16 de agosto de 1983

A interpretação de Trotsky sobre o stalinismo

A interpretação de Trotsky acerca do significado histórico do estalinismo, até hoje a teoria mais coerente e desenvolvida sobre o fenômeno dentro da tradição marxista, foi construída ao longo de vinte anos de luta política prática contra isso. Seu pensamento, portanto, evoluiu através da tensão com os principais conflitos e eventos desses anos, e pode ser convenientemente periodizado em três fases essenciais.

Perry Anderson



Tradução / Os primeiros escritos de Trotski sobre o assunto datam da luta interpartidária que eclodiu no PCUS após a Guerra Civil. Eles não nomeiam o estalinismo como tal. O foco é o que a tradição do partido chamou de “burocratismo”. O Novo Curso (1923) é o texto chave desse período. Nele, Trotski assumiu os dois principais termos que foram as explicações de Lênin sobre esse fenômeno antes de sua morte. O burocratismo, Lênin argumenta, estava enraizado na falta de cultura das massas russas, rurais ou urbanas, que as privou das aptidões necessárias para a administração competente do pós-guerra, e no caráter de subsistência e limitado comércio da economia agrária, cuja imensa dispersão dos produtores primários tornava inevitável uma demasiada centralização do aparelho estatal na Rússia. Trotski adicionou uma terceira causa: a inevitável contradição entre os interesses imediatos e de longo prazo da classe trabalhadora em meio à grande escassez e às extremas exigências da reconstrução do pós-guerra. Mais significativamente, entretanto, ele insistiu que o burocratismo não era “apenas o agregado dos maus hábitos dos titulares de cargos”, mas representava “um fenômeno social, um sistema definitivo de administração de homens e coisas” [1]. O principal locus desse fenômeno era o aparelho estatal, mas o último – ao absorver “uma enorme quantidade de elementos partidários mais ativos” [2] – estava infectando o próprio Partido Bolchevique. A expressão dessa contaminação era o crescente domínio do aparelho central dentro do partido, operando através de um sistema de nomeações, reprimindo o debate democrático, e separando a Velha Guarda das bases e da geração mais nova. Esse desenvolvimento representou o perigo de uma “degeneração burocrática” [3] da própria Velha Guarda. O burocratismo foi, portanto – e aqui Trotski claramente foi além da análise de Lênin – “não uma sobrevivência de algum regime precedente, uma sobrevivência em processo de desaparecimento; pelo contrário, é um fenômeno essencialmente novo, decorrente das novas tarefas, das novas funções, das novas dificuldades e dos novos erros do partido” [4].

A derrota da oposição de esquerda

O Novo Curso alertou para os perigos do burocratismo antes da vitória do grupo de Stálin dentro do PCUS. Após a consumação dessa vitória, os escritos de oposição de Trotski na década de 1920 tentaram fornecer uma melhor explicação desse fenômeno. A Terceira Internacional Depois de Lênin (1928, às vezes intitulado Stálin, o Grande Organizador de Derrotas) é provavelmente o texto mais importante da fase intermediária de seu pensamento. Nele, Trotski atribui a derrota da Oposição de Esquerda na Rússia, que selou o triunfo de um regime burocrático interno, à desaceleração da luta de classes internacional, acima de tudo aos desastres a que levaram a Revolução Alemã de 1923 e a Revolução Chinesa em 1927, respectivamente nos lados Ocidental e Oriental da URSS. A mudança no equilíbrio mundial das forças de classe em benefício do capital foi inevitavelmente traduzida em um aumento das pressões sociais externas ao Partido Bolchevique, na Rússia. Estes foram, por sua vez, compostos pelo fracasso da fração de Stálin em alcançar a rápida industrialização na URSS, o que teria contrabalanceado o peso do proletariado soviético. Depois que os efeitos do Primeiro Plano Quinquenal tornaram-se visíveis, Trotski modificou essa alegação para argumentar que a nova “aristocracia operária” criada pelo stakhanovismo, acima da massa da classe trabalhadora, funcionava objetivamente como um ponto de apoio do regime burocrático dentro do partido. A fração de Stálin, que obteve sua vitória através do slogan social-patriótico do socialismo em um só país, Trotski ainda caracterizou, nesse momento, como uma ala de centro e como a criatura do aparato permanente do PCUS, posicionado entre a direita do Partido (Bukharin-Rykov-Tomsky) e a ala esquerda.

Em sua autobiografia Minha Vida (1929), Trotski esboçou o que viu como mecanismos social-psicológicos que converteram muitos revolucionários de 1917 em funcionários desse regime – “a libertação do filisteu que vivia dentro do bolchevique”-. Conforme o impulso das massas insurgentes declinou após a Guerra Civil, a fadiga e a apatia se estabeleceram, criando um período de “reação social” generalizada na URSS.

Em ensaios subsequentes, sobre a condução da industrialização de Stálin, Trotski estendeu a noção de um “centro” fracional para a categoria de centrismoestalinista, de maior alcance, argumentando que, embora o centrismo fosse um fenômeno inerentemente instável nos países capitalistas – uma postura a meio caminho entre reforma e revolução no movimento operário, refletindo mudanças da esquerda à direita ou vice-versa nas pressões de massas –, ele poderia adquirir, na URSS, uma base material durável na burocracia do novo Estado proletário. Os abruptos ziguezagues das políticas de Stálin no país e no exterior, do apaziguamento à guerra total contra os kulaks, da conciliação de classe ao ultra-esquerdismo na Terceira Internacional, eram a expressão lógica desse caráter centrista de seu regime, sujeito às complexas e contraditórias pressões de classe sobre ele. A arena decisiva dessas pressões, no entanto, era internacional, não nacional.

