Uma entrevista com
Evgeny Morozov
Representação de um juramento de fidelidade ao rei no Livro de Privilégios da Cidade de Barcelona, cópia iluminada por Arnau Penna em 1380. (PHAS / Universal Images Group via Getty Images) |
Uma entrevista de
Daniel Denvir
Tradução / O poder da tecnologia e das finanças, juntamente com a crescente sensação de que o sistema é governado mais pela predação descarada do que pela boa e velha exploração trabalhista, convence pensadores da esquerda marxista até a direita neoliberal e até mesmo neo-reacionária de que deixamos o capitalismo completamente e entramos em uma era de neofeudalismo.
Em seu ensaio "Crítica da Razão Tecnofeudal", publicado na New Left Review, o escritor Evgeny Morozov argumenta que este período sombrio pelo qual estamos passando é, de fato, ainda profundamente capitalista.
Alguns estudiosos argumentam que o capitalismo não é mais a força competitiva e inovadora que garante o mais-valor por meio do que aparece mistificadamente como exploração voluntariamente contratada do trabalho. Em vez disso, afirmam que os capitalistas cada vez mais dependem do poder político bruto para assegurar coercivamente o capital por todos os meios, desde arrendamentos até capital fornecido pelo governo a baixo custo — um meio de extrair o excedente que se assemelha muito mais ao feudalismo.
No entanto, Morozov argumenta que formas de desapropriação e expropriação política, bem como atos coercivos como terrorismo de arrendamento, são características centrais do capitalismo, e não aberrações ou desvios dele. Em última análise, escreve Morozov, é apenas uma concepção excessivamente estreita do que compreende o capitalismo e suas regras de reprodução que podem nos levar à conclusão errônea de que estamos entrando em algo como neofeudalismo.
Evgeny Morozov escreveu vários livros e ensaios sobre tecnologia e política. Ele é doutor em história da ciência pela Harvard University e é o fundador do The Syllabus, um serviço de curadoria de conhecimento.
Seu podcast The Santiago Boys, sobre a história radical da computação e do planejamento cibernético na América Latina, será lançado ainda este ano. Morozov conversou com Dan Denvir, apresentador do podcast da Jacobin, o Dig, para falar sobre a “tese neofeudal” e a persistência do capitalismo. Você pode ouvir a conversa aqui. O texto foi editado para maior concisão e clareza.
Modos de Produção, Feudalismo e Capitalismo
Alguns estudiosos argumentam que o capitalismo não é mais a força competitiva e inovadora que garante o mais-valor por meio do que aparece mistificadamente como exploração voluntariamente contratada do trabalho. Em vez disso, afirmam que os capitalistas cada vez mais dependem do poder político bruto para assegurar coercivamente o capital por todos os meios, desde arrendamentos até capital fornecido pelo governo a baixo custo — um meio de extrair o excedente que se assemelha muito mais ao feudalismo.
No entanto, Morozov argumenta que formas de desapropriação e expropriação política, bem como atos coercivos como terrorismo de arrendamento, são características centrais do capitalismo, e não aberrações ou desvios dele. Em última análise, escreve Morozov, é apenas uma concepção excessivamente estreita do que compreende o capitalismo e suas regras de reprodução que podem nos levar à conclusão errônea de que estamos entrando em algo como neofeudalismo.
Evgeny Morozov escreveu vários livros e ensaios sobre tecnologia e política. Ele é doutor em história da ciência pela Harvard University e é o fundador do The Syllabus, um serviço de curadoria de conhecimento.
Seu podcast The Santiago Boys, sobre a história radical da computação e do planejamento cibernético na América Latina, será lançado ainda este ano. Morozov conversou com Dan Denvir, apresentador do podcast da Jacobin, o Dig, para falar sobre a “tese neofeudal” e a persistência do capitalismo. Você pode ouvir a conversa aqui. O texto foi editado para maior concisão e clareza.
Modos de Produção, Feudalismo e Capitalismo
DD
O que exatamente na ascensão da tecnologia digital levou tantos pensadores a acreditar que estamos saindo completamente do capitalismo? E como outros aspectos da era neoliberal, como financeirização e globalização, se encaixam nessa narrativa?
EM
EM
Existe esse argumento — principalmente na esquerda, mas também na direita — que afirma que o capitalismo não é mais o que costumava ser. Ninguém está dizendo que o capitalismo era perfeito, mas acredito que houve um certo consenso, mesmo entre seus críticos, sendo Marx o principal deles, de que o capitalismo resultou em alguma forma de inovação.
Ao submeter os participantes do mercado à competição, ele os forçou a desenvolver novas práticas, adotar novas técnicas de produção, criar novos produtos e, até certo ponto, fazer a sociedade avançar — é claro, com alguns custos.
Alguns marxistas diriam que seria impossível avançar para a próxima etapa, o socialismo, sem passar pelo capitalismo primeiro. Podemos deixar isso de lado, mas a compreensão subjacente do capitalismo tradicionalmente foi de que esse sistema impulsiona a inovação.
Recentemente, muitas pessoas argumentam que talvez o que estamos presenciando atualmente seja um sistema estagnado, dominado por rentistas, que perdeu sua vantagem inovadora de alguma forma. Isso é atribuído a diferentes dimensões da economia global, algumas relacionadas à área financeira e outras ao fato de que cada vez mais dinheiro precisa ser pago por propriedade intelectual de vários tipos, como patentes, marcas registradas, taxas de royalties, e assim por diante.
Certos serviços, como inteligência artificial, tornaram-se fundamentais para o funcionamento de muitas empresas. Alguns apontam para o domínio do setor imobiliário. Há todo tipo de dinâmicas e tendências no sistema contemporâneo resultantes em algo diferente da inovação.
Isso leva algumas pessoas muito poderosas a utilizar todo tipo de meios extra-econômicos, em vez da competição tradicional de mercado, como contar com o poder da lei, ou no fato de terem monopolizado o acesso a determinados tipos de conhecimento e dados. Basicamente, estão usando esse acesso privilegiado para obter lucro sem necessariamente investir algo novo nessa dinâmica inovadora que é associada ao capitalismo.
Esse é o argumento básico, mas algumas pessoas vão além. Elas não afirmam que isso é apenas uma espécie de estagnação dentro do capitalismo ou uma virada rentista dentro do capitalismo. Elas dizem que é, na verdade, um retorno ao feudalismo. Esse novo regime não é apenas feudal, é tecnofeudal, no sentido de que a tecnologia desempenha um papel fundamental ao viabilizar essas novas tendências.
DD
Ao submeter os participantes do mercado à competição, ele os forçou a desenvolver novas práticas, adotar novas técnicas de produção, criar novos produtos e, até certo ponto, fazer a sociedade avançar — é claro, com alguns custos.
Alguns marxistas diriam que seria impossível avançar para a próxima etapa, o socialismo, sem passar pelo capitalismo primeiro. Podemos deixar isso de lado, mas a compreensão subjacente do capitalismo tradicionalmente foi de que esse sistema impulsiona a inovação.
Recentemente, muitas pessoas argumentam que talvez o que estamos presenciando atualmente seja um sistema estagnado, dominado por rentistas, que perdeu sua vantagem inovadora de alguma forma. Isso é atribuído a diferentes dimensões da economia global, algumas relacionadas à área financeira e outras ao fato de que cada vez mais dinheiro precisa ser pago por propriedade intelectual de vários tipos, como patentes, marcas registradas, taxas de royalties, e assim por diante.
Certos serviços, como inteligência artificial, tornaram-se fundamentais para o funcionamento de muitas empresas. Alguns apontam para o domínio do setor imobiliário. Há todo tipo de dinâmicas e tendências no sistema contemporâneo resultantes em algo diferente da inovação.
Isso leva algumas pessoas muito poderosas a utilizar todo tipo de meios extra-econômicos, em vez da competição tradicional de mercado, como contar com o poder da lei, ou no fato de terem monopolizado o acesso a determinados tipos de conhecimento e dados. Basicamente, estão usando esse acesso privilegiado para obter lucro sem necessariamente investir algo novo nessa dinâmica inovadora que é associada ao capitalismo.
Esse é o argumento básico, mas algumas pessoas vão além. Elas não afirmam que isso é apenas uma espécie de estagnação dentro do capitalismo ou uma virada rentista dentro do capitalismo. Elas dizem que é, na verdade, um retorno ao feudalismo. Esse novo regime não é apenas feudal, é tecnofeudal, no sentido de que a tecnologia desempenha um papel fundamental ao viabilizar essas novas tendências.
DD
Esse debate sobre se estamos entrando em um novo período feudal e deixando o capitalismo para trás se baseia, em grande parte, em como entendemos esses dois termos. E ambos os conceitos têm sido intensamente discutidos e debatidos no marxismo, especialmente nos últimos sessenta anos.
Comecemos definindo o feudalismo e o capitalismo em termos marxistas e também o que Marx e vários marxistas identificaram como as principais diferenças entre esses dois modos de produção.
EM
Comecemos definindo o feudalismo e o capitalismo em termos marxistas e também o que Marx e vários marxistas identificaram como as principais diferenças entre esses dois modos de produção.
EM
Sua pergunta já contém uma resposta, porque para os marxistas, em geral, tanto o feudalismo quanto o capitalismo são modos de produção. Não se trata apenas de um regime socioeconômico vago. Não é nada definido principalmente pela quantidade ou tipo de direitos políticos, ou sociais desfrutados. Para os marxistas, a diferença entre feudalismo e capitalismo é principalmente uma diferença no modo de produção.
Esse é um dos rompimentos epistêmicos que Marx faz. Ele basicamente teoriza essa ideia de que os sistemas sociais devem ser compreendidos e comparados com base no conceito de modo de produção.
Portanto, se olharmos para o feudalismo, essencialmente estamos falando sobre como o sistema consegue gerar e dividir um excedente econômico. E, em geral, é isso que um modo de produção é. Essa talvez não seja a definição mais ortodoxa do marxismo, mas essencialmente estamos falando sobre como os excedentes são produzidos e divididos. E então reflexões adicionais, é claro, podem ser feitas sobre como tudo isso se relaciona com uma filosofia mais ampla da história.
