28 de dezembro de 2016

Carrie Fisher (1956-2016)

O que mais gostávamos sobre Carrie Fisher era que ela parecia inclinada a dizer a verdade, e quase ninguém faz isso, certamente não estrelas de Hollywood.

Eileen Jones


Carrie Fisher em 2012. Gage Skidmore

Tradução / Para muita gente, a morte de Carrie Fisher significa a morte da princesa Leia. Ela sabia disso e escreveu,

“Eu digo a meus jovens amigos que um dia eles estarão em um bar jogando sinuca, olharão para a televisão que terá uma foto da Princesa Leia com duas datas no rodapé e dirão ‘Oh! Ela disse que isso aconteceria’. Depois voltarão a jogar sinuca”.

Vou deixar que outra pessoa escreva este tributo a Princesa Leia, outra pessoa pode fazer esse devido favor. Mas esta não é a Carrie Fisher que me interessa.

O que eu gostava sobre Carrie Fisher foi que ela parecia sempre inclinada a dizer a verdade, e quase ninguém faz isso, certamente não as estrelas hollywoodianas. Mais certamente ainda entre as estrelas de Hollywood que são o que Fisher chamou de “produtos de Hollywood”, referindo-se a seu status de filha de Debbie Reynolds e Eddie Fisher, a estrela infantil de pais famosos.

Manter o estrelato em geral pode resultar em muitos segredos, você pode pensar que uma dinastia de estrelas apenas intensificaria esta tendência através das gerações.

Mas Fisher parecia alérgica a segredos. “Você é tão doente quanto seus segredos” ela escreveu ao dizer tudo ou, pelo menos, sagazmente parecer que dizia tudo.

Pessoas que são ricas e famosas na América, e, portanto, tem muito mais chance de escolher o que fazer com suas vidas do que qualquer pessoa. São inclinadas a aparições públicas em que disfarçam suas reais experiências. O que parece ser as regras de membros de uma sociedade a parte as quais você nunca diz o que realmente acontece atrás dos portões das mansões.

Definitivamente não se fala sobre o consumo de drogas. Mas Carrie Fisher nunca parou de nos contar sobre tomar todas estas drogas. “Eram minhas amigas”, ela disse carinhosamente, embora os amigos fossem contra.

A compulsão por tornar normal o anormal, ilustrado por revistas como US Weekly [revista de celebridades dos EUA – Nota da tradutora] sob o titulo “Eles são como nós!” em que mostram celebridades usando moletom enquanto compram café para viagem e andam com seus cachorros, não é o jeito de Carrie Fisher.

Ela se expôs e disse que toda Hollywood era maluca e detalhou através de histórias. Por isso, abençoamo-la e lamentamos sua morte.

Ela era capaz de reconhecer e divertidamente expor, em livros, entrevistas e monólogos, a relação com sua própria experiência com a suposta normalidade – ou pelo menos o que ela achava ser normalidade. O trecho a seguir é do livro Wishful Drinking:

“Quer dizer, se eu entro em um lugar e digo ‘Sabe como é ver seu pai mais pela TV do que na vida real?’ não acho que muitos poderão responder ‘Meu Deus! Você também?’. E da mesma forma, eu tenho que perguntar, com que frequência você diz “na vida real?“.

Quando Debbie Reynolds precisou de alguém para aconselhar a filha adolescente sobre o uso de drogas, o ex-usuário de LSD Cary Grant foi chamado como conselheiro. Quando Fisher engasgou com uma couve-de-bruxelas, foi Dan Ackroyd que fez a manobra de Heimlich nela.

Meryl Streep interpretou seu alter-ego Suzanne no filme adaptado do primeiro livro de Fisher, Postcards From The Edge. Mas era frequentemente questionada: Por que ela mesma não interpretou o papel? “Já interpretei Suzanne”, disse, referindo-se a sua vida como uma duradoura atuação.

O fato de Fisher saber tudo isso era estranho, e a vontade de compartilhar toda sua esquisitice conosco, o público, fez dela alguém como nós, uma pessoa comum honorária.

Ela tinha um anseio humano de ser parte do panteão dos vivos, vividos, atormentados escritores de verdades de Hollywood que admirava, lendários super-expostos como Judy Garland e Ava Gardner, que perto do final de suas épicas vidas adoraram desenterrar as sujeiras de Hollywood e o fizeram de forma hilária.

Fisher fez listas de celebridades azaradas – bêbados, usuários de drogas, sobreviventes de doenças mentais que pensaram por muito tempo em suicídio – e orgulhosamente adicionava seu nome. Ela se vangloriava, por exemplo, de sua amizade com praticantes de terapia de eletrochoques famosos, como Judy Garland, Cole Porter, Lou Reed, Yves St. Laurent, Ernest Hemingway e Vivien Leigh e coroava “Olha o que estes fodidos conseguiram realizar!”.

Talvez fossem os excessos, do que ela chamou, de sua muito movimentada vida que prematuramente a envelheceu. Fisher pareceu ir rapidamente da picante estrela no icônico biquíni de metal para a cansada veterana de meia idade da guerra do showbiz, mostrando suas cicatrizes e resmungando piadas irônicas sobre suas realizações, como se ela tivesse pensado em ter o status de excelência desde berço.

Esta impressão de acelerado envelhecimento criado parcialmente por sua diversificada carreira de atriz, resultou numa surpreendente limitada filmografia para alguém tão famoso.

Ao invés de construir sua inicial carreira atuando em sucessivos papeis principais em filmes, ela desviou para escrita de livros e revisão de roteiros nos bastidores, nunca perseguindo o estrelato em grandes filmes em nada parecida com a duríssima e tradicional disciplina hollywoodiana de sua mãe.

Finalmente, o estrelato de Fisher se restringiu a composição de sua autobiografia sobre crescer e ser destruída em Hollywood, e como ela se tornou a divertida, auto-depreciada e perversamente orgulhosa encarnação do Estrago Feito.

Passei a apreciar esta imagem de Fisher, em grande parte, porque eu a tenho acompanhado. Sei que não é usual entre especialistas contar sobre suas idas a Hollywood e de ver as estrelas nas festas da indústria cinematográfica e ter grande interesse nestas aparições. Encaramos com certa indiferença estas estrelas, porque eles são mercadorias fabricadas dentro do sistema capitalista e vendido ao público, ou algo do gênero.

Mas penso que o estudioso em cinema Richard Dyer acertou quanto argumentou sobre a intensa importância dos famosos. As imagens destes refletem e nos ajuda a identificar os valores da sociedade que os produziu – representam e vendem as contradições impossíveis desta sociedade.

E vendem a individualidade, uma espetacular miragem americana de realização completa e empoderamento pessoal único, não só porque suas imagens são destinadas a serem distintas, como parte de uma “diferenciação produtiva”, mas porque ficamos fascinados pela evidencia esporádica da luta diária de seres de carne e osso em manter esta suposta imagem distinta.

Esta evidência, em geral, surge na forma de escândalos, de aparições públicas e tragédias reais, de escorregões aparentemente acidentais de todo tipo. Este é o território arenoso que Carrie Fisher apostou as fichas de sua longa carreira, com habilidade quis nos mostrar o caos por trás da imagem e, ao fazê-la, paradoxalmente manteve o controle sobre ela.

Não era somente o personagem da Princesa Leia, era também sua ânsia em ser A princesa diarista que definiu sua personalidade amigável. Quem mais no elenco de Star Wars ou na equipe teria divido conosco a patética edição “sem roupa intima no espaço” de George Lucas, ou brincou sobre o brinquedo da Princesa Leia, ou contou a historia de um jovem fã de Star Wars que confessou a ela ter passado anos pensando todos os dias nela – “na verdade, quatro vezes por dia”.

Então, em sua homenagem, esta é a verdadeira historia de Hollywood sobre Carrie Fisher.

Certa vez, Carrie Fisher ajudou a arruinar Hollywood para mim. Fui até lá procurando uma vitalidade enlouquecida do showbiz com todo o desespero de uma estudante de Humanidades que não pode mais suportar a rigidez da academia mais um segundo.

Mas para meu desespero, Fisher foi o instrumento para me mostrar que por baixo da sua superficial sedução pornografia, a elite hollywoodiana abriu outros caminhos para o tédio e a mediocridade. Não era de se admirar a amizade de Fisher pelas drogas, e quão difícil era se afastar delas.

Fui convidada a duas festas de Hollywood feitas por Fisher – uma delas ela foi efetivamente co-anfitriã – e eram festas estragadas que destruíram todo meu idealismo juvenil. Se você não consegue achar alegre libertinagem em festa da Carrie Fisher, onde você espera achar?

Ela deve ter tido muito disso ao longo dos anos. Se Carrie Fisher vem, pode uma orgia de cocaína estar muito atrás?

Na primeira festa foi à festa de Fisher e Penny Marshall, que alternavam o local a cada ano. Neste ano foi na casa de Marshall, que providenciou todas as necessidades para um verdadeiro sopro de Hollywood em um terraço espaçoso com uma piscina artificialmente iluminada, e vista imponente vista da Los Angeles iluminada, e muitas celebridades.

De qualquer forma, todo o evento foi conduzido em uma atmosfera empolada de carismatismo de doze passos, com grupos decorosamente sóbrios de pessoas famosas à beira da piscina, falando trabalho. Foi incrivelmente deprimente.

A anfitriã Fisher, com aparência linda e jovem, observou a cena atentamente, e concluiu com a voz carregada: “Acho que estas coisas funcionam melhor na minha casa”.

A segunda festa foi um pequeno churrasco à tarde o qual Fisher exalou miséria. Ela bateu o portão do jardim enquanto entrava, andava de forma abatida e pesada, com o cabelo picado grosseiramente curto como se ela tivesse se massacrado com as próprias mãos em um ataque de auto aversão.

Sem diversão em seu rosto, ela estava quase irreconhecível.

Ela elevou a depressão e o desgosto a outros níveis naquele dia. Era difícil culpá-la, já que a festa era realmente medonha. Os cães da anfitriã vagavam livremente entre os convidados defecando por toda parte e, como o empolgado evento continuou, mais e mais pessoas seguiram a bosta de Shih Tzu por todo o pátio no calor fétido.

Se quisesse, Fisher poderia ter transformado aquela festa em um texto sobre algo divertido, outra maluquice de calamidade social de Hollywood. A salvação daquela visão aviltada da estrela era pensar na cômica imagem pública que ela criou ao testemunhar o fracasso dos ricos e famosos para viver bem.

A chave para tantas histórias inesquecíveis de Fisher é a fodida incongruência que destrói a imagem de boa vida de Hollywood. A vez que seu irmão Todd acidentalmente atirou na própria coxa, espalhando sangue no sagrado e imaculado quarto da estrela Debbie Reynolds; a vez que um amigo de Fisher, que veio a cidade para acompanhá-la na festa do Oscar, morreu em sua cama e então voltou para assombrá-la, literalmente; a vez que seu pai, Eddie Fisher, escreveu uma biografia alegando que sua ex-mulher, Debbie Reynold, era lésbica, e Carrie Fisher se sentiu compelida a declarar publicamente “Minha mãe não é lésbica. É apenas uma péssima, péssima heterossexual”.

Ao apresentar o estrelato como uma engraçada e enlouquecida bagunça, Fisher permaneceu muito próxima ao publico em geral, cujas vidas também eram desordenadas, embora com menos interesse geral.

E a astúcia desta apresentação pública que soou tão verdadeira colocou-a no panteão de seus amados famosos fodidos com todas as suas realizações. Descanse em paz Carrie Fisher.

Sobre a autora

Eileen Jones é critica de cinema para a Jacobin e autora do livro Filmsuck, USA. Ela é professora na Universidade da Califórnia em Berkeley.

25 de dezembro de 2016

O martelo e a cruz

Examinando a relação complicada entre o cristianismo e o marxismo.

Rajeev Ravisankar

Jacobin

Do lado de fora de um escritório do Partido Comunista em Veneza. Jacques Lebleu / Flickr

Tradução / Com seu consumismo desenfreado e a exaltação de uma figura salvadora, o Natal é um anátema para muitos na esquerda. É claro que esses sentimentos de desencanto entre a esquerda secular e orientada à ciência se estendem ao cristianismo e à religião em geral.

No entanto, a política de esquerda e o cristianismo interagiram e se cruzaram de maneiras não conflitantes, apesar das intensas dúvidas ideológicas. Enquanto o marxismo é conhecido por suas críticas estridentes à religião, Marx descreveu a “angústia religiosa” como “a expressão de verdadeiro mal-estar e de protesto contra a angústia real”. Engels viu o surgimento do cristianismo como uma onda de resistência, escrevendo que “o cristianismo, como qualquer grande movimento revolucionário, foi criado pelas massas”.

Cristãos da classe trabalhadora exploraram os elementos progressistas do cristianismo para desafiar hierarquias e desigualdades dentro das igrejas; defender os direitos ao trabalho, a terra, moradia além de poder agitar as bandeiras contra o militarismo, racismo e pobreza. Entre os protestantes no final dos anos 1800 e no início dos anos 1900, o Evangelho indicava o caminho não apenas para a salvação individual, mas também para o social. O movimento operário católico continua até hoje a pregar o antimilitarismo e a dedicação aos pobres.

Alguns cristãos – incluindo Thomas J. Hagerty, uma figura chave na formação dos Trabalhadores Industriais do Mundo – incorporaram ideias socialistas e comunistas (se não explicitamente marxistas) em sua análise social e em sua prática política. No contexto sul-americano, o cristianismo e o marxismo se fundiram para formar a Teologia da Libertação, que colocou os pobres e oprimidos como agentes primários na luta contra a exploração econômica e no desafio da ditadura, da repressão e do imperialismo dos EUA.

A burocracia cristã se irritou com essa heterodoxia. Em 1949, o escritório do Papa Pio XII emitiu um decreto que proibia os católicos de participar, apoiar ou mesmo ler a literatura das organizações comunistas. Quando a Teologia da Libertação ganhou destaque algumas décadas depois – personificada por figuras como Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, o Vaticano investiu contra a doutrina de esquerda. A Teologia da Libertação, afirmou o papa João Paulo II em 1979, “não condiz com o catecismo da Igreja”.

No entanto, a difícil relação entre o cristianismo e o marxismo não pode ser atribuída apenas aos atos da elite inimiga. Considerando a forte associação do marxismo com o ateísmo, a visão de longa data da esquerda de que religião e igrejas são ferramentas da classe dominante e os atos esporádicos de violência mútua por parte de seus adeptos, os céticos não tiveram falta de evidências de que duas tradições são fundamentalmente incompatíveis.

