1 de abril de 2022

Crítica da razão tecno-feudal

Contrariando as alegações atuais de que o capitalismo digital está surgindo em uma era "neofeudal", enquanto os barões rentistas do Vale do Silício e de Wall Street extraem fortunas improdutivas de seus usuários e devedores, Evgeny Morozov retorna aos debates clássicos sobre a transição para o capitalismo para questionar a relação entre o econômico e o político.

Evgeny Morozov

New Left Review

NLR 133/134 • JAN/APR 2022

Tradução / Primeiro as boas notícias. A interdição temporária de imaginar o fim do capitalismo, apresentada na década de 1990 por Fredric Jameson, finalmente expirou. A recessão de décadas da imaginação progressista acabou. Aparentemente, a tarefa de vislumbrar alternativas sistêmicas tornou-se muito mais fácil, pois podemos trabalhar agora com distopias – eis que o aparentemente tão esperado fim do capitalismo poderia ser apenas o começo de algo muito pior. O capitalismo tardio certamente é bem ruim, com seu coquetel explosivo de mudanças climáticas, desigualdade, brutalidade policial e a pandemia mortal. Mas, havendo a distopia se tornado importante novamente, alguns da esquerda se moveram silenciosamente para revisar o adagio de Jameson: segundo suas palavras, hoje é mais fácil imaginar o fim do mundo do que a continuação do capitalismo tal como o conhecemos.

A notícia não tão boa é que, ao empreender esse exercício especulativo de construção de cenários apocalípticos, a esquerda tem dificuldade em se diferenciar da direita. De fato, os dois polos ideológicos praticamente convergiram para uma descrição compartilhada da nova realidade. Para muitos, em ambos os campos, o fim do capitalismo realmente existente não significa mais o advento de um dia melhor, seja este o socialismo democrático, o anarco-sindicalismo ou, talvez, o liberalismo clássico “puro”. Em vez disso, o consenso emergente é que o novo regime é nada menos que uma espécie nova de feudalismo – às vezes, como bem se sabe, um “ismo” tem muitos amigos poucos respeitáveis. É verdade que o neofeudalismo de hoje chega com slogans cativantes, com aplicativos móveis elegantes e até com a promessa de felicidade virtual eterna no domínio sem fronteiras do metaverso de Zuckerberg. Seus vassalos trocaram seus trajes medievais pelas elegantes camisetas de Brunello Cucinelli e pelos tênis de Golden Goose. Muitos adeptos da tese do neofeudalismo afirmam que sua ascensão é concomitante à do Vale do Silício. Assim, termos como “tecno-feudalismo”, “feudalismo digital” e “feudalismo da informação” são frequentemente usados.[1] O “feudalismo inteligente” ainda não ganhou muita força na mídia, mas isto pode não estar longe.

À direita, o proponente mais vocal da tese do “retorno ao feudalismo” foi o teórico conservador Joel Kotkin, que visou o poder dos tecno-oligarcas “ligados” em The Coming of Neo-Feudalism (2020). Enquanto Kotkin optou por “neo”, Glen Weyl e Eric Posner, pensadores mais jovens de cunho mais neoliberal, optaram pelo prefixo “techno” em seu tão discutido Radical Markets (2018). O “tecno-feudalismo”, escrevem eles, “atrapalha o desenvolvimento pessoal, assim como o antigo feudalismo atrasava a aquisição de educação ou o investimento na melhoria da terra”.[2] Para os liberais clássicos, é claro, o capitalismo, corroído pela política intervencionista, está sempre à beira de recair no feudalismo. No entanto, alguns da direita radical veem o neofeudalismo como um projeto a ser adotado politicamente. Sob rótulos como “neo-reação” ou “iluminação das trevas”, muitos direitistas estão próximos do investidor bilionário Peter Thiel. Entre eles está o tecnólogo e intelectual neo-reacionário, Curtis Yarvin, que levantou a hipótese de um mecanismo de busca neofeudal, que ele carinhosamente chamou de Feudl, já em 2010.[3]

À esquerda, a lista de pessoas que flertaram com conceitos “feudalistas” é longa e crescente: Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, Jodi Dean, Robert Kuttner, Wolfgang Streeck, Michael Hudson e, ironicamente, até Robert Brenner (o nome principal do Debate Brenner sobre a transição do feudalismo para o capitalismo).[4] Para crédito deles, nenhum chega a afirmar que o capitalismo está completamente extinto ou que estamos de volta à Idade Média. Os mais cuidadosos dentre eles, como Brenner, sugerem que as características do atual sistema capitalista – estagnação prolongada, redistribuição de riqueza politicamente impulsionada, consumo ostensivo pelas elites combinado com crescente empobrecimento das massas – lembram aspectos do modo de produção antecedente, o feudalismo, mesmo que seja o capitalismo aquele que governa o dia a dia. No entanto, apesar de todos esses avisos, muitos da esquerda descobriram que chamar o Vale do Silício ou Wall Street de “feudal” é simplesmente irresistível, assim como muitos especialistas não conseguem resistir em chamar Donald Trump ou Victor Orbán de “fascistas”. A conexão real com o fascismo histórico ou, de outro modo, com o feudalismo pode ser tênue, mas a aposta consiste em imaginar que há um valor de choque suficiente grande nesse tipo de proclamação, pois ela visa sobretudo despertar o soporífero público em sua complacência cotidiana. Além disso, dá bons memes. As multidões famintas no Reddit e no Twitter adoram: um vídeo do YouTube que apresenta uma discussão sobre tecno-feudalismo de Varoufakis e Slavoj Žižek obteve mais de 300.000 visualizações em apenas três semanas.[5]

No caso de figuras bem conhecidas, como Varoufakis e Mazzucato, atormentarem os seus públicos com invocações com base no glamour do feudalismo pode fornecer uma maneira amigável de reciclar argumentos que eles haviam sustentado anteriormente na mídia. No caso de Varoufakis, o tecno-feudalismo parece versar principalmente sobre os efeitos macroeconômicos perversos da flexibilização quantitativa. Para Mazzucato, o “feudalismo digital” refere-se à renda imerecida gerada pelas plataformas de tecnologia. O neofeudalismo é frequentemente proposto como uma forma de trazer clareza conceitual sobre as características dos setores mais avançados da economia digital. Entretanto, nesse caminho, as mentes mais brilhantes da esquerda ainda se encontram muito no escuro. O Google e a Amazon são capitalistas? São empresas rentistas, tal como sugere Brett Christophers em Rentier Capitalism?[6] E o Uber? É apenas um intermediário, uma plataforma de cobrança de serviço que se inseriu entre motoristas e passageiros? Ou está produzindo e vendendo um serviço de transporte? Essas questões não são isentas de consequências para a forma como pensamos o próprio capitalismo contemporâneo, fortemente dominado por empresas de tecnologia.

A ideia de que o feudalismo está voltando também é coerente com os críticos de esquerda que condenam o capitalismo como extrativista. Se os capitalistas de hoje são meros rentistas ociosos que nada contribuem para o processo de produção, eles não merecem ser rebaixados à condição de senhores feudais? Essa adoção de imagens do feudalismo por figuras da intelligentsia de esquerda, amigas da mídia e dos memes, não dá sinais de cessar. Em última análise, porém, a popularidade da linguagem feudal é uma prova de fraqueza intelectual, em e não sinal de conhecimento. É como se o arcabouço teórico da esquerda não pudesse mais dar sentido ao capitalismo sem mobilizar a linguagem moral da corrupção e da perversão. No que se segue, aprofundo alguns debates marcantes sobre as características distintivas que diferenciam o capitalismo das formas econômicas anteriores – e aquelas que definem as operações político-econômicas na nova economia digital – na esperança de que uma crítica da razão tecno-feudal possa lançar uma nova luz sobre o mundo em que ainda estamos vivendo.

A lógica do feudalismo

À parte os neorreacionários, praticamente todo mundo que usa o termo acha o neofeudalismo deplorável, um retrocesso em direção a um passado opressivo. Mas o que exatamente há de errado nisso? Aqui, como nas famílias tristes de Tolstoi, os infelizes com o neofeudalismo são todos infelizes à sua maneira. As diferenças derivam em parte da natureza contestada do próprio termo “feudalismo”. Trata-se de um sistema econômico a ser avaliado em termos de ­produtividade e abertura à inovação? Ou é um sistema sócio-político, a ser avaliado em termos de quem exerce o poder dentro dele, como e sobre quem? Este dificilmente é um debate novo – tanto os medievalistas quanto os marxistas o conhecem bem – mas essas ambiguidades de definição cruzaram com as discussões nascentes sobre neofeudalismo e sobre o tecno-feudalismo.

Para os marxistas, o termo “feudalismo” refere-se, antes de tudo, a um modo de produção. O conceito define, assim, uma lógica econômica pela qual o excedente produzido pelos camponeses – o pivô da economia feudal – é apropriado pelos latifundiários.[8] É claro que ver o feudalismo como um modo de produção não significa que os fatores políticos e culturais não tenham importância. Nem todos os camponeses, latifundiários e suas terras eram iguais; todos os tipos de hierarquias multiníveis e de distinções intrincadas – enraizadas na proveniência, tradição, status, força – moldaram as interações não apenas entre as classes, mas também dentro delas. As próprias condições de possibilidade do feudalismo eram tão complexas quanto as dos regimes capitalistas que o sucederam. Por exemplo, a natureza peculiar da soberania sob o feudalismo — como enfatizou Perry Anderson, era “parcelada” entre os proprietários de terras, em vez de concentrada ­no topo. E isso – assinalou – deixou uma marca importante. No entanto, apesar de todas essas nuances, importantes vertentes da tradição marxista concentraram seus esforços em decifrar a lógica econômica do feudalismo, como chave para elucidar a de seu regime sucessor, o capitalismo.

Em sua versão mais simples, a lógica econômica feudal era mais ou menos assim. Os camponeses possuíam seus próprios meios de produção – ferramentas e gado; acesso à terra comum – e assim gozavam de alguma autonomia em relação aos proprietários na produção de sua subsistência. Os senhores feudais, com poucos incentivos para aumentar a produtividade dos camponeses, intervieram pouco no processo produtivo. O excedente produzido pelos camponeses era abertamente apropriado pelos latifundiários, mais comumente por apelo à tradição ou à lei, imposta pelo senhor por meio da ameaça – e muitas vezes por meio do uso efetivo da violência. Não havia confusão sobre a natureza dessa extração de excedentes: os camponeses não tinham ilusões sobre a sua liberdade. Sua autonomia em matéria de produção pode ter sido considerável; sua autonomia em geral, porém, era estritamente circunscrita.

