30 de abril de 2023

Em Israel e na Palestina, uma nova onda de repressão encontra um aumento na resistência

A tensão está aumentando à medida que a repressão do estado de Israel e a violência dos colonos estão sendo acompanhadas por um aumento na resistência palestina. A líder do movimento de libertação palestina, Khalida Jarrar, diz que a situação está chegando a um ponto crítico.

Uma entrevista com 
Khalida Jarrar


Palestinos caminham ao lado de um mural de Khalida Jarrar em 20 de abril de 2015 na cidade de Gaza. (Momen Faiz / NurPhoto via Getty Images)

Uma entrevista de
James Hutt

Tradução / Khalida Jarrar é uma das líderes mais famosas — e visadas — do movimento de libertação da Palestina. Socialista e feminista dedicada, sua organização assumiu muitas formas diferentes ao longo das décadas e custou muito caro. Ela foi eleita para o Conselho Legislativo Palestino (CLP) em 2006 e presidiu a Comissão de Prisioneiros do CLP. Antes de sua eleição, Jarrar atuou como diretora da Addameer Prisoner Support and Human Rights Association.

Jarrar foi presa por Israel quatro vezes por sua militância. A primeira vez foi no dia 8 de março de 1989 por sua participação nas manifestações do Dia Internacional da Mulher.

Em 2014, Israel emitiu uma ordem militar para expulsar Jarrar de Ramallah. Os soldados cercaram a casa de sua família e tentaram transferi-la para Jericó, onde ela seria colocada sob supervisão. Jarrar se recusou a assinar a ordem e recorreu à decisão. Ela ganhou, mas foi presa mais tarde, em abril de 2015. Ela cumpriu seis meses sem acusação ou julgamento sob detenção administrativa, um procedimento do sistema de tribunais militares de Israel separado para palestinos.

Jarrar acabou sendo acusada de “participação em uma organização ilegal” (Israel considera ilegais todos os partidos políticos palestinos) e “incitação”. Ela foi libertada após quinze meses em junho de 2016.

Em julho de 2017, Jarrar estava liderando os esforços para levar Israel ao Tribunal Penal Internacional quando foi presa novamente. Ela foi mantida sob provas confidenciais e sua detenção administrativa foi renovada várias vezes até sua libertação em fevereiro de 2019.

Oito meses depois, em outubro de 2019, ela foi presa novamente e acusada de “ocupar um cargo em uma associação ilegal”. Enquanto estava na prisão, Jarrar lançou um programa para educar mulheres palestinas em prisões israelenses e permitir que elas recebessem certificados universitários por seus estudos.

Apesar das tentativas de Israel de proibir a iniciativa, várias mulheres receberam diplomas, e a iniciativa continua até hoje. Em julho de 2021, a filha de Jarrar, Suha, faleceu inesperadamente aos 31 anos de idade. Apesar do clamor internacional, Israel se recusou a permitir que Jarrar comparecesse ao funeral.

Jarrar foi finalmente libertada em setembro de 2021. Até o momento, ela passou mais de sessenta e três meses atrás das grades. Desde sua libertação, ela aceitou um cargo na Universidade de Birzeit, onde pesquisa o papel histórico das mulheres palestinas presas políticas.

James Hutt, genro de Jarrar, sentou-se com ela em sua casa em Ramallah para conversar sobre o atual aumento da resistência, os desafios enfrentados pelo movimento de libertação e o que ela acredita que virá a seguir.

James Hutt

Há meses, a Cisjordânia parece estar prestes a entrar em erupção. Já ouvi palestinos usarem a expressão "a situação é como uma brasa". Houve uma onda de resistência palestina, especialmente em face da escalada da violência israelense. Algumas pessoas descreveram esse fato como os meses que precipitaram a segunda intifada. Como você entende o momento atual?

Khalida Jarrar

Há invasões diárias do exército israelense nas cidades palestinas. Há prisões em massa diariamente. Diariamente, acordamos com notícias de Israel matando pessoas. Além disso, a Cisjordânia está repleta de postos de controle e estamos testemunhando o exército israelense assassinando cada vez mais pessoas nos postos de controle.

Eles invadiram Jericó muitas vezes e especialmente depois do ataque ao campo de refugiados de Aqabat Jaber, nas proximidades, onde os soldados demoliram muitas casas e assassinaram cinco pessoas. Se Israel acha que essas pessoas fizeram algo errado, poderia tê-las prendido, como de costume. Em vez disso, seu objetivo é matar. Atirar em pessoas se tornou muito fácil para o exército israelense.

Israel começou a demolir casas em grande escala. Sempre fez isso, mas agora em um número tão grande que é claramente uma nova política. O governo israelense quer remover os palestinos de Masafer Yatta e de Jerusalém Oriental, por exemplo. O ministro israelense da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, ordenou pessoalmente a demolição de um prédio em Jerusalém que abrigava cem palestinos.

Por outro lado, a burocracia israelense usa a desculpa de que essas casas foram construídas há trinta anos e não têm licenças. É claro que não. Israel não concederá licenças aos palestinos para construir ou reformar suas casas em Jerusalém.

Os elementos mais perigosos são os colonos, que, obviamente, estão sob a proteção dos soldados. Acho que os colonos na Cisjordânia e em Jerusalém somam cerca de um milhão de pessoas atualmente. As estradas estão cheias de colonos. Seus assentamentos não são pequenos vilarejos ou cidades, são cidades inteiras. Os colonos têm armas. Eles atacam os palestinos. Roubam suas azeitonas e cortam suas árvores. Eles fecham as estradas e jogam pedras nos carros com placas brancas da Cisjordânia. Eles matam pessoas.

Há uma escalada da violência com esse novo governo fascista. Todos os governos israelenses violam os direitos dos palestinos prendendo e matando pessoas, mas olhamos para esse novo governo e vemos pessoas como [o ministro da Fazenda de Israel] Bezalel Smotrich ou Ben-Gvir, que foi condenado por terrorismo contra palestinos pela polícia israelense. Agora ele não é apenas parte do governo israelense — ele é o ministro da segurança nacional.