Alguns pensadores tentaram trabalhar algumas dessas tensões, argumentando que há motivos para uma reaproximação. O livro de Andrew Collier, Cristianismo e marxismo: uma contribuição filosófica para sua reconciliação (Christianity and Marxism: A Philosophical Contribution to Their Reconciliation), é uma dessas tentativas.

Collier, que faleceu em 2014, não apagou as linhas de fratura que separam o cristianismo do marxismo. Em um capítulo particularmente importante intitulado “O que cristãos e marxistas podem aprender uns com os outros” – ele destaca algumas delas: o ateísmo do marxismo, seu materialismo histórico e a questão da não violência.

Sobre o primeiro, Collier argumenta que “o ateísmo de Marx não tem efeito sobre seu socialismo científico e nenhum efeito essencial sobre a prática política socialista”. E ele insiste que há uma sobreposição significativa em outras questões básicas, incluindo o utopismo: “tanto o cristianismo com sua Doutrina da Queda, quanto o marxismo genuinamente materialista… alertam contra o excesso de otimismo sobre as tais possibilidades humanas: uma sociedade perfeita não pode existir”.

Ambos os campos compartilham uma ameaça comum: a “burguesia”. À medida que as pessoas mais ricas aderiram ao rebanho cristão, uma distância social se abriu em relação aos adeptos da classe trabalhadora. O esforço para combater essa tendência, escreve Collier,

"deve levar os cristãos a se engajarem em movimentos políticos da classe trabalhadora onde quer que existam. Deve fazê-lo porque sua causa é justa; mas esse compromisso também teria o efeito salutar de quebrar as suposições complacentes da burguesia contra a realidade da vida da classe trabalhadora."

Collier repreende os cristãos que responderam à queda do Bloco Oriental “fazendo as pazes com os capitalistas restaurados” ao invés de “trabalhar por uma sociedade genuinamente sem classes e justa como os regimes pós-stalinistas planejaram, mas não conseguiram cumprir”.

Por outro lado, Collier condena as “aspirações burguesas” da “burocracia privilegiada” soviética e lamenta a incapacidade dos Estados que se autodenominavam socialistas de forjar uma “sociedade civil socialista”, deixando “indivíduos atomizados diante de um Estado pesado”. Aqui, sugere Collier, os socialistas podem aprender com a oposição reflexiva cristã ao “comercialismo totalitário” e a resistência à ideias modernas.

Ele reafirma a importância do controle social:

"Não me refiro principalmente ao controle da sociedade sobre os indivíduos ou mesmo sobre a natureza, mas sobre as forças sociais, poderes gerados pela sociedade, que têm efeitos massivos e muitas vezes devastadores tanto na natureza quanto nas pessoas, mas que não podem ser controlados no capitalismo."

Na medida em que o marxismo busca a “emancipação da humanidade de seus poderes alienados na forma de forças de mercado”, Collier vê um aliado no cristianismo. Ambas as doutrinas procuraram limitar a capacidade de “comprar e vender tudo”.

“Jesus derrubou os cambistas no Templo. A maldição de Pedro sobre Simon Magus deveria colocar muitos dos modernos evangelistas com medo do fogo do inferno”.

Eles também podem atuar como aliados no campo filosófico, contrapondo-se tanto ao liberalismo quanto ao pós-modernismo, além de contra o “atomismo” e a “fragmentação” promovidos pela lógica do mercado. Tanto o marxismo quanto o cristianismo podem explicar e contrastar “a fragmentação, não só da sociedade, mas da pessoa humana sob o capitalismo”.

As tentativas de Collier de reconciliar o marxismo e o cristianismo destacam não apenas as possibilidades políticas de uma aliança, mas o persistente abismo entre os dois.

Colaborador

Rajeev Ravisankar é jornalista.

O significado do Natal

O Natal é nada menos do que um apelo à revolução.

Elizabeth Bruenig

Jacobin

Gerard van Honthorst, A Adoração dos Pastores.

Tradução / “O Natal”, escreveu Hans Urs Von Balthasar, “não é um evento da história, mas sim, a invasão do tempo pela eternidade”. Com isso ele quis dizer que o evento de Natal não se limitava a um determinado momento ou mesmo a uma época particular, mas sinalizava a um desdobramento além das limitações de tempo. A improbabilidade da eternidade que perturbar o próprio tempo é a principal reviravolta na longa lista de acontecimentos inesperados que caracterizam a história do Natal.

Eventos surpreendentes definem essa referida história: uma jovem mulher, de posição social nada especial, recebe a visita de um anjo, e, mesmo sendo virgem, ela engravida. Seu prometido, que, de acordo com o costume e as leis religiosas, teria todo o direito de mandá-la embora ou executá-la, segue adiante com o casamento. Debaixo de uma estrela tão brilhante que é visível à luz do dia, o casal viaja para outra cidade e não encontra um único quarto disponível para a mãe do Filho de Deus. Assim, o Messias nasce e é colocado em um presépio, local destinado à alimentação de animais.

É algo muito estranho, uma cadeia de incongruências. Sobressaindo a todas, está a noção de que Deus gostaria de qualquer coisa a ver com a humanidade. Isto, escreve Søren Kierkegaard, é o núcleo absurdo do próprio cristianismo:

“O cristianismo ensina que este ser humano individual – e, portanto, cada ser humano individual, não importa se homem, mulher, servo, ministro de gabinete, comerciante, barbeiro, estudante ou o que seja… existe diante de Deus, pode falar com Deus a qualquer hora que quiser, com a certeza de ser ouvido por Ele – enfim, essa pessoa é convidada a viver nas relações mais íntimas com Deus! Além do mais... por amor desta mesma pessoa, Deus vem ao mundo, permite nascer, sofrer, morrer, e este Deus sofredor – quase implora e roga a esta pessoa que aceite a ajuda que lhe é oferecida! Na verdade, se há algo pelo qual perder a cabeça, é isso.”

Kierkegaard está certo, eis aí um toque de loucura na idéia que, para tantas pessoas normais e mesmo para as impurezas em raios de sol, Deus – o criador do universo, infinito e onipotente – submeter-se-ia à carne humana e a uma vida terrena. Nesse sentido, o Natal é um prelúdio para um plano totalmente extraordinário.

E, ainda muitas vezes, o pensamento cristão é então esterilizado e diluído até que se assemelha a pouco mais do que uma sabedoria popular, ou pior, ao senso comum. “A soma total de toda a sabedoria humana é esse ‘ouro’ (talvez seja mais correto dizer ‘folheado’) significa”, escreve Kierkegaard, “nada em excesso. A falta e o exagero estragam tudo. Isso é divulgado entre os homens como sabedoria, é honrado com admiração. Mas o cristianismo dá um passo enorme para além deste nada em excesso rumo ao absurdo. É aí que o cristianismo começa…”

O Natal é onde o cristianismo começa e, como observa Kierkegaard, está repleto de coisas estranhas e inesperadas.

Idealmente, então, deve servir aos cristãos como um tempo para relembrar a tradição e a prática, não para suas aplicações mais cansativas, mas para aquelas que são inesperadas e que nos conduzem em nossa busca pelo inesperado.

Existe, no fundo, algo de revolucionário no cristianismo – a tendência de inverter, contrariar e transformar radicalmente. Maria oferece, no Cântico de Louvor, em seu encontro com sua prima Elizabeth, em que proclama:

“Minha alma engrandece ao Senhor e meu espírito se alegra em Deus meu Salvador, pois ele olhou com favor para a humildade de seu servo... Ele derrubou os poderosos de seus tronos e ergueu os humildes; ele encheu os famintos de coisas boas e fez os ricos se sentirem vazios.”

Essa lista de questões vem da boca de uma camponesa que foi promovida a um status quase inimaginável. O fato de que as versões radicais do Natal nos sejam enumeradas por uma jovem sem nenhuma posição social importante é, em si, uma reviravolta incrível.

O caráter revolucionário do cristianismo é geralmente apagado e principalmente confinado a momentos políticos específicos quando é útil referir-se a ele. Mas, também esta seletividade deveria ser subvertida. O cristianismo está sempre relacionado aos mais pobres, os mais vulneráveis, os mais oprimidos; está permanentemente interessado em reverter essa ordem, em vista a realizar o inesperado. O Natal, o momento em que o tempo é invadido pela eternidade, é o momento em que a reversão de toda opressão se torna impossível, mas necessária. As mais improváveis perturbações da ordem ​​tornam-se, no momento do Natal, o próprio início do cristianismo e permanecem essenciais ao seu caráter.

Não há cristianismo, portanto, que não seja revolucionário. É possível interpretar o Natal como mais outra daquelas celebrações cristãs confortavelmente aconchegantes, mas seria mais correto interpretá-lo como um apelo à revolução. Deste momento em diante, nada da velha ordem pode ser deixado intacto: Cristo veio para exaltar os pobres e feridos, e seu exemplo é o imperativo do cristianismo.

Sobre a autora

Elizabeth Bruenig é colunista de opinião do Washington Post.

Por que o Natal é importante

O Natal, em sua melhor forma, celebra a entrada no mundo de alguém que traria boas novas aos pobres e à liberdade.

Katrina Forman, Timothy Wotring

jacobin

https://jacobin.com.br/2023/12/por-que-o-natal-e-importante/
Jesus na Corte de Herodes por Duccio.

O Natal nos Estados Unidos vive em meio às guerras culturais. Os conservadores continuam se dizendo vítimas de uma fictícia “guerra contra o Natal”, que só pode ser vencida se “mantivermos Cristo no Natal”, enquanto os progressistas condenam o materialismo das festas de consumo.

Mas o conflito é mais antigo do que isso. O Natal tem estado no centro de guerras culturais, políticas e religiosas durante milênios. A própria Bíblia contém versões conflitantes da narrativa do nascimento de Cristo.

Que sentido devemos dar a esse feriado? O que isso importa para os movimentos políticos da esquerda, sejam eles cristãos, ateus ou pessoas de outras religiões?

Independentemente de sua (não) filiação religiosa, vale a pena saber o que o Novo Testamento tem a dizer sobre a história do nascimento de Jesus e como a interpretação dessas histórias pode apoiar ou prejudicar nossas causas. Começar por aqui também mostra que, mesmo dentro das escrituras, há narrativas conflitantes.

As narrativas de nascimento dos Evangelhos são, antes de tudo, histórias. Esses biógrafos da vida de Jesus não estavam presentes em seu nascimento. E, como em toda boa história, cada uma foi escrita para transmitir um ponto específico.

Mateus: Jesus contra o rei Herodes

OEvangelho de Mateus é o primeiro livro do Novo Testamento. Ele atesta que o nascimento de Jesus é paralelo ao de Moisés na Bíblia hebraica: ambos nasceram durante um período de crise, ambos escaparam por pouco da morte e as pessoas falam deles como aqueles que libertam.

A parte mais longa da narrativa do nascimento de Jesus em Mateus não é sobre o nascimento em si, mas sobre o menino Jesus. Astrólogos do Oriente seguiram uma estrela, levando presentes que os levam a Jesus, o menino rei, mas primeiro eles se apresentam ao rei Herodes. Ou a estrela os leva até lá ou eles presumem que os reis devem nascer em palácios. O rei Herodes diz a eles para voltarem e descobrirem onde está o bebê real. Eles nunca o fazem.

O contador de histórias parece estar revelando sua agenda política: não são as pessoas com poder que são importantes o suficiente para que estrelas apareçam sobre suas cabeças, mas um bebê que não consegue dizer frases completas.

O rei Herodes fica furioso quando os astrólogos não retornam. Como a maioria dos impérios ameaçados, ele reage com violência.

Herodes envia um decreto para matar todas as crianças do sexo masculino com menos de dois anos de idade em Belém. Felizmente, José, o padrasto de Jesus, foi avisado em um sonho para pegar a sagrada família e ir para o Egito.

A família de Jesus tornou-se refugiada. Eles foram procurados para serem mortos. Foram forçados a sair de sua casa por um ditador cruel.

Por fim, Jesus e sua família voltaram para lá após a morte de Herodes, mas não para o local de nascimento em Belém, e sim para a cidade de Nazaré, nas montanhas ao norte. Como eles se mudaram, Jesus foi criado em uma pequena cidade de camponeses pobres. Ironicamente, esse “novo rei”, que fez Herodes tramar um infanticídio, não veio morar em Roma, o centro do poder, ou mesmo na importante cidade de Belém, mas na periferia.

A mãe de Jesus, Maria, nessa época, não teria mais do que quinze anos. José tinha mais de trinta anos, e sua profissão de carpinteiro estava longe de ser estimada. Na sociedade atual, Maria seria uma estudante do ensino médio grávida que se casaria com um diarista.

Em Mateus, são os despossuídos, a classe baixa e aqueles sem capital social/político que têm o verdadeiro poder revolucionário para libertar.

Lucas: Canções de protesto, marginalizados e heresia

Oterceiro livro do Novo Testamento, o Evangelho de Lucas, também fala do nascimento de Jesus. Dessa vez, não se trata de refugiados, mas de pobres. E a história é contada sob a perspectiva de Maria.

Enquanto Jesus está crescendo dentro de Maria, ela se sente subitamente inspirada e canta uma canção extraordinária – uma declaração radical de protesto contra os ricos. Ela canta: “Deus derrubou os poderosos de seus tronos e elevou os humildes”; e “Deus encheu os famintos de coisas boas e mandou os ricos embora de mãos vazias”.

Maria declarou uma inversão do poder político e social, uma inversão que seria realizada pelo Todo-Poderoso. Ela proclamou que Deus estava do lado dos oprimidos e pobres, não daqueles que já estavam alimentados e sentados em seus tronos.

A canção de Maria não permaneceu lida apenas pelos religiosos. Ela foi adotada por movimentos de justiça em todo o mundo. Sua mensagem é tão ameaçadora para as potências imperiais que foi proibida várias vezes por governos totalitários: na Índia sob o domínio britânico, durante a Guerra Suja na Argentina, durante a guerra civil guatemalteca e nas décadas de 1970 e 1980 em El Salvador.

Também em Lucas, quando Jesus estava sendo gerado, um exército de anjos anunciou aos pastores uma frase aparentemente inocente: “Glória a Deus nas alturas, e na terra paz, boa vontade para com todos”.

Isso não era tão inócuo quanto parece para um leitor de hoje – era um pronunciamento radical contra César Augusto.

