Naief Haddad
Repórter especial da Folha
Folha de S.Paulo
[RESUMO] Pesquisadora renomada, Angela de Castro Gomes comenta as contribuições de Boris Fausto, morto anos 92, para a historiografia brasileira. Nos anos 1970, Boris se destacou ao estudar o Brasil republicano, quando em geral historiadores tratavam de períodos mais distantes, como colônia e império, e por realçar métodos, relatos orais, e temas, a criminalidade, pouco usuais na universidade na época, o que produziu uma compreensão inovadora do passado do país, diz ela.
Em meados dos anos 2000, a historiadora Angela de Castro Gomes recebeu um convite para participar do projeto Intelectuais do Brasil, uma parceria das editoras da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e da Fundação Perseu Abramo.
Como explicou a também historiadora Heloisa Starling, uma das coordenadoras da iniciativa, Angela teria a missão de organizar um livro sobre Boris Fausto, àquela altura um dos nomes de maior prestígio nesse campo de estudos.
Além de uma longa entrevista, em que ele lembraria sua trajetória pessoal e seu percurso acadêmico, a obra, lançada em 2008 com o título "Leituras Críticas sobre Boris Fausto", teria ensaios a respeito de alguns dos livros mais relevantes do historiador.
O historiador Boris Fausto na biblioteca de sua casa no bairro do Butantã, em São Paulo, em 1995 - Pisco Del Gaiso/Folhapress |
Angela respondeu a Starling que sim, organizaria o livro, desde que o homenageado estivesse de acordo. A então professora titular de história do Brasil da UFF (Universidade Federal Fluminense), hoje aposentada, logo ligou para Boris, a quem conhecia há quase três décadas, e explicou o conceito do projeto.
Com a ironia requintada que o caracterizava, quem sabe uma herança do humor judaico, o historiador não titubeou: "Tá bom, então você pode me organizar".
Autor de estudos determinantes para a historiografia brasileira, como "Trabalho Urbano e Conflito Social" (1976) e "Crime e Cotidiano" (1984), e de obras de cunho memorialístico, caso de "Negócios e Ócios - Histórias da Imigração" (1997) e de "O Brilho do Bronze" (2014), Boris Fausto morreu na terça (18) aos 92 anos, em São Paulo, cidade de presença constante em seus textos publicados em livros e em jornais.
Boris e Angela se conheceram no final dos anos 1970, em momentos da carreira bastante distintos. Chegando à casa dos 50 anos, ele já era um nome de projeção entre os historiadores. "A Revolução de 1930" (1970), seu primeiro livro, foi visto nos anos seguintes como uma referência obrigatória pelos colegas da USP e de outras universidades.
Além disso, naquela época Boris organizava o terceiro tomo da coleção História Geral da Civilização Brasileira (HGCB), composto por quatro volumes que acompanhavam grande parte do período republicano, de 1889 a 1964. Era uma responsabilidade e tanto, já que o primeiro tomo, dedicado ao período colonial, e o segundo, sobre a monarquia, tinham sido coordenados por Sérgio Buarque de Holanda em parceria com Pedro Moacyr Campos.
Angela estava alguns degraus abaixo. Chegando aos 30 anos, era uma pesquisadora em fase inicial de carreira, que havia começado poucos anos antes a trabalhar no CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) da Fundação Getulio Vargas.
Em uma visita ao CPDOC, no Rio, naquele período, Boris soube de um texto de Angela sobre a Constituinte de 1934, assembleia que havia decidido pela manutenção de Getúlio no poder. O historiador levou para São Paulo uma cópia datilografada (tempos em que computadores de uso pessoal eram quase uma miragem) e ficou tão bem impressionado que decidiu publicá-la na coleção que organizava.
"A HGCP era ‘a’ coleção de história do Brasil. A maioria dos que publicavam nela eram nomes consagrados. Eu era uma jovem pesquisadora naquela época, não imaginava ver um texto meu lá", ela lembra.
Com a ironia requintada que o caracterizava, quem sabe uma herança do humor judaico, o historiador não titubeou: "Tá bom, então você pode me organizar".
Autor de estudos determinantes para a historiografia brasileira, como "Trabalho Urbano e Conflito Social" (1976) e "Crime e Cotidiano" (1984), e de obras de cunho memorialístico, caso de "Negócios e Ócios - Histórias da Imigração" (1997) e de "O Brilho do Bronze" (2014), Boris Fausto morreu na terça (18) aos 92 anos, em São Paulo, cidade de presença constante em seus textos publicados em livros e em jornais.
Boris e Angela se conheceram no final dos anos 1970, em momentos da carreira bastante distintos. Chegando à casa dos 50 anos, ele já era um nome de projeção entre os historiadores. "A Revolução de 1930" (1970), seu primeiro livro, foi visto nos anos seguintes como uma referência obrigatória pelos colegas da USP e de outras universidades.