As quatro teses fundamentais

A interpretação de Trotski acerca do estalinismo, até então fragmentada e experimental em muitos aspectos, tornou-se sistemática e conclusiva de 1933 em diante. O motivo, é claro, foi o triunfo do nazismo na Alemanha, que convenceu Trotski de que a Comintern – para cuja retificação de linha ele tinha lutado até o último momento – era agora irrecuperável, e com isso o próprio PCUS estalinizado. A decisão de fundar uma nova Internacional foi, portanto, um impulso imediato para o seu engajamento frontal com o problema da natureza do estalinismo, que, pela primeira vez, tornou-se então o objeto direto de uma extensa interpretação teórica em si mesmo, em vez de um problema tratado no decorrer de textos que discutem muitas outras questões, como foi feito anteriormente.

O ensaio crucial, que fornece quase todos os principais temas do pensamento maduro de Trotski sobre o estalinismo, foi escrito alguns meses após a tomada de poder de Hitler: A Natureza de Classe do Estado Soviético (1933). Nele, Trotski estabeleceu as quatro teses fundamentais que viriam a ser a base de sua posição até a sua morte. Em primeiro lugar, foi necessário distinguir o papel do estalinismo na União Soviética e no exterior. Dentro da URSS, a burocracia estalinista desempenhava um papel contraditório, defendendo-se simultaneamente da classe trabalhadora soviética, da qual usurpou o poder, e da burguesia mundial, que buscou acabar com todos os ganhos da Revolução de Outubro e restaurar o capitalismo na Rússia. Nesse sentido, continuou a atuar como uma força “centrista”. Fora da URSS, em contraste, a Comintern estalinizada deixou de desempenhar qualquer papel anti-capitalista, como já havia provado irrevogavelmente o seu desastre na Alemanha. Consequentemente, “o aparato estalinista poderia desperdiçar completamente o seu significado como uma força revolucionária internacional, e ainda preservar parte do seu significado progressivo como portador das conquistas sociais da revolução proletária” [5]. Logo em seguida, Trotski argumentaria que a Comintern desempenhou um papel ativamente contrarrevolucionário na política mundial, tramando junto ao capital e algemando os trabalhadores no interesse de proteger o monopólio estalinista do poder na própria Rússia, que seria ameaçado pelo exemplo de qualquer revolução socialista vitoriosa, que criasse uma democracia proletária em outro lugar.

Em segundo lugar, dentro da URSS, o estalinismo representava o domínio de um estrato burocrático que emergira da classe trabalhadora e a parasitava, não uma nova classe. Esse estrato não ocupou um papel estrutural independente no processo de produção, mas derivava seus privilégios econômicos da confiscação do poder político dos produtores diretos, dentro da estrutura das relações de propriedade nacionalizadas. Em terceiro lugar, a administração sobre a qual o estalinismo presidiu permaneceu tipologicamente um Estado proletário, precisamente porque essas relações de propriedade – incorporando a expropriação dos expropriadores, alcançada em 1917 – persistiram. A identidade e legitimação da burocracia como uma “casta” política dependia da sua defesa. Com isso, Trotski descartou os dois relatos alternativos do estalinismo mais difundidos no movimento operário na década de 1930 (que emergiu dentro da própria Segunda Internacional, durante a Guerra Civil) – que representavam uma forma de “capitalismo de Estado” ou de “coletivismo burocrático”. A ditadura de ferro exercida pela polícia estalinista e pelo aparato administrativo sobre o proletariado soviético não era incompatível com a preservação da natureza proletária do próprio Estado – não mais do que as ditaduras absolutistas sobre a nobreza haviam sido incompatíveis com a preservação da natureza do Estado feudal, ou as ditaduras fascistas exercidas sobre a classe burguesa o foram com a preservação da natureza do Estado capitalista. A União Soviética era, de fato, um Estado proletário degenerado, mas uma ditadura do proletariado “pura” – compatível com sua definição ideal – nunca existiu na União Soviética em primeira instância.

Em quarto e último lugar, os marxistas devem adotar uma postura dupla em relação ao Estado soviético. Por um lado, agora não havia chance do regime estalinista se reformar ou ser reformado pacificamente dentro da URSS. Seu domínio só poderia ser encerrado por uma derrubada revolucionária vinda de baixo, destruindo todo o maquinário de privilégio e de repressão, enquanto deixasse intactas as relações de propriedade social sobre as quais ele presidia – mas agora dentro do contexto de uma democracia proletária. Por outro lado, o Estado soviético tinha que ser defendido externamente contra a constante ameaça de agressão ou ataque da burguesia mundial. Contra esse inimigo, a URSS – encarnando, como ela fazia, os ganhos anticapitalistas de Outubro – precisava da resoluta e incondicional solidariedade dos socialistas revolucionários em todos os lugares. “Toda tendência política que vira as costas sem esperanças para a União Soviética, sob pretexto de seu caráter ‘não-proletário’, corre o risco de se tornar um instrumento passivo do imperialismo” [6].

“A Revolução Traída”

Esses quatro pilares fundamentais da análise de Trotski sobre o estalinismo permaneceram estáveis até seu assassinato. Foi sobre eles que Trotski ergueu o principal edifício desse estudo da sociedade soviética sob Stálin: o livro intituladoPara onde vai a Rússia? (1936; equivocadamente traduzido para A Revolução Traída). Neste trabalho, Trotski apresenta um levantamento panorâmico das estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais da URSS em meados dos anos trinta, combinando uma ampla variedade de materiais empíricos com um fundamento teórico mais profundo para a sua análise sobre o estalinismo. Ele ancorou todo o fenômeno de uma burocracia proletária repressora na categoria de escassez (nuzhda), básica no materialismo histórico desde a formulação de Marx na Ideologia Alemã. “A base do governo burocrático é a pobreza da sociedade em objetos de consumo, com a luta resultante de todos contra todos. Quando há bens suficientes em uma loja, os compradores podem vir quando quiserem. Quando há poucos bens, os compradores são obrigados a ficar na fila. Quando as filas são muito longas, é necessário nomear um policial para manter a ordem. Tal é o ponto de partida do poder da burocracia soviética. Ela ‘sabe’ quem deve conseguir algo e quem tem que esperar.” [7] Enquanto prevalecesse a escassez, seria inevitável uma contradição entre as relações socializadas de produção e as normas burguesas de distribuição: era essa contradição que fatalmente produzia e reproduzia o poder restritivo da burocracia estalinista.