Ben-Gvir ameaçou com mais leis contra prisioneiros e quer aplicar a pena de morte. Como ministro, ele anunciou seu apoio e deu um presente a um soldado que matou um civil palestino no campo de refugiados de Shuafat. O soldado espancou o homem e atirou nele à queima-roupa. Ben-Gvir não é um civil ou apenas um colono. Ele é um ministro do gabinete israelense. Ben-Gvir disse ao soldado que apreciava o que ele havia feito, e o mundo ficou em silêncio. [Desde essa entrevista, Israel aprovou uma nova guarda nacional sob o comando de Ben-Gvir que se concentrará na “agitação árabe”].

Além da escalada da violência e das violações contínuas, há um alto índice de desemprego e pobreza. Isso está relacionado à forma como Israel está roubando dinheiro da Autoridade Palestina (AP). Segundo o Acordo de Paris, Israel coleta receitas fiscais e comerciais que devem ser devolvidas à AP. No entanto, Israel começou a confiscar milhões de shekels todos os meses, afetando o orçamento da AP e seus programas.

A Palestina também é um país agrícola. Israel não permite que as pessoas busquem água ou plantem em suas terras. Os palestinos não têm acesso a terras na Área C, que corresponde a 68% da Cisjordânia, portanto não podem construir ou plantar em suas terras nessa área. Por outro lado, os palestinos não têm o direito de ter suas próprias fábricas ou sua própria economia. Nossa economia está ligada à economia israelense e o Acordo de Paris continua nos pressionando.

Portanto, há um aumento da pobreza, das violações dos direitos humanos, dos assassinatos e da expansão dos assentamentos israelenses. Os palestinos não têm nada a fazer a não ser resistir a essa ocupação, porque não há esperança para eles enquanto a ocupação existir.

Existe agora uma resistência coletiva geral, e notamos esse novo fenômeno de jovens palestinos que empreendem a resistência armada por conta própria, porque veem e vivem as violações diárias; porque não há esperança para eles. A ocupação destrói tudo para os palestinos, destrói a esperança, destrói o futuro. Então, o que eles podem fazer? Além disso, não há punição para Israel por violar os direitos humanos e as convenções humanitárias internacionais. Não vemos nenhuma punição. Só vemos o oposto: a punição dos palestinos que buscam sua liberdade e justiça.

James Hutt

Onde você acha que isso vai dar? Isso levará a uma nova intifada?

Khalida Jarrar

Veja, há elementos necessários para uma intifada. Você precisa de liderança e organização coletiva, por exemplo. O que vejo é que há uma resistência contínua. Se isso levará a uma intifada ou a uma luta armada, eu não sei. Mas a situação é muito crítica. A ocupação continua aumentando a violência, por isso o povo palestino resistirá.

Também lamento dizer isso, mas o povo palestino não está armado. Quem está armado são os soldados israelenses. Eles têm tanques, armas e aviões. Eles têm um exército. Os palestinos têm muito pouco com que resistir, mas o espírito de resistência pode ser encontrado no povo palestino. Então, qual será o nome desse momento? Não posso dizer se será uma intifada, porque isso requer muitos elementos que não são encontrados hoje, mas há uma resistência contínua que está se desenvolvendo. Para quê? O futuro responderá.

James Hutt

Como você descreveria a situação atual do Movimento pela Libertação da Palestina?

Khalida Jarrar

As divisões internas afetaram gravemente o movimento de libertação, especialmente entre o Fatah e o Hamas. Eles são os dois maiores partidos e estão satisfeitos com a situação atual, com o Hamas no controle de Gaza e o Fatah, de certa forma, no controle da Cisjordânia e da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Mas a maioria das pessoas quer eleições, o que mudaria essa situação. As eleições são uma parte da abordagem de que precisamos como povo.

A outra é um acordo mínimo entre todas as partes para trabalharem juntas. Mas as divisões internas e os interesses particulares de cada um dos partidos significam que eles estão mais inclinados a adiar as eleições.

Não temos eleições para o Legislativo Palestino desde 2006, mas a maioria das pessoas quer mudanças. Os palestinos precisam eleger sua liderança. Será necessária uma pressão popular para que isso aconteça.

Houve muitos acordos entre os partidos para organizar eleições. As últimas deveriam ter sido realizadas em 2021, mas não aconteceram. O presidente [Mahmoud Abbas] as cancelou com a desculpa de que não poderíamos realizar eleições sem os palestinos em Jerusalém, que Israel não permitiria que participassem. Mas isso é uma desculpa. É claro que a Cisjordânia poderia ter eleições sem Jerusalém. E se acreditarmos em uma abordagem democrática genuína, encontraremos maneiras de incluí-los e de fazer isso em Jerusalém.

A outra questão é que o movimento de libertação se moveu em direção ao que chamamos de construção do Estado, que tem objetivos e atividades diferentes dos da libertação. Parte do movimento pensa em estabelecer um Estado independente e achava que poderia fazê-lo por meio dos Acordos de Oslo, mas descobriu, depois de vinte e cinco anos, que isso é apenas um slogan.

Mas agora estamos vendo a resistência popular do povo que talvez force o movimento de libertação a se ajustar. Talvez force os partidos e seus líderes a avaliar e evoluir, e a implementar de fato as demandas nacionais dos palestinos, sendo: autodeterminação, o direito de retorno dos refugiados e o fim da ocupação.

Portanto, precisamos mudar do objetivo de construir um Estado e retornar para nos concentrarmos na libertação e, em minha opinião, essa deve ser uma abordagem democrática. Além da luta nacional, também temos uma luta democrática, que inclui justiça social e igualdade entre homens e mulheres. Esse é o conteúdo da libertação de que precisamos como povo palestino.

James Hutt

Falando em divisões e acordos entre os partidos palestinos, quero lhe perguntar sobre o Documento dos Prisioneiros de 2006. Esse documento parece ter sido o mais próximo que os vários partidos chegaram de alcançar uma visão unificada por um longo tempo. Você vê algo novo como isso por vir?

Khalida Jarrar

Temos muitos acordos, mas os dois principais acordos que respondem a toda a questão e a todas as diferenças entre os partidos políticos são o Documento dos Prisioneiros e o Acordo do Cairo de 2005, que foi acordado por todos os partidos para reformar a OLP. O ponto de partida, em minha opinião, deve ser a OLP, não a AP. Por quê?

