do fascismo. Eles usaram isso como um meio de pressão para defender a estratégia da frente popular (ou seja, uma ampla aliança contra o fascismo que se estende através das divisões de classe) e, assim, restringir a dimensão conflituosa da revolução social.
Alguns da extrema esquerda se alinharam com essa abordagem, mas outros não. Não apenas os maoistas e trotskistas, mas também o Partido Comunista e o MFA estavam muito divididos entre apoiar o poder popular contra o estado central e apoiar a linha oficial comunista-MFA defendendo este estado contra a ameaça “fascista”.
A alegação de que o fascismo era uma ameaça real era, francamente, ridícula: em poucos dias de 25 de abril a população havia destruído completamente o antigo regime, desde a censura até a polícia política, os jornais fascistas, os antigos sindicatos e assim por diante.
As reuniões de massa — as “plenárias” — rapidamente se moveram para expurgar os funcionários do regime. Enquanto isso, o exército não apenas se recusou a reprimir o povo, mas alguns elementos dele se dividiram em favor do poder popular. Portanto, não houve ameaça chilena à revolução portuguesa.
Mas parece que grande parte da esquerda revolucionária acha mais fácil confiar no sucesso da política de frente popular – a frente defensiva contra o fascismo – do que na autoemancipação dos trabalhadores. Não é fácil explicar isso, mas sem dúvida envolve uma espécie de fragilidade subjetiva.
Quando comparamos nossa própria época, ou mesmo o período 1974 – 1975, com o que a solidariedade internacional representou entre os partidos operários no século XX, vemos como em tempos mais recentes as direções revolucionárias tornaram-se de fato menos ousadas e ainda mais precárias e isolados “em seus próprios países”. Claro, uma coisa é dizer que não havia partido bolchevique em Portugal (ou em outro lugar) em 1974 – 1975, mas isso por si só coloca a questão-chave de como uma situação revolucionária com tanto potencial não deu origem a um partido tão forte.
David Broder
Você menciona algumas conquistas do período revolucionário que sobreviveram até o presente, como um congelamento de aluguéis que durou até 2012. Até a constituição preservou a linguagem formalmente socialista. Até que ponto as tarefas que hoje restam aos portugueses são defender ou reavivar as reivindicações de 1974 – 1975? Que mudanças duradouras nas relações de classe e de gênero ela impôs?
Raquel Varela
A convocação para o início da revolução em 25 de abril de 1974 foi pelo rádio tocando a música Grândola Vila Morena. Quando, após a crise financeira de 2008, as manifestações populares se levantaram contra a troica europeia que impunha austeridade a Portugal, as multidões cantaram esta mesma canção. Em uma época de crise social, a música de 1974 – 1975 torna-se um hino nacional. Isso revela algo do profundo legado da revolução na sociedade portuguesa.
A história tem diferentes temporalidades. A revolução perdura na cultura, na música, em nome das pontes e ruas, na defesa do estado de bem-estar conquistado nas batalhas de então. Ainda do ponto de vista econômico, podemos constatar os grandes reveses que sofremos desde sua desmobilização. Hoje, o índice de Gini de desigualdade social é o mesmo de 1973 — tão ruim quanto antes da revolução.
Não haveria um “Mediterrâneo Vermelho” como Gerald Ford temia. A revolução de Portugal deu tudo, mas foi sozinha. Apesar do entusiasmo dos militantes de esquerda nos países mais ricos da Europa, a mesma dinâmica não ocorreu em outros lugares.
Mas o resultado de um processo não é a mesma coisa que o próprio processo. A derrota da revolução não diminui a grandeza do que os povos coloniais e portugueses mostraram nesses dois anos. Eles fornecem um exemplo do que podemos esperar no futuro.
Nunca na história portuguesa tanta gente falou por si como naqueles meses. A política deixou de ser separada entre elites e pessoas, e passou a existir uma estreita ligação entre trabalho manual e intelectual, entre África e Europa, entre médicos e enfermeiras, homens e mulheres, estudantes e professores.