Trotski, então, prosseguiu à exploração de cada lado dessa contradição, avaliando e enfatizando a grandeza do desenvolvimento industrial soviético, por mais bárbaros que fossem os métodos que a burocracia empregasse para levá-lo adiante, ao mesmo tempo em que expunha meticulosamente a vasta gama de desigualdades econômicas, culturais e sociais geradas pelo estalinismo, e que fornecia estimativas estatísticas do tamanho e da distribuição do estrato burocrático na própria URSS (cerca de 12 a 15% da população). Essa burocracia traiu a revolução mundial, mesmo que ainda se sentisse subjetivamente leal a ela; mas manteve-se como um inimigo irreconciliável aos olhos da burguesia mundial, enquanto o capitalismo não fosse restaurado na Rússia. A dinâmica desse regime era igualmente contraditória: por um lado, o desenvolvimento promovido a um ritmo vertiginoso dentro da URSS aumentava rapidamente o potencial econômico e cultural da classe trabalhadora soviética e a sua capacidade de se levantar contra o regime; por outro lado, o seu próprio parasitismo tornou-se cada vez mais um impedimento para o progresso industrial adicional. Por mais espetaculares que fossem as realizações dos Planos Quinquenais, advertiu Trotski, eles ainda deixariam a produtividade social do trabalho muito atrás da do capitalismo ocidental, em uma lacuna que jamais seria fechada até que uma mudança para o crescimento qualitativo fosse alcançada, o que o desvio burocrático bloqueou com precisão.

“O papel progressivo da burocracia soviética coincide com o período da introdução na União Soviética dos elementos mais importantes da técnica capitalista. O trabalho duro, de empréstimo, imitação, transplante e enxerto, foi realizado nas bases estabelecidas pela revolução. Até o momento, não havia dúvida de qualquer nova palavra na esfera da técnica, da ciência ou da arte. É possível construir fábricas gigantescas de acordo com um padrão pronto por comando burocrático – embora, com certeza, pelo triplo do custo normal. No entanto, quanto mais longe se vá, mais a economia se depara com problemas de qualidade, que deslizam para fora das mãos da burocracia como uma sombra. Os produtos soviéticos são como se fossem marcados com o rótulo cinza da indiferença. Sob uma economia nacionalizada, a qualidade exige uma democracia de produtores e consumidores, liberdade de crítica e iniciativa.”. [8] A superioridade tecnológica ficaria com o imperialismo enquanto o estalinismo persistisse, e lhe asseguraria a vitória em qualquer guerra com a URSS – a menos que estourasse uma revolução no Ocidente. A tarefa dos socialistas soviéticos era realizar, antes que isso ocorresse, uma revolução política contra a burocracia , cuja relação com a revolução socioeconômica de 1917 seria como a mudança de poder em 1830 ou 1848 para o levante de 1789 na França, no ciclo das revoluções burguesas.

Nos dois últimos anos de sua vida, quando começou a Segunda Guerra Mundial, Trotski reiterou suas perspectivas básicas em uma série de polêmicas conclusivas com Rizzi, Burnham, Schachtman e outros defensores da noção de “coletivismo burocrático”. A classe trabalhadora não era, de forma alguma, congenitamente incapaz de estabelecer o seu próprio domínio soberano sobre a sociedade. A URSS – “o país mais transicional em uma época de transição” – situava-se entre capitalismo e socialismo, dominada por um feroz regime policial que ainda defendeu, à moda própria, a ditadura do proletariado. Todavia, a experiência soviética foi uma “refração excepcional” das leis gerais de transição do capitalismo para o socialismo, em um país atrasado cercado pelo imperialismo – não um modelo clássico. O papel contraditório do estalinismo nacionalmente e no exterior foi confirmado pelos episódios mais recentes da política internacional – a sua sabotagem contrarrevolucionária da Revolução Espanhola (para além do seu controle) contrastava com a abolição revolucionária da propriedade privada nas regiões fronteiriças da Polônia e da Finlândia incorporada na URSS. O dever dos marxistas em defender a União Soviética contra o ataque capitalista permaneceu importante. A desilusão e a fadiga não eram desculpas para renunciar às perspectivas clássicas do materialismo histórico. “Vinte e cinco anos nas escalas da história, quando se trata de mudanças profundas nos sistemas econômicos e culturais, pesam menos de uma hora na vida do homem. O quão bom é o indivíduo que, devido às falhas empíricas ao longo de uma hora ou de um dia, renuncia a um objetivo que ele estabeleceu para si próprio nas bases da experiência e da análise de toda a sua vida anterior?” [9]

Uma reavaliação: Quarenta anos depois

Outros quarenta anos depois, nós ainda estamos apenas a algumas horas daquela vida. Essas horas – que, subjetivamente, parecem tão longas – nos dão razões para questionar os julgamentos básicos de Trotski? Como devemos avaliar o legado de sua perspectiva geral sobre o estalinismo?

Pode-se dizer que os méritos da interpretação de Trotski têm três aspectos. Primeiramente, ela fornece uma teoria do fenômeno do estalinismo em uma longa temporalidade histórica, congruente com as categorias fundamentais do marxismo clássico. Em cada ponto de sua análise da natureza da burocracia soviética, Trotski procurou situá-la na lógica dos modos sucessivos de produção e nas transições entre estes, com o poder de classe e os regimes políticos correspondentes, que herdou de Marx, Engels ou Lênin. Daí a sua insistência de que a ótica adequada para definir a relação da burocracia com a classe trabalhadora partia das relações antecedentes e análogas entre absolutismo e aristocracia, fascismo e burguesia; assim como os precedentes relevantes para a sua derrubada futura seriam levantamentos políticos como os de 1830 ou 1848, em vez de um novo 1789. Como Trotski pôde pensar o desenvolvimento e a consolidação do estalinismo em um tal espectro histórico, ele evitou as explicações do jornalismo apressado e as teorizações improvisadas sobre novas classes ou modos de produção não ancorados no materialismo histórico, que marcou a reação de muitos de seus contemporâneos.

