Lucas Iberico Lozada
Rico em palavras e referências das culturas indígenas e afro-brasileiras, o romance modernista foi aclamado como um clássico quando foi publicado em 1928 e há muito é visto como uma alegoria da mistura cultural única do Brasil. Confrontado com as críticas à confiança não creditada do livro na investigação antropológica, Andrade ofereceu, em uma carta aberta, uma resposta tipicamente despreocupada: "Eu copiei o Brasil".
Alguns estudiosos consideraram a complexidade do livro praticamente intraduzível - mas esta semana, a New Directions publicou uma nova tradução de "Macunaíma", de Katrina Dodson, que visa transportar a prosa idiossincrática de Andrade para o inglês.
Ao longo de seis anos de pesquisa, Dodson se familiarizou com todos os aspectos do romance. Ela perseguiu flora e fauna obscuras em duas viagens à Amazônia, percorreu uma série de comentários críticos, mergulhou nos arquivos de Mário de Andrade em São Paulo e discutiu a relevância contínua do livro com os brasileiros contemporâneos. Embora ela tenha descoberto que para alguns leitores o livro continua a representar o espírito nacional “infinito e inacabado” do Brasil, ela também conheceu muitos artistas afro-brasileiros e indígenas que se propuseram a recuperar as raízes folclóricas nas quais Mário de Andrade se baseou.
Inspirada por sua pesquisa, Dodson espera que sua nova tradução enfatize o quão profundamente pessoal e multifacetado o conceito de Brasil era para Mário de Andrade.
"Mário de Andrade era gay, mas muito fechado e também muito conflituoso sobre sua identidade racial", disse ela. "Ele tinha herança africana em ambos os lados. Depois de saber mais sobre ele e mais sobre o contexto de como ele escreveu este livro, você entenderá que há muitas questões sinceras e sérias no cerne dele."
O romance "Macunaíma: O herói sem nenhum caráter", de Mário de Andrade, segue um trapaceiro que muda de forma, desrespeita as regras e muda de raça enquanto ele percorre a vasta nação do Brasil, encontrando personagens históricos, figuras folclóricas e estereótipos escandalosamente satirizados ao longo do caminho .
Rico em palavras e referências das culturas indígenas e afro-brasileiras, o romance modernista foi aclamado como um clássico quando foi publicado em 1928 e há muito é visto como uma alegoria da mistura cultural única do Brasil. Confrontado com as críticas à confiança não creditada do livro na investigação antropológica, Andrade ofereceu, em uma carta aberta, uma resposta tipicamente despreocupada: "Eu copiei o Brasil".
Alguns estudiosos consideraram a complexidade do livro praticamente intraduzível - mas esta semana, a New Directions publicou uma nova tradução de "Macunaíma", de Katrina Dodson, que visa transportar a prosa idiossincrática de Andrade para o inglês.
Ao longo de seis anos de pesquisa, Dodson se familiarizou com todos os aspectos do romance. Ela perseguiu flora e fauna obscuras em duas viagens à Amazônia, percorreu uma série de comentários críticos, mergulhou nos arquivos de Mário de Andrade em São Paulo e discutiu a relevância contínua do livro com os brasileiros contemporâneos. Embora ela tenha descoberto que para alguns leitores o livro continua a representar o espírito nacional “infinito e inacabado” do Brasil, ela também conheceu muitos artistas afro-brasileiros e indígenas que se propuseram a recuperar as raízes folclóricas nas quais Mário de Andrade se baseou.
Inspirada por sua pesquisa, Dodson espera que sua nova tradução enfatize o quão profundamente pessoal e multifacetado o conceito de Brasil era para Mário de Andrade.
"Mário de Andrade era gay, mas muito fechado e também muito conflituoso sobre sua identidade racial", disse ela. "Ele tinha herança africana em ambos os lados. Depois de saber mais sobre ele e mais sobre o contexto de como ele escreveu este livro, você entenderá que há muitas questões sinceras e sérias no cerne dele."
A noção de que o livro e seu personagem principal são um substituto do país e de seu “amálgama de diferentes raças e etnias” ajudou a estabelecer “Macunaíma” como um romance canônico, lido em todas as salas de aula dedicadas à literatura brasileira, disse Pedro Meira Monteiro, catedrático de Espanhol e Português da Universidade de Princeton. Mas seria um erro lê-lo como um projeto nacionalista, disse ele.
"Mário está profundamente encantado com o caráter infinito e inacabado do Brasil", disse ele, referindo-se ao autor pelo primeiro nome, com a familiaridade comum aos leitores de Mário de Andrade no Brasil.