Porque somos palestinos que vivem na Cisjordânia, em Gaza, em Jerusalém e dentro das terras tomadas por Israel em 1948, com a maioria dos palestinos refugiados. Se acreditamos que todos os palestinos devem participar da avaliação do processo político e da eleição de uma nova liderança, esse deve ser um processo compartilhado com todo o povo palestino.

O ponto de partida é o conselho nacional relacionado à OLP. Mas ele precisa de mais pressão porque todos os dois grandes partidos estão satisfeitos com o status quo. Sem reformar a OLP, democratizá-la e torná-la representativa do povo palestino em todo o mundo, inclusive nos territórios ocupados, acho que o movimento de libertação continuará fraco.

James Hutt

Por que você acha que o Documento dos Prisioneiros não conseguiu atingir seus objetivos? O que é necessário agora?

Khalida Jarrar

O documento não fracassou, mas não há capacidade de implementá-lo. O problema não é com o acordo, mas com a implementação dele. E a implementação de qualquer um dos acordos, inclusive o Documento dos Prisioneiros, depende de convencer os grandes partidos de que devemos realmente fazer isso e não apenas continuar organizando novos acordos. A última reunião foi na Argélia e nada aconteceu. Eles assinaram, tiraram uma foto e comemoraram, mas nada aconteceu na prática. Não precisamos de novos acordos; precisamos de força para implementar os acordos que todas as partes já assinaram.

James Hutt

Você acha que a visão da libertação mudou desde aquele momento em 2006 até agora, no contexto atual? A estratégia é fundamentalmente diferente agora?

Khalida Jarrar

Não acho que tenha mudado. Temos os mesmos objetivos desde a Nakba. As demandas nacionais não mudaram. O principal objetivo do Movimento de Libertação é acabar com a ocupação, o direito à autodeterminação e o direito de retorno. A questão é como implementar essas demandas nacionais e como concordar em continuar como um movimento. O que mudou foi a situação na Palestina. Agora há uma lacuna entre o povo e a liderança.

A maioria das pessoas não está convencida do que a direção faz. Não há como consertar esse relacionamento, exceto por meio de eleições, e não há eleições, portanto, é uma questão complicada. É uma questão de luta interna. Pode levar tempo, mas a situação e esse tipo de ocupação não nos darão nada, como palestinos. Eles querem nos expulsar ou nos matar e acabar com qualquer tipo de autodeterminação. Isso significa que continuaremos a nos equilibrar entre a luta contra a ocupação e a reforma de nossa situação interna como povo.

James Hutt

Nos últimos dois anos, vimos uma colaboração cada vez maior entre Israel e a AP, com a AP até mesmo desempenhando um papel ativo na repressão de seu próprio povo. Até que ponto a AP pode ser uma barreira para a libertação e o que precisa mudar?

Khalida Jarrar

Quando se fala da AP, estamos falando de um governo que tem um acordo com Israel. A maioria dos palestinos é contra esses acordos. Estou falando do Acordo de Oslo, do Acordo de Paris, do Acordo de Camp David e do Acordo de White River – todos os tipos de acordos. Esses acordos tornam a autoridade nacional responsável por implementá-los, de modo que a AP tem de coordenar a segurança com Israel. No entanto, a maioria das pessoas e a maioria dos partidos políticos rejeitam isso.

Em janeiro, após o massacre no campo de refugiados de Jenin, o Conselho Central da OLP tomou a decisão de encerrar a coordenação de segurança da AP com Israel, mas a AP continua a fazer isso. Agora há uma enorme lacuna entre o povo e a AP, e uma questão em aberto sobre a finalidade da AP. O papel da autoridade é pressionar as pessoas ou ajudá-las? Ela deveria pelo menos abordar as questões da vida cotidiana, como educação e saúde? Ela deve ser reformada? Ela deve se relacionar com a OLP? Deve ser dissolvido? Ou deveríamos mudar seu papel para apenas supervisionar a vida cotidiana e não interferir em questões políticas ou de segurança? A AP facilita ou dificulta o movimento de libertação?

A resposta a essas perguntas deve vir das pessoas. Você precisa de um fórum para discutir isso, que deve ser o conselho nacional. Podemos eleger novos membros. Podemos eleger pessoas nas áreas em que podemos realizar eleições e chegar a um acordo nas áreas em que não podemos. Vamos começar a nos reunir – não apenas para eleger novos líderes, mas para avaliar o processo político e responder a perguntas como essas sobre o relacionamento com a AP.

James Hutt

Onde estão os partidos de esquerda em tudo isso? Por que você acha que eles não têm sido tão populares ou bem-sucedidos?

Khalida Jarrar

A maioria dos partidos de esquerda é fraco, com exceção da Frente Popular para a Libertação da Palestina ( FPLP), que é o maior partido de esquerda, mas se você comparar com o Fatah ou o Hamas, verá que há uma enorme diferença.

Por que eles são fracos? Isso está relacionado a muitos elementos, tanto externos quanto internos. Externamente, é como a situação de todos os partidos de esquerda em todo o mundo. Internamente, é porque você não consegue diferenciar alguns partidos políticos da AP e do Fatah, por exemplo. Muitas pessoas não percebem que os partidos de esquerda são diferentes.

Portanto, um dos objetivos é unificar os partidos de esquerda, mas também precisamos avaliar e concordar com os objetivos políticos, ideológicos e sociais. Talvez concordemos com os termos sociais e democráticos, mas politicamente ainda há muitas diferenças entre os partidos de esquerda. Houve muitas tentativas de unificá-los que ainda não foram bem-sucedidas. Talvez a maneira de nos unificarmos seja na base, por meio da resistência e da luta conjunta por diferentes causas.

James Hutt

Qual é a influência do socialismo na Palestina atualmente? Até que ponto ele está orientando as pessoas, especialmente essa nova geração de jovens?

Khalida Jarrar

Parte de nossa análise sobre o motivo de haver divisões internas, sobre o motivo de o movimento de libertação estar dividido, é porque também há uma luta de classes. Há uma classe que se desenvolveu a partir do Acordo de Oslo que não tem interesse na libertação. É uma classe muito pequena, mas que controla muitas coisas. Do meu ponto de vista, o socialismo é parte da solução.