Como resultado, muitos marxistas - podemos ignorar as disputas internas nesta fase - sustentaram que, sob o feudalismo, os meios de extração de excedentes são extraeconômicos, ou seja, eram amplamente de natureza política; bens são expropriados sob ameaça de violência. Sob o capitalismo, em contraste, os meios de extração de excedentes são inteiramente econômicos: agentes nominalmente livres são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver em uma economia monetária, na qual eles não possuem mais os meios de subsistência – ainda assim, a natureza altamente exploradora deste contrato de trabalho “voluntário” permanece em grande parte invisível. Assim, à medida que passamos do feudalismo para o capitalismo, a expropriação politicamente assegurada dá lugar à exploração economicamente viável. A distinção entre o extraeconômico e o econômico — uma das muitas dessas dicotomias — sugere que, como categoria no pensamento marxista, o “feudalismo” é inteligível apenas quando examinado pelo prisma do capitalismo, comumente imaginado como sua forma mais progressiva, racional e sucessor favorável à inovação. E é inovador: ­contando apenas com meios econômicos de extração de excedentes, não precisa sujar as mãos mais do que o estritamente necessário; o “leviatã invisível” do sistema capitalista faz o resto.[9]

Para a maioria dos historiadores não marxistas, em contraste, o feudalismo não era um modo de produção atrasado, mas um sistema sociopolítico atrasado, marcado por surtos de violência arbitrária e proliferação de dependências pessoais e de laços de fidelidade, comumente justificados por meio de tênues crenças religiosas, assim como de fundamentos culturais.[10] Era um sistema no qual poderes privados incontestáveis governavam supremos. Como resultado, é costume dentro dessa tradição intelectual bastante diversa contrastar o feudalismo não com o capitalismo, mas com o estado burguês que respeita e faz cumprir a lei. Ser um súdito feudal é viver uma vida precária com medo do poder privado arbitrário; é tremer diante de regras que não se teve nenhum papel em criar; é não ter ­possibilidade de recorrer de seu veredicto de culpado. Para os marxistas, o oposto do sujeito feudal, o camponês, é o trabalhador totalmente proletarizado da empresa capitalista; para os não marxistas, é o cidadão do estado burguês moderno, desfrutando de uma infinidade de direitos democráticos garantidos.

Independentemente do paradigma considerado, em teoria, deveria ser possível identificar as principais características do sistema feudal para depois passar a examinar se elas podem reaparecer atualmente. Por exemplo, se tratarmos o feudalismo como um sistema econômico, uma dessas características poderia ser a existência parasitária da classe dominante, que consegue desfrutar de um estilo de vida luxuoso às custas e miséria da classe (ou classes) que domina. Se tratarmos o feudalismo, porém, como um sistema sócio-político, o ponto central é a privatização do poder anteriormente exercido pelo Estado, assim como a sua dispersão por meio de instituições opacas e não responsabilizáveis.[11] Em outras palavras, se conseguirmos associar o feudalismo a uma certa dinâmica e, ademais, se pudermos observar a recorrência dessa dinâmica em nosso próprio presente pós-feudal, deveríamos pelo menos poder falar da “refeudalização” da sociedade, mesmo que um “neofeudalismo” completo não esteja no horizonte. É uma afirmação mais fraca, mas carrega maior clareza analítica.

Precursores

Cerca de sessenta anos atrás, Habermas fez um trabalho pioneiro neste campo em The Transformation of the Public Sphere (1962). Em seu relato — não indiscutível — a esfera pública burguesa inicial podia ser vista nos cafés de Londres, locais importantes para o desenvolvimento do discurso emancipatório. Domados pelos capitalistas, seus imperativos foram então vinculados aos da indústria cultural e seu complexo publicitário. Como resultado, estruturas de poder e hierarquias privadas pré-modernas ressurgiram no que ele chamou de "re-feudalização da esfera pública", indicando a dinâmica em zigue-zague da modernidade. Enquanto Habermas eventualmente se distanciou do conceito de "refeudalização", preferindo "colonização do mundo da vida", alguns na Alemanha o recuperaram recentemente.

Na última década, o sociólogo Sighard Neckel, de Hamburgo, produziu um impressionante conjunto de trabalhos documentando como a implantação do neoliberalismo — o grande lubrificante da modernidade — levou ao ressurgimento de formas sociais pré-modernas, como a pauperização do trabalho, a distribuição distorcida da riqueza e o surgimento de novos oligarcas.[12] Embora Neckel cite frequentemente os avisos de Thomas Piketty sobre o retorno do "capitalismo patrimonial" — um conceito que navega próximo do imaginário "neofeudal" — é a noção habermasiana de "refeudalização" que permite a Neckel reunir essas diversas vertentes. Fundindo criativamente perspectivas marxistas e não marxistas, Neckel argumenta que podemos estar testemunhando o surgimento de "um capitalismo moderno sem estruturas burguesas", e que sua própria ausência pode ser "uma pré-condição cultural para a marcha triunfal do capitalismo no século XXI". A modernização neoliberal deve, portanto, ser lida nem como progressiva nem regressiva, mas sim como paradoxal. Para Neckel, a refeudalização não leva de volta ao passado, mas se refere a "uma dinâmica social do presente, na qual a modernização assume a forma de uma rejeição das máximas de uma ordem social burguesa". Nisso, Neckel se junta a outros sociólogos alemães proeminentes — Wolfgang Knöbl e Hans Joas vêm à mente — ao questionar relatos teleologicamente inspirados da modernização.[13]

Um uso intrigante de "refeudalização" pode ser visto no trabalho do teórico jurídico francês Alain Supiot. Em seu Homo Juridicus (2005) e Governance by Numbers (2015), Supiot apresenta a neoliberalização e a digitalização como dois principais motores da "refeudalização".[14] A ambição aqui não é chocar, mas complicar nossos relatos existentes e insossos de mudança social. Embora o mundo não esteja retornando à Idade Média, Supiot escreve, "os conceitos legais do feudalismo fornecem excelentes ferramentas para analisar as vastas convulsões institucionais que ocorrem sob a noção acrítica de "globalização".[15] A chave para a filosofia legal de Supiot é a distinção entre governo por homens — típico do período feudal, com suas lealdades pessoais e laços de dependência — e governo pela lei — a conquista do estado burguês, que se estabelece como o terceiro garantidor objetivo de direitos e executor de regras. Como o estado declarou certas áreas fora dos limites para contratação privada — deixando-as imunes a cálculos de utilidade — um mínimo de dignidade poderia ser desfrutado por todos os cidadãos, no local de trabalho e além dele, independentemente de seus diferenciais de poder e riqueza. Ao sujeitar o estado a imperativos de maximização de utilidade e eficiência, o neoliberalismo mais uma vez o abre para contratação privada.

Para Supiot, a digitalização também acelera o processo de "refeudalização" ao conectar pessoas em redes nas quais seu poder e autonomia dependem de suas posições em relação a outros nós. Os cidadãos do estado burguês têm, em princípio, direito a todos os seus direitos, independentemente de quais comunidades pertencem. Mas esse ainda é o caso dos cidadãos da sociedade em rede, cujas reputações online e pontuações digitais moldam suas interações com instituições de maneiras que eles podem nem estar cientes? Em meio a todo o hype sobre o neofeudalismo, as críticas anteriores cuidadosamente argumentadas por Neckel e Supiot se destacam — mesmo que permaneçam em grande parte desconhecidas para aqueles que aderem ao movimento neofeudalista hoje. Os debates atuais geralmente ignoram os pontos teóricos mais sutis que eles levantam sobre a dinâmica contraditória da modernização neoliberal. O jovem Habermas é ocasionalmente citado — se Habermas diz que é feudalismo, quem poderia discordar? — mas sem muito engajamento sério.

Brenner ou Wallerstein?

Mas que pressupostos intelectuais de fundo, no rico corpo do pensamento de esquerda de hoje, tornam algo como “neofeudalismo” pensável? Afinal, fazer o estranho argumento de que o capitalismo está de alguma forma se movendo ao contrário requer uma compreensão muito particular não apenas de sua dinâmica, mas também de atividades e processos que são propriamente “capitalistas” – bem como daqueles que definitivamente não o são. Quais são essas suposições?

Aqui podemos retornar às disputas acima mencionadas sobre a natureza da transição do feudalismo para o capitalismo dentro da tradição marxista. Existem duas maneiras mutuamente exclusivas de pensar sobre isso. Vê-se o sistema capitalista como impulsionado apenas por sua dinâmica interna de competição e exploração, com a expropriação política situada firmemente fora de seus limites. Nesta leitura, a acumulação de capital é impulsionada apenas por meios econômicos “limpos” de extração de excedentes. A existência de processos estranhos que possibilitam a expropriação – violência, racismo, expropriação, carbonização – não é negada, mas eles devem ser analiticamente classificados como extraordinários, ou seja, como não capitalistas; podem ter auxiliado determinados capitalistas em seus esforços individuais para apropriar-se da mais-valor, mas permanecem fora do processo de acumulação capitalista enquanto tal. Não há “leis de movimento” do capital que possam ser aí encontradas. Nessa visão, mesmo que “a força coercitiva da esfera ‘política’ seja, em última análise, necessária para sustentar a propriedade privada e o poder de apropriação, a necessidade “econômica” fornece a compulsão imediata que força o trabalhador a transferir o trabalho excedente para o capitalista”. [16]

A outra opção, analiticamente mais confusa, mas intuitivamente convincente, é reconhecer que o capitalismo – pelo menos o capitalismo histórico que conhecemos, não o capitalismo purista de modelos abstratos – é impensável ­sem todos esses processos aparentemente estranhos. Não é preciso negar a centralidade da exploração no sistema capitalista para ver como o racismo ou o patriarcado ajudaram a criar as condições de sua possibilidade. Teria o sistema capitalista do Norte Global se desenvolvido como se desenvolveu se os recursos baratos não tivessem sido metodicamente expropriados do Sul Global? Ao contrário do caso da exploração do trabalho, essas dinâmicas históricas – e as compensações nelas presentes – não podem ser reduzidas a uma fórmula simples que, nos próprios escritos de Marx, descreveria a decisão de uma empresa de automatizar sua força de trabalho. Mas tal confusão não torna essas dinâmicas menos reais ou menos constitutivas do capitalismo histórico.

As diferenças entre essas abordagens surgiram em dois debates marcantes e definidores de paradigmas sobre as origens do capitalismo e a natureza da transição do feudalismo para o capitalismo. Primeiro, o Debate Dobb-Sweezy dos anos 1950 e depois o Debate Brenner de 1974-82, os quais colocaram historiadores marxistas e não marxistas uns contra os outros em combinações variadas­, debatendo a importância relativa do sistema mundial de comércio em rápida expansão versus as relações de classe e propriedade em constante mudança, inicialmente na Inglaterra, como os principais responsáveis pelo surgimento do capitalismo.11 Essas discussões apresentavam muitos ângulos fascinantes. Uma em particular é crucial para decifrar os fundamentos teóricos das formulações mais sérias da tese tecno-feudal: a centralidade da “acumulação primitiva” nas origens, bem como nos desenvolvimentos subsequentes­, do capitalismo.

Em alguns relatos marxistas, incluindo o de Immanuel Wallerstein, “acumulação primitiva” refere-se ao uso de ­meios políticos e extraeconômicos para capturar e transferir o excedente, sob o rótulo de “troca desigual”, das terras mais pobres para as mais ricas – ou, como disse Wallerstein, da periferia para o centro.12 As origens do capitalismo não poderiam ser compreendidas sem levar em conta essa capacidade do núcleo de se ­apropriar do excedente de toda a economia global. Isso é o que explica por que o capitalismo surgiu e floresceu onde aconteceu. A exploração do trabalho assalariado (nunca totalmente proletarizado) certamente aumentou as fortunas dos capitalistas no centro, mas isso foi apenas parte da história. Assim, focar exclusivamente na exploração e ignorar o fato de que as dinâmicas centro-periferia de “troca desigual” e “acumulação primitiva” ainda estão presentes hoje é não entender a natureza do capitalismo.