É aí que a parte interessante do marxismo e de Marx se destaca. Marx argumenta que é possível existirem certas características no capitalismo que não permitam desenvolver todas as dinâmicas inovadoras que germinam dentro dele ao máximo, por suas relações sociais de produção.
Certas classes controlam certas tecnologias, e é essencial controlar certos meios de produção, como os marxistas colocariam. E por causa desse controle, não é possível alcançar o grau de progresso social que se esperaria de um determinado estágio de tecnologia ou de sociedade. Por isso, o socialismo e, eventualmente, o comunismo como o modo de produção último seriam necessários.
Mas se nos voltarmos ao feudalismo como um dos modos de produção anteriores, estamos falando principalmente de economias camponesas em que os camponeses controlam ou têm acesso aos seus próprios meios de subsistência.
Geralmente, nem mesmo usamos o termo “meios de produção”. Estamos falando principalmente de meios de subsistência. Os camponeses podem ter um campo, um jardim ou outro terreno, e trabalham nele com certa autonomia. Pelos arranjos políticos, alguém vem periodicamente uma vez por mês ou uma vez por ano e essencialmente expropria ou confiscada qualquer excedente que os camponeses possam estar produzindo e pode se separar deles. Isso não acontece por meio de algum acordo invisível nos bastidores.
Ninguém está sendo enganado. É feito pela força.
Existe, é claro, um sistema político de poder que molda como esse excedente é apropriado. Existem todos os tipos de graduações dentro desse sistema, e não precisamos entrar em detalhes, mas essencialmente os senhores feudais, devido ao poder político que desfrutam, também têm um certo grau de proteção. Não há competição entre eles e, por causa disso, eles têm poucos incentivos para inovar, reduzir custos, introduzir novas tecnologias ou técnicas que economizem trabalho.
Portanto, do ponto de vista marxista, muitas vezes o sistema resulta em algum tipo de estagnação social e econômica. Podemos argumentar e debater sobre como ocorre a transição entre feudalismo e capitalismo, mas, para alguns teóricos, especialmente Robert Brenner, quem discuto em detalhes nos textos que escrevi, o capitalismo é marcado por dinâmicas muito diferentes.
Ele essencialmente coloca o que costumavam ser os senhores feudais em competição uns com os outros. Eles não podem mais contar com a expropriação de excedentes dos sujeitos políticos sob seu controle. Eles têm que pagar um salário pelo seu trabalho.
Isso os incentiva a reduzir custos automatizando o máximo possível desse trabalho. Assim, o capitalismo se torna um sistema que essencialmente sistematiza a produção de inovação. E é assim que explicamos os imensos avanços no desenvolvimento econômico ao longo dos últimos dois séculos associados à industrialização.
Portanto, essa seria a diferença principal para certas correntes de pensadores marxistas. É realmente essa ênfase na inovação como uma característica estrutural da competição capitalista, que se manifesta de forma muito mais forte no capitalismo em comparação com o sistema feudal anterior.
DD
Esse é um dos rompimentos epistêmicos que Marx faz. Ele basicamente teoriza essa ideia de que os sistemas sociais devem ser compreendidos e comparados com base no conceito de modo de produção.
Portanto, se olharmos para o feudalismo, essencialmente estamos falando sobre como o sistema consegue gerar e dividir um excedente econômico. E, em geral, é isso que um modo de produção é. Essa talvez não seja a definição mais ortodoxa do marxismo, mas essencialmente estamos falando sobre como os excedentes são produzidos e divididos. E então reflexões adicionais, é claro, podem ser feitas sobre como tudo isso se relaciona com uma filosofia mais ampla da história.
É aí que a parte interessante do marxismo e de Marx se destaca. Marx argumenta que é possível existirem certas características no capitalismo que não permitam desenvolver todas as dinâmicas inovadoras que germinam dentro dele ao máximo, por suas relações sociais de produção.
Certas classes controlam certas tecnologias, e é essencial controlar certos meios de produção, como os marxistas colocariam. E por causa desse controle, não é possível alcançar o grau de progresso social que se esperaria de um determinado estágio de tecnologia ou de sociedade. Por isso, o socialismo e, eventualmente, o comunismo como o modo de produção último seriam necessários.
Mas se nos voltarmos ao feudalismo como um dos modos de produção anteriores, estamos falando principalmente de economias camponesas em que os camponeses controlam ou têm acesso aos seus próprios meios de subsistência.
Geralmente, nem mesmo usamos o termo “meios de produção”. Estamos falando principalmente de meios de subsistência. Os camponeses podem ter um campo, um jardim ou outro terreno, e trabalham nele com certa autonomia. Pelos arranjos políticos, alguém vem periodicamente uma vez por mês ou uma vez por ano e essencialmente expropria ou confiscada qualquer excedente que os camponeses possam estar produzindo e pode se separar deles. Isso não acontece por meio de algum acordo invisível nos bastidores.
Ninguém está sendo enganado. É feito pela força.
Existe, é claro, um sistema político de poder que molda como esse excedente é apropriado. Existem todos os tipos de graduações dentro desse sistema, e não precisamos entrar em detalhes, mas essencialmente os senhores feudais, devido ao poder político que desfrutam, também têm um certo grau de proteção. Não há competição entre eles e, por causa disso, eles têm poucos incentivos para inovar, reduzir custos, introduzir novas tecnologias ou técnicas que economizem trabalho.
Portanto, do ponto de vista marxista, muitas vezes o sistema resulta em algum tipo de estagnação social e econômica. Podemos argumentar e debater sobre como ocorre a transição entre feudalismo e capitalismo, mas, para alguns teóricos, especialmente Robert Brenner, quem discuto em detalhes nos textos que escrevi, o capitalismo é marcado por dinâmicas muito diferentes.
Ele essencialmente coloca o que costumavam ser os senhores feudais em competição uns com os outros. Eles não podem mais contar com a expropriação de excedentes dos sujeitos políticos sob seu controle. Eles têm que pagar um salário pelo seu trabalho.
Isso os incentiva a reduzir custos automatizando o máximo possível desse trabalho. Assim, o capitalismo se torna um sistema que essencialmente sistematiza a produção de inovação. E é assim que explicamos os imensos avanços no desenvolvimento econômico ao longo dos últimos dois séculos associados à industrialização.
Portanto, essa seria a diferença principal para certas correntes de pensadores marxistas. É realmente essa ênfase na inovação como uma característica estrutural da competição capitalista, que se manifesta de forma muito mais forte no capitalismo em comparação com o sistema feudal anterior.
DD
A teoria que você descreveu retrata uma distinção bastante rigorosa e precisa entre esses dois meios de extração de excedente. Como isso, na sua opinião, leva alguns a se perderem em sua análise da ordem político-econômica atual?
EM
EM
Antes de mais nada, eu não sou historiador do feudalismo de forma alguma. Estou me baseando em literatura secundária. Então tudo que sei sobre os mecanismos e meios de extração de excedente sob o feudalismo aprendi com o trabalho de maravilhosos historiadores do feudalismo e do capitalismo. Talvez seja mais fácil começar com o capitalismo e depois estabelecer as distinções com o feudalismo.
Em uma análise marxista tradicional, é o trabalho que devemos analisar. E há algo muito peculiar sobre o trabalho como uma mercadoria que explica essa imensa produção e circulação de valor excedente no sistema capitalista.
Provavelmente não precisamos repetir tudo o que Marx diz sobre a exploração e a maneira como o mais-valor é gerado no processo de trabalho. Mas essencialmente a conclusão dessa análise marxista é que ela transforma o trabalho em uma mercadoria, e o trabalho não é como qualquer outra mercadoria. Ele não é precificado como deveria ser.
Se observarmos o sistema estruturalmente, vemos que há certos processos incorporados nele resultantes na exploração do trabalho e na transferência de valor essencialmente do trabalho para o capital, ou dos trabalhadores para aqueles que possuem os meios de produção. Mas isso não está acontecendo explicitamente. E ninguém está te forçando. Ninguém está te agredindo, pelo menos sob o funcionamento adequado do capitalismo.
O tipo ideal de capitalismo é limpo. Isso não quer dizer que ele não precise contar com o poder policial, ou que não precise contar com pessoas passando fome. Mesmo em condições completamente perfeitas e ideais, como o sistema capitalista funciona é que você vai e vende seu trabalho e de alguma forma, como trabalhador, você está sendo enganado. O ponto crucial é que tudo isso acontece invisivelmente, e tudo é legal. Tudo é limpo.
No feudalismo, é o oposto. A extração de excedente acontece de forma bastante visível, então ninguém está em negação sobre isso. Você iria colher e trabalhar em seu campo, e então alguém viria no final do mês ou do ano e levaria o que restou e que você não consumiu para se reproduzir. E novamente, isso aconteceria de maneira muito mais violenta, explícita e visível. Claro, pode ser justificado de todas as maneiras possíveis, por tradições religiosas, por apelos à ideologia. Existem todas as formas de justificar por que isso precisa acontecer, então não precisa ser violento o tempo todo. Mas o que sustenta isso é essencialmente a força.
Mais uma vez, não estou dizendo que o capitalismo funciona sem o Estado, onde não há força para constituir o contrato, mas no capitalismo isso acontece de maneira muito mais limpa. Os trabalhadores devem ser convencidos de que não estão sendo prejudicados.
DD
Em uma análise marxista tradicional, é o trabalho que devemos analisar. E há algo muito peculiar sobre o trabalho como uma mercadoria que explica essa imensa produção e circulação de valor excedente no sistema capitalista.
Provavelmente não precisamos repetir tudo o que Marx diz sobre a exploração e a maneira como o mais-valor é gerado no processo de trabalho. Mas essencialmente a conclusão dessa análise marxista é que ela transforma o trabalho em uma mercadoria, e o trabalho não é como qualquer outra mercadoria. Ele não é precificado como deveria ser.