Além disso, naquela época Boris organizava o terceiro tomo da coleção História Geral da Civilização Brasileira (HGCB), composto por quatro volumes que acompanhavam grande parte do período republicano, de 1889 a 1964. Era uma responsabilidade e tanto, já que o primeiro tomo, dedicado ao período colonial, e o segundo, sobre a monarquia, tinham sido coordenados por Sérgio Buarque de Holanda em parceria com Pedro Moacyr Campos.
Angela estava alguns degraus abaixo. Chegando aos 30 anos, era uma pesquisadora em fase inicial de carreira, que havia começado poucos anos antes a trabalhar no CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) da Fundação Getulio Vargas.
Em uma visita ao CPDOC, no Rio, naquele período, Boris soube de um texto de Angela sobre a Constituinte de 1934, assembleia que havia decidido pela manutenção de Getúlio no poder. O historiador levou para São Paulo uma cópia datilografada (tempos em que computadores de uso pessoal eram quase uma miragem) e ficou tão bem impressionado que decidiu publicá-la na coleção que organizava.
"A HGCP era ‘a’ coleção de história do Brasil. A maioria dos que publicavam nela eram nomes consagrados. Eu era uma jovem pesquisadora naquela época, não imaginava ver um texto meu lá", ela lembra.
Angela de Castro Gomes, professora titular aposentada de história do Brasil da UFF (Universidade Federal Fluminense) - Bruno Leal/portal Café História |
A publicação contribuiu para a carreira bem-sucedida trilhada por Angela dali em diante. Foi um gesto jamais esquecido por ela, mas apenas um ponto quando observamos a vastidão da influência exercida por Boris na geração de historiadores da qual ela faz parte e nas gerações seguintes.
Boris "produziu inflexões na historiografia brasileira", de acordo com Angela, e nenhuma teve tanto impacto quanto a disposição dele de trazer o Brasil republicano para o estudo da história. Seria leviano dizer que foi o primeiro a fazê-lo, mas foi provavelmente quem deixou mais olhos arregalados na academia ao pesquisar o século 20 com rigor metodológico.
A síntese da historiadora e, de certa forma, discípula é precisa: "Boris Fausto abriu a história do Brasil para o tempo presente".
Até os anos 1970, diz ela, esse era um período pouco explorado pelos historiadores, que enfatizavam a necessidade de um maior distanciamento temporal. "A historiografia do país era basicamente Colônia e Império, ‘historiador de verdade’ lidava com esses períodos. Isso de trabalhar com as décadas de 1930, 1940, 1950 era coisa de cientista social, não de historiador", afirma. "Praticamente inexistiam textos que refletissem sobre esse período posterior à Revolução de 1930, sobretudo entre 1930 e 1937. Era um absoluto vazio bibliográfico."
A formação e o círculo de interlocutores de Boris talvez ajudem a explicar por que foi tão decisivo na abertura dessa nova fronteira. Ele havia se graduado anteriormente em direito e trabalhou durante 26 anos como consultor jurídico da USP. Como "historiador tardio", expressão dele, assimilava bem exercícios de interdisciplinaridade.
Embora tenha batido nas principais teses de interpretação marxista, era próximo do historiador Fernando Novais, um "marxista de qualidade" segundo ele. Novais foi uma exceção, contudo. Boris era um historiador que se sentia mais à vontade, em termos intelectuais, entre nomes da ciência política e da sociologia, como Francisco Weffort, Lourdes Sola, Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues.
Francisco Weffort, cientista político, ministro da Cultura do governo FHC e amigo de Boris Fausto; ele morreu em agosto de 2011 - Ricardo Borges - 17.maio.2017/Folhapress |
Ao falar em "inflexões", Angela também se refere às fontes utilizadas por Boris. Para a produção de "Trabalho Urbano e Conflito Social" (1976), cujo objeto é a classe trabalhadora no Rio de Janeiro e em São Paulo de 1890 a 1920, ele recorreu diversas vezes à chamada "história oral", procedimento pouco usual entre os historiadores da época.
Na pesquisa para "Crime e Cotidiano - 1880-1924", passou meses consultando processos judiciais no antigo arquivo geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Vila Leopoldina. Outro recurso incomum. O tema da criminalidade também soava inusitado naquele momento. Na avaliação de Angela, "Boris, de certa forma, abriu caminho para que outros historiadores trabalhassem com a história do cotidiano".
Esse é um livro que, nas palavras do sociólogo Sérgio Adorno, "permanece, mais do que atual, contemporâneo. Ele fala de uma contemporaneidade que, ao mesmo tempo que introduz o novo, reatualiza o velho".
Com o passar dos anos, "Trabalho Urbano..." e "Crime e Cotidiano" conquistaram o status de referências historiográficas, mas ainda não se aproximam da influência alcançada pela obra de estreia de Boris.
