19 de janeiro de 2003

Petista pode fundar nova globalização, diz filósofo

Tiago Aguiar
Free-lance para a Folha

Folha de S.Paulo

István Mészáros, 72, filósofo húngaro, é um dos maiores pensadores da esquerda contemporânea. Radicado na Universidade de Sussex, na Inglaterra, desde 1991, trabalhou com o também húngaro Georg Lukács. Mészáros participará do Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre, onde fará palestra no dia 24, primeiro dia de conferências, na mesa "Contra a Militarização e a Guerra".

O filósofo é um crítico da globalização nos moldes do Consenso de Washington, o receituário neoliberal. Para ele, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve ser o fundador de um novo modelo.

Autor de "Para Além do Capital" (2002), uma releitura de "O Capital", de Karl Marx (1818-1883), Mészáros defende negociações multilaterais e diz que o desenvolvimento do Brasil dependerá de uma radical ruptura com as práticas adotadas.

A "responsabilidade fiscal" buscada por Lula, segundo ele, não será empecilho para o cumprimento das promessas sociais.

Sobre política, Mészáros diz que a democracia na América Latina ainda não está estabelecida.

No Fórum Social Mundial, ele lançará o livro "O Século 21: Socialismo ou Barbárie?", pela Boitempo Editorial.

Leia trechos da entrevista:

Folha - O que o fato de Lula ser um político de esquerda representa para o Brasil e a América Latina?

István Mészáros - Sem dúvida, a eleição de Lula é um evento da maior importância. Isso não pode ser negado nem pelas forças conservadoras que se opuseram a ele. Mas o verdadeiro significado da vitória de Lula será revelado quando ele desapontar as expectativas dos seus novos "apoiadores", que se aliaram a ele na tentativa de impor políticas conservadoras: os liberais.

Folha - O que o sr. acha das comparações que foram feitas entre Lula, Fidel Castro e Hugo Chávez?

Mészáros - As comparações servem para sublinhar que a América Latina precisa de uma profunda, realmente radical, mudança. Quando se fala de Lula, Fidel e Chávez, não se pode deixar de mencionar [Salvador" Allende, que também tentou introduzir mudanças radicais no seu país [Chile", e morreu na tentativa. Aqueles que não entendem a necessidade de mudanças continuarão ignorando os líderes que se formam. Mas esses líderes continuarão aparecendo até que as razões sociais e históricas que os criam sejam resolvidas.

Folha - Como o sr. considera que devam ser conduzidos o comércio e as relações políticas entre Brasil e Estados Unidos?

Mészáros - Os formuladores das políticas americanas continuam a pensar que o modo correto de levar essas relações é impondo uma "dependência estrutural" aos vizinhos. E isso não é um fenômeno recente. Por quase todo o século 20, os EUA viram a América Latina como o seu "quintal".

Naturalmente houve mudanças, mas basta ler as memórias de Henry Kissinger para perceber que os "benefícios" do Norte são meramente "táticos" para que o status quo seja mantido. A negociação deve continuar sendo perseguida, mas com uma redefinição de metas para buscar uma "igualdade substantiva" entre as partes.

Folha - Lula é o terceiro presidente eleito pelo voto direto após o regime militar. Qual a sua opinião sobre a consolidação da democracia no Brasil e na América Latina?

Mészáros - Quando você me pergunta isso, lembro de Mahatma Gandhi. Quando lhe foi indagado o que ele achava da civilização ocidental, Gandhi disse que "seria uma boa idéia". Infelizmente, democracia no continente ainda está no patamar de "seria uma boa idéia".

Folha - Existe um ditado em política que diz que o poder funciona como um violino: você pega com a esquerda, mas realmente o toca com a direita. Lula pode ir para o centro durante o mandato como uma forma de assegurar a governabilidade e a reeleição?

Mészáros - Não esqueça que existem verdadeiros artistas que podem tocar instrumentos, inclusive um violino, com a mão esquerda. A marca de políticos de estatura, como Lula, é que eles podem enfrentar adversidades e perseguir um objetivo com tenacidade, apesar das tentações que os empurram na direção contrária dos compromissos originais.

Folha - Quais os caminhos para o Brasil se desenvolver?

Mészáros -É sabido, e agora até mesmo abertamente admitido, que as teorias e práticas do passado para remediar o subdesenvolvimento no Terceiro Mundo falharam. É ingênuo pensar que a ajuda do capital dominante mundial será a solução. O desenvolvimento do Brasil dependerá de uma radical ruptura com essas teorias e práticas.

Folha - Lula prometeu responsabilidade orçamentária e compromisso com as causas sociais. Como ele fará progresso nas duas áreas?