Se observarmos o sistema estruturalmente, vemos que há certos processos incorporados nele resultantes na exploração do trabalho e na transferência de valor essencialmente do trabalho para o capital, ou dos trabalhadores para aqueles que possuem os meios de produção. Mas isso não está acontecendo explicitamente. E ninguém está te forçando. Ninguém está te agredindo, pelo menos sob o funcionamento adequado do capitalismo.
O tipo ideal de capitalismo é limpo. Isso não quer dizer que ele não precise contar com o poder policial, ou que não precise contar com pessoas passando fome. Mesmo em condições completamente perfeitas e ideais, como o sistema capitalista funciona é que você vai e vende seu trabalho e de alguma forma, como trabalhador, você está sendo enganado. O ponto crucial é que tudo isso acontece invisivelmente, e tudo é legal. Tudo é limpo.
No feudalismo, é o oposto. A extração de excedente acontece de forma bastante visível, então ninguém está em negação sobre isso. Você iria colher e trabalhar em seu campo, e então alguém viria no final do mês ou do ano e levaria o que restou e que você não consumiu para se reproduzir. E novamente, isso aconteceria de maneira muito mais violenta, explícita e visível. Claro, pode ser justificado de todas as maneiras possíveis, por tradições religiosas, por apelos à ideologia. Existem todas as formas de justificar por que isso precisa acontecer, então não precisa ser violento o tempo todo. Mas o que sustenta isso é essencialmente a força.
Mais uma vez, não estou dizendo que o capitalismo funciona sem o Estado, onde não há força para constituir o contrato, mas no capitalismo isso acontece de maneira muito mais limpa. Os trabalhadores devem ser convencidos de que não estão sendo prejudicados.
DD
Você argumenta que alguns marxistas acreditam que retornamos ao feudalismo por causa de todo esse poder político bruto exercido nos últimos anos e décadas para redistribuir riqueza para a classe capitalista: em outras palavras, exercícios descarados de expropriação em vez dessa suposta exploração limpa e ideal.
E você escreve que essa abordagem e esses teóricos que cada vez mais se concentram na expropriação política veem:
O sistema capitalista como impulsionado exclusivamente por suas dinâmicas internas de competição e exploração, com a expropriação política situada claramente fora de seus limites. Nessa leitura, a acumulação de capital é impulsionada exclusivamente por meios econômicos “limpos” de extração de excedente. A existência de processos externos que possibilitam a expropriação — violência, racismo, desapropriação, carbonização — não é negada, mas deve ser analiticamente classificadas como não capitalistas; eles podem ter ajudado capitalistas específicos em seus esforços individuais para apropriar o mais-valor, mas estão fora do processo de acumulação capitalista enquanto tal.
Quais correntes específicas do pensamento marxista historicamente avançaram nessa análise que você acabou de resumir? E quais são os exemplos de expropriação política que eles têm em mente? E, por fim, como essa tradição, na sua opinião, deixa os marxistas despreparados para compreender as mudanças que estamos vendo atualmente na ordem político-econômica?
EM
EM
Essa foi e continua sendo a corrente e a interpretação dominante dentro do marxismo. Se olharmos para os marxistas ortodoxos – pessoas que realmente estudam “O capital” e o tratam como seu texto principal, ou seja, que não se desviam para o “O 18 Brumário”, “Grundrisse” ou para outros textos complementares de Marx e Engels – eles ainda defendem a posição de que essencialmente o capitalismo é um sistema que funciona e se expande por meio da competição, e que essencialmente tudo o que acontece ocorre para que o capitalismo possa explorar o trabalho de forma mais eficiente e eficaz, e obter mais-trabalho.
Muitos marxistas heterodoxos também tacitamente concordam com isso, embora aprofundem um pouco mais a análise. Por exemplo, nas últimas décadas tem havido uma ênfase na importância da reprodução social. Mas, para muitos desses teóricos, a reprodução social em si é quase a parte central do capitalismo. Eles analisam o que acontece fora da proverbial fábrica, mas com o objetivo de explicar como todas essas outras coisas, como o trabalho das mulheres e a família, tornam o capital e o capitalismo na fábrica – na esfera real de produção – um pouco mais produtivos e eficazes.
Portanto, eu diria que essa visão foi e continua sendo a visão predominante para os marxistas. Qualquer um que desafie essa visão provavelmente será excomungado e tratado como um pós-marxista no melhor dos casos, como um neo-marxista potencialmente, e como um não-marxista também é bastante provável.
Algumas pessoas que menciono no texto, como Nancy Fraser, por exemplo, tentaram mostrar como é possível permanecer dentro da tradição marxista e ainda ser fiel a esse processo dialético, a interação entre exploração – que é a dinâmica primária do capitalismo, como os marxistas ortodoxos veem – e a apropriação, que para a maioria dos marxistas funciona puramente para possibilitar a exploração. Mas ainda não sabemos o que significaria para os marxistas aceitar ambas as dinâmicas desempenhando um papel igualmente importante na constituição do capitalismo, em vez de considerar a apropriação como secundária à exploração do trabalho, que eles veem como a dinâmica primária.
Acumulação primitiva, o Sul Global e desapropriação
Muitos marxistas heterodoxos também tacitamente concordam com isso, embora aprofundem um pouco mais a análise. Por exemplo, nas últimas décadas tem havido uma ênfase na importância da reprodução social. Mas, para muitos desses teóricos, a reprodução social em si é quase a parte central do capitalismo. Eles analisam o que acontece fora da proverbial fábrica, mas com o objetivo de explicar como todas essas outras coisas, como o trabalho das mulheres e a família, tornam o capital e o capitalismo na fábrica – na esfera real de produção – um pouco mais produtivos e eficazes.
Portanto, eu diria que essa visão foi e continua sendo a visão predominante para os marxistas. Qualquer um que desafie essa visão provavelmente será excomungado e tratado como um pós-marxista no melhor dos casos, como um neo-marxista potencialmente, e como um não-marxista também é bastante provável.
Algumas pessoas que menciono no texto, como Nancy Fraser, por exemplo, tentaram mostrar como é possível permanecer dentro da tradição marxista e ainda ser fiel a esse processo dialético, a interação entre exploração – que é a dinâmica primária do capitalismo, como os marxistas ortodoxos veem – e a apropriação, que para a maioria dos marxistas funciona puramente para possibilitar a exploração. Mas ainda não sabemos o que significaria para os marxistas aceitar ambas as dinâmicas desempenhando um papel igualmente importante na constituição do capitalismo, em vez de considerar a apropriação como secundária à exploração do trabalho, que eles veem como a dinâmica primária.
Acumulação primitiva, o Sul Global e desapropriação
DD
Você escreve:
A outra opção, analiticamente mais confusa, mas intuitivamente mais convincente, é reconhecer que o capitalismo – pelo menos o capitalismo histórico que conhecemos, não o capitalismo purista dos modelos abstratos – é impensável sem todos esses processos extrínsecos. Não é necessário negar a centralidade da exploração para o sistema capitalista para ver como o racismo ou o patriarcado ajudaram a criar as condições de sua possibilidade. O sistema capitalista no Norte Global teria se desenvolvido como se desenvolveu se recursos baratos não tivessem sido metodicamente expropriados do Sul Global?
Essa análise historicamente tem sido feita por muitos, mas principalmente por teóricos do sistema mundial, como Immanuel Wallerstein. O que tais teóricos contribuem para o marxismo? E por que foi o estudo deles do capitalismo como um processo histórico e global geograficamente desigual que os levou a essas percepções particulares?
EM
EM
Isso depende do ponto de vista a partir do qual essa análise é escrita. Para muitos teóricos do sistema mundial, quando eles estavam fazendo essa análise no final dos anos 1960 ou início dos anos 1970, eles se viam afiliados, até certo ponto, aos esforços do movimento não alinhado, composto por países da América Latina, África e Ásia – países que, de uma forma ou de outra, estavam na periferia do sistema mundial e não em seu núcleo, onde a maior parte da análise de Marx e dos marxistas subsequentes havia se concentrado anteriormente.
A maioria dessa teorização do capitalismo aconteceu no Reino Unido. Isso é o que Marx analisa. Ele analisa o processo de industrialização lá e como o capitalismo se desenvolve, e tira muitas ideias. Mas o problema é que essas ideias sobre a Inglaterra dos séculos XIX e XVIII são muito difíceis de aplicar ao Brasil, Chile ou Vietnã do século XX.
É aí que pessoas como Wallerstein, Andre Gunder Frank e Giovanni Arrighi começam a apontar que há grandes lacunas na explicação que o marxismo tradicional oferece. Eles tentam pensar sobre o desenvolvimento capitalista a partir da perspectiva da periferia e não do núcleo. Eles não estão fazendo essa análise apenas porque participam de debates acadêmicos (embora muitos deles o façam), mas também porque estão envolvidos com muitos governos socialistas e de esquerda nesses países, o que ainda era possível antes da era neoliberal.
Eles estão tentando pensar nisso a partir de uma perspectiva muito prática: quem são seus aliados? Se você realmente precisa pensar em alguma forma de alternativa para o desenvolvimento capitalista, seriam os burgueses locais e nacionais, porque você precisa primeiro ter uma revolução capitalista em seu país antes de ter uma revolução socialista? Ou a burguesia já está totalmente integrada ao sistema capitalista mundial, com seu próprio modo de se virar, e assim deve ser essencialmente descartada como algum tipo de força revolucionária?
Então, muitas dessas perguntas e críticas ao marxismo tradicional e sua compreensão do feudalismo e do capitalismo vêm de preocupações muito práticas. Essas preocupações não são necessariamente levantadas pelo movimento operário na Inglaterra, França, Alemanha ou nos Estados Unidos, que é onde os pensadores marxistas no núcleo do sistema capitalista tradicionalmente geraram ideias.
Durante dez ou quinze anos, do início da década de 1950 até meados da década de 1960, todos esses países foram informados, inclusive pelo governo dos Estados Unidos, que eles precisam se industrializar e construir sua própria indústria. Claro, eles tentaram fazer isso, mas então descobriram que apenas se industrializar não significa nada se você não tiver sua própria indústria para construir bens de capital.