Em segundo lugar, a riqueza sociológica e a penetração de sua pesquisa sobre a URSS sob Stálin não tinham igual na literatura da esquerda sobre o assunto. Para onde vai a Rússia? permanece como uma obra-prima de destaque até hoje. Por outro lado, as coletâneas de artigos de Schachtman ou Kautsky, os livros de Burnham ou Rizzi ou Cliff, parecem surpreendentemente superficiais e datados. Os maiores avanços na análise empírica detalhada da URSS desde o tempo de Trotski vieram, em grande medida, de profissionais acadêmicos que se dedicaram aos estudos sovietólogos após a Segunda Guerra Mundial: Nove, Rigby, Carr, Davies, Hough, Lane e outros. Suas descobertas desenvolveram as análises de Trotski, ao invés de contradizê-las, nos proporcionando um conhecimento muito mais amplo das estruturas internas da economia e da burocracia soviéticas. Eram, no entanto, destituídos de uma teoria integrada como a legada por Trotski. O maior trabalho histórico sobre o destino da Revolução são os escritos de Isaac Deutscher, compostos em profunda continuidade com esse legado.

Em terceiro lugar, a interpretação de Trotski do estalinismo foi notável por seu balanço político – a sua recusa de adulação ou cominação, para uma estimativa sóbria da natureza contraditória e dinâmica do regime burocrático na URSS. No tempo de Trotski, a primeira atitude era a incomum na esquerda, em meio ao entusiasmo intoxicado não só dos partidos comunistas, mas de tantos outros observadores da ordem estalinista na Rússia. Hoje, é a segunda atitude que é mais incomum, em meio à denunciação apoplética da experiência soviética, não só por vários observadores na esquerda, mas até dentro de certos Partidos comunistas. Há pouca dúvida de que foi a firme insistência de Trotski – tão fora de moda nos anos posteriores, até mesmo entre muitos dos seus próprios seguidores – de que a URSS era, em última instância, um Estado proletário e a chave para esse equilíbrio. Aqueles que rejeitaram essa classificação em prol das noções de “capitalismo de Estado” ou “coletivismo burocrático” invariavelmente se depararam com a dificuldade de definir uma atitude política em relação à entidade que categorizaram. Uma coisa evidente sobre o “capitalismo de Estado” ou o “coletivismo burocrático” na Rússia era que não havia nenhum vestígio das liberdades democráticas que se encontravam no “capitalismo privado” do Ocidente. Não deveriam, portanto, os socialistas apoiarem este último em um conflito entre ambos, dado que se tratava do mal menor – por não ser “totalitário”? Em outras palavras, a lógica dessas interpretações sempre tendeu, em última instância (embora com poucas exceções, menos consistentes), em deslocar seus adeptos para a direita. Kautsky – pai tanto do “capitalismo de Estado”, quanto do “coletivismo burocrático”, no início dos anos 1920 – é emblemático dessa trajetória; e Schachtman terminou sua carreira aplaudindo a guerra dos EUA no Vietnã na década de 1960. A solidez e a disciplina contrastantes da interpretação de Trotski acerca do estalinismo obtiveram um alívio retrospectivo diante das tentativas que se seguiram de repensar o estalinismo.

As limitações da análise de Trotski

Ao mesmo tempo, como todos os julgamentos históricos, a teoria de Trotski do estalinismo revelou certos limites após sua morte. Quais são estes? Paradoxalmente, eles dizem respeito menos ao balanço “interno” do estalinismo do que a sua trajetória “externa”. Internamente, o diagnóstico de Trotski sobre o motor e o freio do desenvolvimento econômico da Rússia, desde que persistissem as normas burocráticas, provou-se extraordinariamente preciso. Nas quatro décadas posteriores à sua morte, um enorme progresso material foi registrado na União Soviética, mas a produtividade do trabalho se revelou cada vez mais como o calcanhar de Aquiles da economia, como Trotski havia previsto. Conforme chegou ao fim a época do crescimento extensivo, o planejamento autoritário e demasiado centralizado se mostrou cada vez mais incapaz de efetuar uma transição para um crescimento qualitativo e intensivo: uma desaceleração que ameaçava uma crise entrópica para o regime, se não fosse resolvida. A durabilidade da burocracia, que sobreviveu até bem depois de Stálin, tem sido maior, é claro, do que Trotski imaginava em alguns de seus escritos conjunturais, embora não se trate de uma “longevidade” real em termos de tempo histórico, do qual ele falou no final de sua vida.

Parte do motivo dessa persistência foi, provavelmente, a promoção social de setores da classe trabalhadora soviética através dos canais do próprio regime burocrático – o recrutamento de quadros proletários, que frequentemente tem sido enfatizado pelos acadêmicos subsequentes (Nove, Rigby, etc.) Outra parte, é claro, encontrava-se presente na atomização política e no atordoamento cultural da classe trabalhadora amplamente alargada que emergiu durante a década de 1930 – a sua falta de qualquer memória pré-estalinista, que Trotski subestimou. Mas de um modo geral, o retrato da sociedade russa que ele desenhou há aproximadamente meio século permanece preciso e atual.