A inscrição de Priene, encontrada escrita em uma pedra por volta de 9 A.C., celebrava o aniversário de Augusto e proclamava sua divindade. Ela diz o seguinte:

[César Augusto, sendo enviado a nós e aos nossos descendentes como Salvador, pôs fim à guerra e colocou todas as coisas em ordem; e considerando que, tendo se tornado Deus manifesto, César cumpriu todas as esperanças dos tempos antigos… o aniversário do Deus Augusto foi para o mundo inteiro o início das boas novas a seu respeito.

De acordo com o Império Romano, Augusto, o governante imperial, era divino e a personificação da paz. Qualquer um que afirmasse algo diferente era morto ou escravizado. O fato de os anjos celestiais declararem que o bebê de apenas alguns instantes, nascido longe dos salões do poder e da riqueza, era o portador da paz, foi um cuspe na cara do império.

Depois de receber a mensagem angelical, os pastores visitam o recém-nascido. Historicamente, os pastores eram os excluídos: alguns eram crianças pequenas, e todos provavelmente estavam em extrema pobreza. Mas isso não importava muito quando eles visitavam um estábulo de animais usado para comer e cagar, e coberto de pulgas e roedores.

Se a história de Mateus pergunta: “Quem tem o poder?”, então Lucas está perguntando: “Quando está acontecendo a revolução dos pobres?” Repetidamente, Lucas descreve uma ética revolucionária de baixo para cima, com as mulheres e os pobres liderando o caminho contra os poderosos.

Os escritores dos Evangelhos não eram repórteres que tentavam fazer com que sua história fosse factualmente correta, mas polemistas que construíam narrativas anti-imperiais. Nos Evangelhos, não é César que traz paz ao mundo. Ele traz a violência e a escravidão dos conquistados.

Para os escritores dos Evangelhos, esse menino pobre, nascido entre as pulgas, trouxe a paz – uma paz não para a elite rica, mas para os esquecidos e oprimidos.

História cultural do Natal

Não é preciso dizer que nem todos os cristãos compartilham nossa interpretação dessas histórias. E assim, com as complicadas narrativas da Bíblia como base, o Natal foi modelado e remodelado – reivindicado, denunciado e reclamado de inúmeras maneiras ao longo dos séculos. As pessoas lutaram para saber até que ponto a inevitável mistura de rituais pagãos e a cultura dominante poderia moldar o significado e a prática do feriado.

Como Gerry Bowler mostra em Christmas in the Crosshairs (O Natal na mira), já na Idade Média, as elites religiosas e seculares se preocupavam com o comportamento devasso que geralmente acompanhava a comemoração do feriado: música, dança, gula, comida e bebida. Os puritanos na Inglaterra foram ainda mais longe, incentivando as pessoas a jejuar durante o feriado e incitando motins contra as lojas que estavam abertas no dia.

Na era moderna, alguns cristãos progressistas procuraram reformar o Natal e alinhá-lo aos valores liberais. Bill McKibben e outros pediram o fim do comercialismo do feriado e apontaram preocupações ambientais sobre as enormes quantidades de excesso de lixo e consumo de combustível fóssil resultantes do frenesi do consumo. A Adbusters há muito tempo faz campanha para o “Buy Nothing Day” (Dia de Não Comprar Nada) e a missão da Church of Stop Shopping (Igreja do Pare de Comprar) está resumida em seu nome. Todos eles incentivam as pessoas a comprar menos e a reorientar o feriado para passar tempo com seus entes queridos e fazer doações ou ser voluntário em instituições de caridade

É inquestionável que o consumismo do Natal é um problema, criando pressão para que as famílias trabalhadoras se endividarem ainda mais, e para os trabalhadores do varejo que enfrentam multidões miseráveis por longas horas e baixos salários, além de não terem férias livres. Mas essas críticas anti consumistas ficam aquém do que poderia ser o espírito revolucionário do Natal. Pior ainda, elas ecoam o tipo de policiamento cultural e comportamental que as elites têm frequentemente aplicado às classes trabalhadoras.

O capitalismo não será derrubado por boicotes aos consumidores. Somente uma classe trabalhadora organizada pode fazer isso. E, nestes dias, os trabalhadores precisam de um pouco de descanso e de uma chance de se renovar para a luta que está por vir. Isso também nos dá a oportunidade de lembrar que as histórias de Natal, a “razão da época” sobre a qual os guerreiros culturais conservadores estão sempre gritando, são na verdade histórias sobre a luta urgente pela libertação. Os rituais que elevam os humildes e derrubam os poderosos de seus tronos são rituais que merecem ser celebrados.

Mas parte do que é redimível sobre o feriado é que ele pode trazer alegria e esperança para alguns que precisam. Embora a época do Natal também possa ser estressante, solitária e deprimente, para alguns é uma das poucas vezes no ano em que podem ter uma folga do trabalho, podem ver a família e sentir que podem proporcionar a seus filhos uma experiência alegre. Essa celebração acontece em homenagem a uma antiga história revolucionária, que continua sendo relevante até hoje.

O Natal, em sua melhor forma, celebra a chegada ao mundo de alguém que traria boas novas para os pobres e liberdade para os prisioneiros. Não há uma maneira “certa” de comemorar o feriado. Mas há muito espaço para que aqueles que lutam pela justiça possam reivindicá-la como nossa. Nas palavras do teólogo Howard Thurman:

Quando a canção dos anjos se calar,
quando a estrela no céu se for,
quando os reis e os príncipes estiverem em casa,
quando os pastores estiverem de volta com seus rebanhos,
começa o trabalho do Natal:
encontrar os perdidos,
curar os feridos,
alimentar os famintos,
libertar o prisioneiro,
reconstruir as nações,
trazer paz entre as pessoas,
para fazer música no coração.

colaboradores

Katrina Forman é estudante do Seminário Teológico União e busca ordenação na Igreja Unida de Cristo.

Timothy Wotring vive em Nova York. É pastor presbiteriano em formação.

24 de dezembro de 2016

Quando o Estado é avarento

Uma conversa com Paul Laverty, roteirista de Eu, Daniel Blake sobre as indignidades do sistema de bem-estar em uma era de austeridade.

Liam O'Hare

Jacobin

Não é sempre que um filme tem o impacto de Eu, Daniel Blake.

Um autêntico e cortante conto de indignação social sobre o sistema de bem-estar em uma era de austeridade, que tem sido repetidamente mencionado no parlamento britânico, descrito como um "grito de guerra para os despossuídos" e até teve seu título apropriado como um slogan por ativistas.

Dirigido por Ken Loach, ele conta a história de um carpinteiro - Daniel Blake - que sofreu um ataque cardíaco grave e é informado pelo seu médico que ele é incapaz de trabalhar. Ele se candidata ao Subsídio de Apoio ao Emprego, mas é considerado "apto para o trabalho", em grande parte devido ao fato de que ele ainda pode levantar ambos os braços acima de sua cabeça.

Para muitos, é uma situação bem conhecida: milhares de pessoas em situação semelhante morreram pouco depois de serem dadas como “aptas para o trabalho” em testes como esse, aplicados pelo Department for Work and Pensions (DWP) [Departamento de Trabalho e Pensões].

Para muitos, isso soou um acorde: milhares de pessoas em situações semelhantes morreram depois de serem consideradas aptas para o trabalho em testes semelhantes pelo DWP.

Blake faz amizade com uma jovem mãe que também caiu em tempos difíceis, encontrando escasso apoio de um sistema desumano e burocrático em que estar atrasado para uma nomeação pode levar a seus benefícios ser retirados. Sem amortecer sua raiva, Eu, Daniel Blake consegue contar esta história com um toque leve, cheio de humor e humanidade.

Para o roteirista Paul Laverty não há nada inevitável ou acidental sobre as dificuldades em exposição. Em vez disso, quando nos encontramos no Glasgow Film Theatre, ele me diz que é uma conseqüência direta das políticas do governo conservador que levaram as pessoas à beira da existência.

"É uma crueldade consciente", diz ele, com sua voz cheia de raiva. "Há um regime de sanções absolutamente vicioso que tem sido responsável por suicídios, desabrigados, miséria, fome; em todos os tipos de formas. Eu não estou dizendo isso retoricamente. Tenho andado de um lado a outro do país ouvindo sobre isso em primeira mão das pessoas."

Laverty é um colaborador de longo prazo de Ken Loach, tendo trabalhado com ele em uma série de filmes por mais de trinta anos. O relacionamento provou ser imensamente frutífero e Eu, Daniel Blake torna-se o segundo filme deles cobiçado para ganhar o Palme D'or no Festival de Cinema de Cannes.

No entanto, foi o impacto social do filme que mais agradou Laverty. "Nós somos todos Daniel Blake" foi apropriada como uma referência para os ativistas no Reino Unido e além. O filme deu novo impeto às campanhas de longa data contra a austeridade e trouxe a brutalidade do sistema de bem-estar para um público mais amplo. Em uma marcha recente contra o desemprego na França, havia centenas de cartazes "Moi, Daniel Blake" em exibição.

Laverty previu o efeito galvanizador que a história teria?

"Bem, é apenas um filme. É uma história. Histórias às vezes terminam em becos sem saída e ninguém os vê; às vezes elas ecoam. O que eu estou muito, muito animado é pelo fato de ter tido um eco incrível, este, mais do que qualquer um dos filmes que eu já fiz."

"Nós batemos em algo, não só aqui, mas em outros lugares que temos mostrado. Eu acho que é como a dignidade de cada pessoa humana. Eles não são estatísticas. Eles não são apenas um cliente ou um consumidor ou um número do seguro nacional. Todos têm direito a ela: uma vida digna com segurança."

"Há uma abundância de recursos para fazer isso, mas o que temos de imaginar é uma alternativa. Um filme por si só não muda nada, só a atividade e organização posterior."

Essa atividade começou com seriedade. Antes da nossa entrevista, Laverty estava no Parlamento escocês, onde o Secretário do Trabalho e Pensões do Reino Unido, Damian Green, estava depondo em uma comissão parlamentar. O ministro tem sido franco em sua crítica ao filme, chamando-o de trabalho de ficção "monstruosamente injusto" - embora ele admitisse mais tarde não tê-lo assistido.

Esta declaração levou o político escocês George Adam presentear Green com uma cópia do roteiro do filme durante o comitê. Foi assinado por Laverty com uma nota que dizendo "confirmo cada incidente do filme" como um "reflexo justo do que está acontecendo hoje." Enquanto isso, durante toda a sessão, um ativista sentou-se atrás de Green com uma camisa do filme Eu, Daniel Blake.

Laverty sorri quando menciono isso.

"Sim, é como se Daniel Blake o estivesse seguindo para onde quer que ele fosse! Mas me fez rir quando ele o descreveu como um trabalho de ficção. Eu não estou me metendo nessas botas, mas, você sabe, Dickens é um trabalho de ficção? Zola? Steinbeck? Estes eram todos trabalhos que tentavam capturar o momento."

"Nós somos contadores de histórias, nós somos cineastas. Nós não queremos ser apenas uma peça de agitprop. Isso significa encontrar relacionamentos delicados, frágeis, complicados. Isso é fundamental. Eu acho que é por isso que tocou as pessoas, porque tentamos isso. Se é um agitprop que não é bem pesquisado e não reflete algo maior, não vai ter esse eco."

"O [Ministro] Damian Green e aqueles funcionários, eles falam sobre os consumidores. Não, eles não são clientes. Eles são cidadãos. Quando você escuta as pessoas e ouve a miséria que elas atravessam; eles apenas estão exaustos e contam tudo. Muitos, muitos o fazem."

"Mas eu acho que toda essa cultura de medo é realmente importante. Eles negam e dizem: "Oh, não, nós devemos ter sanções." É a miséria e o medo que faz com que as pessoas aceitem esses trabalhos de zero horas. É este tipo de medo só de estar por aqui o tempo todo. Acho que se adéqua à sua cosmovisão."

O fato de que o filme é baseado em eventos que aconteceram a pessoas reais o torna ainda mais angustiante. Uma cena particular pinta uma imagem escura do desespero sentida por algumas pessoas atingidas pela pobreza e austeridade.

Envolve Katie, que não come há dias, abrindo uma lata de feijão no banco de comida local e tentando comer o conteúdo com as mãos. É um momento devastador que reflete o fato de que os bancos de alimentos estão se tornando uma parte cada vez mais regular da sobrevivência de muitos no Reino Unido.

Antes que a coalizão conservadora-liberal-democrata tomasse o poder em 2009-2010, o Trussell Trust de caridade emitiu 41.000 fontes de alimento da emergência de 56 bancos de alimento. Esse número aumentou dramaticamente ano a ano com a entidade emitindo mais de um milhão de pacotes a 424 bancos de alimentos no ano passado.

Outra cena no filme mostra Daniel ficando cada vez mais frustrado ao ser deixado esperar no telefone por horas ao tentar fazer sua reivindicação de apoio à renda.

"Eu ouvi as histórias mais incríveis", diz Laverty. "Há a legislação que você tem que dar a volta, mas então é o pequeno detalhe que você não conhece até que você escavar em torno de ... como os telefones ... quanto tempo as pessoas têm de esperar nos telefones. Se você não o fez, você não percebe. Então você percebe que as pessoas estão telefonando para esses telefones com tarifas premium e pagando uma fortuna e ouvindo o maldito Vivaldi por uma hora e meia.

"Falei com uma jovem fora de Dundee que esteve no telefone por duas horas, até que ela usou todo o seu crédito. Então ela voltou para casa e pediu a seus pais seu crédito. Tudo para mudar seu endereço. Duas semanas depois, todo o seu dinheiro acaba. Ela é sancionada. Ela entra. Ela diz: "Por que estou sendo sancionada?" O empregado do centro de empregos diz, bem, enviamos uma carta para uma consulta. E ela diz: "Mas você nunca me enviou uma carta." E ela vai, sim eles fizeram. E ela volta ao antigo endereço. Lá está ela de novo, todo esse tempo depois. Todo esse dinheiro curto. Toda essa frustração. Toda a sua vida foi confundida. Há uma espécie de ineficiência planejada em tudo."

O regime de sanções do DWP é um elemento do sistema de bem-estar que o filme ajudou a colocar em foco nítido. Laverty me conta a história de um homem em Edimburgo que ele conheceu que foi sancionado depois de perder um compromisso porque sua esposa entrou em trabalho de parto. Duas pessoas telefonaram para dizer ao DWP por que o homem não podia comparecer, mas as súplicas caíram em ouvidos surdos. Ele teve seus benefícios retirados.