Mészáros - Não acho que essa seja uma questão de uma coisa ou outra. Pelo contrário, estou convencido de que a idéia de responsabilidade orçamentária sem comprometimento com causas sociais é uma contradição em termos. O que é necessário é uma mudança estrutural, que se torna uma impossibilidade a priori se impusermos as imposições de responsabilidade orçamentária do FMI ao compromisso com as causas sociais. Devemos nos convencer de que a chave para alcançar a "responsabilidade orçamentária" é promover as condições sociais necessárias ao progresso.

Folha - O sr. acredita que Lula possa fundar um novo modelo, diverso do Consenso de Washington?

Mészáros - Eu realmente espero por isso, pois o chamado Consenso de Washington não é de forma alguma um consenso. Ele representa a internalização das forças dos seus representantes mais importantes. O presidente pode iniciar um processo de mudança. Lula pode realmente dar uma importante contribuição à forma coletiva de resolver esse problema [a representatividade de poucos".

Folha - Lula pode seguir um caminho similar ao das administrações de Tony Blair, na Inglaterra, ou de Lionel Jospin, na França, adotando políticas ortodoxas para manter a governabilidade?

Mészáros - Dificilmente. Seguir os passos de Blair e Jospin só pode causar problemas em vez de promover governabilidade. Alienando as esquerdas, Jospin deu um corpo para o fantasma de Le Pen [o candidato ultra-direitista derrotado no segundo turno por Jacques Chirac" e acabou em terceiro lugar na corrida presidencial. Na Inglaterra, todas as recentes eleições dos sindicatos têm dado vitória a candidatos radicais. Aqueles apoiados por Blair têm sido sistematicamente derrotados.

Folha - Na sua opinião, quais devem ser as prioridades de Lula?

Mészáros - Lula iniciou a sua Presidência anunciando uma guerra contra a fome, o que demonstra a importância que o presidente dará aos problemas sociais. Mas será necessário que o governo marque uma posição firme na questão das dívidas para não ter suas mãos atadas por pressões do FMI [Fundo Monetário Internacional".

Folha - Na sua opinião, quais são os principais riscos ao governo?

Mészáros - Eu posso pensar em duas fontes de preocupação. A primeira: instabilidade social proveniente de um desapontamento das expectativas populares. A segunda: um bloqueio da economia mundial devido a uma guerra que saia do controle e que leve a um "fechamento" catastrófico do comércio mundial.

Folha - Qual a importância do Fórum Social Mundial?

Mészáros - É enorme. Os corpos sociais se unindo em um fórum social mundial são catalisadores para a criação de uma ordem social alternativa que, de outro modo, seria inconcebível.

Folha - O sr. irá participar do FSM. Quais as idéias que pretende apresentar e defender no encontro?

Mészáros - Pretendo falar sobre o maior problema do nosso tempo: o perigo de uma guerra surgida das contradições insolúveis do imperialismo global hegemônico. O Fórum Social Mundial tem um papel vital na mobilização popular contra esse perigo.

Folha - Quais são os grandes desafios às idéias da esquerda no futuro próximo?

Mészáros - A esquerda precisa se recuperar da derrota sofrida pela implosão das sociedade de estilo soviético. A ordem estabelecida, sob o controle do capital, encontra-se em profunda crise estrutural. O papel histórico da esquerda socialista é elaborar e instituir uma alternativa viável. A estrada para essa alternativa pode ser bastante difícil. Mas eu acredito que ela está mais próxima hoje do que em qualquer outro momento.

11 de janeiro de 2003

Kipling, o "fardo do homem branco" e o imperialismo americano

John Bellamy Foster e Robert W. McChesney


Volume 55, Issue 06 (November)

Tradução / Estamos a viver um período em que a retórica do império conhece poucas limitações. Numa matéria especial sobre "A América e o império", o número de Agosto da revista londrina Economist perguntou se os Estados Unidos estariam, na eventualidade de "mudanças de regime... efectuadas pacificamente" no Irão e na Síria, "realmente preparados para arcar com o fardo do homem branco em todo o Médio Oriente". A resposta dada foi que isto era "improvável" — o compromisso americano para com o império não ia tão longe. O que é significativo, entretanto, é que a questão tenha chegado a ser perguntada.