No exterior, entretanto, o diagnóstico do estalinismo de Trotski se mostrou mais falível. Há dois motivos para essa discrepância em seus prognósticos. Em primeiro lugar, ele cometeu um erro ao qualificar o papel externo da burocracia soviética como simples e unilateralmente “contrarrevolucionário” – quando o seu papel se mostrou ser, de fato, profundamente contraditório em suas ações e efeitos no exterior tanto quanto o era em território nacional. Em segundo lugar, Trotski estava equivocado ao pensar que o estalinismo representava meramente uma refração “excepcional” ou “aberrante” das leis gerais de transição do capitalismo para o socialismo, que seria confinada à própria Rússia. As estruturas do poder burocrático e a mobilização pioneira sob Stálin provaram ser um fenômeno mais dinâmico e mais geral no plano internacional do que Trotski jamais imaginou. Ele terminou sua vida prevendo que a URSS seria derrotada em uma guerra contra o imperialismo, a menos que a revolução estourasse no Ocidente. Na verdade, apesar de todos os erros criminosos de Stálin, o Exército Vermelho repeliu a Wehrmacht e marchou vitoriosamente para Berlim sem o auxílio de uma Revolução Ocidental. O fascismo europeu foi essencialmente destruído pela União Soviética (242 divisões alemãs desdobradas na Frente Oriental a apenas 22 na primeira Frente Ocidental na Itália). O capitalismo foi abolido em mais da metade do continente, por um impulso burocrático vindo de cima – as operações polonesas e finlandesas se estenderam ao Elba. Posteriormente, o comando das massas na tomada do poder. Os Estados assim criados viriam a ser manifestamente cognatos (não idênticos, mas afins) com a URSS em seu sistema político básico. O estalinismo, em outras palavras, se mostrou ser não somente um aparelho, mas um movimento – capaz não só de manter o poder em um ambiente atrasado dominado pela escassez (URSS), mas de realmente conquistá-lo em ambientes ainda mais atrasados e pobres (China e Vietnã) – de expropriar a burguesia e iniciar o lento trabalho da construção socialista, mesmo contra a vontade do próprio Stálin. Com isso, uma das equações da interpretação de Trotski, sem dúvidas, caiu. O estalinismo, como um fenômeno amplo – isto é, um Estado proletário governado por um estrato burocrático autoritário –, não representava meramente uma degeneração de um Estado anterior de (relativo) privilégio de classe, também poderia ser uma geraçãoespontânea, produzida por forças de classe revolucionárias em muitas sociedades atrasadas, sem qualquer tradição de democracia burguesa ou proletária. Essa possibilidade – cuja realização foi a transformação do mapa mundial após 1945 – nunca foi levantada por Trotski.

O estalinismo hoje

Nesses dois aspectos críticos, portanto, a interpretação de Trotski do estalinismo encontrou seus limites. No entanto, eles permaneceram em consonância com a sua ênfase temática central: a natureza contraditória do estalinismo, hostil, ao mesmo tempo, à propriedade capitalista e à liberdade proletária. Seu erro foi, ironicamente, apenas ter pensado que essa contradição poderia confinar-se à própria URSS, enquanto o estalinismo em um só país provou ser uma contradição nos próprios termos. Ao apontarmos aqui os caminhos pelos quais o estalinismo continuou a atuar como um “fator revolucionário internacional”, não deveria ser necessário recordar, ao mesmo tempo, as formas em que também continuou a atuar como um fator reacionário internacional. Todo ganho imprevisível teve um preço incalculável. A multiplicação de Estados proletários burocratizados, cada um com o seu próprio egoísmo nacional sagrado, conduziu inexoravelmente a conflitos econômicos, políticos e agora até mesmo armados entre eles. A proteção militar da URSS, que pode se estender às revoluções socialistas ou às forças nacionais de libertação no Terceiro Mundo, também aumenta objetivamente os perigos da guerra nuclear global. A abolição do capitalismo na Europa Oriental desencadeou as fúrias do nacionalismo contra a Rússia, que, por sua vez, respondeu às aspirações populares da região com a série mais puramente reacionária de intervenções externas, repressoras e regressivas, da burocracia soviética em todo o mundo. A Checoslováquia e a Polônia são apenas os últimos exemplos.

Acima de tudo, porém, enquanto o modelo básico estalinista de uma transição para além do capitalismo possa ter se propagado com sucesso através das zonas atrasadas da Eurásia, a sua grande extensão geográfica e prolongamento temporal – completa com a repetição da demência da Yezhovschina (“Processos de Moscou”) na “Revolução Cultural”, e o “Kampuchea Democrático” – tem prejudicado profundamente a própria ideia do socialismo no Ocidente avançado, principalmente com a sua absoluta negação da democracia proletária, inibindo a classe trabalhadora de derrubar o capitalismo dentro das estruturas da democracia burguesa, fortalecendo decisivamente os bastiões do imperialismo do final do século XX. Rien ne se perd, alas (“Nada está perdido, infelizmente.”).Nós ainda temos que resolver as contas com a ameaça permanente do “campo socialista”, que agiu como o acelerador decisivo da descolonização burguesa na África e na Ásia na época do pós-guerra. Sem o Segundo Mundo das décadas de 1940 e 1950, não haveria o Terceiro Mundo na década de 1960. As duas principais formas de progresso histórico registradas dentro do capitalismomundial nos últimos cinquenta anos – a derrota do fascismo e o fim do colonialismo – têm sido diretamente dependentes da presença e performance da URSS nas políticas internacionais. Nesse sentido, pode-se argumentar que, paradoxalmente, as classes exploradas fora da União Soviética podem ter se beneficiado mais diretamente de sua existência do que a classe trabalhadora dentro da União Soviética. Assim, em uma escala histórica mundial, os custos decisivos do estalinismo foram internos, e os ganhos, externos.

Todavia, esses efeitos foram, obviamente, processos largamente objetivos e involuntários, em vez de produtos de intenções conscientes da burocracia soviética (mesmo a destruição do fascismo, que, certamente, não constou como parte dos planos de Stálin em 1940). Tais efeitos testemunham, não obstante, a lógica contraditória de um “Estado proletário degenerado” – colossalmente distorcido, mesmo que ainda persistentemente anticapitalista –, que Trotski erroneamente suspendeu na fronteira soviética.

No final da década de 60, a URSS até chegou a alcançar algo semelhante a uma parceria estratégica com o imperialismo, o que Trotski achou impossível sob o domínio burocrático. Com isso, a URSS provou ser capaz de ampliar a vital ajuda econômica e militar às revoluções socialistas e aos movimentos de libertação nacional no exterior – assegurando a sobrevivência da Revolução Cubana, permitindo a vitória da Revolução Vietnamita e garantindo a existência da Revolução Angolana. Tais ações, inteiramente conscientes e deliberadas – em contraste diametral com as opções de Stálin em Espanha, Iugoslávia ou Grécia –, foram precisamente as que Trotski descartara para a União Soviética quando a considerou como uma inequívoca e omnipresente força contrarrevolucionária além de suas próprias fronteiras.