A regularidade das sanções não é acidental. E-mails vazados revelaram que a equipe do DWP está sob pressão da administração para sancionar os reclamantes ou então estar sujeita a revisões de desempenho e "planos de melhoria pessoal". As sanções podem envolver a suspensão de pagamentos de bem-estar por um período entre quatro semanas e três anos.

A eficácia das medidas foi posta em causa pelos ativistas e, recentemente, por um relatório do próprio Gabinete Nacional de Auditoria do Reino Unido. Em uma avaliação mordaz descobriu que as sanções empurraram milhares de pessoas em dificuldades e depressão sem qualquer evidência de que elas realmente funcionaram. O estudo também constatou que as sanções custaram muito mais para administrar do que conservam.

Mhairi Black, parlamentar do Partido Nacional Escocês foi um oponente do regime e recentemente apresentou um projeto de lei de um membro particular em Westminster, que procurou introduzir um novo código de conduta para o pessoal do Centro de Emprego em todo o Reino Unido. A medida exigiria que tomassem em consideração as circunstâncias individuais antes de emitir uma sanção. No entanto, os deputados conservadores obstruíram o debate.

A abordagem do governo britânico também encontrou críticos além dos corredores de Westminster. Um inquérito das Nações Unidas julgou que os direitos das pessoas com deficiência tinham sido "sistematicamente violados" por mudanças no bem-estar e assistência social no país. As pessoas com deficiência têm sido desproporcionalmente afetadas pelas mudanças no bem-estar e o relatório ecoou o que os ativistas têm dito há muito tempo, que eles foram vitimados por uma narrativa que os considerava "preguiçosos e colocando um peso sobre os contribuintes".

O filme deve ser lançado nos Estados Unidos durante o Natal, mas já foi exibido no Festival de Nova York em outubro. A experiência de Laverty lá o convenceu de que os temas e as questões com que trata são internacionais.

"Foi mostrado no Lincoln Center e havia cerca de novecentas pessoas lá", ele explica, "eu me perguntava o que todas essas pessoas fariam com esse pequeno filme no nordeste da Inglaterra. Enquanto eu vagueava eu passei por uma igreja bonita que não ficava muito longe do centro. Havia uma sugestão de comida lá fora e eu falei com esse cara chamado James Green. Ele foi recentemente desabrigado porque seu pai tinha morrido, em seguida, ele perdeu a casa razão pela qual ele acabou nas ruas. Mas apenas ouvindo sua história, eu pensei que este [filme] poderia ser "Eu, James Green." Então, eu apresentei o filme com esta história."

"Porque, no final das contas, levanta questões muito maiores sobre como organizamos a nossa economia, mesmo se nos livrarmos do regime de sanções. Como vamos dividir o trabalho? Podemos ter uma sociedade de pessoas tentando cuidar umas das outras? "

"Sim, provavelmente haveria o bastardo preguiçoso ocasional que se senta em seu traseiro para assistir televisão. Mas não é um preço melhor a pagar do que empurrar as pessoas para depressão ou suicídio? Não podemos, em vez disso, elevar o ânimo das pessoas?"

13 de dezembro de 2016

Patentemente tendencioso

Os jornalistas compartilham a responsabilidade pela crescente comercialização da pesquisa científica.

Yarden Katz


Um laboratório de DNA na Universidade de Michigan. Escola de Recursos Naturais e Meio Ambiente da Universidade de Michigan / Flickr

Tradução / Em 1894, o escritor de ficção científica, jornalista e defensor da eugenia H. G. Wells, escrevendo na revista Nature, pediu aos cientistas que “popularizassem” a ciência. Wells argumentou que, quando os custos de pesquisa aumentam e o Estado se torna o principal patrocinador da ciência, os cientistas não podem mais ignorar as percepções públicas: “manter um interesse exterior inteligente nas investigações atuais torna-se de quase vital importância”. Se o público não se importasse com a ciência, não apenas haveria “o perigo de suprimentos serem interrompidos”, mas também o perigo de o público endossar investigações “de valor duvidoso” (ironicamente, dada a entusiasmo de Wells pela eugenia).

Grandes esforços para levar a ciência ao público americano foram lançados no início do século XX. A missão da agência de notícias Science Service, fundada em 1921, era levar a cobertura científica para a mídia mainstream e “criar”, como disse a historiadora Cynthia Bennet, “uma base de apoio que valorizasse, exigisse e protegesse a pesquisa científica”. Esses esforços eram em parte sobre financiamento, mas também foram concebidos como sobre a criação de uma população informada e consciente da ciência, que pudesse participar de maneira significativa da democracia americana. O apelo de Wells foi de fato atendido: a ciência tornou-se parte do ciclo de notícias, onde permanece até hoje. Mas mesmo desde o início, os valores apregoados pela imprensa livre estavam quase ausentes na cobertura científica.

Embora a fé no ideal tenha desmoronado, o jornalismo em uma sociedade democrática é dito ser sobre “falar a verdade ao poder”. A atenção crítica tem sido focada na cobertura midiática da política, mas em uma sociedade moldada pela ciência — desde a vigilância até a biotecnologia — a cobertura científica é essencial para os interesses públicos. Embora esteja claro que a suspeita direta da pesquisa científica, como a negação da mudança climática, possa ter consequências catastróficas, isso não deve dar ao empreendimento científico (ainda amplamente subsidiado pelo Estado) um passe livre para o escrutínio.

Acontece que uma quantidade surpreendente de cobertura científica pode ser descrita como pouco mais do que marketing para centros de pesquisa de elite. Alguns comentaristas reconheceram parte do problema; a revista Nature, por exemplo, expressou preocupação de que os jornalistas atuem como “torcedores” que realizam um “serviço de relações públicas” para os cientistas e, portanto, a revista pediu que os cientistas ajudassem a imprensa a lançar um “olhar justo, mas cético” sobre o empreendimento científico.

Mas essa proposta ignorou intencionalmente mudanças importantes na maneira como cientistas acadêmicos e universidades, de maneira mais ampla, operam. Universidades cada vez mais voltadas para o mercado comercializam histórias chamativas que aumentam a visibilidade e geram fundos. Isso significa que os cientistas provavelmente não ajudarão o jornalismo a quebrar seus maus hábitos. Como resultado, assuntos de interesse público relacionados à empreitada científica, como a preocupante tendência de privatizar a ciência acadêmica, são perdidos no entusiasmo da imprensa.

A história do jornalismo científico

Apesar de suas aspirações nobres, o jornalismo científico até mesmo em seus primórdios compartilhava grande parte de sua perspectiva com a indústria de relações públicas, que também fazia apelos retóricos à democracia. Um dos gurus da indústria foi Edward Bernays, que definiu os princípios por trás das relações públicas em seu livro Propaganda de 1928.

Seu argumento era simples: a democracia pode ser perigosa, portanto, a opinião pública deve ser ajustada por “governadores invisíveis”, que “puxam os fios que controlam a mente pública”. O trabalho de Bernays no setor político e corporativo é bem conhecido, mas ele também mirou a ciência: já que as grandes empresas se beneficiam (e financiam) a pesquisa básica, era natural que elas também “assumissem a responsabilidade de interpretar seu significado para o público”.

O jornalista Boyce Rensberger chamou as décadas seguintes de “Era Gee-Whiz do jornalismo científico”, em que o jornalismo se concentrou “nas maravilhas da ciência e no respeito pelos cientistas”. Ele citou o caso do repórter de ciências do New York Times, William Laurence, que ficou tão impressionado com a ciência da bomba atômica que a administração Truman o contratou para escrever comunicados de imprensa sobre ela.

Laurence testemunhou a explosão de Nagasaki e, em seu relato, ficou maravilhado com o “meteoro artificial” — “uma coisa de beleza para se contemplar” — e as “milhões de horas de trabalho intelectual concentrado sem dúvida o mais concentrado esforço intelectual da história”. Sua reportagem vencedora do Prêmio Pulitzer promoveu a ciência (e a agenda do governo), mas negligenciou seus efeitos devastadores na sociedade.

As relações públicas permearam o discurso interno dos cientistas. Um artigo de 1953 na revista Science foi claro: “A ciência precisa de relações públicas excepcionalmente boas” e é “uma questão de simples auto-interesse” que os cientistas façam lobby por isso. E ainda havia dissidentes mesmo naquela época. Em 1950, o químico Anthony Standen escreveu Science is a Sacred Cow, um título que fala por si.

Embora Standen tenha errado muito sobre a ciência que criticou, sua descrição da atitude da sociedade em relação à ciência ainda é verdadeira. Ele escreveu de um mundo “dividido em Cientistas, que praticam a arte da infalibilidade, e não-cientistas, às vezes chamados com desprezo de ‘leigos’, que são enganados por isso. Os leigos veem as coisas prodigiosas que a ciência fez, e são impressionados e intimidados”.

Até os jornalistas de ciência mais venerados do século XX viam como sua missão impressionar o público. Horace F. Judson, jornalista e autor da clássica história da biologia molecular, The Eighth Day of Creation, queria trazer a ciência básica, que ele achava que “oferece o mais alto tipo de satisfação humana... um prazer único e sublime”, para os leitores.

Não se pode esperar que Judson forneça percepções críticas; ele está recontando as histórias de homens que admirava. Ainda assim, ele estava preocupado de que a aliança academia-indústria de seu tempo comprometeria a pesquisa básica que ele celebrava em seu livro ao mudar os “objetivos e a natureza geral da empresa [de pesquisa]”. Ele estava certo.

Nos anos 1980, a pesquisa biomédica se tornou notavelmente comoditizada. As universidades começaram a patentear pesquisas mesmo quando os cientistas que as produziram sentiam que não eram úteis e viam a patenteação como “uma coisa bastante estranha a se fazer” (como nas chamadas “patentes Axel” da Universidade de Columbia), enquanto novas leis e decisões judiciais permitiam que as universidades patentassem até mesmo pesquisas financiadas com recursos públicos, incluindo organismos geneticamente modificados.

Enquanto isso, os gastos governamentais com pesquisa básica diminuíram tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido, incentivando os cientistas a buscar financiamento em outras fontes, incluindo a indústria privada. Jornalistas como Judson, pareciam já não ser adequados para a divulgação da ciência.

Em 1985, o Comitê de Entendimento Público da Ciência da Royal Society emitiu um relatório que exortava as instituições de pesquisa a levar a sério as relações públicas. O relatório tinha um cheiro de Bernays, pedindo que os institutos trabalhassem na “melhoria de suas relações públicas” e fornecessem “briefings para jornalistas”. Também estabeleceu metas claras para a mídia: “artigos de destaque são particularmente valiosos”, e “abordagens biográficas e dramáticas ajudam a mostrar a ciência como uma atividade humana”.

Guerras de narrativa

Hoje, institutos de pesquisa poderosos exercem uma influência significativa na cobertura da imprensa (como a Royal Society poderia ter esperado). Este efeito corrosivo se torna mais evidente quando esses institutos estão envolvidos em conflitos. O incentivo para que universidades se associem com a indústria privada e patenteiem pesquisas acadêmicas naturalmente criou um terreno fértil para batalhas legais.

Como explicou o historiador econômico Philip Mirowski em seu livro de 2011, Science Mart: Privatizing American Science, “a presença duradoura de conselheiros jurídicos em programas de pesquisa científica é um dos principais atributos definidores do regime moderno de financiamento e gerenciamento da ciência americana”. Administradores universitários incentivam laboratórios de pesquisa a patentear agressivamente seu trabalho, especialmente em campos competitivos.

A guerra narrativa mais acirrada talvez tenha sido sobre CRISPR. Segundo a Wired, o sistema de edição de genomas CRISPR pode “eliminar doenças”, “resolver a fome no mundo” e “fornecer energia limpa ilimitada”. A patente do CRISPR é estimada em centenas de milhões de dólares — não surpreendentemente, as universidades lutam com unhas e dentes por ela.

CRISPR é um sistema imunológico bacteriano que reconhece o DNA estrangeiro (por exemplo, de vírus que entram em bactérias) e o direciona para destruição. Após determinar como funciona nas bactérias, os cientistas desenvolveram maneiras de usar o CRISPR para alterar o DNA nas células animais, o que pode ser usado para excluir mutações causadoras de doenças. A disputa amplamente coberta é sobre quem merece o crédito por este avanço. Se alguém acredita no potencial do CRISPR de “refazer o mundo”, nas palavras da Wired, então este projeto foi prejudicado pelo que é fundamentalmente um conflito de marcas.

O Broad Institute de Harvard e do MIT, um centro de pesquisa genômica de alto nível, entrou com uma patente sobre edição de genoma baseada em CRISPR e afirmou que seu próprio cientista, Feng Zhang, merecia o crédito. A UC Berkeley recorreu da patente, argumentando que o trabalho de Zhang só estendeu a pesquisa da cientista da UC Berkeley, Jennifer Doudna. Em 2014, o Broad Institute obteve a patente, que licenciou exclusivamente para uso terapêutico à empresa de Zhang, Editas. (Doudna, por sua vez, iniciou outras empresas baseadas em CRISPR.)

Os dois rivais levaram sua luta para a mídia. O diretor do Instituto McGovern do MIT criticou a revista Economist por não dar crédito suficiente a Zhang pelo CRISPR. Nas redes sociais, o Instituto McGovern atacou a Thomson-Reuters por negligenciar a previsão de que Zhang ganharia o Prêmio Nobel (uma previsão baseada em contagens de citações). Na costa oeste, os comunicados de imprensa da UC Berkeley referem-se a Doudna como “a inventora do CRISPR”, omitindo as contribuições de outros cientistas.

Patente e lucro

Universidades são conhecidas por exagerar a importância do trabalho de seus próprios pesquisadores, mas a forma como os jornalistas têm coberto CRISPR revela a ideologia implícita na imprensa científica.

STAT, uma nova revista científica publicada pelo proprietário do Red Sox, John Henry, cobre extensivamente o CRISPR. STAT tem conseguido obter publicidade e escritores de ciência de renome como Carl Zimmer do New York Times. No entanto, descobriu-se que STAT serve principalmente como o departamento de relações públicas do MIT e de Harvard.

No auge da disputa de patentes, publicou o perfil elogioso de Sharon Begley sobre Feng Zhang, que defende a reivindicação de Zhang ao CRISPR repetindo a narrativa oficial do MIT. Ela elogia Zhang, o compara a Einstein e se baseia em depoimentos de cientistas do MIT que estão investidos institucionalmente na batalha de Zhang. Ela não faz nenhuma tentativa de investigar criticamente a disputa de patentes ou suas implicações para o público.