O movimento socialista está muito fraco na Palestina no momento, mas quando se fala em justiça social, por exemplo, ou na luta democrática, isso oferece uma resposta para o futuro de todos os palestinos. No momento, a AP depende do mercado livre, e isso não resolverá o desemprego nem nenhum dos problemas sociais. Ela está tentando implementar o neoliberalismo, o que não ajudará a situação interna.

Atualmente, menos pessoas são atraídas pelo socialismo porque não entendem o que é socialismo. Nunca tivemos uma autoridade que quisesse implementar o socialismo. É uma AP neoliberal. É por isso que a maioria dos problemas está piorando com ela.

A classe compradora é uma nova classe e cria monopólios capitalistas para todos os tipos de serviços e setores, como o de telecomunicações. Portanto, lutamos pelo oposto. Por exemplo, defendemos um desenvolvimento resistente, com cooperativas e políticas que beneficiem os jovens, entre outros. Mas tudo isso está conectado. Temos uma luta nacional, uma luta democrática e uma luta social, e todas elas estão relacionadas.

James Hutt

Uma coisa que me chama a atenção nesses novos grupos de resistência armada, como o Lion’s Den, é que eles não vêm de um único partido. Eles parecem ter membros de todos os diferentes partidos e de pessoas não alinhadas a nenhum deles. É desse tipo de unidade que você está falando? E com o surgimento de grupos como o Lion’s Den, os partidos políticos tradicionais se tornam menos relevantes?

Khalida Jarrar

A situação na Palestina é que todos os palestinos pertencem a partidos. Não necessariamente como membros, mas toda a sociedade palestina é politizada, e as pessoas estão ligadas aos partidos de várias maneiras. Então, clandestinamente, há agora um novo fenômeno como o Lion’s Den (غرِن الأسود) e outros em que as pessoas estão trabalhando juntas. Isso lhe dá uma resposta.

Por que as pessoas na base estão unidas na luta contra a ocupação, mas a liderança não está? Por seus próprios interesses. Portanto, um dos problemas é a liderança. Talvez essa seja uma nova maneira de reconstruir o movimento de libertação a partir do zero, de usá-lo para pressionar a liderança a se unificar ou de reformar toda a abordagem do movimento. Acredito que a nova abordagem, ou talvez a única, seja a pressão de baixo para cima. Das pessoas trabalhando juntas, obtendo sucesso, e talvez isso pressione os líderes a se unirem, pelo menos.

Também não se trata apenas de resistência armada. Há muitos tipos de resistência em que as pessoas estão se unindo no terreno. Outro exemplo de alguns anos atrás foi quando Israel instalou detectores de metal para restringir o acesso à Mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém. As pessoas se organizaram e trabalharam juntas. Elas desenvolveram um programa compartilhado, fizeram manifestações diárias e realizaram protestos em frente à mesquita. Por fim, obtiveram sucesso e a ocupação os removeu.

James Hutt

Qual é a importância da resistência armada como estratégia de libertação?

Khalida Jarrar

Você quer me mandar para a prisão? [risos] Em geral, qualquer povo sob ocupação tem o direito de lutar e resistir de todas as formas. Elas têm esse direito de acordo com as leis internacionais e humanitárias.

James Hutt

Onde você acha que isso vai parar?

Khalida Jarrar

É impossível dizer. Não podemos prever o futuro, mas o que podemos fazer é pegar esse fenômeno e perguntar como e por que ele se estabeleceu. Percebemos que ele afeta diferentes áreas e é impulsionado por jovens. Percebemos que ele se expande, talvez com outros nomes, por toda a Cisjordânia, e talvez com pessoas que não estão diretamente relacionadas a partidos políticos, mas que estão resistindo à ocupação. Não podemos ver aonde isso vai dar, porém, como eu disse, o espírito de resistência está nas pessoas agora. As pessoas estão tentando encontrar seu próprio caminho, recusando-se a viver sob essa ocupação.

James Hutt

Algo que acho que muitas pessoas no Norte Global não sabem é a extensão da vigilância de Israel sobre os palestinos. Há câmeras de reconhecimento facial nos postos de controle entre as cidades da Cisjordânia, há drones patrulhando os céus sobre eles e ficamos sabendo que Israel agora pode monitorar cada telefonema. Como é se organizar quando Israel pode estar vendo e ouvindo quase tudo o que você faz?

Khalida Jarrar

Essa é uma pergunta difícil, tanto para eu dizer quanto para você publicar [risos]. As pessoas aqui têm um mecanismo secreto que usam. Mas não posso divulgar isso. As pessoas tentam não ser observadas, por exemplo. É mais difícil do que antes. Você não pode fazer coisas publicamente. Não se pode usar a tecnologia. Mas há muitas maneiras de resistir. As pessoas estão sempre desenvolvendo suas próprias maneiras de se organizar. Se houver violações e punições por parte da ocupação, isso também nos ensina. Aprendemos com eles e como eles operam. Aprendemos ao sermos pegos e punidos.

James Hutt

Qual é a importância da organização dos prisioneiros e dos esforços de solidariedade neste momento? Para o movimento mais amplo, em geral?

Khalida Jarrar

Lembre-se de que somos um povo que vive sob ocupação. Mais de um milhão de palestinos foram presos por Israel desde 1967 até agora. É muito raro encontrar uma casa aqui que não tenha prisioneiros ou ex-prisioneiros na família. A situação dos prisioneiros ainda é muito importante para as pessoas e ela é altamente respeitada.

Tudo o que acontece dentro da prisão afeta o exterior também. Ben-Gvir, por exemplo, ameaçou com novas punições contra os prisioneiros. Assim, os prisioneiros organizaram um comitê de emergência de todos os partidos e elaboraram um programa de luta compartilhada. Isso afeta o restante das pessoas e a forma do movimento de libertação.

Agora, resta saber se Ben-Gvir poderá realmente colocar em prática suas ameaças. Se houver uma luta coletiva contra isso, e haverá, será difícil que todas as novas leis sejam implementadas. Estamos falando de 6 mil prisioneiros políticos palestinos dentro das prisões israelenses, e eles estão organizados. Quando os guardas israelenses invadiram a prisão de Damon recentemente e puniram as prisioneiras, todas as prisioneiras resistiram e agiram juntas. Eles conseguiram forçar os guardas a recuar.