O segundo equívoco da interpretação de Trotski foi mais radical. Para ele, o estalinismo era essencialmente um aparato burocrático, erguido acima de uma decadente classe trabalhadora, em nome do mito “nacional-reformista” do socialismo em um só país. Trotski julgou os partidos estrangeiros da Comintern, após 1933, como simplesmente instrumentos subordinados ao PCUS, incapazes de fazer uma revolução socialista em seus respectivos países, pois realizá-la significaria agir contra as diretrizes de Stálin. O máximo que ele concedia era que – em casos absolutamente excepcionais – as massas insurgentes, contra a vontade de tais partidos, poderiam obrigá-los a tomar o poder. Ao mesmo tempo, Trotski olhou para frente, sobretudo para o Ocidente industrializado, como a arena do futuro sucesso socialista, inspirado pelos partidos antiestalinistas no despertar da Segunda Guerra Mundial. De fato, como sabemos, a história seguiu outro caminho. A revolução espalhou-se, mas para as regiões atrasadas da Ásia e dos Balcãs. Ademais, essas revoluções foram uniformemente organizadas e lideradas pelos partidos comunistas locais que professavam lealdade a Stálin – chineses, vietnamitas, iugoslavos, albaneses –, e modeladas, em suas estruturas internas, pelo PCUS. Longe de serem movidos passivamente pelas massas de seus respectivos países, esses partidos mobilizaram ativa e verticalmente uma imensa meada de consequências e conexões internacionais, progressivas e regressivas, revolucionárias e contrarrevolucionárias, que se seguiram ao destino que sucedeu a Revolução de Outubro, que originou o fenômeno que ainda hoje nós chamamos de estalinismo.

Notas

[1] O Novo Curso, Ann Arbour, 1965, p. 45.

[2] Ibid, p. 45.

[3] Ibid, p. 22.

[4] Ibid, p. 24.

[5] A Natureza de Classe do Estado Soviético, Londres, 1968, p. 4.

[6] Ibid, p. 32.

[7] A Revolução Traída, Nova Iorque, 1945, p. 112.

[8] Ibid, p. 276.

[9] Em Defesa do Marxismo, Nova Iorque 1965, p.

Texto de uma comunicação apresentada em Paris, em 1982.

1 de março de 1983

"Nossa própria marca de socialismo"

Gabriel García Márquez


I/138 • Mar/Apr 1983

TraduçãoÉ possível rever como suas ideias políticas se desenvolveram? Seu pai era conservador. A Colômbia passou por um século de guerra civil intermitente após sua independência da Espanha em 1819. Dois partidos políticos consolidaram-se na década de 1840: os Conservadores cuja filosofia tradicionalista se baseava na família, igreja e Estado; e os Liberais que eram livres-pensadores, anticlericais e liberais econômicos. A mais sangrenta das guerras entre estes dois partidos foi a “Guerra dos Mil Dias” (1899 – 1902), que deixou o país falido e devastado. Na Colômbia dizem que ser Conservador ou Liberal depende do que seu pai é, mas o seu obviamente não influenciou em nada na política porque você optou pela esquerda muito cedo. Esta postura política foi uma reação contra sua família?

Não contra a minha família em si, porque é preciso lembrar que, embora meu pai fosse um conservador, o meu avô era um liberal. Minhas ideias políticas provavelmente vieram dele para começar, porque, em vez de me contar contos de fadas quando eu era jovem, ele me contava histórias horríveis da última guerra civil que os pensadores livres e anticlericais travaram contra o governo conservador. Meu avô também me contou sobre o massacre dos trabalhadores da banana que ocorreu em Aracataca no ano em que nasci. Então você vê que minha família me influenciou mais para a rebelião do que para a manutenção da ordem estabelecida.

Você se lembra onde e quando leu seus primeiros textos políticos?

Na minha escola secundária em Zipaquirá. Estava cheia de professores que haviam sido ensinados por um marxista no Teachers Training College sob o governo de esquerda do Presidente Alfonso López nos anos 1930. O professor de álgebra nos dava aulas de materialismo histórico durante o intervalo, o professor de química nos emprestava livros de Lênin e o professor de história nos falava sobre a luta de classes. Quando saí daquela fria prisão, eu não tinha a menor ideia de onde estavam o norte e o sul, mas eu tinha duas convicções muito fortes. Uma era que os bons romances devem ser uma transposição poética da realidade, e a outra era que o futuro imediato da humanidade estava no socialismo.

Você já foi membro do partido comunista?

Pertenci a uma cela por pouco tempo quando eu tinha 20 anos, mas não me lembro de ter feito nada de interessante. Eu era mais um simpatizante do que um verdadeiro militante. Desde então, meu relacionamento com os comunistas têm muitos altos e baixos. Estamos muitas vezes em lados opostos porque cada vez que adoto uma postura que eles não gostam, os jornais deles realmente me atacam. Mas eu nunca os condenei publicamente, mesmo nos piores momentos.

Nós viajamos juntos pela Alemanha Oriental em 1957 e, apesar de termos depositado nossas esperanças no socialismo, não gostamos do que vimos. Essa viagem alterou sua convicção política?

Isso afetou minhas ideias políticas de forma bastante decisiva. Se você pensar bem, registro minhas impressões sobre essa viagem em uma série de artigos para uma revista de Bogotá. Os artigos foram copiados e publicados cerca de vinte anos depois – não, imagino, por qualquer interesse jornalístico ou político, mas para mostrar as supostas contradições em meu desenvolvimento político pessoal.

Havia alguma contradição?

Não, não havia. Tornei a obra oficial e a incluí nos volumes de minhas obras completas vendidas em edições populares em todas as esquinas da Colômbia. Eu não mudei uma única palavra. Além disso, acho que uma explicação das origens da atual crise polonesa pode ser encontrada naqueles artigos que os dogmáticos da época disseram haverem sido pagos pelos Estados Unidos. O engraçado é que esses dogmáticos de hoje, 24 anos mais tarde, estão presentes nas confortáveis poltronas do establishment político e econômico burguês, enquanto a história está me dando razão.

