Salem Nasser
Professor de direito internacional da FGV Direito SP
Folha de S.Paulo
Lamento não ter lido, ainda, o livro "A Sociedade Incivil", do professor e colunista da Folha Muniz Sodré. Mas entendo que, como eu, ele deseja uma sociedade mais civil. Li com gosto sua entrevista no caderno Ilustríssima ("Aceito a expressão, mas racismo não é estrutural no Brasil, diz Muniz Sodré", 18/3). Apreciei sua defesa do "pensamento de aproximação" como estratégia para combater o racismo. E sorri diante da menção aos "professores razoáveis" que temem o candomblé.
Já enquanto lia dois de seus artigos recentes —"A mão que não se estende" (25/2) e "Uma jihad tabajara" (26/3)— ocorreu-me que Muniz Sodré deveria pausar em reflexão quando, numa próxima ocasião, sentir a urgência de falar sobre o Islã e os muçulmanos. Penso que a causa da civilidade estaria mais bem servida assim.
Algum medo do professor razoável em relação ao Islã, um Islã imaginado, talvez fantasmado, se insinua nos dois textos. Não há neles sequer indício de um pensamento de aproximação.
No primeiro dos artigos, um incidente ocorrido durante a posse do presidente Lula —uma descortesia diplomática decorrente de mau julgamento por parte da primeira-dama e/ou de falha do cerimonial— serve como gatilho para uma diatribe contra o Irã, os "mulás" e os seus "paus-mandados", partes de "um aparelho de Estado regido pelo ódio à condição feminina". Imagina-se um Irã, e um mundo islâmico, mais amplo, em que a mulher é colocada na posição do inimigo em "termos ontológico-existenciais".
Já no segundo artigo, o tema central diz respeito ao radicalismo de algumas igrejas evangélicas, que teriam vestido "a fantasia golpista de retorno do inominável" e que estão especialmente motivadas pela isenção fiscal. O texto contém, no entanto, duas referências ao Islã que, desnecessárias, voltam a revelar o medo, e o preconceito, do professor razoável em relação àquilo que não conhece.
Primeiro, diz-se que aquelas igrejas fazem "como suas contrapartes islâmicas, pregam jihad ou guerra santa". Não se sabe se essas contrapartes atuariam no Brasil ou em outro lugar do mundo, se elas também esperariam a volta do inominável, se elas seriam a totalidade dos muçulmanos... Não há, para quem queira entender o argumento, qualquer utilidade na frase. O efeito pretendido é retórico: remete-se o radicalismo a um paradigma imaginado como consensual entre os leitores, aquele islâmico, em guerra contra tudo o que não for islâmico. Dá-se potência à ideia recorrendo a um preconceito e, sabendo ou não, reforça-se o preconceito.
A segunda passagem diz que "a jihad tabajara", quando crê que o Senhor castigará o novo governo, o faz "a exemplo do Alá violento para com infiéis". Aqui também é impossível saber o que quer dizer o autor: a frase não tem função explicativa, apenas reforça o preconceito que já se tem por compartilhado.
Ao mesmo tempo em que denunciava, neste mesmo texto, a possibilidade da crença em perigos imaginários, Muniz Sodré não se deu conta de estar alimentando os fantasmas dos perigos "islâmico", "iraniano", "oriental".
Digo "oriental" porque o discurso, nos dois artigos, tem ecos orientalistas claros. O mais evidente evoca a mulher oriental que o Ocidente resgatará do despotismo dos homens orientais, que teriam preservado apenas "a urgência reprodutiva com as injunções do estupro caseiro".
Em síntese, o que faz o autor, defensor sincero da aproximação e da convivência entre os diferentes, genuíno progressista, é incorporar e aceitar para si o preconceito que recebe inteiro da representação do mundo que fazem os Estados Unidos e a grande mídia. Ele incorporou um ponto cego que vem acoplado aos discursos de igualdade, de diversidade e de combate ao preconceito. É um ponto cego que parece dizer: em árabe e muçulmano, pode bater.
A esse respeito, faço menção ao fato de ter a Folha adotado a bandeira da pluralidade como estratégia de marketing. Eu proporia, ou melhor, desafiaria a Folha a fazer das temáticas relacionadas ao mundo árabe, ao mundo muçulmano e ao Oriente Médio o seu teste de ouro e fazer a prova de que suas ações correspondem ao seu discurso.