As actuais guerras americanas no Afeganistão e no Iraque levaram observadores a perguntarem-se se não haverá semelhanças e ligações históricas entre o "novo" imperialismo do século XXI e o imperialismo dos séculos XIX e XX. Jonathan Marcus, o correspondente sobre defesa da BBC, comentou há uns poucos meses:

Deveria ser lembrado que, há mais de uma centena de anos, o poeta britânico Rudyard Kipling escreveu o seu famoso poema intitulado "o fardo do homem branco" — uma advertência acerca das responsabilidades do império que era destinado não a Londres mas a Washington e às suas novas responsabilidades imperiais na Filipinas. Não está claro que o presidente George W. Bush seja leitor de poesia ou de Kipling. Mas os sentimentos de Kipling são tão relevantes hoje quanto foram quanto o foram na altura em que o poema foi escrito, pouco após a Guerra Hispano-Americana. (17/julho/2003)

Alguns outros proponentes do imperialismo nos dias modernos também extraíram ilações do poema de Kipling, os quais principiam pelas linhas:

Aguentem o fardo do Homem Branco —
— Enviem para a frente o melhor que tenham gerado — 
(Take up the White Man's burden —
— Send forth the best ye breed —)

Antes de discutir as razões para este súbito interesse renovado no "Fardo do Homem Branco" de Kipling, é necessário apresentar alguma informação prévia acerca da história do imperialismo americano a fim de situar o poema no seu contexto.

Da Guerra Hispano-Americana à Guerra Filipino-Americana

Na Guerra Hispano-Americana de 1898 os Estados Unidos tomaram as colónias espanholas no Caribe e no Pacífico, emergindo pela primeira vez como uma potência mundial. [1] Tal como em Cuba, o domínio colonial espanhol nas Filipinas provocou uma luta de libertação nacional. Imediatamente após o bombardeamento naval de Manilha, em 1 de Maio de 1898, no qual a frota espanhola foi destruída, o almirante Dewey enviou uma canhoneira a Hong Kong para buscar o líder revolucionário filipino Emilio Aguinaldo. Os Estados Unidos queriam que Aguinaldo liderasse uma nova revolta contra a Espanha para continuar a guerra antes que chegassem as tropas americanas. Os filipinos tiveram tanto êxito que em menos de dois meses derrotaram os espanhóis na ilha principal de Luzon, sitiando as tropas espanholas remanescentes na cidade capital de Manilha, ao mesmo tempo que quase todo o arquipélago caía em mãos filipinas. Em Junho os líderes filipinos emitiram a sua própria Declaração de Independência baseada no modelo americano. Quando as forças americanas finalmente chegaram, no fim de Junho, os 15 mil soldados espanhóis escondidos em Manilha estavam cercados pelo exército filipino entrincheirado em torno da cidade — de modo que as forças americanas tiveram de pedir permissão para atravessar as linhas filipinas a fim de enfrentar estas tropas espanholas remanescentes. O exército espanhol rendeu-se às forças americanas em Manilha em 13 de Agosto de 1898, depois de apenas umas poucas horas de combate. Num acordo entre os Estados Unidos e a Espanha, as forças filipinas foram mantidas fora da cidade e foram postas de parte na rendição. Esta foi a batalha final daquela guerra. John Hay, embaixador americano na Grã-Bretanha, apreendeu o espírito imperialista daquele tempo quando escreveu que a Guerra Hispano-Americana como um todo fora "uma esplêndida pequena guerra".

Contudo, uma vez ultrapassado o combate com a Espanha, os Estados Unidos recusaram-se a reconhecer a existência da nova República Filipina. Em Outubro de 1898 a administração McKinley revelou publicamente pela primeira vez que pretendia anexar todas as Filipinas. Dizem que ao chegar a esta decisão o presidente McKinley teria dito que "Deus Poderoso" ordenara-lhe que fizesse das Filipinas uma colónia americana. Poucos dias após este anúncio foi estabelecida em Boston a Liga Anti-Imperialista da Nova Inglaterra. Dentre os seus membros incluíam-se pessoas célebres como Mark Twain, William James, Charles Francis Adams e Andrew Carnegie. No entanto, a administração avançou e em Dezembro concluiu o Tratado de Paris, pelo qual a Espanha concordava em ceder as Filipinas à nova potência imperial, bem como suas outras possessões capturadas pelos Estados Unidos durante a guerra.

A isto seguiu-se um violento debate no Senado acerca da ratificação do tratado, centrando-se sobre os estatutos da Filipinas, os quais, excepto para a cidade de Manilha, estavam sob o controle da nascente República Filipina. Em 4 de Fevereiro de 1899, tropas americanas com ordens para provocar um conflito com as forças filipinas que cercavam Manilha foram deslocadas para o terreno contestado que se situava entre as linhas americanas e filipinas, nos subúrbios da cidade. Quando se depararam com soldados filipinos os soldados americanos gritaram "Alto" e a seguir abriram fogo, matando três deles. As forças americanas começaram imediatamente uma ofensiva geral, com todo o seu poder de fogo, que equivaleu a um ataque surpresa (os principais oficiais filipinos estavam longe na altura, a participar de um esplêndido baile celebratório), infligindo enormes baixas às tropas filipinas. O San Francisco Call relatou em 5 de Fevereiro que no momento em que as notícias chegaram a Washington McKinley disse a "um amigo íntimo...que na sua opinião o enfrentamento de Manilha asseguraria a ratificação do tratado no dia seguinte".