Se você tiver que importar todos os seus bens de capital do exterior, se tiver que pagar por patentes, se tiver que pagar por royalties, se tiver que pagar por capital e por muitas outras coisas, você acaba em um relacionamento de dependência. E por causa desse relacionamento de dependência, o dinheiro continua fluindo para aqueles que possuem capital — e não apenas para os proprietários.
Claro que os grupos dominantes no centro da América do Norte e da Europa Ocidental lucram com esses países subdesenvolvidos, mas chega também aos trabalhadores.
Um dos argumentos que muitos desses pensadores na América Latina fizeram na época foi que, como os sindicatos são muito mais fortes no Norte Global, toda vez que há uma crise e uma recessão, o movimento trabalhista no Norte não abandona seus ganhos, mas os mantém. E os trabalhadores no Sul Global veem seus salários diminuir e sofrem.
Portanto, para eles, até mesmo os trabalhadores no Norte Global fariam parte de algum tipo de classe rentista, o que não era realmente um grande problema. Eles não estavam tentando semear algum tipo de discordância entre o movimento trabalhista do Norte Global e os trabalhadores do Sul Global. O ponto é que eles entendiam o rentismo como uma dinâmica já incorporada no sistema capitalista global.
Do ponto de vista marxista tradicional ou clássico, defensores do estruturalismo e da teoria da dependência na América Latina não eram propriamente marxistas, porque estavam falando sobre países explorando mutualmente.
Houve todo tipo de argumento intricado, mas, no final das contas, dizia-se que essa não é uma teoria marxista, se por uma teoria marxista entendemos uma teoria que coloca a exploração do trabalho em seu cerne. Você não pode começar com a exploração do trabalho como tal e chegar diretamente à teoria da exploração internacional de um país por outro, sendo precisamente o que a teoria da dependência e o estruturalismo estavam argumentando.
As pessoas do lado marxista desse debate são, até certo ponto, justificadas ao dizer que o que Wallerstein ou Gunder Frank dizem sobre o marxismo não é válido dentro do edifício teórico marxista adequado. Mas o que eles deixam de perceber é que essas pessoas não estão tentando refletir sobre o marxismo. Eles estão tentando refletir sobre os caminhos alternativos de desenvolvimento para a América Latina, o Caribe, a Ásia, a África e assim por diante. E o marxismo foi um dos instrumentos que eles usaram. Mas o ponto não era produzir a explicação mais definitiva do que os marxistas deveriam pensar.
Enquanto isso, setores ortodoxos tendem a policiar seu território e dizer: “Não, não queremos isso nos livros de história. Não poluam nossos quadros analíticos, porque se o fizerem, perderemos de vista o que faz o capitalismo funcionar. E se perdermos de vista o que faz o capitalismo funcionar, nunca construiremos o socialismo que queremos, com dinâmicas ainda melhores que produzam inovação”.
DD
A maioria dessa teorização do capitalismo aconteceu no Reino Unido. Isso é o que Marx analisa. Ele analisa o processo de industrialização lá e como o capitalismo se desenvolve, e tira muitas ideias. Mas o problema é que essas ideias sobre a Inglaterra dos séculos XIX e XVIII são muito difíceis de aplicar ao Brasil, Chile ou Vietnã do século XX.
É aí que pessoas como Wallerstein, Andre Gunder Frank e Giovanni Arrighi começam a apontar que há grandes lacunas na explicação que o marxismo tradicional oferece. Eles tentam pensar sobre o desenvolvimento capitalista a partir da perspectiva da periferia e não do núcleo. Eles não estão fazendo essa análise apenas porque participam de debates acadêmicos (embora muitos deles o façam), mas também porque estão envolvidos com muitos governos socialistas e de esquerda nesses países, o que ainda era possível antes da era neoliberal.
Eles estão tentando pensar nisso a partir de uma perspectiva muito prática: quem são seus aliados? Se você realmente precisa pensar em alguma forma de alternativa para o desenvolvimento capitalista, seriam os burgueses locais e nacionais, porque você precisa primeiro ter uma revolução capitalista em seu país antes de ter uma revolução socialista? Ou a burguesia já está totalmente integrada ao sistema capitalista mundial, com seu próprio modo de se virar, e assim deve ser essencialmente descartada como algum tipo de força revolucionária?
Então, muitas dessas perguntas e críticas ao marxismo tradicional e sua compreensão do feudalismo e do capitalismo vêm de preocupações muito práticas. Essas preocupações não são necessariamente levantadas pelo movimento operário na Inglaterra, França, Alemanha ou nos Estados Unidos, que é onde os pensadores marxistas no núcleo do sistema capitalista tradicionalmente geraram ideias.
Durante dez ou quinze anos, do início da década de 1950 até meados da década de 1960, todos esses países foram informados, inclusive pelo governo dos Estados Unidos, que eles precisam se industrializar e construir sua própria indústria. Claro, eles tentaram fazer isso, mas então descobriram que apenas se industrializar não significa nada se você não tiver sua própria indústria para construir bens de capital.
Se você tiver que importar todos os seus bens de capital do exterior, se tiver que pagar por patentes, se tiver que pagar por royalties, se tiver que pagar por capital e por muitas outras coisas, você acaba em um relacionamento de dependência. E por causa desse relacionamento de dependência, o dinheiro continua fluindo para aqueles que possuem capital — e não apenas para os proprietários.
Claro que os grupos dominantes no centro da América do Norte e da Europa Ocidental lucram com esses países subdesenvolvidos, mas chega também aos trabalhadores.
Um dos argumentos que muitos desses pensadores na América Latina fizeram na época foi que, como os sindicatos são muito mais fortes no Norte Global, toda vez que há uma crise e uma recessão, o movimento trabalhista no Norte não abandona seus ganhos, mas os mantém. E os trabalhadores no Sul Global veem seus salários diminuir e sofrem.
Portanto, para eles, até mesmo os trabalhadores no Norte Global fariam parte de algum tipo de classe rentista, o que não era realmente um grande problema. Eles não estavam tentando semear algum tipo de discordância entre o movimento trabalhista do Norte Global e os trabalhadores do Sul Global. O ponto é que eles entendiam o rentismo como uma dinâmica já incorporada no sistema capitalista global.
Do ponto de vista marxista tradicional ou clássico, defensores do estruturalismo e da teoria da dependência na América Latina não eram propriamente marxistas, porque estavam falando sobre países explorando mutualmente.
Houve todo tipo de argumento intricado, mas, no final das contas, dizia-se que essa não é uma teoria marxista, se por uma teoria marxista entendemos uma teoria que coloca a exploração do trabalho em seu cerne. Você não pode começar com a exploração do trabalho como tal e chegar diretamente à teoria da exploração internacional de um país por outro, sendo precisamente o que a teoria da dependência e o estruturalismo estavam argumentando.
As pessoas do lado marxista desse debate são, até certo ponto, justificadas ao dizer que o que Wallerstein ou Gunder Frank dizem sobre o marxismo não é válido dentro do edifício teórico marxista adequado. Mas o que eles deixam de perceber é que essas pessoas não estão tentando refletir sobre o marxismo. Eles estão tentando refletir sobre os caminhos alternativos de desenvolvimento para a América Latina, o Caribe, a Ásia, a África e assim por diante. E o marxismo foi um dos instrumentos que eles usaram. Mas o ponto não era produzir a explicação mais definitiva do que os marxistas deveriam pensar.
Enquanto isso, setores ortodoxos tendem a policiar seu território e dizer: “Não, não queremos isso nos livros de história. Não poluam nossos quadros analíticos, porque se o fizerem, perderemos de vista o que faz o capitalismo funcionar. E se perdermos de vista o que faz o capitalismo funcionar, nunca construiremos o socialismo que queremos, com dinâmicas ainda melhores que produzam inovação”.
DD
Isso nos leva à discussão sobre como o capitalismo opera hoje, e em particular a esses dois debates históricos sobre a transição do feudalismo para o capitalismo. O primeiro é o debate Dobb-Sweezy, que começou na década de 1940, e o segundo é o debate Brenner, ocorrido no final da década de 1970 e início da década de 1980.
Ambos os debates trataram, em parte, da “centralidade da ‘acumulação primitiva’ nas origens e nos desenvolvimentos subsequentes do capitalismo.” Primeiramente, o que é acumulação primitiva? E, em segundo lugar, o que estava em jogo nesses debates em relação ao papel da acumulação primitiva no capitalismo, tanto historicamente quanto de forma contínua?
EM
Ambos os debates trataram, em parte, da “centralidade da ‘acumulação primitiva’ nas origens e nos desenvolvimentos subsequentes do capitalismo.” Primeiramente, o que é acumulação primitiva? E, em segundo lugar, o que estava em jogo nesses debates em relação ao papel da acumulação primitiva no capitalismo, tanto historicamente quanto de forma contínua?
EM
Novamente, é um assunto muito controverso entre os teóricos marxistas e aqueles próximos ao marxismo. Parte dessa controvérsia decorre das inconsistências encontradas nos próprios textos de Marx sobre o que é acumulação primitiva e qual papel desempenhou. Esse debate continua até hoje, com leituras atentas de Marx, debates sobre notas de rodapé e fontes secundárias. Eu não me considero um marxólogo de qualquer tipo. Adentrei nesse debate principalmente porque achei necessário contextualizar a discussão atual.
Pelo que entendi, tendo passado algum tempo nesse universo como turista, em vez de residente em tempo integral, o debate é basicamente o seguinte. Alguns interpretam Marx como afirmando que, antes de o capitalismo adquirir essa dinâmica inovadora em que a competição obriga os capitalistas a reduzir custos e inventar coisas novas, os capitalistas precisam passar por um processo inicial de acumulação de capital muito mais bagunçado e violento.
Isso requer um conjunto diferente de ferramentas, técnicas e meios, por assim dizer. E isso era meio que feudalismo. Se não levasse a essa dinâmica de acumulação muito mais limpa, sistemática e inovadora, que não precisa ser violenta, você nem o reconheceria em relação ao feudalismo.