As prisões serão o foco da próxima luta, e veremos o que acontecerá. Isso também afetará o exterior. Isso pode levar a um novo tipo de luta, que emerge de dentro da prisão, dos prisioneiros para fora. Eles estão conectados.

James Hutt

Você já foi presa várias vezes por Israel e enfrentou forte repressão. Como essas experiências a afetaram, suas atividades políticas e sua visão?

Khalida Jarrar

Veja bem, a prisão não vai quebrar as pessoas. Estamos vivendo sob ocupação. Estamos convencidos de que temos o direito de representar nosso povo e de ser livres. É claro que é difícil, porque Israel manda pessoas para a prisão só por falarem sobre seus crimes. Mas é muito difícil fazer com que as pessoas parem. Somos guiados pela experiência de povos ocupados em todo o mundo. Nenhum povo que tenha sido ocupado continuará sendo ocupado para sempre.

Colaboradores

James Hutt é um sindicalista e escritor baseado em Ottawa, Canadá. É membro do Labour 4 Palestine e colunista da revista Our Times.

Khalida Jarrar é uma socialista, feminista e ativista palestina, e serviu como membro do Conselho Legislativo Palestino.

A resistência cotidiana não é uma alternativa à política

Após a derrota da Primavera Árabe, militantes de esquerda buscaram consolo nos pequenos atos de resistência ocorridos durante a revolta. Esse otimismo foi equivocado. Para decretar a mudança, a esquerda deve tomar as alavancas do poder.

Nihal El Aasar


Um manifestante egípcio gesticula em direção à polícia de choque nas proximidades durante confrontos com as forças de segurança egípcias perto da sede da Irmandade Muçulmana em 22 de março de 2013, no Cairo, Egito. (Ed Giles / Getty Images)

Resenha de Revolutionary Life: The Everyday of the Arab Spring, de Asef Bayat (Harvard University Press, 2021).

Tradução / Doze anos se passaram desde a Primavera Árabe, e tanto o Egito quanto a Tunísia estão enfrentando uma crise econômica severa. Ambos estão atualmente sob a mercê de programas extremamente desfavoráveis de ajuste estrutural impostos pelo Fundo Monetário Internacional, dependendo muito da importação de alimentos, atolados em dívidas e enfrentando taxas de inflação históricas com aumentos sem precedentes nos preços dos alimentos.

A ascensão do autoritarismo em ambos os países só piorou essa terrível situação econômica. A atmosfera predominante indica que a contrarrevolução venceu e que as forças emancipatórias por trás da revolução de doze anos atrás se afastaram da vida política.

Todos os anos, o aniversário dos levantes de janeiro provoca uma reflexão renovada. Os radicais não apenas lamentam a derrota da revolução, mas também precisam lidar com a constante enxurrada de novas análises que buscam lidar com as mesmas questões todos os anos. Há um desejo insaciável entre os comentaristas de oferecer novas respostas a perguntas já respondidas por uma dúzia de anos de contenção.

Sem ironia, os escritores revisitam questões antigas sobre os méritos relativos da liderança horizontal ou vertical ou o valor da ausência de liderança que remontam ao rompimento entre Joseph Stalin e Leon Trotsky, que dividiram eternamente a esquerda entre dois campos: os guiados pelo espírito de 1917 e os leais a 1968.

Um livro que se destaca nesse gênero por seu brilhantismo e falta de sentimentalismo é Revolution Without Revolutionaries, de Asef Bayat: Making Sense of the Arab Spring (Revolução sem revolucionários: entendendo a primavera árabe), de Asef Bayat. Publicado em 2017, ele se tornou um dos mais referenciados na área.

Nele, o sociólogo iraniano-americano aborda a ideia do que significa revolução em uma era pós-Guerra Fria. Corretamente, Bayat atribui o fracasso das revoltas de janeiro, apesar de sua extraordinária mobilização e resistência, à falta de visão revolucionária, de organização política e de articulação intelectual de seus dirigentes.

Ele faz isso comparando-os com as revoluções dos anos 1970, quando o conceito de revolução era amplamente informado pelo socialismo e pelo anti-imperialismo. Por outro lado, as revoltas de janeiro, imbuídas de uma visão política esvaziada de ONGs, estavam mais preocupadas com a democracia, os direitos humanos e a responsabilidade — questões válidas, mas que tinham sua base em uma classe ativista mais preocupada em se afirmar no cenário internacional do que em construir uma base orgânica em casa.

Vanguarda não revolucionária

Desviando-se da abordagem que adotou em Revolution Without Revolutionaries, Bayat — em seu sexto e mais recente livro, Revolutionary Life: The Everyday of the Arab Spring, publicado em 2021, afasta sua atenção da causa estrutural mais ampla do fracasso da revolução.

Em vez disso, ele olha para o nível cotidiano detalhado em que a luta foi vivida por suas testemunhas e participantes. Lá, ele encontra o que descreve como “não movimentos” que dão acesso “ao que a revolução significou para as pessoas comuns”.

Com foco no Egito e na Tunísia, o argumento de Bayat é que os eventos de 2011 colocaram algo radical em movimento e impuseram um novo conjunto de relações sociais na vida cotidiana. O livro é rico em exemplos dessa resistência cotidiana de ambos os países, abrangendo diferentes categorias.

Tomando como ponto de partida o trabalhador comum, Bayat tenta investigar a relação entre o “ordinário” e o “extraordinário”, ou o “mundano” e o “monumental”. Evocando Antonio Gramsci e o antropólogo e anarquista americano James C. Scott, seu foco desta vez é a sociedade civil e a resistência cotidiana, em oposição à abordagem macro que usou em Revolution Without Revolutionaries, com o objetivo de encontrar a conexão entre ambas.

Seu objetivo é encontrar a “agência” do subalterno no turbilhão da revolução. Assim, cada um dos capítulos do livro tem como protagonista um membro não reconhecido do que poderíamos chamar de vanguarda não revolucionária — os pobres e os plebeus, as mulheres, os filhos da revolução e assim por diante.