Estes cálculos demonstraram-se correctos e no dia seguinte o Senado ratificou oficialmente o Tratado de Paris, pondo fim à Guerra Hispano-Americana — cedendo Guam, Porto Rico e Filipinas aos Estados Unidos, e pondo Cuba sob controle americano. Ele estipulava que os Estados Unidos pagariam à Espanha 20 milhões de dólares pelos territórios que haviam ganho por meio da guerra. Mas isto pouco disfarçava o facto de que a Guerra Hispano-Americana foi uma captura aberta e sem rodeios de um império colonial ultramarino pelos Estados Unidos, em resposta à necessidade percebida pelos meios de negócio americanos, que se recuperavam de uma retracção económica, de novos mercados globais.

Os Estados Unidos imediatamente impulsionaram a Guerra Filipino-Americana, que principiara dois dias antes — e que demonstrou-se como uma das mais bárbaras guerras de conquista imperial da história. O objectivo dos EUA neste período era expandir-se não só no Caribe como também no Pacífico — e através da colonização das ilhas filipinas ganhar uma entrada no enorme mercado chinês. (Em 1900, a partir das Filipinas, os Estados Unidos enviaram tropas à China para se juntarem a outras potências imperiais no esmagamento da Rebelião Boxer).

"O Fardo do Homem Branco" de Kipling, com o subtítulo "Os Estados Unidos e o Arquipélago Filipino", foi publicado no número de Fevereiro de 1899 do McClure's Magazine . [2] Fora escrito quando ainda decorria o debate acerca da ratificação do Tratado de Paris, e enquanto o movimento anti-imperialista nos Estados Unidos condenava ruidosamente o plano para anexar as Filipinas. Kipling instava os Estados Unidos, com referência especial às Filipinas, a juntar-se à Grã-Bretanha na tomada das responsabilidades raciais do império:

Seus recém-capturados tristes povos,
— Semi-diabos e semi-crianças. 
(Your new-caught sullen peoples,
— Half devil and half child.)

Muitos nos Estados Unidos, incluindo o presidente McKinley e Theodore Roosevelt, saudaram o apelo violento de Kipling para que os Estados Unidos se engajassem em "guerras selvagens", principiando pelas Filipinas. O senador Albert J. Beveridge, de Indiana, declarou: "Deus não andou a preparar os povos de língua inglesa e teutónicos durante um milhar de anos para nada senão a vã e ociosa auto-contemplação e auto-admiração... Ele fez-nos peritos em governação para que possamos administrar governo entre povos selvagens e senis". No fim, mais de 126 mil oficiais e soldados foram enviados para as Filipinas a fim de deitar abaixo a resistência durante uma guerra que perdurou oficialmente desde 1899 até 1902 mas que realmente continuou durante muito mais tempo, com resistência esporádica ao longo de mais de uma década. As tropas americanas travaram 2800 confrontos com a resistência filipina. Pelo menos 250 mil filipinos, a maior parte deles civis, foram mortos, juntamente com 4200 soldados americanos (mais de dez vezes do que o número de baixas fatais na Guerra Hispano-Americana). [3]

Desde o princípio ficou claro que as forças filipinas não eram capazes de rivalizar com os Estados Unidos em termos de guerra convencional. Elas portanto passaram rapidamente à guerra de guerrilha. As tropas americanas em guerra com os filipinos jactavam-se, numa popular canção de marcha, de que "civilizariam com o Krag" (referindo-se à arma concebida por noruegueses com as quais as forças americanas eram equipadas). Mesmo assim acabaram por enfrentar intermináveis pequenos ataques e emboscadas de filipinos, os quais costumavam usar facas longas conhecidas como bolos. Destes ataques guerrilheiros resultavam mortes em combate de soldados americanos em pequenos números mas com regularidade. Tal como em todas as guerras de guerrilha prolongadas, a força da resistência filipina devia-se ao facto de ter o apoio da generalidade da população. Tal como o general Arthur MacArthur (o pai de Douglas MacArthur), que em 1900 tornou-se governador militar das Filipinas, confidenciou a um repórter em 1899:

Quando comecei a actuar contra estes rebeldes, acreditava que as tropas de Aguinaldo representavam apenas uma facção. Eu não queria acreditar que toda a população de Luzon — isto é, a população nativa — opunha-se a nós e às nossas ofertas de ajuda e bom governo. Mas depois de ter avançado mais com isto, depois de ter ocupado várias cidades e povoados seguidos... fui relutantemente obrigado a acreditar que as massas filipinas são leais a Aguinaldo e ao governo que ele encabeça. 