Brenner acusou a análise de Wallerstein de determinismo tecnológico, minimizando as relações de classe e o papel do “trabalho excedente relativo”, ou seja, produtividade crescente, como uma característica sistêmica do capitalismo. Os relatos de Wallerstein, argumentou Brenner, eram um elemento básico do marxismo neo-smithiano, ignorando o que Marx realmente quis dizer com o conceito de “acumulação primitiva”. Devia ser entendido, nas palavras de Marx, como o processo de “divórcio do produtor dos meios de produção”, que abriu as portas para o trabalho assalariado e a exploração e veio substituir a expropriação ­de bens prontos pelo semiacabado. O divórcio em questão aconteceu como resultado de reconfigurações nas relações de classe e mudanças nos direitos de propriedade; tinha pouco a ver com a troca desigual ou o comércio mundial.13 Como Brenner afirmou em um ensaio posterior, o estágio conhecido como “acumulação primitiva” nada mais era do que o “trazer à existência as relações de propriedade social constitutivas do capital”. Isso certamente incluiu muita força e violência. Mas o papel da acumulação primitiva era muito limitado; sua dinâmica não devia ser confundida com a da acumulação capitalista propriamente não primitiva.

Qual era esse papel limitado? De acordo com Brenner, a “acumulação primitiva­” serviu apenas para quebrar a “fusão” politicamente instituída de terra, trabalho e tecnologia que caracterizou o sistema feudal e impediu que esses três fatores essenciais de produção fossem colocados em uso mais produtivo – algo que poderia ser corrigido, uma vez inseridos na lógica capitalista do lucro.14 Colocado sem rodeios, a análise de Brenner sobre o feudalismo propunha que ele dava a todos incentivos para relaxar na atividade produtiva. Na ausência de pressões competitivas de mercado, não havia necessidade de se preocupar com a racionalização do processo produtivo. A acumulação primitiva pôs fim a essa utopia mais preguiçosa, introduzindo a ­”vontade de melhorar” movida pela competição, tão característica do capitalismo.

Uma olhada superficial em O Capital, Livro I, no entanto, revela mais ambiguidade sobre o assunto da acumulação primitiva do que Brenner deixou transparecer inicialmente. O capítulo 26 do Livro I, onde Marx criticou a concepção um tanto ingênua de Adam Smith sobre a ­”acumulação anterior”, certamente corrobora as afirmações de Brenner (ele a usou, com muita eloquência, ao atacar Wallerstein). Mas então, no capítulo 31, Marx diz algo muito mais congruente com a própria linha de análise de Wallerstein, escrevendo que:

A descoberta de ouro e prata na América, a extirpação, escravização e sepultamento em minas da população aborígine, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um labirinto para a caça comercial de negros, sinalizou o alvorecer rosado da era da produção capitalista. Esses procedimentos idílicos são os momentos principais da acumulação primitiva.[21]

O capítulo não deixa dúvidas sobre a intrincada conexão entre a violência travada em nome da transferência forçada e as origens do capitalismo. Marx não poderia ser mais explícito aqui: "a escravidão velada dos trabalhadores assalariados na Europa precisava, para seu pedestal, da escravidão pura e simples no novo mundo". É difícil ver como encaixar esse relato de "acumulação primitiva" na história brenneriana do "divórcio" entre os produtores e seus meios de produção no campo inglês. Há ambiguidades semelhantes na discussão de Marx sobre se essas práticas violentas de "conquista e pilhagem" pararam no estágio da acumulação primitiva, ou se elas — e, portanto, também, a acumulação primitiva — continuaram ao lado da acumulação capitalista propriamente dita, com base na exploração; ou, de fato, se, mesmo que a "acumulação primitiva" em si seja uma coisa do passado, ainda assim há um processo contínuo de expropriação ou desapropriação que existe ao lado da exploração. Mesmo em questões relativamente diretas — a "escravidão" e o "trabalho não livre" devem ser vistos como parte do capitalismo? — há áreas nebulosas em Marx que alimentam muitos dos debates atuais.

Para Brenner — e para a escola do marxismo político que se formou em torno dele e de Ellen Meiksins Wood nos últimos anos — não havia tal ambiguidade. O capitalismo surgiu e se expandiu em um ritmo tão tremendo porque uma série de processos históricos convergiram de tal forma a forçar os capitalistas a "acumular por meio da inovação".[22] O projeto brenneriano de entender a lógica do capitalismo tornou-se, portanto, sobre soletrar a dinâmica — codificada em termos como as "regras de reprodução" e "leis do movimento" — por meio da qual as pressões sistêmicas exercidas sobre os capitalistas levaram à acumulação por meio da inovação. Era um modelo elegante e consistente, que postulava que o aumento da produtividade era consequência da inovação, que, por sua vez, era consequência dos capitalistas competindo no mercado, empregando trabalho assalariado gratuito e tentando tudo o que podiam para reduzir custos. Não havia necessidade nesse modelo de qualquer discussão sobre violência, expropriação ou desapropriação; embora sua existência não fosse negada, elas tinham pouco a contribuir para o aumento da produtividade e não faziam parte do processo de acumulação capitalista.

3. "Acumulação por desapropriação"?

Nem todos ficaram convencidos pelos argumentos de Brenner. Na última década, houve muitas tentativas intrigantes de avançar o argumento de que exploração e expropriação foram — e ainda são — mutuamente constitutivas. Duas se destacam em particular: a teorização do sociólogo alemão Klaus Dörre sobre a "apropriação de terras" capitalista, com base em Landnahme de Rosa Luxemburgo e o trabalho relacionado de Nancy Fraser sobre a conexão estrutural profundamente enraizada entre exploração e expropriação, com a última criando — e constantemente recriando — condições de possibilidade para a existência da primeira.[23] Muitas das discussões metodológicas que se desenrolam na esquerda hoje — sobre as melhores maneiras de narrar o capitalismo em relação ao clima, raça ou colonialismo — ainda refletem as questões não resolvidas do debate Brenner-Wallerstein.

Muito desse trabalho recente se baseia no influente conceito de David Harvey de "acumulação por desapropriação", introduzido em seu livro de 2003, The New Imperialism. Harvey cunhou esse termo porque não estava satisfeito com o qualificador "primitivo"; ele, como muitos outros antes dele, via a acumulação como algo contínuo. Resumindo alguns dos estudos recentes sobre o assunto em The New Imperialism, Harvey observou que "a acumulação primitiva, em suma, envolve expropriação e cooptação de conquistas culturais e sociais preexistentes, bem como confronto e substituição". Essa dificilmente era a explicação brenneriana da "acumulação primitiva" como o processo de rompimento da "fusão" feudal entre os fatores de produção; os capitalistas de Brenner não estavam "cooptando" nada — eles estavam se livrando, com alguma ajuda sistêmica, de práticas e relações sociais improdutivas.

Infelizmente, a explicação de Harvey sobre "acumulação por desapropriação", embora prometesse tanto, entregou muito pouco: no final, tornou-se ainda mais ambígua do que a explicação de Marx sobre "acumulação primitiva". Se a formulação inicial de Harvey fosse acreditada, os pobres capitalistas do início dos anos 2000 mal conseguiam ganhar dinheiro sem desapropriar alguém de algo: esquemas Ponzi, o colapso da Enron, saques a fundos de pensão, a ascensão da biopirataria, a mercantilização da natureza, a privatização de ativos estatais, a destruição do estado de bem-estar social, a exploração da criatividade pela indústria musical — esses são apenas alguns dos exemplos usados ​​para ilustrar o conceito em The New Imperialism. Ao vê-lo em todos os lugares, Harvey concluiu, sem surpresa, que a "acumulação por desapropriação" havia se tornado a forma "dominante" de acumulação na nova era. Como poderia ser de outra forma, quando toda atividade que não envolvia diretamente a exploração do trabalho — e até mesmo algumas que envolviam — parecia ser automaticamente incluída nesta categoria?

Em 2006, Brenner escreveu uma resenha mista de The New Imperialism, repreendendo Harvey por sua "definição extraordinariamente expansiva (e contraproducente) de acumulação por desapropriação", inflando o conceito a um ponto em que não era mais útil.[24] Ele confessou que achou a conclusão de Harvey sobre o domínio da desapropriação sobre a acumulação capitalista "incompreensível". Mas era? Seria de fato "incompreensível" se alguém assumisse que ainda estávamos vivendo no capitalismo, o que, pelo menos para o Brenner de 2006, parecia inquestionável. Mas, se o capitalismo realmente tivesse acabado e algum outro sistema semelhante ao feudalismo estivesse sobre nós, essa declaração faria mais sentido.

Em trabalhos posteriores, Harvey turvou as águas um pouco mais, tornando a "acumulação por desapropriação" o principal motor do neoliberalismo, que ele definiu como um projeto político, redistributivo em vez de generativo em perspectiva, que visava transferir riqueza e renda do resto da população para as classes altas dentro das nações ou dos países pobres para os mais ricos internacionalmente. Aqui, não havia espaço para a interpretação amigável de Brenner de "acumulação por desapropriação" como algo voltado para a criação de condições para inovação — portanto, produção e geração — de forma alguma. Sem declarar isso explicitamente, Harvey silenciosamente se juntou ao outro lado do debate, enquanto adicionava uma série de outros mecanismos de transferência de excedentes — extração de renda em torno da propriedade intelectual, por exemplo — àqueles inicialmente descritos por Wallerstein. Qualquer um mergulhado na visão ortodoxa e brenneriana sobre "acumulação primitiva" imediatamente discordaria da cronologia básica de eventos de Harvey; mesmo para Wallerstein e seus seguidores, a acumulação primitiva baseada no comércio precedeu e acompanhou a acumulação capitalista, ela não a substituiu ou ultrapassou.[25]

Desde a formulação inicial do conceito por Harvey no início dos anos 2000, a "acumulação por desapropriação" foi adotada por muitos acadêmicos, principalmente aqueles no Sul Global, que a usam para teorizar novas formas de extrativismo rentista, por meio das quais as corporações flexionam seus músculos políticos para adquirir terras e recursos minerais.[26] Há uma certa lógica em tudo isso: primeiro a desapropriação, por meios extraeconômicos; depois a rentabilização, alavancando direitos de propriedade — incluindo aqueles sobre produtos intelectuais — que deslocam a operação de volta para o reino econômico. Estar nesse reino, no entanto, não é garantia de que estamos no capitalismo normal. Exceto pela mineração e agricultura, onde algumas atividades produtivas ou pelo menos extrativas precisam ser organizadas, a classe capitalista parece estar simplesmente colhendo aluguéis e desfrutando de uma vida de luxo, muito parecida com os proprietários da era feudal. ‘Se todos tentam viver de aluguéis e ninguém investe em fazer nada’, escreveu Harvey em 2014, "então claramente o capitalismo está caminhando para uma crise."[27] Mas que tipo de crise? O próprio Harvey não flerta com imagens neofeudalistas — pelo menos ainda não o fez — mas sua análise do capitalismo contemporâneo torna fácil tirar a conclusão óbvia: isso é capitalismo apenas no nome; sua lógica econômica real é muito mais próxima da feudal. Que outra lição alguém poderia tirar da afirmação de Harvey, já em 2003, de que a desapropriação redistributiva havia superado a exploração generativa?