"Ele está vendo algo que reconhece como seu e ao mesmo tempo não", disse ele. "Há um sentimento problemático de pertencimento em seu trabalho que é profundo."
Um registro mais pessoal está em plena exibição em “The Apprentice Tourist”, primeira tradução de outro livro de Mário de Andrade, de Flora Thomson-DeVeaux, também publicado esta semana pela Penguin Classics. Compilado a partir de anotações feitas por Mário de Andrade durante sua primeira viagem à Amazônia, pouco antes do lançamento de “Macunaíma”, “O Turista Aprendiz” mostra o fascínio de Mário de Andrade pelas culturas amazônicas — e seu total tédio com os governantes e as elites que acolheram o grupo de viajantes ao longo do caminho.
Mário de Andrade nasceu em São Paulo, capital industrial do país, em 1893. Matriculou-se no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo aos 11 anos para se formar como pianista concertista, aprendeu francês sozinho e se apaixonou pela poesia dos simbolistas. Aos 20 e poucos anos, ele viajava pelo Brasil, publicando poesias e ensaios sobre folclore ao longo do caminho.
O fascínio de Mário de Andrade pelas multiplicidades da cultura brasileira colocou-o no centro dos movimentos modernistas que varriam o país na década de 1920. "Macunaíma" foi extraído pela primeira vez na Revista de Antropofagia, periódico editado por Oswald de Andrade (sem parentesco), cujo manifesto de 1928 proclamava que os pensadores brasileiros precisavam rejeitar o artifício europeu e “canibalizar” as formas nativas de contar histórias para produzir uma nova arte brasileira. Antropofagia, ou antropofagia em inglês, refere-se ao consumo de carne humana.
O livro encontrou leitores admirados entre a intelectualidade brasileira, mas até eles ficaram impressionados com suas incongruências. Um crítico, João Ribeiro - ele próprio um folclorista proeminente - chamou-o de "voluntariamente bárbaro, primitivo, uma variedade de fragmentos desconexos reunidos por um comentarista incapaz de qualquer coordenação".
Dodson abordou o livro porque sentiu que a tradução em inglês existente, a versão de E.A. Goodland de 1984 para a Random House, havia suavizado a “alegria e a poesia da língua, e a política cultural da mistura específica de línguas”.
Vejamos a primeira linha do livro, que meia dúzia de artistas e estudiosos brasileiros entrevistados pelo The New York Times citou, espontaneamente, de memória: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente”.
A tradução da primeira linha feita por Goodland ignora a estrutura da frase de Andrade. Começa: “Em um canto distante do Norte do Brasil” — palavras que não existem no original — e continua, “numa hora em que um silêncio tão profundo caiu sobre a floresta virgem...”. Goodland, diretor técnico aposentado de uma empresa açucareira na Guiana, era “bem versado em todos os fundamentos de história natural do livro”, disse Dodson, “mas perdeu completamente o espírito do que o livro está tentando fazer. Sua tradução realmente se baseia em estereótipos de que o Brasil é um lugar sexy e selvagem onde todo mundo perde a cabeça.”
Dodson decidiu transliterar essencialmente o verso, apesar da estranheza gramatical que introduz no inglês: “Nas profundezas da mata virgem nasceu Macunaíma, herói do nosso povo”. A importância da linha, disse ela, não está em estabelecer onde a ação está acontecendo, como Goodland fez, mas em trazer o leitor para o círculo das pessoas próximas. “Macunaíma é o nosso herói”, disse ela.
À medida que seu conhecimento do livro se aprofundava, disse Dodson, ela se viu retrocedendo em algumas de suas próprias intervenções para manter a "música" do original.
"Muitas palavras do livro não estão nos dicionários regulares de português brasileiro", observou Dodson. "Ou, se forem, os significados são ambíguos. Meu objetivo era fazer com que você sentisse a alegria da linguagem do livro, se deixasse levar por todo o humor e pela forma coloquial com que as pessoas falam, mas também pelos belos sons das palavras indígenas."
Para os artistas brasileiros por trás das muitas adaptações do livro para cinema, teatro e arte, a insistência de Andrade em manter o vernáculo complexo que ele ouviu em suas viagens é precisamente o que torna o livro tão vital.