Confrontados com uma guerra de guerrilha apoiada pela vasta maioria da população, os militares americanos responderam a isto através do reagrupamento das populações em campos de concentração, incendiando aldeias (os filipinos por vezes eram forçados a carregarem a gasolina utilizada para incendiar as suas próprias casas), enforcamentos em massa, seccionamentos a baioneta de suspeitos, violação sistemática de mulheres e crianças e tortura. A mais infame técnica de tortura, usada reiteradamente nesta guerra, era a chamada "cura de água". Grandes quantidades de água eram despejadas à força nas gargantas dos prisioneiros. Os seus estômagos ficavam então salientes de modo que a água era expelida a três pés de altura "como num poço artesiano". A maior parte das vítimas morria não muito tempo depois disso. O general Frederick Funston não hesitou em anunciar que havia pessoalmente enforcado um grupo de 35 civis suspeitos de apoiarem os revolucionários filipinos. O major Edwin Glenn não viu qualquer razão para negar a acusação de que ele fizera um grupo de 47 prisioneiros filipinos ajoelhar-se e "arrepender-se dos seus pecados" antes de cortá-los a baioneta e levá-los à morte. O general Jacob Smith ordenou às suas tropas que "matassem e queimassem", a alvejarem "todos os grupos superiores a dez" e a transformarem a ilha de Samar "num imenso deserto". O general William Shafter, na California, declarou que poderia ser necessário matar a metade da população filipina a fim de proporcionar a "perfeita justiça" à outra metade. Durante a Guerra Filipina os Estados Unidos inverteram as estatísticas de baixas de guerra normais — habitualmente há muito mais feridos do que mortos. Segundo estatísticas oficiais (discutidas em audiências no Congresso sobre a guerra) as tropas americanas mataram 15 vezes mais filipinos do que os feriram. Isto confirma frequentes relatos de soldados americanos de que combatentes combatentes filipinos feridos e capturados eram executados sumariamente no local.

A guerra continuou mesmo após a captura de Aguinaldo, em Março de 1901, mas foi declarada oficialmente concluída pelo presidente Theodoro Roosevelt em 3 de Julho de 1902 — numa tentativa de suprimir a crítica às atrocidades americanas. Naquele momento, a maior parte das ilhas do norte fora "pacificada" mas a conquista das ilhas a sul ainda estava em andamento e a luta perdurou durante anos — embora nos Estados Unidos de então os rebeldes fossem caracterizado como meros bandidos.

Nas Filipinas do sul o exército colonial americano estava em guerra com filipinos muçulmanos, conhecidos como Moros. Em 1906 foi executado aquilo que veio a ser conhecido como o Massacre Moro, quando pelo menos nove centenas de filipinos, incluindo mulheres e crianças, foram encurralados numa cratera vulcânica na ilha de Jolo e metralhados e bombardeados durante dias. Todos os filipinos foram mortos, ao passo que as tropas americanas sofreram apenas um punhado de baixas. Mark Twain respondeu aos relatos iniciais (os quais indicavam que aquele massacre totalizava seiscentos ao invés de novecentos homens, mulheres e crianças como se verificou depois) com uma sátira amarga: "Com seiscentos engajados de cada lado, perdermos quinze homens e tivemos trinta e dois feridos — contando aquele nariz e aquele cotovelo. O inimigo chegava a seiscentos — incluindo mulheres e crianças — e nós os liquidámos completamente, não deixando sequer um bebé vivo para chorar por sua mãe morta. Esta é incomparavelmente a maior vitória já alcançada desde sempre pelos soldados cristãos dos Estados Unidos ". Ao ver uma foto amplamente divulgada que mostrava soldados americanos a olharem para pilhas de filipinos mortos na cratera, W. E. B. Du Bois declarou numa carta a Moorfield Storey, presidente a Liga Anti-Imperialista (e posteriormente o primeiro presidente da NAACP - National Association for the Advancement of Colored People), que ela constituía "a coisa mais esclarecedora que já vi desde sempre. Quero especialmente tê-la emoldurada e pendurada na parede da minha sala de conferências para fixar nos estudantes o que realmente significam as guerra e especialmente a Guerra de Conquista". [4]

O presidente Theodore Roosevelt imediatamente cumprimentou o seu bom amigo general Leonard Wood, o que executou o Massacre Moro, escrevendo: "Congratulo a si e aos oficiais e homens sob o seu comando pelo brilhante feito de armas e que o senhor e eles sustentaram tão bem a honra da bandeira americana". Tal como Kipling, Roosevelt raramente hesitava em promover a causa imperialista ou promover doutrinas de superioridade racial. Mas nas novelas de Kipling, as estórias e os versos distinguiam-se pelo facto de que pareciam, para muitas pessoas no mundo branco, evocar uma causa transcendente e nobre. Ao mesmo tempo elas não deixavam de estender a mão e reconhecer o ódio que o colonizado tem pelo colonizador. Ao conceder a Kipling o Prémio Nobel de Literatura, em 1907, o Comité Nobel proclamou: "o seu imperialismo não é do tipo intransigente que não repara nos sentimentos dos outros". [5] Era precisamente isto que fazia "O fardo do homem branco" de Kipling, e outros escritos da sua lavra, tão efectivos como véus ideológicos para a realidade bárbara.