Multidões cognitivas

Uma mensagem semelhante poderia ser encontrada no trabalho daqueles teóricos italianos e franceses que profetizam o surgimento do "capitalismo cognitivo" — mais um capitalismo apenas no nome.[28] Inspirados pelo trabalho de Toni Negri e outros operistas italianos, esses pensadores — Carlo Vercellone e Yann Moulier-Boutang estão entre os mais conhecidos — insistem que a multidão, a sucessora da classe trabalhadora, armada com as mais recentes tecnologias da informação, é finalmente capaz de existência autônoma. Por esse motivo, o capital não pode — e não quer — controlar a produção, grande parte da qual agora acontece de forma altamente intelectualizada além dos portões da fábrica taylorista, que em si não existe mais (pelo menos na Itália e na França).[29] Os capitalistas de hoje simplesmente estabelecem o controle sobre os direitos de propriedade intelectual, enquanto tentam limitar o que a multidão indisciplinada pode fazer com suas recém-descobertas liberdades comunicativas. Esses não são os capitalistas obcecados por inovação da era fordista; são rentistas preguiçosos, totalmente parasitas da criatividade das massas. Trabalhando a partir dessas premissas, é fácil pensar que algum tipo de tecno-feudalismo já está sobre nós: se os membros da multidão são realmente aqueles que fazem todo o trabalho e estão até mesmo usando seus próprios meios de produção, no sentido de computadores e software de código aberto, então falar de capitalismo parece uma piada cruel.

Um aspecto da perspectiva do "capitalismo cognitivo" tem uma relação particular com os debates contemporâneos sobre a lógica — feudal ou capitalista? — da economia digital de hoje. Com base na tradição operária italiana, Vercellone e seus co-pensadores levantaram a hipótese da obsolescência da classe gerencial, supostamente derrotada pela criatividade da multidão. Os chefes podem ter tido um papel sob o fordismo, mas os trabalhadores cognitivos modernos não precisam mais deles. Isso é tomado como um sinal de que a mudança da subsunção formal para a real — ou seja, da mera incorporação do trabalho nas relações capitalistas para sua transformação estrutural de acordo com os imperativos capitalistas — agora foi revertida, com o capitalismo se movendo para trás. O feudalismo se torna visível, mesmo que esses teóricos esperem que o comunismo chegue primeiro.

Como George Caffentzis apontou em uma crítica perspicaz, a possível irrelevância dos gerentes para a organização do processo produtivo não é, por si só, prova de que as receitas registradas por empresas capitalistas vêm na forma de aluguel, em vez de lucro.[30] Afinal, há muitas empresas capitalistas que são quase totalmente automatizadas, sem gerentes nem trabalhadores. Elas devem, portanto, ser vistas como rentistas? A resposta dos teóricos do capitalismo cognitivo parece ser "sim": tais empresas devem ser parasitárias de algo, talvez espremendo um portfólio de patentes, uma propriedade imobiliária ou o Intelecto Geral da humanidade como tal. Tomemos, por exemplo, um lava-jato automatizado.[31] Existe alguma razão para acreditar que ele não é capitalista simplesmente porque não emprega ninguém e, portanto, não gera mais-valia? Ou porque, para automatizar o lava-jato, alguns algoritmos — sem dúvida usando trabalho morto e conhecimento congelado de gerações anteriores, e talvez até uma patente ou duas — foram usados?

Provavelmente não. Em linha com os próprios escritos de Marx sobre a equalização de lucros entre empresas e indústrias automatizadas de forma diferente, o lava-jato está simplesmente absorvendo o valor excedente gerado em outras partes da economia. Apresentar essas empresas automatizadas como "rentistas" em vez de capitalistas propriamente ditas é despojar o relato de Marx sobre a competição capitalista de sua substância; é precisamente o impulso constante para automatizar — para cortar custos e aumentar a lucratividade — que responde pelo fluxo constante de capital em direção a empresas mais produtivas. O operaísmo, a pedra angular intelectual da teoria do capitalismo cognitivo, permanece preso na epistemologia do trabalhador humano: se nenhum trabalhador estiver presente, os teóricos italianos assumem que nenhuma produção capitalista ocorre e que o rentismo governa o dia. Em tais relatos, o “capitalismo” pode continuar a existir como um rótulo, mas já estamos em algum lugar na Terra de Ninguém entre o feudalismo e o sistema de produção (o próprio Vercellone notou a semelhança).

4. Fortunas digitais

Teóricos do tecnofeudalismo compartilham a suposição do capitalismo cognitivo de que algo na natureza das redes de informação e dados empurra a economia digital na direção da lógica feudal de aluguel e desapropriação, em vez da lógica capitalista de lucro e exploração. O que é? Uma explicação óbvia aponta para o tremendo crescimento dos direitos de propriedade intelectual e as relações de poder peculiares que eles instituem. Já em 1995, Peter Drahos, um acadêmico jurídico australiano, alertou sobre o iminente "feudalismo da informação". Imaginando o mundo de 2015 na primeira metade de seu artigo — ele acertou praticamente tudo — Drahos argumentou na segunda metade que estender patentes a objetos abstratos, como algoritmos, resultaria na proliferação de poder privado e arbitrário.[32] (Da mesma forma, a crítica de Supiot à feudalização afirma que os direitos de propriedade intelectual permitiram a separação formal da propriedade de objetos de seu controle — um retorno ao passado.)

Outra característica da economia digital que parece estar em sintonia com os modelos feudais — especialmente a variedade marxista de modo de produção — é a maneira estranha, quase sub-reptícia, com que os usuários de serviços digitais são obrigados a abrir mão de seus dados. Como todos sabemos, o uso de artefatos digitais produz rastros de dados, alguns dos quais são então agregados — potencialmente produzindo insights que podem ajudar a refinar serviços existentes, ajustar modelos de aprendizado de máquina e treinar inteligência artificial, ou ser usados ​​para analisar e prever nosso comportamento, alimentando o mercado online de publicidade comportamental. Os humanos são essenciais para ativar os processos de coleta de dados que envolvem esses objetos digitais. Sem nós, muitos dos rastros de dados iniciais nunca seriam produzidos. Hoje em dia, nós os criamos constantemente — não apenas quando abrimos nossos navegadores, usamos aplicativos de jogos ou pesquisamos online, mas de inúmeras maneiras em nossos locais de trabalho, carros, casas — até mesmo em nossos banheiros inteligentes.

O que exatamente está acontecendo aqui, em termos de capitalismo? Alguém poderia argumentar, com os teóricos do capitalismo cognitivo, que os usuários são, na verdade, trabalhadores, com plataformas tecnológicas vivendo de nosso "trabalho digital gratuito"; sem nossa interação com todos esses objetos digitais, não haveria muita publicidade digital para vender e a fabricação de produtos de inteligência artificial se tornaria mais cara.[33] Outra visão, da qual Shoshana Zuboff é a principal expoente, compara a vida dos usuários às terras intocadas de um país distante e não capitalista, ameaçado pelas operações extrativistas dos gigantes digitais. Condenados à "desapropriação digital", como ela coloca em The Age of Surveillance Capitalism (2018), "nós somos os povos nativos cujas reivindicações tácitas de autodeterminação desapareceram dos mapas de nossa própria experiência".[34] Para maior clareza da exposição, este não é exatamente o c-m-c de Marx. Mas o sentimento é claro.

Zuboff se distancia das teorias do "trabalho digital" — na verdade, da consideração do trabalho tout court. Consequentemente, ela não tem muito a dizer sobre exploração; capitalistas de vigilância, ao que parece, não fazem muito disso.[35] Em vez disso, ela se baseia na "acumulação por desapropriação" de Harvey, apresentando-a como um processo contínuo. Zuboff discute longamente os procedimentos elaborados do Google para a extração e expropriação de dados do usuário. O termo "desapropriação" aparece quase cem vezes no livro, frequentemente em combinações originais com outros termos — "ciclo de desapropriação", "desapropriação comportamental", "desapropriação da experiência humana", "indústria da desapropriação" e "desapropriação unilateral do excedente". Apesar de toda a sua linguagem estridente sobre usuários como "povos nativos", The Age of Surveillance Capitalism deixa poucas dúvidas de que a "desapropriação" é realizada por meio da tecnologia moderna e em escala industrial — o que supostamente a faz parecer capitalista. Para Zuboff, no entanto, "capitalismo" é algo que as empresas "cometem", como uma gafe ou um crime. Se a formulação parece estranha, é uma representação precisa de como ela entende esse -ismo em particular: em geral, "capitalismo" é o que acontece com os humanos quando as empresas fazem coisas.

Lendo as descrições vívidas de Zuboff sobre a violência simbólica e emocional, o engano e a expropriação que impulsionam a economia digital impulsionada pelo Google, alguém pode se perguntar por que ela a chama de "capitalismo de vigilância", em vez de "feudalismo de vigilância". Na primeira página do livro, ela escreve sobre "uma lógica econômica parasitária" — não muito longe da famosa análise de Lenin sobre os lucros rentistas que sustentam o "parasitismo imperialista".[36] A Era do Capitalismo de Vigilância flerta com a formulação "feudalista" em alguns lugares, sem nunca abraçá-la totalmente. Em um exame mais detalhado, no entanto, o sistema econômico que ela descreve não é capitalismo nem feudalismo. É o que se poderia chamar, por falta de um termo melhor, de usuarismo — em analogia direta ao operacionismo italiano. Os italianos não conseguiam imaginar como empresas capitalistas não rentistas e com pouca mão de obra poderiam obter lucros capitalistas apenas atraindo mais-valia produzida em outro lugar; como resultado, acabaram introduzindo conceitos forçados como "trabalho digital gratuito". Zuboff, por sua vez, não consegue imaginar que a experiência humana, congelada em dados que são apropriados do usuário no ponto de contato com artefatos digitais, não seja o principal impulsionador por trás dos lucros exorbitantes do Google.

O userismo postula que, do Google ao Facebook, a maior parte dos lucros dessas empresas deriva da expropriação de dados do usuário. Mas isso acontece? Poderia haver outras explicações? Se elas existem, Zuboff não as considera, reunindo apenas evidências que confirmarão sua tese existente: os usuários fornecem dados ao Google; o Google usa os dados para personalizar a publicidade e construir serviços de nuvem intensivos em dados (uma parte importante dos negócios do Google, sobre os quais Zuboff fala muito pouco). Portanto, deve ser a conexão usuário-dados-publicidade que responde pelos lucros inesperados do Google. O que mais poderia ser, dado que ela não discute nenhum outro aspecto das operações do Google?