E o que você achou das assim chamadas "Democracias dos Povos"?

A premissa central desses artigos é que as Democracias dos Povos não eram autenticamente socialistas nem jamais o seriam se seguissem o caminho em que estavam, pois o sistema não reconhecia as condições específicas prevalecentes em cada país. Era um sistema imposto de fora pela União Soviética através de partidos comunistas locais dogmáticos e sem imaginação, cujo único pensamento era impor o modelo soviético em uma sociedade onde ele não se encaixava.

Passemos para outra de nossas experiências compartilhadas - nossos dias na Prensa Latina, a agência de notícias cubana. Você e eu nos demitimos quando o antigo Partido Comunista Cubano começou a tomar conta de muitas das instituições da Revolução. Você acha que tomamos a decisão certa? Ou você acha que foi apenas um percalço em um longo processo que não conseguimos ver assim?

Penso que nossa decisão de deixar a Prensa Latina foi correta. Se tivéssemos ficado, com nossas opiniões, teríamos acabado sendo colocados para fora com uma dessas etiquetas em nossa testa – contrarrevolucionária, lacaio imperialista e assim por diante – que os fanáticos dogmáticos da época costumavam colar em você. O que eu fiz, se você se lembra, foi me afastar para as margens. Observei de perto e com atenção a evolução do processo cubano enquanto escrevia meus livros e filmagens no México. Minha opinião é que, embora a Revolução tenha tomado um rumo difícil e às vezes contraditório após as turbulências iniciais, ela ainda oferece a perspectiva de uma ordem social mais democrática, mais justa e mais adequada às nossas necessidades.

Você tem certeza? As mesmas causas não produzem os mesmos efeitos? Se Cuba adota o sistema soviético como modelo (Estado monopartidário, centralismo democrático, sindicatos controlados pelo governo, organizações de segurança exercendo um controle rigoroso sobre a população), a "ordem justa e democrática" não será tão difícil de ser alcançada lá quanto na União Soviética? Você não tem medo disso?

O problema com esta análise é seu ponto de partida. Você parte da premissa de que Cuba é um satélite soviético e eu não acredito que seja. Penso que a Revolução Cubana está em estado de emergência há 20 anos graças à hostilidade e incompreensão dos Estados Unidos, que não tolerarão um sistema alternativo de governo a 145 quilômetros da costa da Flórida. Isto não é culpa da União Soviética, sem cuja ajuda (quaisquer que sejam seus motivos e objetivos) a Revolução Cubana não existiria hoje. Embora a hostilidade persista, a situação em Cuba só pode ser julgada em termos de um estado de emergência que os obriga a agir defensivamente e fora de sua esfera natural de interesse histórico, geográfico e cultural. Quando a situação voltar ao normal, poderemos discuti-la novamente.

Fidel Castro apoiou a intervenção soviética na Tchecoslováquia em 1968 (com certas reservas, é verdade). Qual foi a sua posição?

Fiz um protesto público na ocasião e faria o mesmo novamente caso a mesma situação surgisse. A única diferença entre minha posição e a de Fidel Castro (não concordamos em tudo) é que ele acabou justificando a intervenção soviética e eu nunca o faria. Entretanto, a análise que ele fez em seu discurso sobre a situação interna das Democracias Populares foi muito mais crítica e contundente do que a que eu fiz nos artigos de que estávamos falando há pouco. Em todo caso, o futuro da América Latina não é e nunca será feito na Hungria, na Polônia ou na Tchecoslováquia, mas na própria América Latina. Pensar em qualquer outra coisa é uma obsessão europeia, e algumas de suas perguntas políticas também são uma bofetada dessa obsessão.

Nos anos 1970, após a famosa autocrítica do poeta cubano Heberto Padilla, Padilla foi detido pela polícia de segurança para discutir posturas políticas “suspeitas” em seu trabalho, e libertado um mês depois de confessar publicamente as tendências contrarrevolucionárias. Isto lançou uma enchente de críticas por parte de intelectuais europeus e latino-americanos. O acontecimento foi visto como um divisor de águas na relação entre escritores e a Revolução – seja como o surgimento do stalinismo latente, seja como uma prova de que o intelectual burguês traiu seu dever de estar ao lado de uma revolução sitiada. Alguns de seus amigos, inclusive eu mesmo, nos distanciamos do regime cubano.

Você não o fez. Você não assinou o telegrama de protesto que enviamos – você voltou para Cuba e se tornou amigo de Fidel. O que o levou a adotar uma atitude muito mais favorável em relação ao regime cubano?


Uma informação melhor sobre o que realmente aconteceu, e uma visão política madura que me permitiu ver a situação com mais calma, paciência e compreensão humana.

Muitos escritores na América Latina, além de você mesmo, falam do socialismo (marxista-leninista) como uma alternativa desejável. Você não acha que isto é um socialismo um tanto “antiquado”? O socialismo não é mais uma abstração generosa, mas uma realidade bastante pouco atraente. Você concorda que, depois do que aconteceu na Polônia, ninguém pode acreditar que a classe trabalhadora esteja no poder nesses países?

Você vê uma terceira opção para nosso continente entre o capitalismo decadente e o "socialismo decadente"?

Eu não acredito em uma terceira opção. Acredito que há muitas alternativas – talvez até tantas alternativas como há países em nossas Américas, incluindo os Estados Unidos. Estou convencido de que temos que encontrar nossas próprias soluções. Podemos nos beneficiar, sempre que possível, do que outros continentes alcançaram em suas longas histórias turbulentas, mas não devemos continuar copiando-as mecanicamente como temos feito até agora. É assim que podemos eventualmente alcançar nossa própria marca de socialismo.

Por falar em outras opções, como você vê a atuação do governo de Mitterrand na América Latina?