O ano em que o poema de Kipling apareceu, 1899, marcou não só o fim da Guerra Hispano-Americana (com a ratificação do Tratado de Paris) e o princípio da Guerra Filipino-Americana como também o princípio da Guerra Boer na África do Sul. Elas foram guerras imperialistas clássicas e geraram movimentos anti-imperialistas e críticas radicais como resposta. Foi a Guerra Boer que motivou o Imperialismo, um estudo (1902), de John A. Hobson, que argumentou: "Em parte alguma sob tais condições" — referindo-se especificamente ao imperialismo britânico na África do Sul — "a teoria do governo branco como uma garantia de civilização verificou-se válida". A sentença de abertura do Imperialismo, etapa superior do capitalismo , de Lenin, escrito em 1915, declarava que "especialmente a partir da Guerra Hispano-Americana (1898), e da Guerra Anglo-Boer (1899-1902), a literatura económica e também a política dos dois hemisférios tem, cada vez mais, adoptado o termo 'imperialismo' a fim de definir a era actual".

A mensagem de Kipling aos imperialistas após uma centena de anos

Embora o imperialismo tenha permanecido uma realidade ao longo do último século, durante a maior parte do século XX o próprio termo foi considerado como além do permitido dentro dos círculos polidos do establishment — tão grande foi o ultraje anti-imperialista levantado pela Guerra Filipino-Americana e pela Guerra Boer, e tão efectiva foi a teoria marxista do imperialismo em arrancar o véu das relações capitalistas globais. Nestes últimos poucos anos, entretanto, "imperialismo" tornou-se outra vez um brado de apêlo para neoconservadores e neoliberais afins. Tal como reconheceu recentemente Alan Murray, Chefe do Bureau de Washington da CNBC numa declaração dirigida principalmente às elites: "Todos nós, parece, somos agora imperialistas" ( Wall Street Journal , 15/Jul/ 2003).

Se alguém duvidasse por um instante de que a actual expansão do império americano não é senão a continuação de uma história de um século do imperialismo americano além mar, Michael Ignatieff (Professor de Política dos Direitos Humanos na Kennedy School of Government, de Harvard) torna isto claro como o dia:

A operação Iraque assemelha-se mais à conquista das Filipinas entre 1898 e 1902. Ambas foram guerras de conquista, ambas foram pressionadas por uma elite ideológica sobre um país dividido e ambas custaram muito mais do que o orçamentado. Tal como no Iraque, vencer a guerra foi a parte fácil... Mais de 120 mil soldados americanos foram enviados para as Filipinas a fim de deitar abaixo a resistência guerrilheira, e 4000 nunca voltaram. Ainda está para ser visto se o Iraque custará milhares de vidas americanas — e se o público americano aceitará um preço tão pesado para o êxito no Iraque. ( New York Times Magazine , 07/set/2003).

Com representantes do establishment a sustentarem abertamente ambições imperialistas, não deveríamos surpreender-nos com as repetidas tentativas de trazer de volta o argumento do "fardo do homem branco" de uma forma ou de outra. Nas páginas de encerramento do seu livro premiado, The Savage Wars of Peace , Max Boot cita o poema de Kipling:

Assuma o fardo do Homem Branco —
— E obtenha a sua recompensa de sempre:
A censura daqueles que você melhora,
— O ódio daqueles que você guarda — 
(Take up the White Man's burden —
— And reap his old reward:
The blame of those ye better,
— The hate of those ye guard —)

Boot insiste em que Kipling estava certo, que "os colonialistas, por toda a parte, habitualmente recebem poucos agradecimentos no fim". No entanto, deveríamos ser encorajados, diz-nos ele, pelo facto de que "a maior parte do povo não resistiu à ocupação americana, como certamente teria feito se ela tivesse sido desagradável e brutal. Muitos cubanos, haitianos, dominicanos e outros podem secretamente ter saudado o domínio americano". A implicação principal de Boot parece bastante clara — os Estados Unidos deveriam outra vez "Assumir o fardo do Homem Branco". O seu livro, publicado em 2002, termina argumentando que os Estados Unidos deveriam ter deposto Saddam Hussein e ocupado o Iraque na altura da Guerra do Golfo de 1991. Aquela tarefa, indicou ele, ficou por cumprir.