Google como empresa

Para colocar o modelo de negócios do Google em foco, vamos compará-lo ao Spotify, o serviço de streaming de música da Suécia. Os dois modelos são um tanto semelhantes: enquanto o Spotify tem usuários pagantes que compõem a maior parte de sua receita, ele também tem muitos não pagantes. Este último pode transmitir música de graça, mas a cada poucas músicas eles têm que ouvir anúncios. Apesar do desempenho recente estelar de suas ações, o Spotify não é lucrativo: em 2020, perdeu US$ 810 milhões; em contraste, os lucros de 2020 da Alphabet, empresa controladora do Google, foram de US$ 41 bilhões, grande parte proveniente do negócio de publicidade do Google. Na verdade, o Spotify tem sangrado dinheiro desde seu início: entre 2006 e 2018, o último ano em que esses números totais estão disponíveis, ele gastou US$ 10 bilhões em acordos de licenciamento, pagando gravadoras e, eventualmente, artistas, para poder transmitir seus catálogos.

Agora, em que negócio o Spotify está? Pode-se argumentar que ele vende uma mercadoria muito peculiar: uma experiência de usuário única e personalizada que fornece acesso em tempo real a uma coleção quase infinita de músicas. Aqui está a visão de um analista perspicaz: o Spotify é "um produtor de uma nova mercadoria, a experiência musical de marca", na qual "a música (mercantilizada como licenças) é simplesmente uma de várias entradas, embora a mais importante".[37] Sim, o Spotify distribui algumas dessas mercadorias para seus usuários não pagantes, mas o faz porque encontrou uma maneira inteligente de vender outra mercadoria baseada em publicidade para outra pessoa; a última seria impossível sem a primeira. Há muita extração de dados — o Spotify produz playlists personalizadas para seus usuários toda semana observando seus hábitos de audição — e não devemos ignorar a importância dos direitos de propriedade intelectual para seu modelo de negócios. Mas o modelo de negócios do Spotify deve, portanto, ser explicado focando apenas na extração de dados, ignorando o fato de que ele está no negócio capitalista de produzir algo? Fazer isso seria ignorar que todos esses dados são apenas um complemento ao negócio principal do Spotify: sua mercadoria única de experiência musical e de marca. Os rentistas desprezados nesse modelo são as gravadoras; o Spotify é um capitalista de carteirinha tanto quanto Henry Ford.

Vamos voltar ao Google. Ele também produz uma mercadoria — acesso em tempo real a grandes quantidades de conhecimento humano — mas, diferentemente do Spotify, a mercadoria do Google é muito mais barata de fazer. Por quê? Porque o Google não paga os editores e criadores de conteúdo cujas páginas ele indexa para produzir essa mercadoria, pelo menos não da mesma forma que o Spotify paga as gravadoras. O Google, diferentemente do Spotify, não oferece uma experiência de busca diferente e sem publicidade para seus usuários pagantes; mas seu site irmão, o YouTube, faz isso por uma taxa mensal. Assim como o Spotify com seus usuários não pagantes, o Google oferece sua mercadoria de busca de graça, o que, por sua vez, torna possível vender outra mercadoria altamente lucrativa — acesso às telas e atenção de seus usuários — para anunciantes. Há todo tipo de maneiras pelas quais vastos tesouros de dados pessoais, extraídos sub-repticiamente, podem tornar essa mercadoria de publicidade mais valiosa. Mas nada disso importaria se o Google realmente tivesse que pagar uma taxa para indexar cada pedaço de conteúdo que ele mostra na primeira página dos resultados de busca, ao lado dos anúncios que o tornam tão insanamente lucrativo.

The Age of Surveillance Capitalism tem 704 páginas, mas Zuboff dedica apenas duas frases, em passagens discretas discutindo outros assuntos, a esse pecado original no cerne do modelo de negócios do Google. Ela aceita isso como algo natural, simplesmente escrevendo sobre "informações indexadas que o rastreador da web do Google já havia tirado de outros sem pagamento". É fácil ver por que isso não atende à própria definição de desapropriação de Zuboff: não há usuários envolvidos. As operações capitalistas reais do Google não interessam ao usuário-ismo. No entanto, focar nos usuários e seus dados aqui é como focar nas playlists personalizadas do Spotify às custas de pagamentos de royalties: as primeiras não são totalmente irrelevantes — elas fazem os usuários voltarem — mas, no grande esquema das coisas, seu poder explicativo empalidece em importância em comparação com as últimas.

Paradoxalmente, o tremendo sucesso do modelo de negócios do Google sugere que o ambiente em que ele opera não é definido pelo "feudalismo da informação", mas sim pelo "comunismo da informação". É assim que seu objetivo elevado, quase socialista, de "organizar todo o conhecimento do mundo" poderia justificar a indexação infinita e gratuita de informações produzidas por outros, como se os direitos de propriedade — incluindo direitos relacionados ao acesso e uso — não existissem. O problema com o relato de Zuboff sobre o "capitalismo de vigilância" obcecado pela desapropriação é que ele é constitucionalmente incapaz de compreender como a economia digital não capitalista pode operar no futuro. Como resultado, ele não tem uma agenda política radical, exceto por algumas demandas vagamente liberais por coisas indefiníveis como "o direito ao futuro".

Ao patologizar o lado extrativista em andamento do capitalismo digital contemporâneo, a crítica de Zuboff normaliza completamente sua dimensão não extrativista. Seu horizonte utópico não se estende muito além de exigir um mundo no qual o Google, tendo abandonado a publicidade e a extração de dados associada, simplesmente começaria a cobrar por seus serviços de busca; uma opção que o Facebook estaria considerando. Que isso inadvertidamente normalizaria toda a ‘desapropriação digital’ que ocorre no estágio de indexação, consolidando o poder do Google e seu domínio sobre a imaginação institucional da sociedade, é de pouca preocupação para Zuboff. Afinal, para o user-ismo, o problema com o ‘capitalismo de vigilância’ é a vigilância dos usuários-consumidores, não o capitalismo como tal.

Ainda capitalismo?

Até recentemente, a maior parte da literatura séria e de esquerda sobre neofeudalismo ou tecnofeudalismo o abordava – como Neckel e Supiot – como um sistema sócio-político em vez de econômico. A publicação de Technoféodalisme pelo economista francês Cédric Durand representa a tentativa mais sustentada até agora de considerar seriamente as lógicas econômicas envolvidas.16 Durand ganhou seu nome com o livro Fictitious Capital (2014), que consiste numa análise perspicaz das finanças modernas. Ao contrário das suposições de alguns pensadores da esquerda, argumentou Durand, as atividades financeiras não precisam ser “predatórias”: em um sistema que funcione bem, elas podem ajudar a promover a produção capitalista facilitando o financiamento antecipado, por exemplo. No entanto, a partir da década de 1970, essa característica favorável à acumulação das finanças modernas – Durand a chama simplesmente de “inovação” – foi superada por duas dinâmicas mais sinistras. A primeira, enraizada na lógica da despossessão tal como fora teorizada por Harvey, apreendia as poderosas instituições financeiras reforçando as suas conexões com o Estado para redirecionar mais dinheiro público para si mesmas; aqui estamos de volta aos meios “extraeconômicos” de extrair ou, mais precisamente, redistribuir valor, apoiados pelos estreitos vínculos entre Wall Street e Washington. A segunda dinâmica, enraizada na lógica do parasitismo teorizada por Lênin em sua análise do imperialismo, referia-se aos vários pagamentos – juros, dividendos, taxas de administração – que as corporações não financeiras têm que fazer às empresas financeiras, que estão completamente fora do processo produtivo de mercadorias.

Segundo Durand, as medidas de resgate implementadas após a crise financeira de 2008 turbinaram a dinâmica da expropriação e do parasitismo, alijando ­assim a dinâmica de inovação. Por isso, ele se perguntava nas páginas finais de O capital fictício: "Isso ainda é capitalismo?" Para completar: "a agonia da morte deste sistema foi anunciada mil vezes. Mas agora pode muito bem ter começado, quase como se fosse por acidente." Esta não seria a primeira transição “quase acidental” para um novo regime econômico. Certa vez, Brenner descreveu a transição do feudalismo para o capitalismo na Inglaterra como "a consequência não intencional de atores feudais perseguindo objetivos feudais de maneiras feudais".[39] Portanto, a ideia de que os financistas, ao escolher o caminho mais fácil – dedicando-se exclusivamente à redistribuição ascendente politicamente organizada e ao parasitismo sustentado pela renda ­– poderiam acelerar a transição para um regime pós-capitalista não era apenas altamente intrigante, mas também teoricamente plausível.

Em seu novo livro, Technoféodalisme, Durand mantém seu foco no ­iminente fim do capitalismo, mas atribui a tarefa de enterrá-lo às empresas de tecnologia. O Capital Fictício já havia examinado o chamado quebra-cabeça do lucro sem investimento: quando o capitalismo está funcionando bem, lucros maiores deveriam significar investimentos maiores; o objetivo do capitalista como um ser econômico é nunca ficar parado. No entanto, aproximadamente a partir de meados da década de 1990, não houve tal ligação: os lucros aumentaram nas economias capitalistas avançadas – com altos e baixos – mas o investimento estagnou ou diminuiu. Muitas ­explicações foram apresentadas para explicar isso, incluindo a maximização do valor do acionista, a monopolização crescente ou os efeitos tóxicos da financeirização cada vez mais acelerada. Durand não apresentou novos fatores causais. Em vez disso, ele optou por argumentar que “o enigma dos lucros sem acumulação é, pelo menos em parte, artificial” — trata-se de uma ilusão estatística, criada por nossa incapacidade de compreender os efeitos da globalização.

Por um lado, algumas empresas encontraram maneiras de ganhar mais dinheiro sem investimento adicional. A globalização e a digitalização permitiram que as principais empresas do Norte Global – pense no Walmart – fortalecem as suas posições no ápice das cadeias globais de commodities para extrair preços mais baixos para bens finais ou intermediários dos atores mais abaixo na cadeia. Por outro lado, quando os capitalistas do Norte Global faziam investimentos, estes se dirigiam cada vez mais para o Sul Global. Assim, olhar para a dinâmica de investimento de lucro pelas lentes de países individuais do Norte Global – os EUA, por exemplo – não nos diz muito. Era necessária uma visão global para ver como exatamente os lucros são mapeados para os investimentos.

No livro Technoféodalisme, Durand junta-se ao crescente coro que explica o quebra-cabeça do “lucro sem investimento” enfatizando o papel dos direitos de propriedade intelectual e dos intangíveis – incluindo acervos de dados – ao permitir que as gigantes empresas americanas obtenham enormes lucros de suas cadeias de suprimentos, concentrando-se naqueles itens que têm as margens mais altas.18 Até certo ponto, é uma elaboração do argumento de Durand de 2014, mas com muito mais atenção dada às operações reais das cadeias de suprimentos globais e ao papel que os direitos de propriedade intelectual desempenham na distribuição de poder dentro delas. Para algumas das empresas que ele examina, o enigma dos lucros sem investimento não é mais artificial, como era em Capital fictício: eles realmente não investem muito, em seus países ou no exterior, independentemente de seus níveis de lucro. Eles devolvem seus ganhos aos acionistas em dividendos ou compram de volta suas próprias ações; alguns, como a Apple, fazem as duas coisas.