Para cada um deles, Bayat atribui uma experiência e uma relação distintas com a luta. Ao fazer isso, ele tenta construir uma narrativa alternativa para entender a revolução que não se enquadra no binário de “sucesso” e “derrota”. A força dessa reinterpretação é que ela rejeita o paradigma derrotista que se tornou a narrativa predominante das revoltas.

“Uma revolução ‘fracassada’ pode não ser totalmente fracassada se considerarmos as transformações significativas que podem ocorrer no nível do ‘social'”, argumenta Bayat. Educadamente, pode-se interpretar essa abordagem como uma tentativa de incutir no leitor um otimismo teórico que se recusa a ceder à derrota.

No entanto, é difícil evitar a conclusão de que toda a premissa do livro — que tem em vista evitar completamente a questão do sucesso político — é, em si, um produto da impossibilidade da política real, seja no Egito ou na Tunísia. Devido à falta de oportunidades até mesmo para as reformas sociais mais básicas, os otimistas são forçados a mudar os termos do debate em vez de olhar, com olhos bem abertos, para a escala de sua derrota.

Os capítulos do livro, que são altamente pesquisados, são divididos tematicamente, cada um abordando um grupo demográfico diferente da revolução. Embora esses capítulos estejam repletos de exemplos, a escolha de estruturá-los em torno de grupos sociais compreendidos sem qualquer relação com estruturas econômicas mais amplas trai a aceitação de uma visão de mundo liberal.

É inegável que “os pobres” ou “as crianças” são grupos sociais dignos de proteção, mas não está claro qual é a política resultante de tratá-los como se fossem classes capazes de se organizar em um bloco coerente. Esse tipo de categorização só faz sentido na linguagem das ONGs, que se baseia nos direitos humanos, em que a gravidade do sofrimento, e não a relação com as alavancas do poder, é o elemento mais importante da política.

No capítulo “Mothers and Daughters of the Revolution” (Mães e filhas da revolução), Bayat refere-se a pelo menos três exemplos diferentes de mulheres que tiraram o hijab como exemplo de mudança de atitudes sociais. Um exemplo foi o de uma mulher que deixou seu emprego de publicitária no setor corporativo para trabalhar na sociedade civil e nos direitos humanos e tirou o hijab. Outro exemplo foi o de uma mulher que tirou o hijab e se casou com um defensor dos direitos humanos; a última criou coragem para viajar sozinha e também tirou o hijab.

Embora essas histórias não sejam totalmente representativas dos modelos de resistência cotidiana que Bayat descreve em seu livro, elas compartilham com os outros exemplos em Revolutionary Life uma dependência excessiva de anedotas que eliminam a diferença entre resistência individual e coletiva.

No entanto, Bayat explica que entende que as categorias que emprega também podem ser divididas em linhas raciais ou de classe. Mas ele mantém a cautela em relação ao que chama de “marxismo reducionista” — uma ansiedade em voga entre os acadêmicos — e sua tendência de “reduzir as fontes multifacetadas de dissidência subalterna”.

Em vez disso, Bayat enfatiza a importância da formação da sociedade civil, invocando a utilização da sociedade civil por Gramsci para combater a visão vanguardista leninista de que um pequeno quadro de elite poderia liderar a revolução em nome da classe trabalhadora.

Em uma linha gramsciana, Bayat argumenta que o método pelo qual a classe trabalhadora pode desafiar o domínio hegemônico da elite é por meio da criação de instituições culturais inseridas em movimentos populares de base ampla que se desenvolveriam organicamente por meio da sociedade civil.

Como Adam Hanieh, professor de estudos de desenvolvimento, argumenta em seu livro Lineages of Revolt, a ideia de sociedade civil é defendida principalmente por organizações internacionais e instituições financeiras internacionais que a associam a políticas econômicas de livre mercado como um baluarte contra o autoritarismo. Para Hanieh:

A dicotomia Estado/sociedade civil serve para “conceituar” o problema do capitalismo, desagregando a sociedade em fragmentos, sem uma estrutura de poder abrangente, sem uma unidade totalizante, sem coerções sistêmicas — em outras palavras, sem um sistema capitalista, com seu impulso expansionista e sua capacidade de penetrar em todos os aspectos da vida social.

Ao defender seu argumento contra o “economismo” marxista, Bayat também recorre ao trabalho de James C. Scott, de quem deriva suas noções de resistência cotidiana. Mas a abordagem de Scott, segundo Bayat, é muito focada ao nível micro, e parte da tarefa de Revolutionary Life é conciliar o foco na agência individual encontrado no trabalho de Scott com uma visão da revolução como um processo estrutural mais amplo.

Scott cunhou o termo “resistência cotidiana” em seu livro Weapons of the Weak (Armas dos fracos), de 1985, para descrever os desafios cotidianos ao poder das elites que não são tão impactantes ou óbvios quanto outras formas de articulações coletivas e organizadas de resistência, como as revoluções.

A resistência cotidiana, ou infrapolítica, como ele às vezes se refere a ela, é mais dispersa e não é tão visível para a sociedade ou para o Estado. Embora Scott conceba a resistência como um ato ou atos que poderiam ser praticados por um coletivo, sua concepção de coletivo é meramente um grupo de indivíduos desorganizados — o que Karl Marx, referindo-se ao campesinato francês no século XIX, chamou zombeteiramente de “um saco de batatas”.

O problema com essa visão é que nunca fica claro no texto de Scott, ou mesmo na apropriação que Bayat faz dele, como se poderia passar de um conjunto de indivíduos para uma força social mais ampla sem começar — de forma marxista — com algum conceito mais amplo de uma classe com seus próprios interesses.

E embora Bayat reconheça, na introdução, que o tipo de análise estrutural da classe e do Estado, que Revolution Without Revolutionaries se dedicou inteiramente a compreender, é necessário, ele continua a romantizar a resistência cotidiana na vida diária, apesar de seu estudo anterior sobre o assunto ter mostrado que essas ações não são eficazes.

O resultado da análise de Bayat, sem excluir suas descrições frequentemente comoventes da revolta individual, é a despolitização da política e o desaparecimento de uma análise estrutural do Estado e da economia.

Colaborador

Nihal El Aasar é um pesquisador egípcio que vive em Londres.