Folha de S.Paulo
Lamento não ter lido, ainda, o livro "A Sociedade Incivil", do professor e colunista da Folha Muniz Sodré. Mas entendo que, como eu, ele deseja uma sociedade mais civil. Li com gosto sua entrevista no caderno Ilustríssima ("Aceito a expressão, mas racismo não é estrutural no Brasil, diz Muniz Sodré", 18/3). Apreciei sua defesa do "pensamento de aproximação" como estratégia para combater o racismo. E sorri diante da menção aos "professores razoáveis" que temem o candomblé.
Já enquanto lia dois de seus artigos recentes —"A mão que não se estende" (25/2) e "Uma jihad tabajara" (26/3)— ocorreu-me que Muniz Sodré deveria pausar em reflexão quando, numa próxima ocasião, sentir a urgência de falar sobre o Islã e os muçulmanos. Penso que a causa da civilidade estaria mais bem servida assim.
Algum medo do professor razoável em relação ao Islã, um Islã imaginado, talvez fantasmado, se insinua nos dois textos. Não há neles sequer indício de um pensamento de aproximação.
No primeiro dos artigos, um incidente ocorrido durante a posse do presidente Lula —uma descortesia diplomática decorrente de mau julgamento por parte da primeira-dama e/ou de falha do cerimonial— serve como gatilho para uma diatribe contra o Irã, os "mulás" e os seus "paus-mandados", partes de "um aparelho de Estado regido pelo ódio à condição feminina". Imagina-se um Irã, e um mundo islâmico, mais amplo, em que a mulher é colocada na posição do inimigo em "termos ontológico-existenciais".
Já no segundo artigo, o tema central diz respeito ao radicalismo de algumas igrejas evangélicas, que teriam vestido "a fantasia golpista de retorno do inominável" e que estão especialmente motivadas pela isenção fiscal. O texto contém, no entanto, duas referências ao Islã que, desnecessárias, voltam a revelar o medo, e o preconceito, do professor razoável em relação àquilo que não conhece.
Primeiro, diz-se que aquelas igrejas fazem "como suas contrapartes islâmicas, pregam jihad ou guerra santa". Não se sabe se essas contrapartes atuariam no Brasil ou em outro lugar do mundo, se elas também esperariam a volta do inominável, se elas seriam a totalidade dos muçulmanos... Não há, para quem queira entender o argumento, qualquer utilidade na frase. O efeito pretendido é retórico: remete-se o radicalismo a um paradigma imaginado como consensual entre os leitores, aquele islâmico, em guerra contra tudo o que não for islâmico. Dá-se potência à ideia recorrendo a um preconceito e, sabendo ou não, reforça-se o preconceito.
A segunda passagem diz que "a jihad tabajara", quando crê que o Senhor castigará o novo governo, o faz "a exemplo do Alá violento para com infiéis". Aqui também é impossível saber o que quer dizer o autor: a frase não tem função explicativa, apenas reforça o preconceito que já se tem por compartilhado.
Ao mesmo tempo em que denunciava, neste mesmo texto, a possibilidade da crença em perigos imaginários, Muniz Sodré não se deu conta de estar alimentando os fantasmas dos perigos "islâmico", "iraniano", "oriental".
Digo "oriental" porque o discurso, nos dois artigos, tem ecos orientalistas claros. O mais evidente evoca a mulher oriental que o Ocidente resgatará do despotismo dos homens orientais, que teriam preservado apenas "a urgência reprodutiva com as injunções do estupro caseiro".
Em síntese, o que faz o autor, defensor sincero da aproximação e da convivência entre os diferentes, genuíno progressista, é incorporar e aceitar para si o preconceito que recebe inteiro da representação do mundo que fazem os Estados Unidos e a grande mídia. Ele incorporou um ponto cego que vem acoplado aos discursos de igualdade, de diversidade e de combate ao preconceito. É um ponto cego que parece dizer: em árabe e muçulmano, pode bater.
A esse respeito, faço menção ao fato de ter a Folha adotado a bandeira da pluralidade como estratégia de marketing. Eu proporia, ou melhor, desafiaria a Folha a fazer das temáticas relacionadas ao mundo árabe, ao mundo muçulmano e ao Oriente Médio o seu teste de ouro e fazer a prova de que suas ações correspondem ao seu discurso.
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