Technoféodalisme argumenta que a ascensão dos intangíveis, geralmente concentrados ­nos pontos mais lucrativos da cadeia de valor global, levou ao surgimento de quatro novos tipos de renda.19 Duas delas – rendas legais de propriedade intelectual e rendas de monopólio natural – parecem familiares: a primeira refere-se às rendas derivadas de patentes, direitos autorais e marcas registradas; a segunda, às rendas derivadas da capacidade de empresas como o Walmart de integrar toda a cadeia e fornecer as infraestruturas necessárias no seu próprio interior. As outras duas – rendas de inovação dinâmica e rendas diferenciais de intangíveis ­– soam mais complexas. Mas eles também capturam fenômenos relativamente claros e distintos: o primeiro refere-se a conjuntos de dados valiosos que são de propriedade exclusiva dessas empresas, enquanto o último se refere à capacidade das empresas dentro de uma única cadeia de valor de escalar suas operações (empresas que próprios ativos predominantemente intangíveis podem fazer isso de forma mais rápida e barata).

A taxonomia de Durand é elegante. Armado com essas categorias, ele começa a ver rentistas em todos os lugares – não muito diferente dos teóricos do ­capitalismo cognitivo que ele repreendeu, moderadamente, em O capital fictício; entretanto, agora ele não vê capitalistas em lugar algum. “A ascensão do digital”, conclui, “alimenta uma gigantesca ­economia rentista”, porque “o controle da informação e do conhecimento, ou seja, a monopolização intelectual, tornou-se o meio mais poderoso de capturar valor”. Com um aceno para as recentes especulações de McKenzie Wark sobre o assunto,20 Durand retorna à pergunta que fez em 2014: ainda estamos diante do capitalismo? O imperativo investir visando melhorar a produtividade, cortar custos e aumentar os lucros era o que assegurava o dinamismo do sistema capitalista. Esse imperativo se devia ao fato de os capitalistas operarem sob as pressões da competição de mercado, com a fungibilidade das mercadorias­, do trabalho e da tecnologia – o resultado, como argumentou Brenner, da ruptura da “fusão” desses três fatores sob o feudalismo.

A ascensão dos intangíveis – mas especialmente dos dados – reverte a ruptura capitalista dessa fusão, Durand argumenta: se os ativos digitais são indissociáveis dos usuários que os produzem e das plataformas em que são feitos, então podemos ler a economia digital como mais uma vez “fundir” os principais fatores de produção, de modo que sua mobilidade seja impedida. Em termos mais simples, estamos presos dentro dos jardins murados das empresas de tecnologia; nossos dados – cuidadosamente extraídos, catalogados e monetizados – nos amarram a eles para sempre. Isso enfraquece os efeitos indutores de produtividade da competição de mercado, dando àqueles que controlam os intangíveis uma capacidade impressionante de apropriar-se de valor sem nunca ter que se envolver na produção­. “Nessa configuração”, escreve Durand, “o investimento não é mais orientado para o desenvolvimento das forças produtivas, mas para as forças de predação”.[43]

Parasitismo e despossessão podem não fazer mais parte do vocabulário de Durand ­em Technoféodalisme – eles são substituídos por “predação”, já que Harvey e Lenin são descartados em favor de Thorstein Veblen. Ademais, as finanças dão lugar à indústria de tecnologia – mas a lógica não é tão diferente daquela encontrada em Capital Fictício. O que dá à economia digital seu peculiar sabor neofeudal ou tecno-feudal é que, enquanto os trabalhadores ainda estão sendo explorados de todas as formas capitalistas antigas, são os novos gigantes digitais, armados com ­meios sofisticados de predação, que mais se beneficiam. Analogamente aos senhores feudais, eles conseguem se apropriar de enormes pedaços da massa global do mais-valor sem nunca se envolverem diretamente na exploração do trabalho ou no processo produtivo. Durand se baseia no trabalho de Zuboff para mostrar a dominação oculta exercida pelo “big other” do “big data”, argumentando que o segredo do sucesso do Google está em sua capacidade de extrair, reunir e lucrar com uma variedade de conjuntos de dados. Ela desfruta de um monopólio efetivo devido aos efeitos de rede e impressionantes economias de escala: ela se beneficiará mais de qualquer novo conjunto de dados do que uma startup poderia, tornando a concorrência muito mais difícil.

Há muita sabedoria, bem como bom senso básico, em tais conclusões­. Mas o teor geral do argumento se volta muito para o usuário, já que Durand, como Zuboff, ignora o papel crucial desempenhado pela indexação ­na operação geral do Google. É mais difícil invocar conceitos como “monopolização intelectual” aqui, pois as páginas de terceiros às quais o Google se vincula para produzir sua mercadoria de resultado de pesquisa permanecem ­propriedade de seus editores. O Google não possui os resultados que indexa. Em teoria, qualquer outra empresa bem capitalizada poderia construir a tecnologia de rastreamento da web para indexá-los. Pode ser extremamente caro, mas não se deve confundir essas barreiras com a forma “aluguel”, com o mecanismo rentista: o que é caro para uma startup de Berlim pode ser relativamente acessível para o SoftBank do Japão, com seu Vision Fund de US$ 100 bilhões. Os extensos acervos de dados do Google são uma questão diferente; eles merecem uma discussão sobre essa forma de obtenção de renda. Mas não se pode fingir que seu negócio gira em torno desses acervos de dados, como se o Google fosse um mero rentista – e não uma empresa capitalista padrão.

6. Forças de predação?

O raciocínio de Durand também se baseia em um trabalho importante sobre rendas de informação na economia global do economista Duncan Foley. Em linha com a perspectiva de Marx, Foley argumenta que o valor excedente não é apropriado apenas nos locais onde é gerado (essas são as páginas perdidas da teoria marxista que ainda precisam chegar aos obreiros italianos). Tratando os vastos recursos intangíveis colhidos por meio de direitos de propriedade intelectual da maneira como Marx e alguns dos economistas políticos clássicos trataram os rentistas de terras, podemos ver que as gigantescas plataformas de tecnologia da informação não são capitalistas, mas rentistas disfarçados. "Não é nem necessário ser um capitalista para competir por uma parte desse conjunto de valor excedente", escreve Foley:

Direitos de propriedade executáveis ​​que permitem ao proprietário de recursos produtivos (frequentemente chamados de "terra" na terminologia da economia política clássica) excluir capitalistas do acesso a esses recursos criam "rendas". Essas rendas são parte do conjunto de valor excedente gerado na produção capitalista, embora não tenham relação direta com a exploração do trabalho produtivo em si. O proprietário de recursos terrestres, como campos férteis, cachoeiras, reservas minerais e de hidrocarbonetos e similares, não precisa levantar um dedo ou contratar outra pessoa para levantar um dedo produtivamente para compartilhar o valor excedente gerado pelo trabalho assalariado produtivo.[44]

Aqui, as analogias são bem claras: terra = dados; empresas de tecnologia = não capitalistas; suas receitas = aluguel. Foley faz muito do exemplo da cachoeira, argumentando que "uma vez que uma pessoa ou entidade em particular tenha estabelecido o controle do direito de propriedade sobre uma cachoeira, por exemplo, um aluguel que constitui uma parte do pool global de valor excedente passa a existir". Mas, ele continua, há coisas ainda melhores do que possuir uma cachoeira. Afinal, a água é escassa. Os intangíveis, por outro lado, podem ser infinitos: se alguém possui os direitos autorais de uma música popular, pode obter aluguéis quase infinitos dela.

Agora, a grande questão pendente é se o Google e seus pares são como aquele proprietário não capitalista da cachoeira que "não precisa levantar um dedo" para compartilhar o valor excedente gerado em outro lugar. Foley diz que sim. Mas, se for assim — se os gigantes da tecnologia realmente são rentistas preguiçosos que estão roubando todo mundo explorando direitos de propriedade intelectual e efeitos de rede — por que eles investem tanto dinheiro no que só pode ser descrito como produção de algum tipo? Que tipo de rentistas fazem isso? Os gastos com P&D da Alphabet em 2017, 2018, 2019 e 2020 foram de US$ 16,6 bilhões, US$ 21,4 bilhões, US$ 26 bilhões e US$ 27,5 bilhões, respectivamente. Isso não conta como "levantar um dedo"? Se não, o que contaria?

A Amazon também gastou US$ 42,7 bilhões somente em 2020 em pesquisa e desenvolvimento, ao mesmo tempo em que empregava mais de um milhão de pessoas em todo o mundo. Nos EUA, a empresa emprega mais pessoas do que toda a indústria de construção residencial: um em cada 153 americanos empregados.[45] Se esses são rentistas preguiçosos donos de cachoeiras, eles são peculiarmente masoquistas: por que não simplesmente descansar sobre os louros, demitir todo mundo e parar de gastar? E quem, olhando para esses números, poderia realmente acreditar — junto com os pós-trabalhistas — que os capitalistas agora são externos à produção? Em que então eles estão gastando todo esse dinheiro de P&D? Mais revelador ainda, uma análise detalhada dos balanços do Google, Amazon e Facebook mostra que eles têm menos ativos intangíveis do que outras grandes corporações — na verdade, hoje eles possuem relativamente menos ativos intangíveis do que tinham há dez a quinze anos.[46] É fácil ver o porquê: todos esses dados exigem extensas redes físicas e vastos data centers — mas essas tendências criam um grande buraco nos argumentos que enfatizam demais os ativos intangíveis.

Durand certamente deve estar ciente de alguns desses números. Sua potencial fuga dessa situação analítica é o conceito de "predação" — emprestado da análise de Veblen da burguesia belle-époque americana em The Theory of the Leisure Class (1899) — e argumentar que esses investimentos massivos financiam as forças da predação, em vez das forças da produção. Existem, de fato, muitas maneiras interessantes de implantar a estrutura analítica de Veblen — sua distinção entre indústria orientada para a eficiência e negócios orientados para o pecuniário, por exemplo — para argumentar que o que realmente impulsiona os capitalistas não é a busca pelo lucro, mas, sim, a capacidade de se envolver em sabotagem, para garantir que os barões ladrões de hoje recebam não apenas os lucros que esperam, mas lucros maiores do que seus concorrentes.

Nos últimos vinte anos, uma nova abordagem à economia política conhecida como Capital como Poder (CasP) surgiu para fazer exatamente isso, introduzindo o conceito de "acumulação diferencial" para descrever tal dinâmica.[47] Seus adeptos, concentrados principalmente na York University no Canadá, criticaram tanto a economia marxista quanto a neoclássica — usando alguns argumentos sólidos e convincentes — por negligenciar essas dinâmicas de "sabotagem" e ignorar o papel constitutivo do poder no capitalismo como um todo. Essa abordagem informou algumas pesquisas recentes interessantes sobre a indústria de tecnologia, incluindo trabalhos empiricamente ricos sobre renda tecnocientífica e ativoização, com insights de estudos de Ciência e Tecnologia.[48]

A dificuldade de encaixar Marx e Veblen em uma única estrutura analítica aqui — algo que Durand também tenta em um ensaio recente[49] — é que Marx via a predação e a sabotagem como parte integrante do feudalismo, não do capitalismo. Para Veblen, esses são instintos presentes em todos os capitalistas, mesmo que aqueles com controle sobre ativos intangíveis possam estar melhor posicionados para agir sobre eles. Marx, no entanto, em última análise, via os capitalistas como produtivos; se alguém pudesse falar de sabotagem, isso só seria possível no nível sistêmico do capitalismo como um todo e não no nível de capitalistas individuais. Durand claramente quer ficar com Marx em vez de Veblen. No entanto, isso exigiria explicitar exatamente o que são essas "forças de predação" e como elas se relacionam com a acumulação e todos os debates espinhosos sobre "acumulação primitiva" — um desafio teórico que Durand, tendo se envolvido com "acumulação por desapropriação" em Fictitious Capital, conhece muito bem. Caso contrário, não está claro por que a teoria marxista precisaria dessa carapaça teórica altamente ambígua de "predação", quando suas próprias categorias — de lucro e produção capitalista, bem como aluguel e rentismo — bastam para explicar o sucesso do Google.