Boot é o antigo editor de peças editoriais de The Wall Street Journal , e agora Investigador Senior em Estudos de Segurança Nacional do Council on Foreign Relations. O título de The Savage Wars of Peace foi retirado directamente de uma linha no "Fardo do Homem Branco" de Kipling. As 428 páginas de Boot com a glorificação das guerras imperialistas dos EUA receberam o Prémio Best Book de 2002 do Washington Post, Christian Science Monitor , e do Los Angeles Times e ganharam o Prémio General Wallace M. Greene Jr. 2003 pelo melhor livro de não ficção relativo à história do Marine Corps. Boot sustenta que a Guerra Filipina foi "uma das mais bem sucedidas contra-insurreições travadas por um exército ocidental nos tempos modernos" e declara que, "pelos padrões da época, a conduta dos soldados americanos foi melhor do que a média em guerras coloniais". O papel imperial americano nas Filipinas, o assunto do "Fardo do Homem Branco" de Kipling, está portanto a ser apresentado como um modelo para a espécie de papel imperial que Boot e outros neoconservadores estão agora a encorajar nos Estados Unidos. Mesmo antes da guerra no Iraque, Ignatieff observava: "o imperialismo costumava ser o fardo do homem branco. Isto deu-lhe uma má reputação. Mas o imperialismo não deixou de ser necessário porque ser politicamente incorrecto" — um ponto que pode muito bem ser lido como estendendo-se ao próprio "fardo do homem branco". ( New York Times Magazine , 28/jul/2002).

A Guerra Filipino-Americana está agora a ser redescoberta como a mais estreita aproximação da história americana aos problemas que os Estados Unidos estão a encontrar no Iraque. Além disso, os Estados Unidos aproveitaram-se dos ataques do 11 de Setembro de 2001 para intervir militarmente não só no Médio Oriente como também em todo o globo — incluindo as Filipinas onde instalou milhares de soldados para ajudar o exército filipino a combater os insurrectos Moro nas ilhas do sul. Neste novo clima imperialista, Niall Ferguson, Professor de História na Stern School of Business, Universidade de Nova York, e um dos principais advogados do novo imperialismo, focou o poema de Kipling "O Fardo do Homem Branco" no seu livro Empire(2002). "Ninguém", diz-nos Ferguson,

ousaria utilizar uma linguagem tão politicamente incorrecta hoje em dia. A realidade no entanto é que os Estados Unidos — quer se admita quer não — assumiram uma espécie de fardo global, tal como instava Kipling. Consideram-se responsáveis não só por travar uma guerra contra o terrorismo e Estados vilões, mas também por difundir os benefícios do capitalismo e da democracia além mar. E tal como o Império Britânico antes, o Império Americano actua para sempre em nome da liberdade, mesmo quando o seu próprio auto-interesse está em primeiro lugar.

Apesar da alegação de Ferguson de que "ninguém ousaria" chamar a isto hoje em dia "o fardo do homem branco" por ser "politicamente incorrecto", referências simpáticas a esta expressão continuam a aflorar — e a maior parte delas nos círculos privilegiados. Boot — que não pode ser considerado um marginal uma vez que está associado ao influente Council on Foreign Relations — é um bom exemplo. Tal como o próprio Ferguson, ele tenta incorporar o "fardo do homem branco" dentro de uma longa história de intervenção idealista, subestimando as realidades do racismo e do imperialismo. "Nos princípio do século XX", escreve ele no capítulo final do seu livro (intitulado "In Defense of the Pax Americana"), "os americanos falavam da difusão da civilização anglo-saxonica e assumiam o 'fardo do homem branco', hoje falam de difundir a democracia e defender direitos humanos. Seja o que for que se chame, isto representa um impulso idealista que sempre foi uma parte importante do ímpeto americano para ir à guerra".

Os imperialistas de hoje vêm o poema de Kipling principalmente como uma tentativa de endurecer a espinha dorsal da classe dirigente americana dos seus dias como preparação para o que ele chamou "as selvagens guerras da paz". E é precisamente deste modo que eles agora aludem aos "fardo do homem branco" em relação ao século XXI. Assim, para a revista Economist a questão é simplesmente se os Estados Unidos estão "preparados para suportar o fardo do homem branco por todo o Médio Oriente".