Depois que o artigo apareceu, Begley recorreu às redes sociais para agradecer ao Broad Institute, bem como a Zhang e “seu incrível laboratório por me mostrar como eles estão forjando uma nova revolução genética”. (Em outras partes da STAT, os cientistas são referidos como “geneticistas estrelados” e “superstars da edição de genes”, e seus interesses pessoais são frequentemente ignorados; Zhang, por exemplo, é separado das discussões sobre os interesses de sua empresa.)

Por outro lado, há momentos em que a narrativa da UC Berkeley é favorecida. O Times apresentou Jennifer Doudna, não Zhang, como a verdadeira pioneira do CRISPR e pintou o instituto negativamente. Uma reportagem da BBC sobre CRISPR também é tudo sobre Doudna, dando apenas uma menção a “um grupo com base em Boston, Massachusetts”.

É claro que a narrativa favorita não é escolhida aleatoriamente. Como na imprensa política, os principais jornalistas de ciência cultivam relacionamentos com e atendem aos poderosos institutos que cobrem. Na chamada “Guerra do Genoma” dos anos 1990, o esforço apoiado pelos Institutos Nacionais de Saúde para sequenciar o genoma humano foi rivalizado por um privado liderado por Craig Venter, criando uma ruptura entre Venter e líderes do projeto NIH, como Eric Lander, agora diretor do Broad Institute.

Na STAT, Carl Zimmer escreveu um artigo crítico sobre o novo projeto de Venter que oferece testes de saúde personalizados. Segundo Zimmer, a iniciativa está “provocando grande suspeita”, enquanto alguns “questionam se os testes existentes de Venter podem dizer aos pacientes algo significativo”. Venter, escreveu Zimmer, também tinha um “cinturão preto em astúcia midiática”. É difícil imaginar a STAT direcionando o mesmo nível de escrutínio para certos laboratórios com sede em Boston.

Os institutos de pesquisa naturalmente reconhecem o valor dessas alianças com a imprensa. Por exemplo, Richard Preston do The New Yorker foi nomeado “escritor residente”no Broad Institute para escrever um livro com um dos cientistas do instituto. Em uma palestra como escritor residente, Preston anunciou que sua cobertura de um cientista se traduz em grandes quantias para o cientista. Michael Specter, também do The New Yorker, se tornou outro escritor residente no Broad para trabalhar em um livro sobre CRISPR, após escrever um artigo destacando o trabalho de Feng Zhang.

Com as linhas de batalha desenhadas dessa maneira, outra questão importante é completamente negligenciada: na realidade, muitos laboratórios contribuíram para nossa compreensão do CRISPR. De acordo com a Technology Review, de propriedade do MIT: “Não é surpresa que haja uma luta sobre quem realmente inventou. De um lado está a Universidade da Califórnia em Berkeley, onde a bióloga Jennifer Doudna e colegas da Europa dizem que é sua invenção. Do outro está Feng Zhang do Broad Institute do MIT e Harvard, que diz que não, ele teve a ideia primeiro”. A imprensa adotou na maioria a linguagem da disputa de patentes, o que deixa apenas duas escolhas sobre quem merece o crédito.

Patentes biomédicas, como a patente CRISPR, sequestram o trabalho financiado pelo público de um coletivo e são então licenciadas, às vezes exclusivamente, sem supervisão pública. A burocracia da lei de propriedade intelectual associada a essas patentes limita o progresso da pesquisa e, posteriormente, atrasa possíveis aplicações de saúde. Os custos são exorbitantes: as taxas legais do Broad Institute para a batalha CRISPR até agora custaram mais de US $10 milhões de dólares à Editas, que recebeu uma licença exclusiva para terapêuticos baseados em CRISPR do Broad.

No entanto, a imprensa está tão tomada de entusiasmo pela cada vez mais estreita relação entre a academia e as empresas privadas que não cobre esses tópicos. O STAT celebrou essa conexão elogiando os professores do MIT que “se jogam” para a indústria “sem deixar a torre de marfim” e elogiando os alunos que contactam empresas de biotecnologia. Os jornalistas às vezes levantam questões sociais e éticas sobre a pesquisa biomédica, mas essas questões raramente interferem nas parcerias entre academia e indústria.

Eles podem, por exemplo, questionar se fazer “bebês de provetas” com CRISPR é ético, mas são as questões menos abstratas sobre propriedade do trabalho financiado pelo público que são evitadas. Até mesmo veículos conservadores de negócios como The Economist e Fortune levantaram preocupações no passado sobre a patenteação da pesquisa universitária, mas essas questões mal entraram na cobertura científica convencional.

Mas essa postura reflexiva, mesmo como fachada, parece ser a exceção em vez da regra. Muitos dos principais escritores de ciência, como Yong, pensam que sua função é “popularizar” ou “comunicar” a ciência ao público. Programas que treinam jornalistas de ciência, como o da UC Santa Cruz, são chamados de “Programas de Comunicação Científica”. O folheto do programa afirma que “as mulheres e homens que popularizam a ciência desfrutam de uma carreira que satisfaz sua inquietação intelectual” — não exatamente a imagem adversaria tradicionalmente associada ao jornalismo.

Ciência glamorizada

Atorcida científica favorece institutos de elite cujo trabalho aparece nas chamadas revistas de “glamour” científico, como Nature, Science e Cell. Yong, por exemplo, escreveu cinco artigos apresentando ciência do Instituto Broad só em setembro a dezembro de 2015 (sua cobertura é quase indistinguível dos comunicados de imprensa do próprio instituto).

Zimmer também perfila repetidamente o mesmo grupo de cientistas cujo trabalho aparece na Nature e na Science. Embora seja reconhecido que ser publicado em revistas de glamour é um processo propenso a manipulação, jornalistas frequentemente o tratam como um carimbo de perspicácia científica. Essa cobertura formulaica dá uma resposta fácil para o que Begley disse ser a pergunta chave para os jornalistas: “Como você pode separar descobertas que provavelmente são verdadeiras daquelas destinadas ao lixo da ciência?” De acordo com a epistemologia da ciência que muitos jornalistas adotaram, a resposta é: a ciência “verdadeira” pode ser identificada em tempo real, se ouvirmos especialistas nos institutos de elite cujos artigos aparecem nas revistas certas.

É difícil culpar apenas a imprensa por isso quando as instituições científicas têm em grande parte internalizado a mesma atitude. Revistas científicas de alto perfil dependem de histórias chamativas e os cientistas atendem a essas revistas, muitas vezes ao preço de distorcer o conteúdo. O artigo científico sempre foi, como Peter Medawar disse em 1963, uma espécie de “fraude”: uma distorção do processo científico para se adequar às expectativas dos editores de revistas.

Não é surpreendente, então, que na ciência biomédica, que é talvez a mais governada pela publicação de elegância, tenha surgido uma indústria de “contadores de histórias especializados” para ajudar os cientistas a “comunicar”. Os especialistas afirmam que contar histórias é inevitável, dada como nossos cérebros estão conectados. Aparentemente, contar histórias “afeta mais áreas do cérebro do que mensagens racionais baseadas em dados.” Contar histórias se apresenta como uma técnica de comunicação, uma maneira de escrever melhor e produzir gráficos mais atraentes. Ele substitui o discurso entediante de argumentos, evidências e modelos concorrentes, que falha em nossa era de “distração”.

Mas a narrativa científica não se resume a um conjunto de dicas de comunicação inofensivas — é uma ideologia sobre como a ciência deve parecer, o que é e não é um resultado desejável. Quando os cientistas se concentram em encontrar “grandes histórias”, geralmente é para apelar para as revistas glamourosas da ciência.

O biólogo Randy Schekman apontou como a fixação na publicação glamourosa cria “bolhas em campos da moda onde os pesquisadores podem fazer as afirmações ousadas que essas revistas querem, ao mesmo tempo em que desencorajam outros trabalhos importantes”. A narrativa é realmente sobre cliques e citações. Livros como “A Arte da Narrativa Científica” prometem uma “fórmula passo a passo” para os cientistas maximizarem suas contagens de citações — o livro foi até usado em um curso da Escola de Medicina de Harvard. Outro guia de narrativa defende a ideia de que “Hollywood tem muito a ensinar aos cientistas sobre como contar uma história” — é fácil imaginar como isso poderia se desenvolver.

Na prática, a narrativa de histórias codifica a lógica neoliberal pela qual as universidades avaliam cada vez mais a pesquisa. Em seu livro de 2015, “Undoing the Demos”, a teórica política Wendy Brown descreveu como, sob essa lógica, os acadêmicos são transformados em “não professores e pensadores, mas em capitais humanos que aprendem a atrair investidores, a jogar com suas contagens do Google Scholar e seus ‘fatores de impacto’ e, acima de tudo, seguir o dinheiro e as classificações”. Essa lógica foi internalizada por muitos cientistas e agências de financiamento.

O vice-diretor do NIH recentemente propôs “Citações por Dólar” como uma métrica para classificar cientistas, dando mais um incentivo para os acadêmicos contarem histórias para entrar nas revistas de destaque. Alguns cientistas protestaram contra a cultura da “narrativa de histórias” ao começar uma revista alternativa destinada a publicar ciência que não seja apenas “a ciência que vende uma história”. Mas a visibilidade na imprensa e nas revistas de destaque traz mais fundos, então quebrar o molde da narrativa científica não é uma tarefa fácil.

O fato é que os cientistas apoiados pela máquina de relações públicas mais eficaz têm influência desproporcional sobre a imprensa. A mudança para ver as universidades como empresas, com alunos como consumidores e pesquisadores como empreendedores, é crucial para entender como chegamos aqui. Quando a pesquisa é julgada no imaginado “mercado das ideias”, é lógico que as universidades expandam seus esforços de relações públicas ao lado dos escritórios de transferência de tecnologia que amarram a pesquisa em teias de “propriedade intelectual”. A mídia convencional usa esses esforços de RP, em vez de pensamento crítico, para navegar na interface complexa entre ciência e sociedade.

Alguns podem argumentar que os jornalistas científicos não possuem formação científica para cobrir a ciência de forma crítica. No entanto, o que muitas vezes está faltando não é o domínio técnico da ciência, mas sim a atitude de vigilância que os jornalistas tradicionalmente prestaram homenagem. A imprensa, em vez disso, lidera com uma agenda de relações públicas de acordo com a qual, como escreveu o analista de mídia Mark Crispin Miller, o público é “guiado imperceptivelmente” por “manipuladores racionais benignos”.

O objetivo parece ser atender a institutos de pesquisa poderosos, enquanto aumenta o apoio à ciência de um público tratado como espectadores dóceis. O resultado não é benigno — uma vez que apaga as investigações de interesse público, como já vimos — nem racional. Em uma versão menos vazia de si mesma, a imprensa científica se envolveria seriamente com a curiosidade inata das pessoas sobre o mundo e a empresa científica que busca explicá-lo, enquanto visando ser parte da quarta propriedade.

Colaborador

Yarden Katz é membro do departamento de Biologia de Sistemas da Harvard Medical School e membro do Berkman Klein Center for Internet & Society da Harvard University. Ele recebeu seu PhD em Ciências do Cérebro e Cognitivas do MIT em 2014.

Socialismo em uma era de reacionarismo

Noam Chomsky sobre a reforma progressista, Fidel Castro, e construção da resistência sob Donald Trump.

Uma entrevista com
Noam Chomsky

Noam Chomsky fala em Boston em abril de 2015. Cancillería del Ecuador / Flickr

Entrevista com
Vaios Triantafyllou

Tradução / A bibliografia de Noam Chomsky continua crescendo enquanto em que ele vai se aproximando dos noventa anos. Para a esquerda internacional, felizmente, ele continua concedendo entrevistas.

No início deste mês, menos de uma semana antes de seu aniversário de 88 anos, Chomsky sentou para uma conversa em seu escritório em Cambridge, Massachusetts. Entrevistado por Vaios Triantafyllou, um estudante da Universidade da Pennsylvania, Chomsky debateu desde socialismo, natureza humana e Adam Smith até o presidente eleito dos EUA (a transcrição foi editada e resumida, para ficar mais clara).

Enquanto Donald Trump nomeia seu gabinete ministerial, Chomsky admite que o futuro pode nos trazer a intolerância e a busca por "bodes expiatórios". Contudo, ainda nos cabe escolher "se isto vai ou não acontecer", afirma Chomsky acerca das táticas de dividir para conquistar: "depende do tipo de resistência que será imposta por pessoas como você".

Vaios Triantafyllou

Como os socialistas deveriam pensar as relações entre as reformas que humanizam o sistema existente de produção (como as propostas por Sanders) e a estratégia de longo prazo da abolição do capitalismo como um todo?

Noam Chomsky

Bem, primeiramente, deveríamos levar em conta que, tal como a maioria dos termos no discurso político, o termo “socialismo” perdeu de certa forma o seu significado. “Socialismo” tinha, antes, um significado preciso. Há muito tempo, esta palavra designava basicamente o controle da produção pelos produtores, a eliminação do trabalho assalariado, a democratização de todas as esferas da vida: produção, comércio, educação, mídia, controle operário nas fábricas, controle comunitário sobre as próprias comunidades e assim por diante. Isto era o socialismo antigamente.

No entanto, esta palavra não tem mais este significado há um século. Na verdade, os países que eram chamados de “socialistas” tinham os sistemas mais antissocialistas do mundo. Os trabalhadores tinham mais direitos nos Estados Unidos e na Inglaterra que na Rússia, e ainda assim chamava-se aquilo que havia na Rússia de socialismo.

Quanto a Bernie Sanders, ele é uma pessoa honesta e decente, e eu o apoiei. Mas o que ele quer dizer com “socialismo” é o liberalismo do New Deal. De fato, suas propostas políticas não teriam surpreendido o General Eisenhower. O fato de que suas propostas tenham sido chamadas de “uma revolução política” é um sinal do quanto o espectro político girou à direita, principalmente nos últimos trinta anos, desde que os programas neoliberais começaram a ser aplicados. O que Sanders estava reivindicando era a restauração de algo como o liberalismo do New Deal, que é algo muito positivo.

Então, voltando a sua pergunta, acho que deveríamos perguntar: as pessoas que se importam com os seres humanos e com suas vidas e anseios deveriam tentar humanizar o sistema de produção existente através dos meios que você menciona? E a resposta é: claro que elas deveriam fazer isto, pois é melhor para as pessoas.