Essencialmente, acontece um milagre. Quero dizer, é claro que os marxistas podem explicar como exatamente isso acontece, mas é essencialmente uma história de um milagre em que as dinâmicas feudais tradicionais sangrentas e violentas eventualmente dão origem a essa acumulação apropriada, não primitiva e muito mais sofisticada.
Podemos pensar em cercamentos de terras e propriedades. Isso inicialmente é muito violento, e há muitas pessoas insatisfeitas com isso. Mas eventualmente todos aceitam isso. E começa a haver, em alguns casos, atores de mercado negociando os direitos sobre a terra, os meios de produção, as ideias, e tudo se torna uma mercadoria de alguma forma. E sabemos que as mercadorias são negociadas no mercado, e é tudo muito limpo e apropriado.
Devo dizer que, é claro, Marx escreveu sobre essas coisas em alemão e, muitas vezes, quando se referia a conceitos como acumulação primitiva, ele estava discutindo o trabalho de outras pessoas, incluindo Adam Smith. Às vezes, você verá termos como “o assim chamada” associados ao termo acumulação primitiva. Portanto, também há debate sobre se Marx realmente deu tanta primazia e importância a esse termo desde o início.
Mas a leitura alternativa da acumulação primitiva seria dizer que Marx não pretendia realmente delinear isso como uma espécie de estágio histórico, após o qual o capitalismo deveria funcionar de forma fluida e perfeita, de maneira limpa, sem recorrer à violência. E que essa dinâmica secundária, em que se tem que recorrer à força e à expropriação de alguma forma, é ainda presente.
Portanto, não terminou séculos atrás, continua conosco. Talvez seja menos visível. Talvez não o reconheçamos como capitalismo propriamente dito. Mas está lá e essencialmente se tornou o contraponto central, por assim dizer, à dinâmica de acumulação amplamente reconhecível e impulsionada pela exploração.
DD
Pelo que entendi, tendo passado algum tempo nesse universo como turista, em vez de residente em tempo integral, o debate é basicamente o seguinte. Alguns interpretam Marx como afirmando que, antes de o capitalismo adquirir essa dinâmica inovadora em que a competição obriga os capitalistas a reduzir custos e inventar coisas novas, os capitalistas precisam passar por um processo inicial de acumulação de capital muito mais bagunçado e violento.
Isso requer um conjunto diferente de ferramentas, técnicas e meios, por assim dizer. E isso era meio que feudalismo. Se não levasse a essa dinâmica de acumulação muito mais limpa, sistemática e inovadora, que não precisa ser violenta, você nem o reconheceria em relação ao feudalismo.
Essencialmente, acontece um milagre. Quero dizer, é claro que os marxistas podem explicar como exatamente isso acontece, mas é essencialmente uma história de um milagre em que as dinâmicas feudais tradicionais sangrentas e violentas eventualmente dão origem a essa acumulação apropriada, não primitiva e muito mais sofisticada.
Podemos pensar em cercamentos de terras e propriedades. Isso inicialmente é muito violento, e há muitas pessoas insatisfeitas com isso. Mas eventualmente todos aceitam isso. E começa a haver, em alguns casos, atores de mercado negociando os direitos sobre a terra, os meios de produção, as ideias, e tudo se torna uma mercadoria de alguma forma. E sabemos que as mercadorias são negociadas no mercado, e é tudo muito limpo e apropriado.
Devo dizer que, é claro, Marx escreveu sobre essas coisas em alemão e, muitas vezes, quando se referia a conceitos como acumulação primitiva, ele estava discutindo o trabalho de outras pessoas, incluindo Adam Smith. Às vezes, você verá termos como “o assim chamada” associados ao termo acumulação primitiva. Portanto, também há debate sobre se Marx realmente deu tanta primazia e importância a esse termo desde o início.
Mas a leitura alternativa da acumulação primitiva seria dizer que Marx não pretendia realmente delinear isso como uma espécie de estágio histórico, após o qual o capitalismo deveria funcionar de forma fluida e perfeita, de maneira limpa, sem recorrer à violência. E que essa dinâmica secundária, em que se tem que recorrer à força e à expropriação de alguma forma, é ainda presente.
Portanto, não terminou séculos atrás, continua conosco. Talvez seja menos visível. Talvez não o reconheçamos como capitalismo propriamente dito. Mas está lá e essencialmente se tornou o contraponto central, por assim dizer, à dinâmica de acumulação amplamente reconhecível e impulsionada pela exploração.
DD
Vou destacar as duas citações de Marx que, embora não sejam necessariamente contraditórias, apontam em direções interpretativas diferentes. Por um lado, ele escreveu:
A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva.
Mas, por outro lado, ele escreveu: “Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo”. Isso sugere uma relação mais permanente entre expropriação na periferia e exploração no centro. E você pode fazer disso não apenas uma questão de centro global versus periferia, mas também pode mapear isso em vários níveis e escalas de centro e periferia, seja dentro de uma nação ou dentro de uma área metropolitana.
EM
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Alguns pensadores, como David Harvey, introduzem ainda outro ator na cena, por assim dizer. E eles apontam para o neoliberalismo, que eles então definem como algo marcado pelo surgimento da “acumulação por desapropriação”. Para Harvey, em certa medida, é uma maneira elegante e radical de dizer que uma acumulação primitiva está em curso. Mas, tendo lido muito bem o seu Marx, ele compreende que a dinâmica primária do capitalismo é a da inovação. Sejam quais forem seus custos, a inovação está presente, e a maioria dos marxistas reconhecerá isso como tal.
O neoliberalismo é um conceito bastante impreciso que você nunca encontra nas obras de Marx. Como tal, ele acaba desempenhando essa função muito interessante, que permite a muitos acadêmicos e seguidores de Harvey reconhecer esssa dinâmica redistributiva dentro do sistema capitalista, na qual os pobres têm seu dinheiro, recursos ou renda canalizados para os ricos, mas não por meio da exploração. Isso ocorre por outros meios. Acontece por meio do arrendamento, austeridade, propriedade intelectual. Se você ler alguns dos primeiros livros de Harvey, ele fornece longas listas de todas as técnicas de ganhar dinheiro no mundo na época, muitas das quais não dependem da exploração clássica do trabalho e das condições do trabalho assalariado em alguma fábrica.
Acredito que isso permite que muitos acadêmicos operem e falem sobre o capitalismo e algumas das dinâmicas perversas que eles veem nele – principalmente a partir da perspectiva do Norte Global, porque o Sul Global tem sua própria maneira de explicar isso por meio da teoria da dependência e de estruturas similares. Portanto, existem certas correntes da academia marxista e neo-marxista no Norte Global que explicam isso essencialmente sem precisar recorrer a termos como neo-feudalismo ou tecnofeudalismo, porque o neoliberalismo desempenha essa função.
Essencialmente, você pode atribuir toda a falta de dinamismo e inovação que normalmente se associaria a um sistema capitalista ao neoliberalismo. É um argumento bizarro, mas também não é bizarro, porque, em última análise, faz o que Marx faz em seu próprio trabalho: presta elogios ocultos ao capitalismo como um sistema extremamente dinâmico que revoluciona as relações sociais e gera inovação, mas não consegue levá-la ao próximo nível, que requer um modo de produção diferente, ou seja, o socialismo.
Ao atribuir toda essa culpa ao neoliberalismo, isso meio que cria a ilusão de que, uma vez que entremos em uma era pós-neoliberal de algum tipo, talvez possamos recuperar o capitalismo e, a partir daí, também avançar para o socialismo.
Não acredito que muitas pessoas que usam o termo em relação à desapropriação vejam necessariamente essas implicações. Mas se você quiser ser teórico e logicamente coerente, acredito que deve reconhecer que, essencialmente, está aderindo a uma visão relativamente benevolente do capitalismo como um sistema social progressista e inovador que encontra certos limites devido às relações de classe.
DD
Essa ênfase no que há de novo no capitalismo acabou ofuscando o que há de igual no capitalismo. E, por isso, ouvimos muito mais sobre neoliberalismo do que simplesmente sobre o capitalismo puro e simples.
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É muito útil pensar nessa questão mantendo em mente o Sul Global e essa pré-história da teoria da dependência e do estruturalismo. Se você realmente incluir esses elementos em seu mapa intelectual, a explicação do neoliberalismo apresentada por Harvey – que começou em Nova York na crise fiscal e ampliada para o Chile e outros lugares — torna-se extremamente difícil de ser concordância com que economistas latino-americanos já apontavam para dinâmicas de redistribuição e desapropriação dentista no sistema capitalista global nos anos 1950 e 1960, muito antes da chegada dos Chicago Boys ao Chile e do início do neoliberalismo.
A razão pela qual eles precisam chegar ao Chile é porque Salvador Allende quer tirar o país do caminho em que ele está, mas esse caminho é o do capitalismo, não o do neoliberalismo. E é no próprio capitalismo, a partir da perspectiva do Sul Global, que você encontra essas dinâmicas muito bizarras e peculiares que não podem ser descritas apenas usando a filosofia marxista da história e os modos de produção.
DD
A razão pela qual eles precisam chegar ao Chile é porque Salvador Allende quer tirar o país do caminho em que ele está, mas esse caminho é o do capitalismo, não o do neoliberalismo. E é no próprio capitalismo, a partir da perspectiva do Sul Global, que você encontra essas dinâmicas muito bizarras e peculiares que não podem ser descritas apenas usando a filosofia marxista da história e os modos de produção.
DD
Você argumenta que quando os acadêmicos não levam em consideração as perspectivas dos teóricos dos sistemas mundiais, por exemplo, e não deixam espaço suficiente para a acumulação primitiva ou expropriação em sua definição de capitalismo, isso deixa esses analistas vulneráveis — diante do uso audacioso do poder estatal após a crise financeira de 2008, ou novamente durante a pandemia, para redistribuir riqueza para a classe capitalista e estabilizar o sistema — a acreditar que não vivemos mais sob o capitalismo.