Escrevi mais de dez livros sobre a revolução em uma década de pesquisa e sempre ouço as pessoas dizerem o mesmo, dizem: “Estes foram os dias mais felizes da minha vida”. Nesses dois anos, os seres humanos se reencontraram com sua humanidade. Este legado ainda perdura até hoje. E é a única que pode nos salvar do abismo do presente.
Colaboradores
David Broder é historiador do comunismo francês e italiano. Ele está atualmente escrevendo um livro sobre a crise da democracia italiana no período pós-Guerra Fria
As reuniões de massa — as “plenárias” — rapidamente se moveram para expurgar os funcionários do regime. Enquanto isso, o exército não apenas se recusou a reprimir o povo, mas alguns elementos dele se dividiram em favor do poder popular. Portanto, não houve ameaça chilena à revolução portuguesa.
Mas parece que grande parte da esquerda revolucionária acha mais fácil confiar no sucesso da política de frente popular – a frente defensiva contra o fascismo – do que na autoemancipação dos trabalhadores. Não é fácil explicar isso, mas sem dúvida envolve uma espécie de fragilidade subjetiva.
Quando comparamos nossa própria época, ou mesmo o período 1974 – 1975, com o que a solidariedade internacional representou entre os partidos operários no século XX, vemos como em tempos mais recentes as direções revolucionárias tornaram-se de fato menos ousadas e ainda mais precárias e isolados “em seus próprios países”. Claro, uma coisa é dizer que não havia partido bolchevique em Portugal (ou em outro lugar) em 1974 – 1975, mas isso por si só coloca a questão-chave de como uma situação revolucionária com tanto potencial não deu origem a um partido tão forte.
David Broder
Você menciona algumas conquistas do período revolucionário que sobreviveram até o presente, como um congelamento de aluguéis que durou até 2012. Até a constituição preservou a linguagem formalmente socialista. Até que ponto as tarefas que hoje restam aos portugueses são defender ou reavivar as reivindicações de 1974 – 1975? Que mudanças duradouras nas relações de classe e de gênero ela impôs?
Raquel Varela
A convocação para o início da revolução em 25 de abril de 1974 foi pelo rádio tocando a música Grândola Vila Morena. Quando, após a crise financeira de 2008, as manifestações populares se levantaram contra a troica europeia que impunha austeridade a Portugal, as multidões cantaram esta mesma canção. Em uma época de crise social, a música de 1974 – 1975 torna-se um hino nacional. Isso revela algo do profundo legado da revolução na sociedade portuguesa.
A história tem diferentes temporalidades. A revolução perdura na cultura, na música, em nome das pontes e ruas, na defesa do estado de bem-estar conquistado nas batalhas de então. Ainda do ponto de vista econômico, podemos constatar os grandes reveses que sofremos desde sua desmobilização. Hoje, o índice de Gini de desigualdade social é o mesmo de 1973 — tão ruim quanto antes da revolução.
Não haveria um “Mediterrâneo Vermelho” como Gerald Ford temia. A revolução de Portugal deu tudo, mas foi sozinha. Apesar do entusiasmo dos militantes de esquerda nos países mais ricos da Europa, a mesma dinâmica não ocorreu em outros lugares.
Mas o resultado de um processo não é a mesma coisa que o próprio processo. A derrota da revolução não diminui a grandeza do que os povos coloniais e portugueses mostraram nesses dois anos. Eles fornecem um exemplo do que podemos esperar no futuro.
Nunca na história portuguesa tanta gente falou por si como naqueles meses. A política deixou de ser separada entre elites e pessoas, e passou a existir uma estreita ligação entre trabalho manual e intelectual, entre África e Europa, entre médicos e enfermeiras, homens e mulheres, estudantes e professores.
Escrevi mais de dez livros sobre a revolução em uma década de pesquisa e sempre ouço as pessoas dizerem o mesmo, dizem: “Estes foram os dias mais felizes da minha vida”. Nesses dois anos, os seres humanos se reencontraram com sua humanidade. Este legado ainda perdura até hoje. E é a única que pode nos salvar do abismo do presente.
Colaboradores
David Broder é historiador do comunismo francês e italiano. Ele está atualmente escrevendo um livro sobre a crise da democracia italiana no período pós-Guerra Fria
Nenhum comentário:
Postar um comentário