Deveriam estabelecer a meta em longo prazo de abolir a organização capitalista da economia como um todo? Claro, acredito que sim. O capitalismo trouxe avanços, mas é baseado em premissas muito brutais, desumanas. A própria ideia de que deve haver uma classe de pessoas que dão ordens por serem proprietárias de riquezas e outra classe, gigantesca, que recebe ordens e que as segue, porque não tem acesso à riqueza e ao poder, é inaceitável.

Então, é claro que este sistema deveria ser abolido. Mas estas duas metas [a reforma e a abolição do capitalismo] não são alternativas. São coisas que são feitas em conjunto.

Um dos principais argumentos lançados contra o socialismo é que a natureza humana seria, por definição, egoísta e competitiva, e que, portanto, tenderia ao capitalismo. Como você responderia a isto?

Noam Chomsky

Não esqueça que o capitalismo é um curtíssimo período da sociedade humana. Nunca, na verdade, tivemos um capitalismo, sempre tivemos uma variedade ou outra de capitalismo de Estado. A razão para isto é que o capitalismo iria se autodestruir em muito pouco tempo. Então, a classe empresarial sempre exigiu forte intervenção estatal para proteger a sociedade dos efeitos destrutivos das forças de mercado. É muito comum que isto seja levado a cabo, porque eles não querem que tudo se acabe.

Assim, tivemos uma forma ou outra de capitalismo de Estado durante um período muitíssimo breve da história humana, e isto nada nos diz de essencial acerca da natureza humana. Se você observar as sociedades e as interações humanas, encontra de tudo. Você encontra egoísmo, encontra altruísmo, encontra simpatia.

Vamos pegar Adam Smith, o santo padroeiro do capitalismo – o que ele pensava? Ele acreditava que o principal instinto humano era a compaixão. Na verdade, observe a expressão “mão invisível”. Preste atenção no modo exato com que ele usava esta expressão. Na verdade, não é difícil entender, porque ele só a usou duas vezes de forma relevante, uma vez em cada um de seus livros mais importantes.

Em um de seus principais livros, A riqueza das nações, a expressão aparece uma vez, e surge como parte de uma crítica à globalização neoliberal. O que ele diz é que se, na Inglaterra, os industriais e comerciantes investissem no exterior e de lá importassem, eles poderiam lucrar com isto, mas tal prática seria ruim para a Inglaterra. Contudo, seu compromisso com a pátria é o bastante para que eles dificilmente façam tal coisa e, portanto, através de uma mão invisível, a Inglaterra será salva do impacto do que se poderia chamar de globalização neoliberal. Este é um dos usos.

O outro uso está em seu outro grande livro, A teoria dos sentimentos morais (que as pessoas não leem muito, mas que para ele era o livro mais importante). Aqui, ele é um igualitarista, acreditava na igualdade dos resultados, não das oportunidades. Ele é uma figura do Iluminismo, pré-capitalista.

Ele diz: suponha que na Inglaterra um proprietário de terras possuísse a maior parte da terra e outras pessoas não tivessem do que viver. Ele diz que não importaria muito, porque o rico proprietário, graças a uma mão invisível, acabaria numa sociedade bastante igualitária. Esta é sua concepção da natureza humana.

Este não é o sentido com que a “mão invisível” é mencionada por pessoas com quem vocês estudaram ou cujos livros leram. Isto demonstra uma diferença quanto à doutrina, não quanto às fatos, acerca da natureza humana. O que nós realmente sabemos sobre a natureza humana é que ela tem todas estas possibilidades.

Você considera necessário elaborar propostas concretas para uma futura ordem socialista, criando uma sólida alternativa que atraia a maioria das pessoas?

Noam Chomsky

Eu acredito que as pessoas estejam interessadas em autênticas metas socialistas em longo prazo (que não correspondem ao que normalmente é chamado de socialismo). Elas deveriam refletir cuidadosamente sobre como a sociedade projetada deveria funcionar, não de maneira detalhada, porque muitas das coisas simplesmente devem ser aprendidas experimentando-se, e nós não sabemos o bastante para planejar sociedades minuciosamente, de forma alguma. Contudo, as linhas gerais podem ser concebidas, e muitos dos problemas específicos podem ser discutidos.

Basta que estas questões façam parte da consciência das pessoas comuns. É assim que a transição ao socialismo pode acontecer. Quando isto se torna parte do pensamento, da consciência e das aspirações da grande maioria da população.

Então, tomemos o exemplo de um dos maiores êxitos neste sentido, talvez o maior: a revolução anarquista na Espanha, em 1936. Houve décadas de preparação para ela: na educação, no ativismo, e esforços – às vezes reprimidos –, mas quando chegou o momento da ofensiva fascista, as pessoas tinha consciência da forma como elas queriam que a sociedade fosse organizada.

Nós já vimos isto em outras formas, também. Veja, por exemplo, a reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra Mundial. A Segunda Guerra Mundial teve um impacto totalmente devastador sobre a maior parte da Europa. Mas não lhes custou muito tempo para reconstruir as democracias do capitalismo de Estado porque a mesma estava na cabeça das pessoas.

Houve outras partes do mundo que foram muito devastadas, mas em que eles não puderam fazer o mesmo. As pessoas não tinham as mesmas concepções. Muito depende da consciência humana.

A Syriza chegou ao poder declarando compromisso com o socialismo, mas acabou por cooperar com a União Europeia e não renunciou ao poder mesmo depois de ter sido forçada a implantar a austeridade. Como você acha que nós podemos evitar acontecimentos similares no futuro?
Noam Chomsky

Acredito que a verdadeira tragédia da Grécia, além da selvageria da burocracia europeia, da burocracia de Bruxelas, dos bancos dos países do norte, que foi realmente selvagem, seja que a crise Grega não precisasse irromper. Poderia ter sido controlada com facilidade bem no início.

Mas aconteceu, e a Syriza chegou ao poder com o compromisso declarado de combatê-la. De fato, convocou-se um plebiscito que aterrorizou a Europa: a ideia de que as pessoas deveriam ter o direito de decidir algo a respeito de seus próprios destinos é um anátema para as elites europeias – como a democracia poderia sequer ser permitida (mesmo no país em que ela foi criada)?

Como resultado desta ação criminosa de perguntar as pessoas o que elas queriam, a Grécia foi punida ainda mais severamente. As exigências da Troika se tornaram ainda mais duras por causa do plebiscito. Eles temiam uma espécie de efeito dominó – se nós levarmos em consideração a vontade das pessoas, outros podem ter a mesma ideia, e a praga da democracia poderia realmente se espalhar, então nós temos que combatê-la, imediatamente, desde a raiz. Assim, a Syriza capitulou e, desde então, vem fazendo muitas coisas que julgo um tanto inaceitáveis.

Você pergunta como as pessoas devem reagir? Criando algo melhor. Não é fácil, especialmente quando se está isolado. A Grécia, sozinha, está numa posição muito vulnerável. Se os gregos tivessem o apoio da esquerda progressista e das forças populares no resto da Europa, eles poderiam ter sido capazes de resistir às exigências da Troika.

Qual a sua opinião sobre o sistema que Castro criou em Cuba depois da revolução?

Noam Chomsky

Bem, quais seriam os verdadeiros objetivos de Castro nós não temos como saber. Ele foi muito pressionado desde o início por um ataque cruel e duro por parte da superpotência dominante.
É preciso lembrar que, literalmente, poucos meses depois de sua chegada ao poder, aviões da Flórida começaram a bombardear Cuba. Dentro de um ano, o governo Eisenhower, secreta, mas formalmente, decidiu derrubar o governo [Cubano]. Então ocorreu a invasão à Baía dos Porcos. O governo Kennedy ficou furioso devido à falha da invasão e imediatamente lançou uma grande guerra terrorista, econômica, que recrudesceu ao longo dos anos.

Sob tais condições, é até surpreendente que Cuba tenha sobrevivido. Trata-se de uma pequena ilha há poucos quilômetros do litoral de uma gigantesca superpotência que está tentando destrui-la e que, obviamente, dependera dos Estados Unidos para sobreviver durante toda a sua história pregressa recente. Porém, de alguma forma, eles sobreviveram. É verdade que é uma ditadura: muita brutalidade, muitos prisioneiros políticos, muitas pessoas mortas.

Lembre-se de que o ataque dos EUA a Cuba foi apresentado ideologicamente como necessário para nos defendermos da Rússia. Tão logo a Rússia desapareceu, contudo, o ataque foi mais duro. Quase não se comentou tal fato, mas isto nos mostra que as justificativas anteriores eram apenas mentiras puras e simples, como se mostraram de fato.

Se você consultar os documentos internos dos EUA, eles explicam muito claramente qual era a ameaça de Cuba. No início dos anos 60, o Departamento de Estado descrevia a ameaça de Cuba como um desafio bem-sucedido de Castro à política dos EUA, até à Doutrina Monroe. A Doutrina Monroe estabelecia a reivindicação – que eles não podiam concretizar à época, mas reivindicavam – de domínio do Hemisfério Ocidental, e Castro estava desafiando esta reivindicação com sucesso.

Isto não podia ser tolerado. É como se alguém dissesse: vamos ter democracia na Grécia, e nós simplesmente não pudéssemos tolerar isto, então teríamos que cortar o mal pela raiz. Ninguém pode, com sucesso, desafiar o senhor do hemisfério, na verdade o senhor do mundo, e daí vem a selvageria. Mas a reação foi diversificada. Houve êxitos, como na saúde, na alfabetização, e assim por diante. O internacionalismo foi inacreditável. Foi a razão por que Nelson Mandela foi a Cuba cumprimentar Castro e agradecer ao povo cubano assim que saiu da prisão. É uma reação do terceiro mundo, e eles entenderam-na.

Cuba desempenhou um enorme papel na libertação da África e na derrubada do apartheid – enviando médicos e professores aos lugares mais pobres do mundo, como Haiti, Paquistão depois do terremoto, a quase todos os lugares. O internacionalismo é simplesmente espantoso. Não acho que tenha havido nada parecido na história. As conquistas na área da saúde foram surpreendentes. As estatísticas de saúde em Cuba eram aproximadamente as mesmas que as dos Estados Unidos, mas observem-se as diferenças de riqueza e de poder.

Por outro lado, havia uma ditadura cruenta. Então, houve ambas as coisas. Transição ao socialismo? Não se pode sequer falar sobre isto. As condições tornavam isto impossível, e não sabíamos se havia esta intenção.

Nos últimos anos surgiram muitos movimentos nos EUA criticando a atual forma de organização social e econômica. Ainda assim, a maioria destes movimentos se uniu contra um inimigo comum em vez de se unir em torno a uma perspectiva comum. Como poderíamos entender a situação dos movimentos sociais e sua capacidade de se unificarem?

Noam Chomsky

Tomemos o movimento Occupy (Ocupe). Occupy não era um movimento, era uma tática. Não se pode sentar num parque próximo de Wall Street para sempre. Não se pode fazer tal coisa por mais que alguns meses.
Foi uma tática que eu não havia previsto. Se as pessoas tivessem me perguntado, eu teria dito: não façam isto.

Mas foi um grande sucesso, um sucesso enorme, com um grande impacto no pensamento das pessoas, nas ações das pessoas. Todo o conceito de concentração de renda (1 por cento e 99 por cento) estava lá, obviamente, como um pano de fundo na consciência das pessoas, mas se tornou proeminente – proeminente até mesmo nos meios de comunicação de massa (no Wall Street Journal, por exemplo) – e levou a muitas formas de ativismo, energizou as pessoas e tudo mais. Mas não foi um movimento.

A esquerda, de uma forma geral, é muito atomizada. Vivemos em sociedades muito atomizadas. As pessoas são muito solitárias: é você com seu iPad.

Os maiores centros organizativos, como o movimento dos trabalhadores, foram seriamente enfraquecidos, nos Estados Unidos muito seriamente, pela política. Não aconteceu de uma hora para outra. Políticas têm sido elaboradas para arruinar a organização da classe trabalhadora, e o motivo não é apenas que os sindicatos lutem pelos direitos dos trabalhadores, mas porque também têm um efeito democratizante. Estas são instituições em que as pessoas sem poder podem se reunir, apoiar-se mutuamente, aprender sobre o mundo, experimentar suas ideias, iniciar programas – e isto é perigoso. É como o plebiscito na Grécia. É perigoso permitir tal coisa.

Devemos nos lembrar de que durante a Segunda Guerra Mundial e a Depressão, houve uma irrupção de democracia popular e radical em todo o mundo. Deu-se de formas diferentes, mas estava lá, em todo lugar.

Na Grécia foi a revolução grega. E tinha de ser esmagada. Em países como a Grécia, foi esmagada pela violência. Em países como a Itália, onde as forças britânicas e estadunidenses entraram em 1943, foi esmagada com o ataque e a destruição das milícias que combatiam os alemães e com a restauração da ordem tradicional. Em países como os Estados Unidos, foi esmagada não pela violência – o poder capitalista não tem esta capacidade aqui -, mas sim, desde os anos 40, por imensos esforços no sentido de tentar minar e destruir o movimento trabalhista. E assim foi.

Estes esforços chegaram a um ápice sob Reagan e, mais tarde, sob Clinton, e agora o movimento dos trabalhadores é extremamente fraco (em outros países, isto se deu de outras maneiras). Mas este movimento era uma das instituições que permitia que as pessoas se reunissem e agissem cooperativamente em mútuo auxílio, e alguns destes movimentos foram totalmente dizimados.

O que nós podemos esperar de Donald Trump? Sua ascensão ao poder põe a necessidade de redefinir e unir um movimento socialista em torno a uma perspectiva como nos Estados Unidos?

Noam Chomsky

A resposta para isto cabe basicamente a você e aos seus amigos. Realmente depende de como as pessoas, especialmente os jovens, reagirão. Há muitas oportunidades que poderiam ser aproveitadas. Não é inevitável, de modo algum.

Considere apenas o que pode acontecer. Trump é bastante imprevisível. Ele não tem ideia do que planeja. Mas o que poderia acontecer, por exemplo, é o seguinte: muitas das pessoas que votaram em Trump, pessoas da classe trabalhadora, votaram em Obama em 2008. Eles foram seduzidos por slogans como “esperança” e “mudança”. Eles não obtiveram esperança; não obtiveram mudança; ficaram desiludidos.

Desta vez estas pessoas votaram em outro candidato que está evocando esperança e mudança e prometeu fazer todas as maravilhas. Bem, ele não vai fazer nenhuma. Então, o que pode acontecer em alguns anos, quando ele não as tiver feito e aquele mesmo eleitorado estiver desiludido?