E você argumenta que, ao fazer isso, Brenner ironicamente convergiu com a análise de Harvey da acumulação por desapropriação como a forma dominante de acumulação capitalista. Isso é irônico, você escreve, porque Brenner era inicialmente um crítico ferrenho de Harvey, precisamente com base no argumento de que Harvey enfatizava demais a expropriação em detrimento da exploração como meio de garantir o mais-valor no capitalismo.
EM
E você argumenta que, ao fazer isso, Brenner ironicamente convergiu com a análise de Harvey da acumulação por desapropriação como a forma dominante de acumulação capitalista. Isso é irônico, você escreve, porque Brenner era inicialmente um crítico ferrenho de Harvey, precisamente com base no argumento de que Harvey enfatizava demais a expropriação em detrimento da exploração como meio de garantir o mais-valor no capitalismo.
EM
Brenner escreveu uma crítica muito severa de um dos livros de Harvey sobre o imperialismo, na qual ele afirmou que um conceito como a acumulação por desapropriação faz muito pouco sentido. Mas diante das evidências que Brenner mesmo examina em relação à economia dos Estados Unidos, é muito difícil para ele chegar a uma conclusão diferente de que essa dinâmica de inovação não é vista na mesma extensão que se veria na Inglaterra do século XVII, por exemplo.
No entanto, novamente, grande parte disso advém de uma visão muito parcial do mercado e uma visão muito parcial do que constitui a inovação e qual papel as empresas de tecnologia, gigantes da tecnologia e plataformas digitais desempenham nisso tudo.
É possível analisar os números absolutos de investimento. Existem maneiras de mensurar o quanto de capital está sendo investido em bens de capital e o quanto é simplesmente consumido em bens de luxo. E existem diversas formas de fazer uma estimativa do que os capitalistas pensam sobre o futuro e quão propensos permanecem capitalistas.
Com base nisso, é possível realizar certas suposições e projeções. No entanto, eu argumento que esse debate, conforme conduzido no Norte Global, perdeu de vista a tecnologia, o que não era de forma alguma o caso com a teoria da dependência e o estruturalismo.
Devido às suas necessidades peculiares de industrialização, eles sabiam que se estivessem comprando um trator avançado ou equipamentos de mineração avançados dos Estados Unidos, teriam que pagar taxas pelo uso. Não seria possível simplesmente construí-los internamente, pois teriam que pagar taxas de royalties e por marcas comerciais. Portanto, a tecnologia estava muito presente nas mentes das pessoas que teorizavam sobre essas questões do Sul Global. Mas não no Norte Global, tornando muito difícil compreender o que o Google, o Facebook e a Amazon estão fazendo.
Tecnologia, capitalismo e futuros alternativos
No entanto, novamente, grande parte disso advém de uma visão muito parcial do mercado e uma visão muito parcial do que constitui a inovação e qual papel as empresas de tecnologia, gigantes da tecnologia e plataformas digitais desempenham nisso tudo.
É possível analisar os números absolutos de investimento. Existem maneiras de mensurar o quanto de capital está sendo investido em bens de capital e o quanto é simplesmente consumido em bens de luxo. E existem diversas formas de fazer uma estimativa do que os capitalistas pensam sobre o futuro e quão propensos permanecem capitalistas.
Com base nisso, é possível realizar certas suposições e projeções. No entanto, eu argumento que esse debate, conforme conduzido no Norte Global, perdeu de vista a tecnologia, o que não era de forma alguma o caso com a teoria da dependência e o estruturalismo.
Devido às suas necessidades peculiares de industrialização, eles sabiam que se estivessem comprando um trator avançado ou equipamentos de mineração avançados dos Estados Unidos, teriam que pagar taxas pelo uso. Não seria possível simplesmente construí-los internamente, pois teriam que pagar taxas de royalties e por marcas comerciais. Portanto, a tecnologia estava muito presente nas mentes das pessoas que teorizavam sobre essas questões do Sul Global. Mas não no Norte Global, tornando muito difícil compreender o que o Google, o Facebook e a Amazon estão fazendo.
Tecnologia, capitalismo e futuros alternativos
DD
Grande parte da literatura sobre o debate do capitalismo atual e o papel da tecnologia se concentra especificamente nos rendimentos extraídos pelas novas conglomeradas de tecnologia. No entanto, as empresas de tecnologia também gastam muito dinheiro em pesquisa e desenvolvimento, que são formas clássicas de investimento que indicam que estão se comportando como empresas capitalistas típicas. Você escreve que se as gigantes de tecnologia:
Realmente são rentistas preguiçosos que estão explorando os direitos de propriedade intelectual e os efeitos de rede para enganar a todos, por que elas investem tanto dinheiro naquilo que só pode ser descrito como produção de algum tipo? Que tipo de rentistas faz isso? Os gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D) da Alphabet em 2017, 2018, 2019 e 2020 foram de US$ 16,6 bilhões, US$ 21,4 bilhões, US$ 26 bilhões e US$ 27,5 bilhões, respectivamente. Isso não conta como “mexer um dedo”?
Além disso, você observa que a Amazon sozinha emprega mais pessoas do que toda a indústria de construção residencial dos Estados Unidos. Você observa que o Google, a Amazon e o Facebook requerem uma vasta infraestrutura física.
Como toda essa materialidade tradicional fica mistificada? Por que é importante entender o Google não apenas, ou mesmo principalmente, como um proprietário de terras, mas sim como uma empresa capitalista tradicional? E por que os teóricos do neo-feudalismo, ao olharem para alguns desses orçamentos de P&D ou para essa vasta infraestrutura física, ficam tão indiferentes?
EM
Eu não acredito que haja uma abordagem muito forte da empresa ou da corporação na teoria marxista tradicional. Quero dizer, o marxismo não se propõe a ser uma teoria da empresa e não fornece um conjunto de critérios para diferenciar algumas empresas que são capitalistas de outros atores que são feudais.
Para Marx e o marxismo, o foco é a unidade de análise, o capital, uma relação social. Não se trata necessariamente dessa empresa ou daquela empresa. Portanto, até mesmo falar de empresas como feudais ou capitalistas na tradição ortodoxa é um pouco estranho.
A maioria das atribuições que acontecem atualmente parte da identificação do modo de produção dominante, que seria o capitalista ou o feudal. A partir daí, faz-se a atribuição e afirma-se que os principais atores desse modo de produção não têm outra escolha senão serem feudais, no caso do feudalismo, ou capitalistas, no caso do capitalismo.
Se partirmos de uma caracterização vulgar e banal da era atual como tecnofeudal, então, é claro que devemos assumir que suas principais vozes, atores ou facilitadores devem ser de alguma forma feudais.
E quais são as conclusões que podem ser tiradas disso? Que algumas pessoas e empresas conseguiram se apropriar de uma parte importante do conhecimento geral para si mesmas. Elas conseguiram estabelecer algum tipo de cerco informacional em torno dele, agindo como um monopólio. E estão apenas descansando sobre os louros. Não estão investindo em nada. Estão lá apenas pelos rendimentos.
Uma das coisas que tento fazer no meu ensaio é apresentar os números e o comportamento das empresas como empresas. Se olharmos para o setor de tecnologia, ele simplesmente não se encaixa no estereótipo que se esperaria dos principais representantes dessa nova economia feudal. Eles se parecem muito mais com representantes do capitalismo.
Existe, é claro, uma versão menos vulgar do argumento tecnofeudalista: a versão de Cédric Durand, o economista e pensador marxista francês, que tem uma visão mais matizada sobre o assunto. Ele não concorda com esse tipo vulgar de equação entre o modo de produção e as empresas.
Durand quase chega a um ponto intermediário em que as empresas podem ser meio capitalistas e investir e expandir e ter todos os tipos de comportamentos associados à empresa capitalista típica, mas, ao mesmo tempo, o resultado líquido das atividades na economia é em certa medida equivalente ao que se esperaria de atores feudais ou de uma economia feudal. Portanto, essencialmente, é uma taxa enorme sobre a inovação, e no geral, a dinâmica não favorece o tipo de acumulação inovadora que teóricos como Brenner associavam ao capitalismo.
DD
Por que as pessoas veem rentismo em todos os lugares e depois afirmam que isso é o fim do capitalismo? Por que a monopolização, que leva a um declínio ou, em alguns casos, à eliminação da concorrência, é considerada algo novo no capitalismo? O monopólio, é claro, tem uma longa história no capitalismo. Lenin e outros identificaram famosamente o capital monopolista como o responsável pela Primeira Guerra Mundial.
EM
Eu não acredito que necessariamente o argumento deles seja que é algo novo. Mas acredito que a razão pela qual o argumento é tão popular está relacionada ao fato de que, no fim das contas, é uma crítica moral. Curiosamente, é uma crítica que normalmente esperaríamos ver vindo da direita em vez da esquerda, pois basicamente diz a esses antigos capitalistas que eles precisam trabalhar mais, que precisam parar de descansar nos louros e se tornarem os bons e velhos capitalistas que costumavam ser.
Eu entendo essa crítica vinda da direita neoliberal e das pessoas que amam o capitalismo, mas é uma posição muito estranha para a esquerda adotar. E minha intuição é que grande parte disso mascara a incapacidade de realmente compreender o capitalismo contemporâneo e de fazer propostas em termos do que a agenda real da esquerda deveria ser para um sistema diferente, para um modo de produção diferente, para sociedades diferentes.
Então acabamos essencialmente dizendo que talvez possamos reconstruir algum tipo de capitalismo de bem-estar que tivemos no passado e apenas precisamos garantir que os capitalistas voltem a ser os atores responsáveis que eram antigamente. E talvez, uma vez que conseguirmos isso, realmente voltaremos aos bons e velhos tempos.
DD
Eu entendo essa crítica vinda da direita neoliberal e das pessoas que amam o capitalismo, mas é uma posição muito estranha para a esquerda adotar. E minha intuição é que grande parte disso mascara a incapacidade de realmente compreender o capitalismo contemporâneo e de fazer propostas em termos do que a agenda real da esquerda deveria ser para um sistema diferente, para um modo de produção diferente, para sociedades diferentes.