Quando "A Revolução de 1930" foi lançada, em 1970, prevalecia a visão de teóricos do Partido Comunista sobre aquela movimentação, que levou Getúlio Vargas ao poder. Eles a interpretavam como uma revolução da burguesia ou das classes médias. Ao se dedicar a esse período em seu doutorado, Boris se deu conta de que a realidade era bem mais complexa. O fim da República Velha era resultado, sobretudo, de conflitos no interior das oligarquias regionais, uma tensão que vinha se sedimentando ao longo dos anos 1920.
"É claro que, em ‘Revolução de 1930’, ele está dialogando com interpretações que já existiam. Barbosa Lima Sobrinho [em ‘A Verdade sobre a Revolução de Outubro’, de 1933] já associava 1930 à disputa entre elites. Mas Boris vai lá, pesquisa detalhadamente, mostra os documentos", conta Angela.
"Não é opinião, não é versão. Ele chega ao que chamamos de verdade factual, algo que produz um consenso em uma comunidade de historiadores em um determinado momento."
Primeiro livro publicado pela historiadora, "A Invenção do Trabalhismo" se beneficiou das portas abertas por Boris, especialmente com "A Revolução de 1930". A entrega ao "tempo presente", com uso de fontes e metodologias em relação às quais muitos professores universitários tinham um pé atrás, é um aspecto central na obra de estreia de Angela, que analisa o comportamento dos trabalhadores brasileiros nos anos 1940.
Em 1987, um ano antes de ser publicado como livro, as ideias de "A Invenção do Trabalhismo" foram apresentadas por Angela como tese de doutorado. Boris estava à frente da banca.
Em um artigo publicado na Folha em 31 de dezembro de 2007, Boris aproveitou a iminente virada do ano para discutir o futuro e a imaginação. "Como o poeta Drummond, num belo verso, lembrou que ‘o último dia do ano não é o último dia do tempo’, quem sabe valha a pena imaginar o que nos reserva o futuro, pensado em sentido coletivo", escreveu.
Assim, dedicou-se nos últimos parágrafos a lançar perguntas ao futuro. "O mundo se encaminha para a hegemonia da China ou para vários focos de polaridade, incluindo os Estados Unidos, a própria China e, quem sabe, a União Europeia? Em algumas ou muitas décadas, o Brasil vai não só crescer mas tornar-se socialmente mais justo, não precisando se embalar nos duvidosos indicadores de poder de compra que tendem a ocultar nossas visíveis e constrangedoras carências?"
Mais adiante: "Serão tomadas medidas globais efetivas para impedir a mudança climática e a devastação do planeta ou as discussões nos foros privilegiados vão se arrastar, enquanto a humanidade caminha para o abismo num prazo maior ou menor?".
Suas dúvidas se mantêm pertinentes, mas não primam especialmente pela originalidade. Na verdade, a sensibilidade de Boris estava na direção contrária, ou seja, em fazer as perguntas certas ao passado, como convém aos grandes historiadores. Mais exatamente ao passado muito recente, ao "tempo presente", ao Brasil republicano.
Nos anos 1960, por exemplo, ele se interrogou: a Revolução de 1930 foi mesmo uma revolução burguesa, como defendiam autores marxistas como Nelson Werneck Sodré? Alguns anos depois: como a criminalidade nos ajuda a entender as mudanças vividas pela população paulistana na virada do século 19 para o 20?
Perguntas postas à mesa, o historiador saía em busca das respostas com perseverança e método, recorrendo a documentos e a outras fontes confiáveis, fossem ou não aquelas consagradas pela comunidade acadêmica da época. E assim, como diz Angela, Boris nos deixou "uma história do Brasil absolutamente inovadora".
BORIS FAUSTO
Nasceu em 1930, em São Paulo, em uma família de origem judaica. Foi consultor jurídico da USP e, posteriomente, professor do departamento de ciência política da universidade. Seu livro "História do Brasil" (1994), publicado em 11 idiomas, ganhou o Prêmio Jabuti de 1995 na categoria livro didático. Além de obras de história, como "A Revolução de 1930" (1970), lançou livros de tom memorialístico, como "Vida, Morte e Outros Detalhes" (2021). Morreu em 18 de abril, aos 92 anos.
ANGELA DE CASTRO GOMES
Nasceu em Itaperuna (RJ), em 1948. Graduou-se em história pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e fez mestrado e doutorado em ciência política pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). Lançou livros como "A Invenção do Trabalhismo" (1988), "Cidadania e Direitos do Trabalho" (2002) e "1964 - O Golpe que Derrubou um Presidente, Pôs Fim ao Regime Democrático e Instituiu a Ditadura no Brasil" (2014), este em coautoria com Jorge Ferreira. É professora titular aposentada de história do Brasil da UFF.
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