O que é muito provável é que o sistema de poder faça o que normalmente faz em tais condições: tentar encontrar um bode expiatório mais vulnerável, para dizer: “É isto aí, vocês não receberam o que lhes prometemos, e a causa são estas pessoas inúteis, estes mexicanos, estes negros, estes imigrantes sírios, são os que fraudam a assistência social. São eles que estão destruindo tudo. Vamos persegui-los. Os gays, são eles os culpados.”

Isto poderia acontecer. Já aconteceu diversas vezes na história, com consequências um tanto desastrosas. E se isto vai acontecer de novo depende do tipo de resistência que vai ser imposta por pessoas como você. A resposta a esta questão deveria ser dirigida a você, não a mim.

Colaborador

Noam Chomsky é professor emérito de lingüística no Massachusetts Institute of Technology. A Haymarket Books lançou recentemente doze de seus livros clássicos em novas edições.

12 de dezembro de 2016

Lembre-se de El Mozote

Em 11 de dezembro de 1981, os soldados de El Salvador apoiados pelos EUA levaram a cabo um dos piores massacres da história das Américas, em El Mozote.

Micah Uetricht e Branko Marcetic

Jacobin

Um memorial aos mortos localizado em El Mozote, El Salvador. Arcebispo Romero Trust

"Que filho da puta diz isso?" Era 11 de dezembro de 1981 em El Mozote, uma pequena cidade de El Salvador, e o major queria saber qual dos seus homens se recusara a matar as crianças.

Os militares acabaram de passar um dia inteiro assassinando centenas de habitantes. Agora, restavam apenas as crianças da cidade. Reunidos do lado de fora de uma escola onde algumas crianças estavam sendo mantidas, os soldados discutiram. Alguns não queriam matar as crianças, muitas das quais tinham menos de doze anos e algumas eram crianças. O major, sem hesitar, aproximou-se, pegou um menino no meio de uma multidão de crianças, jogou-o no ar e espetou-o com uma baioneta enquanto ele descia. Não houve mais discussão.

O menino foi um dos mais de oitocentos massacrados naquele dia e no seguinte, trinta e cinco anos atrás.

El Mozote não foi a primeira nem a última atrocidade em massa na terrível guerra civil de El Salvador. A violação e assassinato de quatro religiosas norte-americanas pela Guarda Nacional, o assassinato do Arcebispo Oscar Romero enquanto ele celebrava uma missa, o massacre de pelo menos trezentos civis no rio Sumpúl, um assassinato em massa semelhante um ano depois no rio Lempa, a execução- assassinato de seis padres jesuítas, sua governanta e sua filha na Universidade da América Central - a lista de horrores é infinita e é tão longa e brutal que corre o risco de ofuscar o despejo diário de corpos crivados de balas e tortura daqueles que ousaram falar contra o governo de extrema direita nas ruas das cidades e nos parques públicos durante a Guerra Civil Salvadorenha, que se estendeu de 1980 a 1992.

A esmagadora maioria destas atrocidades foi cometida pela Guarda Nacional salvadorenha e pelos esquadrões da morte aos quais pertenciam muitos dos seus soldados e outros simpatizantes. O seu objetivo era destruir a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), uma coligação de guerrilhas de esquerda com forte apoio em todo o país; quaisquer trabalhadores, camponeses e trabalhadores religiosos que simpatizassem com eles; e quaisquer outros dissidentes que discordassem do programa do governo corrupto e de direita, que não poderia ter existido ou perdurado sem o apoio dos EUA.

No seu auge, os Estados Unidos davam mais de 1 milhão de dólares por dia ao governo salvadorenho em várias formas de treinamento, armas, aconselhamento militar e outras ajudas, numa tentativa de impedir uma tomada de poder ao estilo sandinista pela FMLN e pelos seus apoiadores. "No final da década de 1980", escreve Walter LaFeber, a ajuda dos EUA "aproximava-se de 100% do orçamento do governo salvadorenho".

Durante a guerra, nenhuma supressão da democracia e violações flagrantes dos direitos humanos por parte do governo de El Salvador foi longe demais para os Estados Unidos, especialmente sob Ronald Reagan. Cada assassinato de civis, cada violação, cada execução de clérigos simpatizantes da esquerda, cada assassinato em massa de inocentes foi justificado por um anticomunismo zeloso que procurava manter níveis esmagadores de pobreza, riqueza e poder político nas mãos de uma pequena e brutal elite amiga dos EUA, sem apoio popular, mas com total apoio do poder americano.

O Massacre de El Mozote foi único pelo grande número de vidas inocentes perdidas e talvez pela brutalidade desenfreada exibida durante o mesmo. Deve ser lembrado por estas razões. Mas também deve ser lembrado porque não foi único.

Quantitativamente, foi a maior atrocidade cometida em El Salvador durante a guerra civil e uma das piores da história das Américas; qualitativamente, estava de acordo com a política dos EUA de encorajar tacitamente ou olhar com desconfiança para tais atos e depois encobri-los.

Mais de oitocentos homens, mulheres e crianças inocentes foram massacrados durante dois dias em El Mozote e nas aldeias vizinhas. Não só a perda destas vidas não foi suficiente para convencer os Estados Unidos a mudar o seu rumo brutal em El Salvador, mas a direita entrou em ação para minimizar o massacre e atacar os jornalistas que o relataram pela primeira vez.

Operação resgate

As mortes, que são mais claramente expostas em The Massacre at El Mozote, de Mark Danner, uma versão ampliada de um artigo da New Yorker, ocorreram durante a Operação Resgate, uma operação de terra arrasada de onze dias destinada à região de La Guacamaya, ao sul de El Mozote e a localização do posto de comando do Exército Popular Revolucionário (ERP), principal grupo guerrilheiro de Morazán e um dos cinco membros da FMLN.

La Gaucamaya também abrigava a Rádio Venceremos, uma estação de rádio clandestina especializada em difundir propaganda de guerrilha, reportar sobre guerrilha e organização de movimentos sociais e zombar impiedosamente do governo. A estação enfureceu os militares salvadorenhos. O tenente-coronel Domingo Monterrosa Barrios, comandante da unidade do batalhão Atlacatl que executou a operação, disse que "enquanto não acabarmos com esta Rádio Venceremos, sempre teremos um escorpião no rabo".

Atlacatl foi treinado e equipado pelo governo dos EUA. O próprio Monterrosa passou alguns dos seus primeiros anos frequentando cursos na Escola das Américas, que há muito produz soldados latino-americanos responsáveis por subsequentes abusos dos direitos humanos e golpes de estado em todo o hemisfério.

O batalhão desembarcou em Perquín, Morazan, no dia 8 de dezembro e, após recrutar dez moradores locais contra sua vontade como guias, começou a avançar para o sul. Ao longo do caminho, o batalhão de mais de mil homens matou sete homens em uma aldeia próxima, cujos nomes correspondiam a uma lista de suspeitos, enquanto aviões bombardeavam as encostas em redor de El Mozote. A certa altura, bombas caíram perto da cidade e danificaram a escola.

Foi o tipo de situação que poderia ter levado as pessoas a fugir da cidade e escapar do que parecia quase certo: a proximidade da morte. Os guerrilheiros, que estavam fazendo as malas e a fugindo antes da operação - incluindo a Rádio Venceremos, cujos membros carregavam equipamento de rádio pesado enquanto fugiam - tentaram alertar alguns habitantes da cidade para se juntarem a eles.

Mas os habitantes locais tinham todos os motivos para ficar em El Mozote. Dias antes, Marcos Díaz, proprietário do armazém geral da cidade, tinha sido informado por um oficial sobre a operação que se aproximava e disse-lhe que, embora qualquer pessoa encontrada em El Mozote fosse poupada, quem estivesse fora não o seria. Mais tarde, falando para uma reunião de centenas de habitantes da cidade, Díaz - que era o homem mais rico e respeitado da cidade - colocou a sua reputação em risco, insistindo para que ninguém saísse. A maioria não saiu. Ao saber desta notícia, muitos habitantes das cidades vizinhas fizeram a caminhada até El Mozote, em busca de refúgio.

Além disso, porém, era inconcebível que El Mozote se tornasse um alvo das forças governamentais. Os guerrilheiros nunca conseguiram estabelecer uma posição segura nesta cidade composta maioritariamente por evangélicos protestantes, que tendiam a olhar com amargura para o comunismo. Muitos habitantes da cidade provavelmente também raciocinaram que seria melhor permanecerem em uma cidade sem guerrilheiros do que serem pegos em outro lugar com eles, o que quase certamente resultaria em morte.

Foi assim que centenas de pessoas estavam abrigadas na cidade quando os soldados chegaram, na noite de 10 de dezembro (coincidentemente, no trigésimo terceiro aniversário da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos). O batalhão não perdeu tempo.

Marching into its deserted streets, soldiers banged on the doors, ordering the inhabitants out. They did not find any guerrillas or the equipment for Radio Venceremos. Shouting and pushing, the hundreds of Atlacatl members gathered the people into the street, some carrying infants or holding onto children, and ordered them to lie face down.

The gathered prisoners laid in the street for an hour while soldiers walked up and down, hitting and kicking the civilians, pointing their rifles at them and bellowing insults and questions amid the children’s crying. When Marcos Dìaz protested that he had been assured no harm would come to the town, he was met with laughter from the soldiers. The soldiers then began collecting jewelry and other valuables from the townspeople, before sending them back into their homes, warning them against showing “even so much of their noses.”

According to Danner’s account, the soldiers knew there were no guerrillas among the townspeople. By this point, there were no longer any lists of suspects. Rather, their aim — at least to begin with — was to interrogate the townspeople and find out how the guerrillas were transporting their supplies and where they were getting their weapons. The townspeople had no such information.

At 5 AM the next day, before the sun had risen, the soldiers again pulled the sleepless townspeople from their houses, pushing them with their rifle butts, and made them form two lines: one for the women and children, another for the men. After standing for hours, the women were sent to the house of a local merchant while the men were taken to the local Church of the Three Kings. According to the Tutela Legal report later produced on the atrocity, even the soldiers didn’t know what was to come next.

Monterrosa called a meeting with several other high-ranking officers, after which they gave an order: exterminate the people. All of them.

The thirty to forty men of the third section of the Fifth Company, under Lieutenant Salvador Augusto Guzmán Parada, were helicoptered in, while the rest of the battalion was withdrawn and forbidden from entering the town without authorization.

It took the soldiers just one hour to “interrogate” the men before the killing started. Around 8 AM, the soldiers started decapitating the men with their machetes inside the church, where the men lay face down on the dirt floor. They then dragged the headless bodies to the church’s convent to pile them up.

Soon, however, they switched to taking the men out in groups of around four each, blindfolded and their hands tied behind their backs, marching them out to the forests, ordering them to lie on the ground, and then shooting them in their heads.

Rufina Amaya, the massacre’s sole survivor, recalled to Danner seeing her husband led out in one of the first groups. She and her son watched as he and another man were gunned down while trying to escape, then beheaded as they lay dying.

After this, there was no illusion about what was taking place. Terror and hysteria filled the house where the women and children were kept, as they watched groups of men march out into the woods, then disappear, followed by screaming and begging, then gunfire, and, finally, silence.

At noon, a group of soldiers entered the house and informed the women it was their “turn.” The men had already been released, the soldiers explained, and now the women would be led out in groups and set free to do what they wished. They started picking out and removing the older girls and younger women, some as young as ten, hitting the mothers who clung onto the girls with their rifles.

Soon after, those left in the house could hear the screams of their daughters coming from the hills as the soldiers took turns repeatedly raping them over the next eighteen hours, before killing them. One of the guides told Danner that the soldiers would emerge from the forest joking about their fondness for the twelve-year-olds.

While this was going on, the soldiers began taking the women out in groups of around twenty. Instead of setting them free, they murdered them just as they had the men. After a while, terrified children and crying infants were all that remained in the house.

Vítimas do Massacre de Mozote. (Susan Meiselas / Wikimedia Commons)

Other soldiers were piling up the bodies in some of the town’s houses, then setting them alight. Those who had opted to leave the town and hide in the hills later reported seeing plumes of smoke rising from the town, wafting up along with the scent of burning meat.

Rufina was led out in one of the last groups, and managed to get away in the midst of confusion when the woman at the head of her group spotted the corpses in one of the burning houses and started screaming that the soldiers were killing people. The other women began begging and resisting the soldiers.

Rufina, at the back, dropped to her knees and begged God for forgiveness. When the soldier behind her went up to help the others with the women at the front, she crawled between a pine and crab-apple tree, unseen, fifteen feet away from the house they were being led into.

That evening, the soldiers looted Marcos Dìaz’s store, quenching their thirst with sodas. Then, they turned to the children. Apart from the girls, whose screams could still be heard coming from the hills, they were the only ones still alive.

The soldiers entered the house and began slashing the children with machetes, breaking their skulls with their rifles and choking them to death. The youngest children were crammed into the church’s convent, where the soldiers unloaded their rifles into them. Around thirty more children were killed in the morning, when the soldiers went from house to house, collecting those who had missed out on the carnage. These children, some as young as two years old, had their throats cut or were hung from the trees.

Rufina, who was still lying undiscovered between the pine and crab-apple trees, had four of her children in the house, including an eight-month-old daughter. She could hear the screams of her children, crying out for her as they were killed.

She crawled across the road underneath a barbed-wire fence, hid in a patch of maguey, and dug a small hole for her to bury her face into and cry. Later, after very nearly being discovered by a soldier, she crawled away and was found days later by the FMLN, the sole surviving eyewitness to the massacre.

The soldiers set fire to every building that contained the bodies of the dead or in which they had been killed. They also killed the animals and burned the town’s crops. Over the course of a day’s work, they had slain more than eight hundred people, half of whom had come from El Mozote. More than 40 percent of the dead were younger than ten years old.

A resposta de Reagan

Word of the massacre soon spread beyond El Mozote. Several weeks after the killings ended, the guerrillas made contact with Raymond Bonner of the New York Times and invited him to Morazán, where he arrived with Susan Meiselas, a photographer, on January 3. The Washington Post’s Alma Guillermoprieto would get there several days later. Both spent days hiking through the mountains before reaching El Mozote; Bonner and Meiselas arrived on January 6.

“My strongest memory,” Meiselas told Danner, “was this grouping of evangelicals, fourteen of them, who had come together thinking their faith would protect them. They were strewn across the earth next to this cornfield, and you could see on their faces the horror of what had happened to them.”