Então acabamos essencialmente dizendo que talvez possamos reconstruir algum tipo de capitalismo de bem-estar que tivemos no passado e apenas precisamos garantir que os capitalistas voltem a ser os atores responsáveis que eram antigamente. E talvez, uma vez que conseguirmos isso, realmente voltaremos aos bons e velhos tempos.
DD
O argumento neo-feudalista de esquerda que você leva mais a sério, como mencionou anteriormente, é o apresentado por Durand. Você discorda de Durand quando ele afirma que o capitalismo mudou de maneiras importantes ao longo do último meio século de neoliberalismo e financeirização? Ou você simplesmente discorda de seu argumento de que essas mudanças significam que não estamos mais vivendo sob o capitalismo?
EM
EM
Antes de começar, deixe-me tentar oferecer minha crítica a essa obsessão mais ortodoxa marxista com a produção e garantir que a produção ocorra a todo custo, canalizando finanças, tecnologia e tudo mais para isso. Eu acredito que o marxismo, como corpo de pensamento, tem um certo viés de fábrica, e isso tem a ver com as condições em que o marxismo foi gerado.
Ele foi gerado em um determinado contexto na Inglaterra e sob certas condições. E há essa suposição quando se pensa no capitalismo como acumulação por meio da inovação, como Brenner chama, de que o único lugar onde se pode ter inovação em larga escala é dentro do processo de produção tradicional de uma fábrica. É a suposição padrão que os marxistas fazem. E então toda a questão se resume a saber se nossas fábricas e empresas capitalistas estão realmente produzindo e inovando, se nosso sistema tecnológico está apoiando-os tornando mais fácil investir em bens de capital ou fabricar bens de capital, e se nosso sistema financeiro está lá para atender às necessidades de expansão da produção e compra de novos bens de capital.
É coerente, mas apenas se você pensar que não há outra maneira possível para a inovação transformadora em larga escala ocorrer na sociedade. Isso era, de fato, o caso na Grã-Bretanha do século XVIII e XIX. Seria o caso no século XXI? Não tenho tanta certeza. E é aí que acho que até os autonomistas italianos avançaram muito além da maioria dos marxistas ortodoxos, ao apontar que muitos processos de aprendizado verdadeiramente transformadores, processos inovadores e processos de descoberta que ocorreram na sociedade surgiram de baixo para cima, da colaboração.
Há mais na vida do que apenas produzir coisas em uma fábrica.
Se você quer construir uma teoria sobre como fabricar aviões ou como curar a COVID, claramente você não dirá: “Conversando com meus amigos do bairro, vou inventar uma vacina para a COVID”. Então Marx tem um ponto para certos tipos de invenções e inovações. Mas acho que isso não deveria nos cegar completamente para que a tecnologia está aí, a inteligência artificial está aí, a computação em nuvem está aí, a computação quântica está aí.
Como seria nosso processo de criação, inovação e descoberta se assumíssemos que há mais na geração de novo conhecimento do que apenas inventá-los em ambientes de fábrica, seja ela comunista, socialista ou capitalista?
Com algumas exceções notáveis, poucos teóricos marxistas têm pensado consistentemente sobre esse problema. Eles o ignoraram, porque não tem a ver com a produção. Não tem a ver com esteiras transportadoras, fabricação de carros.
Você lê Brenner e é disso que se trata. Trata-se de carros, e trata-se de carros porque tem historicamente sido assim. Isso é o que acontece com o Japão. Isso é o que acontece com a Alemanha. Isso é o que acontece com a Coreia do Sul. E basicamente queremos garantir que possamos ter esse socialismo do século XXI construído com a indústria automobilística dos anos 1950 em mente.
Acho isso tão regressivo. Não quero dizer reacionário, mas para mim é uma oportunidade perdida. Claramente, os recursos estão lá, é apenas que não há marxistas pensando em como usá-los para algo além de fabricar carros em uma fábrica dos anos 1950.
Então, quando critico alguém como Durand, abordo isso a partir dessa perspectiva, mesmo que não a torne explícita no ensaio. Abordo em parte essa crítica de que talvez nossa teoria do socialismo como um esforço sustentado de gerar inovação de maneira diferente já esteja tão enviesada por dinâmicas capitalistas que estamos procurando nos lugares errados.
Agora, se deixarmos isso de lado, concordo, na maioria, com Durand, que houve certas mudanças na economia global nos últimos trinta ou quarenta anos que podem ter resultado em certas tendências de estagnação — em parte devido à transferência de poder para o setor financeiro, em parte porque o setor financeiro não tem o mesmo incentivo para se engajar na acumulação favorável à inovação que uma teoria do capitalismo industrial sugere. Concordo muito com tudo isso.
A razão pela qual achei que valia a pena trazer a análise de Durand sobre a indústria financeira global e a economia global do ponto de vista financeiro para o debate é porque sua análise da indústria digital e do Vale do Silício essencialmente parece ser uma extensão e replicação do argumento neo-feudalista, mas agora ele está olhando para plataformas digitais e não para o setor financeiro.
E há muito pouco que ele vê em termos dessa dinâmica de inovação amigável redentora. Mas ele meio que reconhece o que é possível na esfera financeira quando nos voltamos para a tecnologia. Em geral, a situação é sombria. É realmente uma forma de feudalismo completa.
DD
Onde a visão de Brenner se encaixa aqui, de que a “estagnação de longo prazo da economia dos Estados Unidos em condições de excesso de capacidade global na manufatura levou elementos poderosos da classe dominante americana a abandonarem seu interesse em investimento produtivo e voltarem-se, em vez disso, para a redistribuição ascendente da riqueza por meios políticos”.
Você mencionou que simpatiza com o argumento de Durand em relação à estagnação. Você concorda que a raiz dessa estagnação é em parte algum tipo de sobrecapacidade global na manufatura?
EM
Você mencionou que simpatiza com o argumento de Durand em relação à estagnação. Você concorda que a raiz dessa estagnação é em parte algum tipo de sobrecapacidade global na manufatura?
EM
Acredito que essas explicações não são mutuamente excludentes. Assim, você tem a abordagem brenneriana enfatizando a sobrecapacidade e todas as crises que ocorrem devido às dinâmicas estruturais incorporadas na economia global. Sempre há um novo desafiante que chega e torna seus investimentos em capacidade produtiva obsoletos, pois ele consegue produzir mais barato. Isso é uma característica interna da economia capitalista para Brenner.
Você pode conciliá-la com uma abordagem mais histórica dos últimos trinta, quarenta ou cinquenta anos e argumentar que é uma característica histórica do sistema capitalista, como argumenta Joanna Regier. É apenas que passamos por ciclos longos, e leva trezentos anos para que essa fase de financeirização se estabilize. E é inevitável, assim como é inevitável que sua capacidade de fabricação de carros se torne obsoleta quando seu vizinho a desenvolve com tecnologias melhores e mais baratas.
Então você pode conciliar as duas explicações. Em defesa de Brenner e das pessoas que seguem sua abordagem, pode-se ver que ele está tentando explicar as leis de movimento, como ele colocaria, do sistema capitalista. E tudo isso está correto em certa medida. Algumas pessoas argumentam até que ele não leva suficientemente em conta o trabalho e como o trabalho contesta tudo isso e se desloca além das fronteiras para produzir de maneira mais barata, rápida e eficiente. Mas esse não é o problema que identifico em minha abordagem.
Meu problema com essa visão é que você pode ser um analista fantástico de todas essas decisões de realocar capital além das fronteiras em busca de oportunidades de investimento mais eficientes e lucrativas, e mesmo assim isso não lhe daria uma boa ideia de como outro sistema e outro modo de produção deveriam ser, além de apenas dizer: “Bem, agora vamos administrar nossa indústria global de carros sob o socialismo de maneira mais eficiente e racional”. Porque para muitos socialistas e marxistas, isso é o que se quer.
Queremos garantir que tudo seja administrado de uma maneira menos turbulenta, e garantir menos turbulência por meio de um planejamento para uma alocação racional de recursos.
Não estou dizendo que isso é tudo o que se segue de Brenner. Mas como horizonte, isso me parece muito limitado e talvez nem seja o que deveríamos estar insistindo. É ótimo como uma análise da conjuntura contemporânea.
Não nego isso de forma alguma. Mas simplesmente não empolga, e não empolga precisamente porque não há espaço para a tecnologia da informação além desse papel de apoio na fabricação de carros, ou carros voadores, ou qualquer que seja a próxima grande novidade.
Enquanto você não puder imaginar uma maneira de gerar criatividade, inovação e descoberta a partir das coisas do cotidiano e não apenas do trabalho na fábrica, acredito que você não está fazendo o marxismo e o socialismo corretamente.
Sei que muitos marxistas discordariam de mim e diriam que isso é apenas um pensamento frívolo sobre castelos no ar. Mas, infelizmente, acho que ainda não estou totalmente convencido de que garantir que nossa produção de carros socialistas seja mais eficiente do que sob o capitalismo, seja necessariamente uma boa aplicação de nossos recursos cognitivos e políticos.
DD
Você pode conciliá-la com uma abordagem mais histórica dos últimos trinta, quarenta ou cinquenta anos e argumentar que é uma característica histórica do sistema capitalista, como argumenta Joanna Regier. É apenas que passamos por ciclos longos, e leva trezentos anos para que essa fase de financeirização se estabilize. E é inevitável, assim como é inevitável que sua capacidade de fabricação de carros se torne obsoleta quando seu vizinho a desenvolve com tecnologias melhores e mais baratas.
Então você pode conciliar as duas explicações. Em defesa de Brenner e das pessoas que seguem sua abordagem, pode-se ver que ele está tentando explicar as leis de movimento, como ele colocaria, do sistema capitalista. E tudo isso está correto em certa medida. Algumas pessoas argumentam até que ele não leva suficientemente em conta o trabalho e como o trabalho contesta tudo isso e se desloca além das fronteiras para produzir de maneira mais barata, rápida e eficiente. Mas esse não é o problema que identifico em minha abordagem.