Blood on the Forge é um romance proletário magistral que merece ser lido novamente

Esquecido por décadas, o romance de 1941 do romancista marxista William Attaway, Blood on the Forge, é uma descrição brilhante e brutal da conexão entre racismo e capitalismo. Assustador e sublime, vai deixar você sentindo as cicatrizes da vida da classe trabalhadora.

Alan Wald

Jacobin

US Steel Duquesne works, blast furnace plant, along the Monongahela River, Duquesne, Allegheny County, Pennsylvania. (Library of Congress via Wikimedia Commons)

A sombra da história pode ser mais longa do que se imagina. Oito décadas atrás, um escritor comunista afro-americano de trinta anos publicou uma dramatização ousada e alarmante dos custos sociais do capitalismo e do racismo na época da Grande Greve do Aço em 1919. Falhando em reconhecer os interesses comuns de classe, os afro-americanos e os trabalhadores euro-americanos estavam voando na garganta uns dos outros.

Hoje, em uma era polarizada de reação anti-Black Lives Matter e um movimento sindical lutando para renascer, é difícil pensar em outra obra de literatura imaginativa que nos lembre tão vividamente da profunda relação entre racismo e opressão de classe. Escrito em um estilo audacioso e colorido, às vezes mais expressionista do que realista, Blood on the Forge, de William Attaway, é uma aula magistral sobre como os romances podem ser um arquivo alternativo, um canal para a preservação, transmissão e elucidação da experiência de pessoas oprimidas. Em cinco partes brilhantes, o romance segue a vida de três meeiros afro-americanos, os irmãos Moss, que são desenraizados da zona rural de Kentucky e lançados no inferno industrial do oeste da Pensilvânia.

Como em toda a literatura, a paisagem de Blood on the Forge expressa uma interação entre a biografia e a imaginação do autor. Os personagens e eventos surgiram em parte de pesquisas de campo e entrevistas, mas também das circunstâncias pessoais, compromissos radicais e sensibilidade literária do romancista. Algumas passagens podem até fornecer vislumbres de um eu sombrio.

Um indíviduo descohecido

Uma aura de mistério paira sobre a vida de William Alexander Attaway (1911-86). Ele agora parece um quarterback estrela promissor da geração da Grande Depressão da esquerda literária, que foi surpreendentemente cortado do time. Uma infinidade de detalhes pessoais sobre Attaway foi descoberta por vários estudiosos, especialmente Richard Yarborough. No entanto, existem amplas inconsistências, contradições e omissões, tanto que a arquitetura de suas experiências e personalidade persiste como um assunto indescritível.

William Attaway. Foto de Carl Van Vechten, cortesia de The Van Vechten Trust

Sabemos com certeza que Attaway era filho de um médico de sucesso que se mudou do Mississippi para Chicago quando tinha cinco anos (algumas fontes dizem seis). Desde a infância, ele estava muito sob a influência de uma de suas irmãs mais velhas, Ruth, a quem dedicaria Blood on the Forge. Ruth foi mais tarde uma conhecida atriz de teatro e cinema; sua outra irmã, Florence, tornou-se professora e administradora de uma escola pública de Chicago. Todos os três irmãos Attaway frequentaram a Universidade de Illinois em Urbana, mas Bill - como era universalmente conhecido pelos amigos - desistiu após a morte de seu pai em 1931. Ele andou nos trilhos, viajando pelos Estados Unidos, México e Canadá.

Em 1934, Attaway completou seu primeiro romance, Children of Night, que não conseguiu publicar, antes de retornar à universidade e se formar em 1936. Após um breve contato com o pró-comunista South Side Writers Group de Richard Wright em Chicago, Attaway mudou-se para New York, onde fez amizade com o jovem pintor Beauford Delaney e publicou artigos curtos no Amsterdam News, Pittsburgh Courier e no jornal de esquerda Challenge. Incapaz de ganhar a vida escrevendo, Bill juntou-se a Ruth na companhia de teatro itinerante da peça cômica You Can't Take It With You.

Enquanto viajava por dois anos, Attaway completou seu primeiro romance publicado, uma narrativa on-the-road sobre trabalhadores itinerantes brancos. Intitulado Let Me Breathe Thunder (1939), foi avaliado positivamente nos jornais populares e na imprensa do Partido Comunista (o Daily Worker apresentou uma entrevista; o New Masses publicou uma avaliação do livro, bem como um comentário posterior de Ralph Ellison). Mas o livro não vendeu bem. Uma aura de mistério paira sobre a vida de William Alexander Attaway.

Implacável, Attaway conseguiu uma bolsa para pesquisar a indústria siderúrgica para seu próximo livro. Blood on the Forge apareceu dois anos depois com críticas ainda mais favoráveis em publicações convencionais, mas as mesmas vendas fracas. Pior ainda, as publicações comunistas condenaram explicitamente a suposta política da conclusão do novo romance.

Com sua carreira literária agora no limbo, Attaway ingressou no exército depois que os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial, servindo no norte da África. Ele então voltou para Nova York para iniciar uma carreira na mídia comercial e na cultura popular. Embora tenha sido prolífico e pioneiro neste meio, nunca recebeu muita atenção do público. Ele ganharia sua notoriedade mais visível por colaborar com o cantor Harry Belafonte e escrever dois livros sobre música, Calypso Song Book (1957) e Hear America Singing (1967).

Capa de Blood on the Forge. (Wikimedia Commons)

Em 1962, Attaway se casou com a artista Frances Settele, após o que o casal inter-racial se mudou para Barbados por uma década e criou dois filhos. Ele morreu de câncer ou insuficiência cardíaca (ambos foram relatados) em Los Angeles aos setenta e quatro anos.

Quem foi William Attaway?