The reporters had more grotesque stories than they knew what to do with.

"We started smelling it from Arambala," Guillermoprieto told Danner, referring to a municipality near El Mozote.

The most traumatizing thing was looking at these little houses where whole families had been blown away — these recognizable human beings, in their little dresses, just lying there mummifying in the sun. We walked... to the center of town, where there was [a sacristy], and, in it, a stupefying number of bones. There was a charred wooden beam lying on top of the bodies, and there were bones sticking up, and pieces of flesh. You could see vertebrae and femurs sticking out. No attempt had been made to bury the bodies.

Both Guillermoprieto and Bonner published front-page stories detailing the massacre on January 26 — based in large part on their interviews with Rufina Amaya.

The two had been the first reporters on the scene, where it was immediately clear that scores had been killed — most of the decaying bodies were still lying about. The guerrillas put the number slain at seven hundred, though it was impossible at the time for anyone to obtain an accurate count. Even if that figure was exaggerated, the number of victims clearly totaled in the hundreds.

El Mozote had become a slaughterhouse, and Bonner and Guillermoprieto — and Amaya — had told the world.

O presidente Ronald Reagan falando em Minneapolis, 1982. (National Archives)

But the Reagan administration was not happy with their reporting. Human rights atrocities like the rape and murder of the American nuns and the assassination of Romero had grabbed headlines and raised questions about what the United States was doing in the country — whether American aid was bankrolling widespread, indiscriminate, unjustifiable slaughter in its supposed attempts to fight Communism.

In response to outcry from the burgeoning Central American peace movement, Congress required the administration to certify that the Salvadoran regime was making progress on upholding human rights in order to continue to receive US dollars. Reports of such a large-scale massacre in the country’s two most important newspapers suggested that such progress was not being made.

Following the publication of the articles detailing the massacre, the US embassy sent an official, Todd Greentree, to collect evidence at El Mozote for their own report on the incident. At the time, the human rights certification was being discussed in Congress; Greentree openly admitted to Danner years later, “The primary policy objective at the time was to get the certification through” — apparently no matter what the human rights situation was like on the ground.

Greentree and Major John McKay of the defense attaché’s office received briefings from Salvadoran officers, who predictably denied any massacre. The two Americans then attempted to examine the areas where the massacre had taken place, but they were in hostile territory under guerrilla control. When their helicopter attempted to land near El Mozote, they came under fire.

They eventually interviewed some inhabitants of a refugee camp in the nearby municipality of Gotera, but were accompanied by Salvadoran soldiers, making honest and open discussion impossible. Though Greentree could sense terror on the part of some refugees and received a strange silence from the soldiers he interviewed, leading him to tell Danner that while it was clear “something bad had happened,” he could not secure an exact story.

Greentree and two other Americans attempted to convince some soldiers to take them into El Mozote, but halfway there, the soldiers refused to go any further. The official US investigation into the massacre at El Mozote never actually made it into El Mozote and did not speak to Rufina.

That didn’t stop Greentree from writing a cable, eventually sent under Ambassador Hinton’s name and then used in testimony to Congress, that cast doubt upon and downplayed the reports of mass slaughter, despite Greentree’s later admission that his account was shaped almost entirely by Salvadoran army accounts — the very army, of course, that was desperate to keep open the spigot of money and support from Washington to maintain the brutal war against the FMLN.

After Danner questioned Greentree at length about the cable, Greentree eventually admitted the cable “wasn’t a satisfactory account” and implied, perhaps unwittingly, that he distorted the truth in the cable to serve US strategic aims in the region.

The admission surely made for shocking reading when Danner’s article was first published, in 1993. But by then Greentree’s cable had long accomplished its task for the Reagan administration: throw enough doubt onto the accounts of the massacre to dismiss Bonner and Guillermoprieto’s reporting and ensure that the US could continue funding wholesale slaughter in the country.

“[T]he cable supplied to officials in the State Department a number of arguments that they might find useful in impeaching the press accounts of El Mozote — deeply misleading arguments that would form the basis of the government’s effort to discredit the reports of the massacre,” Danner wrote.

Two days after the cable arrived, Assistant Secretary of State for Inter-American Affairs Thomas Enders went in front of a House subcommittee to make the Reagan administration’s case for continued funding of the far-right Salvadoran regime. El Mozote was on everyone’s minds, and Enders masterfully obfuscated the facts of the massacre and the broader human rights situation in El Salvador.

Dishonestly, he stated that there weren’t even as many residents in El Mozote as the Post and Times reports suggested were murdered (both articles made clear that the massacre took place in El Mozote and a number of surrounding hamlets), that the US investigation had not led to any evidence of a massacre, and that Bonner and Guillermoprieto were parroting guerrilla propaganda.

“The [human rights improvements] are slow in coming . . . But they are coming,” he told the subcommittee. Evidence of the massacre brushed aside, Congress soon voted to affirm that progress and thus keep the Salvadoran killing machine humming.

Apologistas da mídia

Guillermoprieto and Bonner’s respective reportage on the slaughter of hundreds of civilians had failed to force an end to US support for a brutal regime. But maintaining their Central American intervention wasn’t enough for the US right. The reporters, and Bonner in particular, had to be punished for exposing what they had seen in El Mozote.

Danner writes that “Bonner and his ‘credulity’ had become a minor cause célebre in the press and on the television talk shows.” The Wall Street Journal wrote a long editorial on February 10 that spent several paragraphs attacking Bonner and Guillermoprieto. “There is such a thing as being overly credulous,” the piece read.

A coauthor of the editorial, George Melloan, told a reporter that “obviously Ray Bonner has a political orientation” to his coverage. A right-wing newsletter cited by the Journal, Accuracy in Media, accused Bonner of playing a role in “a propaganda war favoring the Marxist guerrillas.”

Six months after the editorial, the New York Times removed Bonner from Central America. The paper’s executive editor at the time, A. M. Rosenthal, denied that he had pulled Bonner because of pressure from the Right.

Whether or not this is true (in interviews both recent and at the time, Bonner claims he doesn’t think it is), Danner wrote that the decision had a major impact on the way the paper covered the Salvadoran Civil War: “The New York Times editors appeared to have ‘caved’ to government pressure, and the Administration seemed to have succeeded in its campaign to have a troublesome reporter — the most dogged and influential in El Salvador — pulled off the beat.”

Bonner went on to write a book, Weakness and Deceit: America in El Salvador’s Dirty War, which came out in 1984 and was republished this year. The reader quickly understands why the Right sought to make Bonner a target: he was a meticulous reporter who unflinchingly reported on the US-trained and -funded barbarity that was overtaking the country, while also prying scores of documents out of the American government’s hands through Freedom of Information Act requests and convincing his US contacts in the country to covertly provide him with numerous, damning documents that the State Department refused to give him.

Bonner assembled a dense record of brutality in writing the book — and no doubt would have exposed even more had he stayed on the Salvadoran Civil War beat until the conflict’s conclusion in 1992.

Few today would deny that the massacre took place, that somewhere around eight hundred civilians were killed, and that the Atlacatl battalion carried it out. But that vindication is little comeuppance for the activists whose corpses continued to show up on San Salvador’s streets; or the six Jesuit priests and their housekeeper and her daughter who were executed at the University of Central America; or the tens of thousands throughout the country who were murdered and the hundreds of thousands who were displaced — all in the years following El Mozote.

Bonner and Guillermoprieto were eventually vindicated, and Rufina spent the rest of her life telling the world what had happened at El Mozote. But their reporting and Rufina’s testimony couldn’t stop the United States from propping up a depraved, quasi-fascistic regime in El Salvador for nearly a dozen years, thanks in part to the government’s apologists in the US media.
Escaping Justice

The perpetrators of the killing have never faced justice. In fact, many appear to have been rewarded.

Lieutenant Colonel Monterrosa is one of the clearest examples. He perished three years later in a helicopter crash. (Though different stories of his death exist, one has his obsession with crushing Radio Venceremos killing him: the FMLN lured him into a trap that led him to believe he had finally captured the guerrillas’ radio transmitter and could destroy the station. But the transmitter was actually a bomb, and exploded in mid-air.) He was given a hero’s treatment in his country and in the press.

As the New York Times reported at the time, he received what was almost a state funeral, with a mass in downtown San Salvador attended not just by top military and civilian brass, but by US military advisers and the US ambassador. A priest declared him a martyr and his death a national tragedy.

Guerrilheiros salvadorenhos da FMLN na década de 1980. (luc.edu)

The Times piece itself — written in the post-Bonner era by James LeMoyne, who proved much more sympathetic to the Reagan administration’s view on El Salvador — dwelt more on his “military talents” and his representation of “the possibility of change in a traditionally corrupt and often brutal army,” while mentioning his involvement in the El Mozote Massacre only once, halfway through the article, as an example of the modern Salvadoran army’s “contradictions.”

One US Embassy official told the Washington Post that his death was “a major setback for El Salvador... just when things seemed to be going well.” “US officials repeatedly identified Monterrosa as one of the brightest and most effective commanders, the sort of man who inspired his units to previously unheard of military success,” the Post wrote. It didn’t contain a single reference to El Mozote.

A number of those involved received promotions over the following decade. Captain Walter Oswaldo Salazar — who, according to Danner, berated his men after the operation for questioning what they had done (“Goddamnit, if I order you to kill your mother, that is just what you’re going to do”), and justified the decision to kill the children on the basis that “they’ll just grow up to be guerrillas” — became a lieutenant colonel. Major Natividad de Jesus Caceres Cabrera — the man who had tossed and impaled the little boy at his troops’ reluctance to kill children — became a colonel.

Attempts to obtain justice received their greatest setback in the form of 1993’s General Amnesty Law, which shielded the perpetrators of all crimes during the Salvadoran Civil War, both guerrillas and soldiers, from accountability. While the blanket amnesty sounds “balanced” on its face, the fact that the overwhelming majority of killings and atrocities were carried out by the government meant that the government was the principal beneficiary of the provision. The law passed just five days after a truth commission published its report on the conflict, finding evidence of widespread human rights abuses.

But things are changing in El Salvador. In 2012, in a tearful speech, then-president Mauricio Funes of the FMLN (which is now one of the country’s two major political parties) apologized for what was done in El Mozote, one month after asking for forgiveness for the massacre and three years after apologizing for civil war–era crimes more generally. And earlier this year, the country’s Supreme Court struck down the Amnesty Law as unconstitutional, opening the door to bringing those perpetrators who are still alive to justice.

In October, a judge ordered the El Mozote case reopened, calling for military and other records to be turned over and, eventually, for a public hearing to be held. Those guilty of crimes will not face jail terms, however. Rather, the goal is to get a full, accurate accounting of decision-making behind the massacre, and for perpetrators to admit their roles and ask forgiveness.

This builds on earlier efforts to hold the guilty accountable. In January of this year, former general José Guillermo García-Merino, who had served as defense minister from 1979 to 1983, was deported from Florida. García-Merino had not only been involved in atrocities, but had blocked investigations into a number of atrocities — including at El Mozote. He had lived in Plantation, Florida since 1989, when the first Bush administration had granted him political asylum. Prior to this, in 2002, a US court in Florida ordered García-Merino to pay $55 million to three Salvadoran citizens tortured under his watch.

Most of those involved in El Mozote have managed to escape legal repercussions for their actions. But efforts like these may help ensure they don’t escape the judgement of history.

Declaração de El Mozote

One might assume that a massacre on a scale as unfathomable as El Mozote would have been a watershed moment in a conflict like the Salvadoran Civil War, a time when the conflict’s principal purveyors of misery might take a hard look at themselves and change course. It was not, and they did not. Mark Danner concludes that the massacre served its purpose.

El Mozote was, above all, a statement. By doing what it did in El Mozote, the Army had proclaimed loudly and unmistakably to the people of Morazán, and to the peasants in surrounding areas as well, a simple message: In the end, the guerrillas can’t protect you, and we, the officers and the soldiers, are willing to do absolutely anything to avoid losing this war — we are willing to do whatever it takes.

Lucia Annunziata, an Italian reporter who was in El Salvador, told Danner,

The point [of El Mozote] was to create a turning point, a watershed, to turn the tide, and to do it by scaring the hell out of the enemy. It was a deliberate demonstration of cruelty to show them that the guerrillas couldn’t protect them. And [Domingo Monterrosa] understood that you do this as cruelly, as brutally as possible; you rape, impale, whatever, to show them the cost.

If the massacre was intended to strike so much fear into the hearts of guerrillas and their supporters that they would give up their arms, it failed. The war dragged on for more than a decade. Despite the lopsided advantage the government held over the FMLN in weapons, funding, and training, the guerrillas eventually fought the army to a draw. They continued to launch significant military offensives and maintain significant public support.

But the FMLN was decimated, exhausted, and unable to penetrate a government that had been designed and long ruled by the far right. It would be twenty years before they could restructure themselves from a military organization, designed for guerrilla warfare and constantly incurring mass casualties of their own forces and Salvadoran civilians in events like El Mozote, to a political one and win a presidential election — during which time the Right was able to advance sweeping neoliberal reforms and loot the state for personal enrichment.

Memorial do Massacre de El Mozote, Morazan, El Salvador. (Wikimedia Commons)

In this respect, then, atrocities like El Mozote were a success.

Historian Greg Grandin writes that it was not any “public relations schemes designed to win hearts and minds but, according to a 1991 Defense Department study, ‘lavish brutality’ conducted by the death squads and security forces that prevented a guerrilla victory in El Salvador. … [T]he containment of the rebels was ‘not the result of reform but the consequences of the murder of thousands of people.’”

El Mozote showed what the Salvadoran regime was capable of, and what the US government was willing to tolerate, excuse, and cover for in service of supposed anticommunism.

After it became clear that the Atlacatl battallion had decapitated men in a church and bayoneted a child to death and slaughtered entire families, the obvious questions for the Reagan administration were: are these crimes barbaric enough to convince you to change course? Is there any limit to the kind of vile acts you will excuse in order to pursue your foreign policy aims?

A resposta a ambas as perguntas, fornecida por El Mozote e suas consequências: um retumbante "não".

Colaboradores

Micah Uetricht é o editor da Jacobin. Ele é o autor de Strike for America: Chicago Teachers Against Austerity e co-autor de Bigger than Bernie: How We Go from the Sanders Campaign to Democratic Socialism.

Branko Marcetic é redator da Jacobin e autor de Yesterday's Man: The Case Against Joe Biden. Ele mora em Chicago, Illinois.

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