Como analista e como porta-voz do imperialismo, Kipling estava muito acima disto no sentido de que percebia perfeitamente o assomar das contradições do seu próprio tempo. Ele sabia que o Império Britânico estava demasiado estendido e condenado — mesmo que ele lutasse para salvá-lo e para inspirar os Estados Unidos em ascensão a entrarem na etapa imperial ao lado dele. Apenas dois anos antes de escrever "O Fardo do Homem Branco" escreveu os seus celebrados versos, "Recessional":

Chamados para longe, nossos navios fundem-se,
— Sobre dunas e cabos mergulha o fogo;
Olhe, todo o nosso esplendor de ontem
— Está-se junto a Nínive e Tiro!
Juiz das Nações, poupe-nos por enquanto,
Para que não esqueçamos — para que não esqueçamos! 
(Far-called, our navies melt away;
— On dune and headland sinks the fire;
Lo, all our pomp of yesterday
— Is one with Nineveh and Tyre!
Judge of Nations, spare us yet,
Lest we forget—lest we forget!)

Os Estados Unidos estão agora a abrir caminho para uma nova fase do imperialismo. Isto será marcado não só por aumentos de conflitos entre centro e periferia — racionalizado no Ocidente pelo racismo velado e não tão velado — mas também pela crescente rivalidade intercapitalista. Isto provavelmente acelerará o declínio a longo prazo do Império Americano, ao invés de reverte-lo. E nesta situação um apelo para um cerrar fileiras entre aqueles de extracção europeia (o "choque de civilizações" de Samuel Huntington ou algum substituto) provavelmente vai tornar-se mais atraente entre as elites americanas e britânicas. Deveria ser recordado que o "Fardo do Homem Branco" de Kipling era uma apelo à exploração conjunta do globo por aqueles a que Du Bois posteriormente chamou "os mestres brancos do mundo" em face da decadência das fortunas britânicas.[6] Assim, em momento algum deveríamos subestimar a tríplice ameaça do militarismo, imperialismo e racismo — ou esquecer que as sociedades capitalistas historicamente foram identificadas com todas as três.

Notas

1. O breve tratamento histórico que se segue da Guerra Filipino-Americana foi retirado principalmente destas obras: Henry F. Graff, ed., American Imperialism and the Philippine Insurrection: Testimony Taken from Hearings on Affairs in the Philippine Islands before the Senate Committee on the Philippines— 1902 (Boston: Little, Brown, 1969); Angel Velasco Shaw and Luis H. Francia, Vestiges of War: The Philippine-American War and the Aftermath of an Imperial Dream, 1899–1999 (New York: New York University Press, 2002); Daniel B. Schirmer, Republic or Empire: American Resistance to the Philippine War (Cambridge, Mass.: Schenkman, 1972) and “How the Philippine-U.S. War Began,” Monthly Review , September 1999; Stuart Creighton Miller , “Benevolent Assimilation”: The American Conquest of the Philippines, 1899–1903 (New Haven: Yale University Press, 1990) ; and Daniel B. Schirmer and Stephen Rosskamm Shalom, The Philippines Reader (Boston: South End Press, 1987).

2. O poema é muitas vezes reproduzido sem o subtítulo. Para uma versão correcta ver Kipling's Verse: Definitive Edition (New York: Doubleday, 1940).

3. Embora um quarto de milhão seja o número "consensual" dos historiadores, estimativas de mortes filipinas nesta guerra ascendem a números tão altos como um milhão, o que teria significado o despovoamento das ilhas em cerca de um sexto.

4. Jim Zwick, ed., Mark Twain's Weapons of Satire (Syracuse, New York: Syracuse University Press, 1992), p. 172. Para informação sobre o massacre Moro e a citação de W. E. B. Du Bois ver www.boondocksnet.com/ai/ail/moro.html . O sítio web boondoscksnet de Jim Zwick é uma fonte crucial para materiais sobre a Guerra Filipino-Americana, respostas contemporâneas ao "Fardo do Homem Branco" de Kipling, e escritos anti-imperialistas de Mark Twain.

5. O Comitê Nobel estava, entretanto, impressionado sobretudo pela simpatia de Kipling para com os Boers da África do Sul — uma outra população de colonizadores brancos.

6. Este apelo às elites brancas para dividir o mundo evocou uma resposta para além da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. A admiração por Kipling entre as classes dirigentes no centro do mundo capitalista era mais geral. Como nos diz Hobsbawm: "Quando se acreditava que o escritor Rudyard Kipling, o bardo do Império Britânico, estava a morrer de pneumonia em 1899, não só os britânicos e os americanos sentiram pesar — Kipling acabara de destinar um poema sobre "O Fardo Mundo Branco" aos EUA acerca das suas responsabilidades na Filipinas — mas o Imperador da Alemanha enviou um telegrama". Eric Hobsbawm, The Age of Empire (New York: Vintage, 1987), p. 82.

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