Andrade fez a viagem contada em “O Turista Aprendiz”... |
... entre as revisões de “Macunaíma” e aspectos do que ele observou apareceram no segundo livro. |
“A dificuldade do livro é a sua genialidade”, disse Iara Rennó, musicista radicada em São Paulo. Pouco depois de ler o livro pela primeira vez e se apaixonar por sua musicalidade, Rennó começou a escrever seu álbum de 2008, “Macunaíma Ópera Tupi”. “'Macunaíma' coloca o leitor, habituado ao português dito 'bem escrito', em estado de transgressão”, disse ela. “E essa transgressão é muito importante. Ela alimenta a cultura.”
Alguns estudiosos compararam “Macunaíma” a “Ulysses”, de James Joyce, outro romance modernista totêmico da década de 1920, cujo jogo alusivo e abrangente com a linguagem é tão central para sua identidade quanto para seu enredo.
"As elites no Brasil adoram pensar que são europeus deslocados", disse Caetano Galindo, cuja inovadora tradução de “Ulisses” para o português do Brasil, em 2012, ganhou o prestigiado prêmio Jabuti. Mário de Andrade, acrescentou, “teve um papel enorme no enfrentamento do fato de que este não é um verdadeiro país monolíngue”.
Embora suas novas traduções ofereçam um corretivo importante ao trazer obras canônicas brasileiras para o inglês, tanto Dodson quanto Thomson-DeVeaux têm o cuidado de abordar as críticas que artistas indígenas e afro-brasileiros levantaram sobre o papel central dos modernistas nas histórias culturais brasileiras.
Como observa Dodson, o livro de Andrade deve ao trabalho de Theodor Koch-Grünberg, um etnólogo alemão que transcreveu um longo ciclo de saga apresentando uma figura trapaceira de contadores de histórias indígenas de língua pemon na fronteira compartilhada por Brasil, Venezuela e Guiana no início década de 1910. Para os Macuxi e outros povos indígenas do grupo linguístico Pemon hoje, esta figura – Makunaima ou Makunaimã – tem apenas uma semelhança passageira com o Macunaíma de Mário de Andrade.
Há cerca de cinco anos, Jaider Esbell, um pintor Macuxi e artista performático, transformou-se no “neto de Makunaima”, recuperando a figura dos modernistas e retratando-a em dezenas de pinturas.
O amigo de Esbell, o pintor e curador amazônico Denilson Baniwa, disse que ele e Esbell fizeram um pacto logo após se conhecerem e discutirem os contínuos maus tratos aos artistas indígenas no mundo da arte.
“Eu ia matar o Macunaíma do Mário”, disse ele, “e o Jaider ia trazer de volta à vida o Macuxi Makunaima”.
A pintura de Denilson de 2019, Re-Antropofagia, mostra a cabeça de Mário de Andrade sendo servida em uma bandeja como oferenda a artistas indígenas. A pintura está hoje exposta na Pinacoteca de São Paulo, ao lado da pintura modernista seminal de Tarsila do Amaral, Antropofagia, de 1929.
Dodson conheceu Esbell e Denilson em 2019, e os três passaram horas discutindo sua tradução. Esbell, disseram Dodson e Denilson, não teve problemas com o romance de Mário de Andrade em si, mas sim com o equívoco de que os modernistas haviam “descoberto” práticas culturais indígenas de longa data.
Em um ensaio, Esbell descreveu ter perguntado a Makunaima porque é que ele permitiu que Mário de Andrade "roubasse" a sua história. "Meu filho", responde Makunaima no ensaio, "eu me colei na capa daquele livro. Dizem que fui sequestrado, roubado, traído, enganado. Dizem que sou um idiota. Não! Foi ideia minha estar na capa. Eu queria ir com aqueles homens. Eu queria fazer a nossa história. Eu vi nossa chance de encontrar nossa eternidade."
Esbell morreu no final de 2021, e Dodson solicitou que o New Directions usasse uma de suas pinturas como capa de sua tradução de "Macunaíma".
Quase um século após sua publicação, muitos dos admiradores brasileiros do romance não têm certeza de como ele será recebido nos Estados Unidos. "Macunaíma está sempre prestes a ser cancelado", disse Meira Monteiro, professor de Princeton.
No entanto, Dodson, por exemplo, pensa que o livro irá ressoar junto de um novo público americano sintonizado com uma história assombrada pela escravatura e pela expropriação indígena, marcada pela interação da imigração e da xenofobia - e sustentada por uma tendência de longa data de "multiculturalismo utópico".
Acho que os americanos compreenderão o absurdo desta grande variedade de pessoas de todo o mundo unidas sob uma bandeira", disse Dodson.
Nenhum comentário:
Postar um comentário