O próprio Marx foi inequívoco sobre o fato de que empresas capitalistas totalmente automatizadas não apenas se apropriam do valor excedente derivado de outro lugar — sobre isso, Foley e Durand concordam — mas que o fazem como lucros, não como aluguel. Essas empresas automatizadas são tão capitalistas quanto as empresas que exploram o trabalho assalariado diretamente. Como Marx escreve no Volume 3:

Um capitalista que não empregasse nenhum capital variável em sua esfera de produção, portanto, nem um único trabalhador (na verdade, uma suposição exagerada), teria tanto interesse na exploração da classe trabalhadora pelo capital e obteria tanto lucro do trabalho excedente não pago quanto um capitalista que empregasse apenas capital variável (novamente uma suposição exagerada) e, portanto, investisse todo seu capital em salários.[50]

A tese tecno-feudal não decorre do avanço da teoria marxista contemporânea, mas de sua aparente incapacidade de dar sentido à economia digital — do que, exatamente, é produzido nela e como. Se aceitarmos que o Google está no negócio de produzir commodities de resultados de pesquisa — um processo que requer investimento de capital massivo — não há grande dificuldade em tratá-lo como uma empresa capitalista regular, envolvida na produção capitalista normal. Isso não quer dizer que os gigantes digitais não se envolvam em todos os tipos de outras táticas para consolidar seu poder, alavancar seus portfólios de patentes, prender seus usuários e obstruir qualquer possível competição, muitas vezes comprando startups desafiadoras, além das fortunas gastas para ganhar o apoio de legisladores no Capitólio. A competição capitalista é um negócio desagradável e pode ser ainda mais desagradável quando produtos digitais estão envolvidos. Mas isso não é motivo para cair nos pântanos analíticos do capitalismo cognitivo, do usuário ou do tecno-feudalismo. Tanto Veblen quanto Marx podem ser necessários se quisermos entender as táticas de empresas individuais e as consequências sistêmicas de suas ações; nesse sentido, há muito que os marxistas podem aprender com a escola "Capital como poder". Mas para que qualquer abordagem faça grandes avanços, é preciso ter pelo menos clareza sobre os modelos de negócios das empresas em questão. Concentrar-se em alguns aspectos deles — simplesmente porque se detecta um excesso de direitos de propriedade intelectual, ou sinais de financeirização, ou algum outro processo perturbador — não fornecerá uma visão abrangente desses modelos.

7. Entrar no estado

Além da falta de clareza analítica, outro grande problema com a estrutura tecno-feudalista é que ela corre o risco de tirar o estado do quadro. O Techno-féodalisme de Durand tem muito pouca discussão sobre o papel propulsor do estado americano na ascensão do Alphabet, Facebook ou Amazon; o mesmo vale para muitos outros textos mais curtos sobre tecno-feudalismo.[51] A crítica de Durand ao que ele chama de Ideologia Californiana faz muito da orientação ciberlibertária da "Magna Carta do Ciberespaço", seu texto fundamental. Mas ele deixa de mencionar que uma das quatro autoras desse documento, a proeminente investidora Esther Dyson, também passou anos no conselho do National Endowment for Democracy, o melhor canal de mudança de regime dos Estados Unidos. Exceto por alguns relatos contrários — entre eles, o excelente America Inc.? de Linda Weiss. Inovação e Empreendimento no Estado de Segurança Nacional (2014) — o papel do estado americano na ascensão do Vale do Silício como uma hegemonia tecnoeconômica global tem sido muito subestimado. Ler esses desenvolvimentos através das lentes do tecno-feudalismo — que assume que os estados são fracos, com a soberania "parcelada" entre muitos tecno-senhores — só pode ofuscar isso ainda mais. Toda a recente histeria techlash sobre o poder das empresas de tecnologia — como "gigantes" ou "barões ladrões", ou apenas um bloco monolítico de "Big Tech" — consolidou a noção de que a ascensão das plataformas digitais ocorreu às custas do desempoderamento do estado.

Este pode ser o caso de países europeus ou latino-americanos mais fracos, quase todos colonizados por empresas americanas nos últimos anos. Mas o mesmo pode ser dito dos próprios Estados Unidos? E quanto aos vínculos de longa data entre o Vale do Silício e Washington, com o ex-CEO do Google, Eric Schmidt, liderando o Defense Innovation Board, um órgão consultivo do próprio Pentágono? E quanto à Palantir, a empresa cofundada por Thiel que fornece vínculos essenciais entre o estado de vigilância dos EUA e a tecnologia americana? Ou o argumento de Zuckerberg — aparentemente eficaz até agora — de que dividir o Facebook encorajaria os gigantes da tecnologia chinesa e enfraqueceria a posição da América no mundo? A geopolítica é pouco visível dentro da perspectiva tecno-feudalista: as poucas menções de Durand à China são principalmente para repreender seu sistema de Crédito Social, um instrumento de governamentalidade algorítmica.

Poderia essa falta de atenção ao papel constitutivo desempenhado pelo estado na consolidação da indústria tecnológica americana ser o resultado dos enquadramentos analíticos e brennerianos do capitalismo que buscam deduzir suas "leis do movimento" observando-o em ação? É impossível compreender a ascendência da indústria tecnológica americana se alguém colocar entre parênteses a Guerra Fria e a Guerra ao Terror — com seus gastos militares e tecnologias de vigilância, bem como a rede global de bases militares americanas — como fatores estranhos e não capitalistas, de pouca importância para entender o que o "capital" quer e o que faz. Poderia alguém cometer o mesmo erro hoje, quando a "ascensão da China" e a catástrofe climática estão vindo para ocupar o papel de orientação do sistema antes desempenhado pela Guerra Fria? Se sim, também podemos esquecer de compreender a ascensão do que alguns apelidaram de "capitalismo de gestão de ativos", que busca delegar a tarefa do estado de combater as mudanças climáticas a empresas como Blackrock, Vanguard e State Street.

Do ponto de vista brenneriano, qualquer intervenção sistêmica do estado nas operações em andamento do capital pode parecer um exemplo de "capitalismo político"[52] — em vez de capitalismo "econômico" funcionando corretamente, impulsionado por suas próprias leis de movimento. Para o próprio Brenner, a estagnação de longo prazo da economia dos EUA em condições de excesso de capacidade de fabricação global levou elementos poderosos da classe dominante americana a abandonar seu interesse em investimento produtivo e se voltar para a redistribuição ascendente de riqueza por meios políticos.[53] Nisso, estranhamente, esquerda e direita parecem convergir. Afinal, detectar os efeitos corrosivos do "capitalismo político" em todos os lugares é muito mais típico da economia liberal e neoliberal, preocupadas como estão com a busca de renda por funcionários públicos e o ressurgimento de redes personalistas intervindo nas operações do capital. Foi esse tipo de preocupação com o capitalismo "político" em vez do "econômico" que deu origem à Escolha Pública e à fetichização da anticorrupção por economistas de Chicago como Luigi Zingales. O próprio Durand se envolve repetidamente com Mehrdad Vahabi, um estudioso da Escolha Pública, citando-o favoravelmente sobre predação.[54]

Talvez seja hora de perguntar se o debate Brenner-Wallerstein está prestes a uma resolução definitiva. Pode-se argumentar que as ambiguidades não resolvidas desse debate criaram as aberturas analíticas e intelectuais por meio das quais a tese tecno-feudalista agora parece plausível para jovens economistas marxistas criativos como Durand. Afinal, é somente porque a expropriação contínua e o poder político que ela pressupõe não podem ser facilmente reconciliados com a explicação do desenvolvimento capitalista orientada pela exploração que precisamos de conceitos estranhos como a "acumulação por desapropriação" de Harvey, a "predação" de Veblen, a "renda cognitiva" de Vercellone ou mesmo a "extração do excedente comportamental" de Zuboff.

Amplos oceanos

Atualmente, a única maneira de encaixar a exploração e a expropriação em um único modelo é argumentar que precisamos de uma concepção expandida do próprio capitalismo – como Nancy Fraser tem feito, com algum sucesso. Resta saber se o relato de Fraser, que ainda está sendo elaborado, terá êxito em dar conta de considerações geopolíticas e militares mais amplas. Mas o sentido geral do argumento que desenvolve parece correto. Enquanto na década de 1970 pode ter sido interessante pensar o trabalho não-livre, a dominação racial e de gênero e o uso gratuito do transporte público – bem como os termos de troca desiguais, os quais resultaram da aquisição pelo centro de mercadorias baratas produzidas na periferia, supondo tudo isso como externo ao capitalismo baseado na exploração, atualmente tudo isso se tornou mais difícil. Tais argumentos têm sido cada vez mais questionados por alguns trabalhos empíricos excepcionais feitos por historiadores que trabalham nos temas de gênero, clima, colonialismo, consumo e escravidão. A expropriação recebeu um tratamento mais adequado e isso complicou significativamente a pureza analítica com a qual as leis do movimento do capital poderiam ser formuladas. Jason Moore – um aluno de Wallerstein e de Giovanni Arrighi – pode ter chegado a um novo consenso quando escreveu que “o capitalismo prospera quando ilhas de produção e troca de mercadorias podem se apropriar de oceanos formados por porções de natureza potencialmente baratas – fora do circuito do capital, mas essenciais para sua operação”.22 Essa consideração, é claro, vale não apenas para “porções de natureza baratas” – eis que existem muitas outras atividades e processos que podem ser apropriados – tais “oceanos”, na verdade, ocupam mais espaço do que sugere Moore.