Meu problema com essa visão é que você pode ser um analista fantástico de todas essas decisões de realocar capital além das fronteiras em busca de oportunidades de investimento mais eficientes e lucrativas, e mesmo assim isso não lhe daria uma boa ideia de como outro sistema e outro modo de produção deveriam ser, além de apenas dizer: “Bem, agora vamos administrar nossa indústria global de carros sob o socialismo de maneira mais eficiente e racional”. Porque para muitos socialistas e marxistas, isso é o que se quer.
Queremos garantir que tudo seja administrado de uma maneira menos turbulenta, e garantir menos turbulência por meio de um planejamento para uma alocação racional de recursos.
Não estou dizendo que isso é tudo o que se segue de Brenner. Mas como horizonte, isso me parece muito limitado e talvez nem seja o que deveríamos estar insistindo. É ótimo como uma análise da conjuntura contemporânea.
Não nego isso de forma alguma. Mas simplesmente não empolga, e não empolga precisamente porque não há espaço para a tecnologia da informação além desse papel de apoio na fabricação de carros, ou carros voadores, ou qualquer que seja a próxima grande novidade.
Enquanto você não puder imaginar uma maneira de gerar criatividade, inovação e descoberta a partir das coisas do cotidiano e não apenas do trabalho na fábrica, acredito que você não está fazendo o marxismo e o socialismo corretamente.
Sei que muitos marxistas discordariam de mim e diriam que isso é apenas um pensamento frívolo sobre castelos no ar. Mas, infelizmente, acho que ainda não estou totalmente convencido de que garantir que nossa produção de carros socialistas seja mais eficiente do que sob o capitalismo, seja necessariamente uma boa aplicação de nossos recursos cognitivos e políticos.
DD
Você escreve que finalmente precisamos resolver o debate de Brenner e, para fazê-lo, precisamos teorizar o capitalismo de modo que formas de desapropriação, expropriação e renda não sejam apenas coisas excepcionais ao capitalismo, mas sim centrais para sua real operação histórica.
Você escreve que Fraser tem uma das melhores resoluções a oferecer e, também, que Jason Moore, um estudante de Wallerstein e Arrighi, ... pode ter formulado o novo consenso quando escreveu que “o capitalismo prospera quando ilhas de produção e troca de mercadorias podem apropriar oceanos de naturezas potencialmente baratas — fora do circuito do capital, mas essenciais para sua operação”. Isso vale, é claro, não apenas para Naturezas Baratas — existem muitas outras atividades e processos apropriáveis – então esses “oceanos” são mais amplos do que Moore sugere.
Por que é que analisar a relação entre o capitalismo e a natureza, em particular, fornece uma ferramenta tão poderosa para entender o sistema em sua totalidade e descobrir o que fazer a respeito?
EM
Você escreve que Fraser tem uma das melhores resoluções a oferecer e, também, que Jason Moore, um estudante de Wallerstein e Arrighi, ... pode ter formulado o novo consenso quando escreveu que “o capitalismo prospera quando ilhas de produção e troca de mercadorias podem apropriar oceanos de naturezas potencialmente baratas — fora do circuito do capital, mas essenciais para sua operação”. Isso vale, é claro, não apenas para Naturezas Baratas — existem muitas outras atividades e processos apropriáveis – então esses “oceanos” são mais amplos do que Moore sugere.
Por que é que analisar a relação entre o capitalismo e a natureza, em particular, fornece uma ferramenta tão poderosa para entender o sistema em sua totalidade e descobrir o que fazer a respeito?
EM
No fim das contas, aqui está a batalha para definir o que o capitalismo é e quão extensiva, histórica e massiva a definição pode ser. E como subproduto dessa missão, também temos que começar a fazer perguntas como: Por que estamos fazendo esse exercício? É porque esperamos alguma mudança e intervenção concretas e específicas surgirem? Talvez novas configurações de atores sociais, talvez novas interpretações de inovação? Ou queremos isso para podermos empregar os blocos, forças e teorias mais antigas de maneira mais eficaz, mas contra novos alvos?
Acredito que essa é uma tensão não resolvida dentro do marxismo ou da esquerda em geral. Em última análise, diante das lutas de diversos movimentos sociais e do fato da catástrofe climática, estamos prestando mais atenção às vozes intelectuais provenientes do Sul Global. Estamos começando a entender que talvez seus problemas precisem ser compreendidos com estruturas que vão além e transcendem as estruturas marxistas convencionais sem abandoná-las, mas talvez as misturando com algo mais.
Acredito que a agregação de todos esses fatores tornou a posição mais ortodoxa de Brenner muito difícil de ser defendida. Porque basicamente impede que você busque as alianças necessárias e compreenda o que está acontecendo em partes do mundo que você não considerou integrar em suas lutas anteriormente.
Isso impede que você faça isso e impede que você faça novos tipos de reivindicações sobre injustiça social e desapropriação. Impede que você tenha uma explicação histórica adequada de como o capitalismo se desenvolveu de maneira diferente em diferentes partes do mundo e como essas diferenças e a exploração dessas diferenças foram realmente constitutivas do atual sistema mundial.
Sem ter essa visão mais rica do sistema mundial e da economia global, como devemos fazer uma avaliação adequada da força progressista ou reacionária dos empreendedores de tecnologia? Eles são os arautos do progresso ou são os arautos da reação? Quem são essas pessoas? Você não pode responder a essas perguntas apenas no contexto nacional. Você precisa do contexto histórico internacional para isso e precisa entender todas as interconexões com o setor digital, energia, matérias-primas, extrativismo de todos os tipos de alimentos e assim por diante.
Acredito que está claro que não vamos resolver o debate de Brenner de uma maneira que nos dê um quadro limpo e analiticamente eficiente quanto o de Brenner. Claramente, isso não era o que Wallerstein e outros estavam buscando, e é por isso que eles definem seu próprio sistema como capitalismo histórico, independentemente das objeções tradicionais de Brenner contra essa visão serem válidas. Brenner, apenas para lembrar os ouvintes que talvez não tenham lido essas discussões dos anos 1970, acusou Wallerstein de se envolver em perversões neo-smithianas.
No final das contas, será que importa para as pessoas que se preocupam com a emancipação do Sul Global, com os movimentos sociais de reversão do extrativismo, se estamos nos apoiando em estruturas que nos dão uma compreensão precisa do que está acontecendo, ou se permanecemos puros e fiéis a uma que não o faz? Não estou convencido de que vencer debates teóricos por meio da pureza seja de grande importância.
O fato de continuarmos impondo fronteiras rígidas sobre o que é considerado de esquerda, para não mencionar o que é considerado marxismo, me parece um pouco improdutivo. Natural e logicamente, parece-me que devemos deixar essas mil flores florescerem. A questão é se devemos derivar uma única teoria disso. E odeio parecer muito pessimista, mas não tenho certeza de que uma nova teoria resolverá nossos problemas.
Colaboradores
Acredito que essa é uma tensão não resolvida dentro do marxismo ou da esquerda em geral. Em última análise, diante das lutas de diversos movimentos sociais e do fato da catástrofe climática, estamos prestando mais atenção às vozes intelectuais provenientes do Sul Global. Estamos começando a entender que talvez seus problemas precisem ser compreendidos com estruturas que vão além e transcendem as estruturas marxistas convencionais sem abandoná-las, mas talvez as misturando com algo mais.
Acredito que a agregação de todos esses fatores tornou a posição mais ortodoxa de Brenner muito difícil de ser defendida. Porque basicamente impede que você busque as alianças necessárias e compreenda o que está acontecendo em partes do mundo que você não considerou integrar em suas lutas anteriormente.
Isso impede que você faça isso e impede que você faça novos tipos de reivindicações sobre injustiça social e desapropriação. Impede que você tenha uma explicação histórica adequada de como o capitalismo se desenvolveu de maneira diferente em diferentes partes do mundo e como essas diferenças e a exploração dessas diferenças foram realmente constitutivas do atual sistema mundial.
Sem ter essa visão mais rica do sistema mundial e da economia global, como devemos fazer uma avaliação adequada da força progressista ou reacionária dos empreendedores de tecnologia? Eles são os arautos do progresso ou são os arautos da reação? Quem são essas pessoas? Você não pode responder a essas perguntas apenas no contexto nacional. Você precisa do contexto histórico internacional para isso e precisa entender todas as interconexões com o setor digital, energia, matérias-primas, extrativismo de todos os tipos de alimentos e assim por diante.
Acredito que está claro que não vamos resolver o debate de Brenner de uma maneira que nos dê um quadro limpo e analiticamente eficiente quanto o de Brenner. Claramente, isso não era o que Wallerstein e outros estavam buscando, e é por isso que eles definem seu próprio sistema como capitalismo histórico, independentemente das objeções tradicionais de Brenner contra essa visão serem válidas. Brenner, apenas para lembrar os ouvintes que talvez não tenham lido essas discussões dos anos 1970, acusou Wallerstein de se envolver em perversões neo-smithianas.
No final das contas, será que importa para as pessoas que se preocupam com a emancipação do Sul Global, com os movimentos sociais de reversão do extrativismo, se estamos nos apoiando em estruturas que nos dão uma compreensão precisa do que está acontecendo, ou se permanecemos puros e fiéis a uma que não o faz? Não estou convencido de que vencer debates teóricos por meio da pureza seja de grande importância.
O fato de continuarmos impondo fronteiras rígidas sobre o que é considerado de esquerda, para não mencionar o que é considerado marxismo, me parece um pouco improdutivo. Natural e logicamente, parece-me que devemos deixar essas mil flores florescerem. A questão é se devemos derivar uma única teoria disso. E odeio parecer muito pessimista, mas não tenho certeza de que uma nova teoria resolverá nossos problemas.
Colaboradores
Evgeny Morozov é um escritor, pesquisador e intelectual americano da Bielo-Rússia.
Daniel Denvir é autor de All-American Nativism e apresentador de The Dig na Jacobin Radio.
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