Em um almoço no México recentemente, o Presidente Mitterrand perguntou a um grupo de escritores: “O que você espera da França? A resposta deles provocou uma discussão que se desviou para quem era o principal inimigo de quem. Os europeus na mesa, convencidos de que estavam à beira de uma nova escultura do mundo ao estilo de Ialta, disseram os Estados Unidos era seu principal inimigo. Respondi à pergunta do Presidente (a mesma que você está perguntando agora) dizendo: “Como cada um de nós tem seu próprio Inimigo Número Um, o que precisamos na América Latina é de um Amigo Número Um”. A França socialista pode ser esse amigo”.

Você acredita que a democracia como ela existe nos países capitalistas desenvolvidos é possível no Terceiro Mundo?

A democracia no mundo desenvolvido é um produto de seu próprio desenvolvimento e não o contrário. Tentar implantá-la em seu estado bruto em países (como os da América Latina) com culturas bastante diferentes é tão mimético e irreal como tentar implantar o sistema soviético ali.

Então, você acha que a democracia é uma espécie de luxo para os países ricos? Lembre-se que a democracia carrega consigo a defesa dos direitos humanos pelos quais você lutou tanto...

Não estou falando de princípios democráticos, mas de formas democráticas.

A propósito, qual é o resultado de sua longa batalha pelos direitos humanos em termos de sucesso e fracasso?

É muito difícil de medir. Não há resultados precisos e imediatos com trabalhos como o meu no campo dos direitos humanos. Muitas vezes eles vêm quando menos se espera e devido a uma combinação de fatores onde é impossível avaliar o papel desempenhado por sua própria ação particular. Este trabalho é uma lição de humildade para um escritor famoso como eu, que está acostumado ao sucesso.

Qual de todas as ações que você praticou lhe deu a maior satisfação?

A ação que me deu maior satisfação pessoal imediata foi a que empreendi pouco antes da vitória sandinista na Nicarágua. Tomás Borge, que agora é Ministro do Interior, me pediu para pensar em uma boa maneira de pressionar Somoza para permitir que sua esposa e filha de 7 anos deixassem a Embaixada da Colômbia em Manágua, onde haviam pedido asilo. O ditador estava recusando a eles um salvo-conduto, porque eles eram a família de não menos uma pessoa do que o último membro fundador sobrevivente da Frente Sandinista.

Tomás Borge e eu entregamos o problema por várias horas até que chegamos a um ponto útil: a menina tivera uma vez uma infecção renal. Perguntamos a um médico como suas condições atuais afetariam isso, e sua resposta nos deu o argumento que procurávamos. Menos de 48 horas depois, mãe e filha estavam no México, graças a um salvo-conduto concedido por razões humanitárias, não políticas.

Meu caso mais desanimador, por outro lado, foi quando ajudei a libertar dois banqueiros ingleses que haviam sido sequestrados pela guerrilha em El Salvador em 1979. Seus nomes eram Ian Massie e Michael Chaterton, e eles iriam ser executados dentro de 48 horas porque nenhum acordo havia sido alcançado entre as duas partes.

O General Omar Torrijos me telefonou em nome das famílias dos homens sequestrados e me pediu que ajudasse a salvá-los. Transmiti a mensagem para os guerrilheiros através de inúmeros intermediários e ela chegou a tempo. Prometi que as negociações do resgate seriam retomadas imediatamente, e eles concordaram. Depois pedi a Graham Greene, que mora em Antibes, que fizesse os contatos do lado inglês.

As negociações entre a guerrilha e o banco duraram 4 meses. Tinha sido acordado que nem Graham Greene, nem eu participaríamos das negociações propriamente ditas, mas, sempre que houvesse um contratempo, um ou outro lado entraria em contato comigo para tentar retomar as negociações.

Os banqueiros foram libertos, mas nem Graham Greene, nem eu recebemos uma única palavra de agradecimento. Não foi muito importante, é claro, mas fiquei bastante surpreso. Após pensar muito, eu inventei uma explicação – Greene e eu arranjamos as coisas tão bem que os ingleses devem ter pensado estarmos em conluio com os guerrilheiros.

Muitas pessoas vêem em você uma espécie de embaixador itinerante no Caribe - um embaixador de boa vontade, é claro. Você é um amigo pessoal de Castro, mas também de Torrijos no Panamá, de Carlos Andrés Pérez na Venezuela, de Alfonso López Michelson na Colômbia, dos sandinistas na Nicarágua... Você é um interlocutor privilegiado para todos eles.

O que o motiva para assumir este papel?


As três figuras que você menciona estavam no poder ao mesmo tempo – um momento muito crucial para o Caribe. Foi uma coincidência muito feliz, e uma grande pena que eles não pudessem ter cooperado por mais tempo. Houve um momento em que os três, trabalhando com Castro e um presidente como Jimmy Carter nos Estados Unidos, poderiam, sem dúvida, ter colocado esta área de conflito no caminho certo. Havia um diálogo contínuo e muito positivo entre eles. Eu não só testemunhei isso, mas ajudei sempre que pude.

Penso que a América Central e o Caribe (para mim eles são a mesma coisa e não entendo porque são chamados de duas coisas diferentes) atingiram um estágio de desenvolvimento e um ponto em sua história quando estão prontos para sair de sua estagnação tradicional. Mas também acredito que os Estados Unidos frustrarão qualquer tentativa desse tipo porque isso significa renunciar a privilégios muito antigos e importantes.

Por todas suas limitações, Carter foi a melhor parte neste diálogo que o Caribe teve nos últimos anos, e o fato de sua presidência ter coincidido com a de Torrijos, Carlos Andrés Pérez e López Michelsen foi realmente muito importante. Foi esta situação particular e convicção que me encorajou a me envolver, por mais modesta que fosse a minha. Meu papel foi simplesmente o de um intermediário não oficial em um processo que teria ido muito mais longe se não fosse a eleição catastrófica de um presidente americano que representa interesses diametralmente opostos.

Torrijos costumava dizer que meu trabalho era “diplomacia secreta”, e ele costumava dizer em público que eu tinha uma maneira de fazer as más notícias parecerem boas. Eu nunca soube se isso era uma reprovação ou um elogio.

Que tipo de governo você gostaria de ver em seu próprio país?

Qualquer governo que fizesse os pobres felizes. Pense nisso!

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