Uma grande concessão que o marxismo político provavelmente teria que fazer é abandonar sua concepção de capitalismo como um sistema marcado pela separação funcional entre o econômico e o político. É certo que “a necessidade econômica fornece por si só a compulsão imediata que obriga o trabalhador a transferir o trabalho excedente para o capitalista” e que isso está em contraste com a fusão do econômico com o político que ocorre sob o feudalismo. Certamente havia boas razões para apontar que o avanço da democracia parou nos portões das fábricas; esses direitos concedidos na arena política não eliminavam necessariamente o despotismo na esfera econômica. É claro que muitos pontos nessa suposta separação eram falsos: como Ellen Meiksins Wood argumentou em seu artigo seminal sobre o assunto (The Separation of the Economic and Political in Capitalism), foi a teoria econômica burguesa que construiu uma “economia pura” e, assim, abstraiu os aspectos sociais e políticos que envolvem o sistema econômico. Foi o próprio capitalismo que criou a cunha que desloca as questões essencialmente políticas da arena política para colocá-la na esfera econômica. Um exemplo disso é o poder “de controlar a produção e a apropriação, ou seja, a alocação do trabalho social”. A verdadeira emancipação socialista exigiria também uma plena consciência de que a separação entre essas duas esferas é bem artificial.[56]

No entanto, o relato geral de Wood pintou um quadro de coerção sob o capitalismo que era simplista demais. “A integração entre produção e apropriação [sob o capitalismo]” – escreveu ela – “representa a ‘privatização’ definitiva da política, na medida em que as funções anteriormente associadas a um poder político coercitivo – centralizado ou “parcializado” – estão agora firmemente alojadas na esfera [econômica] privada. Figuram, então, como funções da classe apropriadora que se encontra isenta de obrigações para cumprir quaisquer propósitos sociais maiores”. Nessa visão, o escopo do “puramente político” em relação ao puramente econômico era bastante limitado: consistia, principalmente, em salvaguardar os direitos de propriedade. Que o político também tenha sido fundamental para garantir suprimentos baratos de energia e comida, de mão-de- obra não-livre, de matéria primas minerais, de conhecimento e, talvez, eventualmente, de dados – ou seja, as próprias condições de possibilidade que tornam possível a concepção (expandida) do “econômico” – não foi expresso, por uma razão óbvia: nenhuma dessas coisas tinha relação direta com a exploração.

No entanto, se o “político” foi tão instrumental para a constituição do “econômico”, pode-se perguntar exatamente o que se ganha ao apresentar ­o capitalismo como um sistema que mantém o “político” e o “econômico” separados. Que os capitalistas e seus ideólogos falem dessa maneira é uma coisa; até que ponto esta é uma descrição precisa do que realmente ocorre sob o capitalismo – a tese do artigo de Woods – é outra. Aqui nos lembramos da piada de Bruno Latour de que a modernidade fala com uma língua bifurcada: ela diz que a ciência e a sociedade são polos opostos – mas essa confusão estratégica é precisamente o que permite hibridizá-las de forma tão produtiva. Pode ser que a história do político e do econômico sob o capitalismo seja muito semelhante.

Em retrospecto, é fácil ver por que Brenner nunca se impressionou com a cunhagem do termo, feita por Harvey, de “acumulação por despossessão”. Na medida em que o conceito se refere à redistribuição – realizada tanto pelos mercados quanto pela violência – e não pela produção, ele não poderia deixar de ser acumulação capitalista “primitiva” para a regular, pelo menos no entendimento de Brenner sobre o termo. No entanto, dadas todas as evidências históricas que se acumularam nos últimos quarenta anos – especialmente durante a crise de 2008 e a pandemia de Covid – tornou-se mais difícil, mesmo para Brenner, classificar a redistribuição como algo estranho ao capitalismo realmente existente. As quantias envolvidas – muitos trilhões de dólares – são simplesmente assombrosas demais. Assim, ele escreveu em “Escalating Plunder”, seu texto de 2020 sobre os resgates da Covid: “O que tivemos por uma longa época é o agravamento ­do declínio econômico acompanhado pela intensificação da predação política”.24 A palavra “político” — uma indicação de que, para Brenner, o processo “normal” de ­acumulação capitalista está falhando — aparece com frequência nesse ensaio.

Faltando a estrutura para unir a redistribuição e a exploração dentro de uma explicação mais ampla da acumulação capitalista, Brenner tem apenas um movimento restante: postular que a dependência dos capitalistas da redistribuição ascendente da riqueza conduzida pelo Estado está afastando o capitalismo de si mesmo, em direção a uma forma econômica que aparentemente compartilha uma característica central com o feudalismo. Ora, isso manteria a pureza do modelo original – o título honorário de “capitalismo” poderia ser reservado para aquele regime impressionante em que a acumulação acontece por meio da inovação, em vez de predação ou desapropriação – mas apenas à custa de desencadear todos os tipos de efeitos secundários, ou seja, problemas analíticos e políticos. As fraquezas do argumento de Durand são, até certo ponto, produto de tensões não resolvidas no debate Brenner-Wallerstein.

A ironia final aqui é que a melhor evidência de que a “acumulação via inovação” está – como o próprio capitalismo – ainda muito viva, pode ser encontrada no mesmo setor de tecnologia que Durand descreve como feudal e rentista. Podemos ver isso quando abandonamos as macro-narrativas supra-determinadas ­dessas estruturas analíticas – seja o “neoliberalismo” de Harvey como um projeto político ou o “capitalismo cognitivo” ­de Vercellone. Pensar nas empresas de tecnologia da maneira que Marx provavelmente pensaria sobre elas – ou seja, como empresas produtoras de valor, ou seja, tipicamente capitalistas – certamente produz melhores resultados.

Nesse entretempo, os marxistas fariam bem em reconhecer que a exploração e a expropriação foram constitutivas da acumulação ao longo da história. Talvez o “luxo” de empregar apenas os meios econômicos de extração de valor no núcleo “propriamente” capitalista tenha sido sempre possível devido ao uso extensivo de meios extraeconômicos de extração de valor na periferia não capitalista. Uma vez dado esse salto analítico, não precisamos mais nos preocupar com invocações do feudalismo. O capitalismo está se movendo na mesma direção de sempre, alavancando quaisquer recursos que possa mobilizar – e, nesse aspecto, quanto mais barato, melhor. Nesse sentido, a antiga descrição de Braudel do capitalismo como “infinitamente adaptável” não é a pior perspectiva a ser adotada. Mas ele nem sempre se adapta continuamente; quando o faz, entretanto, não é certo que as tendências redistributivas para cima da pirâmide vençam as que concernem a produção. Pode ser que seja exatamente assim o que acontece, atualmente, com a economia digital. Isso, é claro, não é razão para acreditar que o tecno-capitalismo seja de alguma forma um regime mais agradável, aconchegante e progressivo do que o tecno-feudalismo. Contudo, invocando em vão o último, corremos o risco de passar o pano para a reputação do primeiro.

1 No interesse da divulgação, devo relatar que por volta de 2016 eu também flertei com esses conceitos, usando-os em uma coluna de jornal ocasional e em uma palestra. Por volta dessa época, o termo "feudalismo digital" até apareceu no anúncio do subtítulo do meu livro ainda a ser publicado (a edição final certamente não o apresentará); também apareceu no subtítulo de uma coleção de meus ensaios que saiu na Espanha em 2018. Tendo percebido suas fraquezas analíticas, rapidamente abandonei esses conceitos.

2 Eric Posner and Glen Weyl, Radical Markets: Uprooting Capitalism and Democracy for a Just Society, Princeton 2018, p. 232.

3 As ideias por trás de “Feudl” estão descritas no blog de Yarvin, Unqualified Reservations.

4 Varoufakis: ver o seu curto artigo Techno-Feudalism Is Taking Over, Project Syndicate, 28 June 2021; ver, também, a minha entrevista com ele, Yanis Varoufakis on Crypto, the Left and Techno-Feudalism, The Crypto Syllabus, 26 January 2022; Mariana Mazzucato, Preventing Digital Feudalism, Project Syndicate, 2 October 2019; Jodi Dean, Communism or Neo-Feudalism?, New Political Science, vol. 42, no. 1, February 2020; Robert Kuttner: ver o artigo em coautoria com Katherine Stone, The Rise of Neo-Feudalism, American Prospect, 8 April 2020. Ver, em adição, a discussão de Wolfgang Streeck sobre a “desiqualdade oligárquica”: How Will Capitalism End? Essays on a Failing System, London and New York 2016, pp. 28–30, 35, 187. Michael Hudson tem escrito sobre o neofeudalismo por quase uma década; ver, por exemplo, The Road to Debt Deflation, Debt Peonage and Neofeudalism, Levy Economics Institute of Bard College Working Paper no. 708, February 2012. Robert Brenner usou o termo em seu From Capitalism to Feudalism? Predation, Decline and the Transformation of US Politics’, University of Massachusetts Amherst Political Economy Workshop, 27 April 2021.

5 Ver Brett Christophers, Rentier Capitalism: Who Owns the Economy, and Who Pays for It? Londres, 2020.

6 Julia Tomassetti, Does Uber Redefine the Firm? The Postindustrial Corporation and Advanced Information Technology, Indiana Legal Studies Research Paper nº 345, abril de 2016.

7 A recapitulação mais acessível da leitura marxista sobre o feudalismo como uma lógica econômica se encontra em Chris Wickham, How Did the Feudal Economy Work? The Economic Logic of Medieval Societies, Past & Present, vol. 251, no. 1, May 2021.

8 Devo essa frase notável ao título do livro de Murray Smith’s Invisible Leviathan: Marx’s Law of Value in the Twilight of Capitalism, Leiden 2020.

9 O livro de Marc Bloch, Feudal Society, London [1939] 2014, é a referência perene nessa esfera intelectual.

10 Ellen Meiksins Wood, The Separation of the Economic and the Political in Capitalism, NLR nº127, maio-junho de 1981, p. 80.

11 A literatura nesse tópico é imensa, mas um texto inicial indispensável sobre o Debate Brenner se encontra no livro de Trevor Aston e Charles Philpin, eds, The Brenner Debate: Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe, Cambridge 1987.

12 Immanuel Wallerstein, The Origins of the Modern World-System, New York 1974, pp. 16–20.

13 Robert Brenner, The Origins of Capitalist Development: A Critique of Neo-Smithian Marxism, NLR nº 104, julho-agosto de 1977.

14 Robert Brenner, What Is, and What Is Not, Imperialism? Historical Materialism, vol. 14, no. 4, Janeiro de 2006, pp. 79–105.

15 Karl Marx, Capital, Livro I. Ref. Orig. Bem Fowkes. Londres, 1990, p. 915.

16 Cédric Durand, Techno-féodalisme: Critique de l’économie numérique, Paris 2020.

17 Ver Chris Harman and Robert Brenner, The Origins of Capitalism, International Socialism, nº 111, verão de 2006.

18 Ver, por exempo, Özgür Orhangazi, The Role of Intangible Assets in Explaining the Investment–Profit Puzzle, Cambridge Journal of Economics, vol. 43, nº 5, março de 2019, pp. 1251–86; Herman Mark Schwartz, Global Secular Stagnation and the Rise of Intellectual Property Monopoly, Review of International Political Economy, 2021, pp. 1–26.

19 Durand também discute essa tipologia num artigo em coautoria com William Milberg, Intellectual Monopoly in Global Value Chains, Review of International Political Economy, vol. 27, nº 2, setembro de 2020.

20 McKenzie Wark, Capital Is Dead: Is This Something Worse? London e New York, 2021.

21 Ver também o livro de Cecilia Rikap, Capitalism, Power and Innovation: Intellectual Monopoly Capitalism Uncovered, London 2021.

22 Jason Moore, The Capitalocene, Part 2: Accumulation by Appropriation and the Centrality of Unpaid Work/Energy, The Journal of Peasant Studies, vol. 45, nº 2, maio de 2018, pp. 237–79.

23 Wood, The Separation of the Economic and Political in Capitalism, pp. 66–7.

24 Brenner, Escalating Plunder, p. 22.

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