Diversas fontes referem-se a um mosaico de alegações ocupacionais feitas por Attaway, de 1,80 metro de altura, 45 quilos, bonito e com aparência de menino. Ele foi apontado várias vezes de ter sido um aspirante a mecânico de automóveis, campeão universitário de tênis, estudante de medicina e direito, marinheiro, estivador, marinheiro, vendedor, organizador sindical, membro do Federal Writers Project (FWP), ator, dramaturgo, vagabundo, grumete, trabalhador agrícola migrante, cortador de hortelã nos campos, balconista de loja de roupas, operário, capitão das tropas negras no norte da África, participante de operações militares clandestinas, ganhador de uma medalha de guerra ferido, co-proprietário de um restaurante em Greenwich Village, compositor e arranjador, o primeiro autor afro-americano de roteiros de televisão, compositor de diálogos de rádio, roteirista e muito mais. Infelizmente, há pouca documentação para grande parte dessa nevasca de informações em grande parte anedóticas; as principais exceções são roteiros de TV e canções claramente atribuídas a ele, onde costumava usar o nome “William A. Attaway” e sua co-propriedade de um restaurante em Greenwich Village por oito meses com Belafonte (“The Sage”).

Essa imprecisão sobre o tempo e o lugar dificilmente equivale a uma receita de coerência, deixando sua identidade um tanto em aberto. Onde e quando, por exemplo, Attaway desenvolveu suas extraordinárias habilidades musicais? Às vezes, na ausência de informações precisas, há a tendência de criar um retrato imaginário do artista. É duvidoso, por exemplo, que Attaway tenha passado muito tempo como um “organizador sindical”, como muitas fontes relatam sem nomear um sindicato, e seu suposto trabalho para o FWP - especialmente a alegação frequente de que Attaway foi coautor do Guia de Illinois de 1939 - é sem evidência. (Talvez haja mais exagero do que invenção direta na última afirmação, já que ele provavelmente andava com autores do FWP em Chicago e Nova York.)

Sobre alguns assuntos Attaway manteve-se profundamente privado. Isso inclui qualquer explicação de por que ele se juntou e depois deixou o movimento comunista, muito diferente das lembranças detalhadas de Richard Wright. Ele também foi vago ao mencionar suas atividades de classe média na Universidade de Illinois, onde ingressou na fraternidade de elite Alpha Phi Alpha, e onde uma peça creditada a ele, mas perdida (Carnaval) foi encenada pelo Cenáculo, uma sociedade de literatura e drama parcialmente destinada a “promover artes e letras negras” para o público branco. Ele também nunca se referiu ao seu relacionamento semelhante ao casamento no final dos anos 1940 e início dos anos 1950 com a dançarina e coreógrafa comunista nascida na Alemanha Miriam Pandor. Pandor, que tinha um estúdio que funcionava como apartamento do casal, era associado a George Balanchine, Martha Graham, Jose Limón, Sophie Maslow e Alvin Ailey. Ela foi ativa na campanha presidencial do Partido Progressista em 1948 para Henry Wallace, usando seu trabalho para abordar o racismo, o anti-semitismo e a injustiça social, eventualmente lecionando em Cuba e escrevendo para o People's Daily World.

A documentação, encontrada principalmente na história oral, localiza Attaway nos círculos culturais comunistas do pós-guerra. As lembranças dos ex-comunistas negros Harold Cruse, Howard “Stretch” Johnson e John Oliver Killens, junto com o companheiro de viagem Belafonte, retratam Attaway como um membro do partido às vezes, possivelmente aliado à liderança do Partido Comunista dos EUA (CPUSA) contra as críticas públicas de Wright ao partido em 1944 e depois dissidentes no Harlem Writers Club (em cujo Harlem Quarterly ele publicou em 1950); auxiliando líderes secundários que haviam passado à clandestinidade; e ativo no Capítulo de Literatura do Comitê para o Negro nas Artes, liderado pelos comunistas. No início dos anos 1950, no entanto, Attaway parece ter saído do quadro político marxista (o mesmo período em que terminou seu relacionamento íntimo com Pandor, que acabou se mudando para a Alemanha Oriental). Seu único outro ato político radical conhecido foi participar da marcha de 1965 de Selma a Montgomery.

Tudo isso sugere um homem de brilhantismo precoce difícil de ser definido; seu professor de redação da faculdade o chamou de "um Hamlet negro" e há indícios em sua ficção de um passado sexual sombrio. Talvez Attaway, conhecido como um contador de histórias divertido de suas experiências vagabundas, tenha fornecido ao longo dos anos um currículo, tanto exagerado quanto seletivo, que se mostrou útil para sobreviver à era McCarthy - uma época em que ele e muitos outros tiveram que passar com cautela por várias revisões de quem eles foram e o que eles estavam se tornando. Em 1955, por exemplo, Attaway provavelmente teve que manter a boca fechada sobre política quando dirigiu Winner by Decision para o General Electric Theatre da TV; o programa foi apresentado por Ronald Reagan, um informante anticomunista do FBI, e baseado em um conto de Budd Schulberg, uma testemunha amigável do Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara.

Guerra de classes sem fim perceptível

Blood on the Forge começa com um grande estrondo de eventos melodramáticos. São duas semanas após a morte brutal e mutilação da mãe dos irmãos Moss, que desmaiou enquanto arava os campos das colinas de argila vermelha de Kentucky e foi arrastada até ficar irreconhecível por uma mula. O irmão mais velho, Big Mat, atacou o animal em uma explosão furiosa: “Ele voltou como um porco selvagem e pegou um pedaço de pedra de sílex e arrancou a vida daquela mula, de modo que nem a pele servia para vender. ” Agora, a família Moss enfrenta sérias ameaças à sua sobrevivência financeira por parte do branco Sr. Johnston, dono da mula e da terra. Blood on the Forge começa com uma grande explosão de eventos melodramáticos.

A tensão aumenta em uma disputa entre Mat e o chefe de montaria de Johnston sobre uma mula substituta, e Mat explode ao ouvir um epíteto racista dirigido a sua mãe: “O chefe de cavalgada caiu no chão, sangue escorrendo de seu rosto esmagado. Ele lutou para ficar de pé. Um pé pesado o atingiu na lateral do pescoço. Percebendo que “o chefe da cavalgada viveria para liderar o linchamento contra ele”, Mat sabe que deve fugir. Em poucas horas, os irmãos Moss aproveitam uma oferta de um recrutador de mão de obra branca. Deixando a esposa grávida de Mat para trás, os três embarcam em um trem rumo ao norte, encontrando-se “agachados no chão de palha de um vagão, amontoados como porcos indo para o mercado, cavalgando no escuro pelo que podem ter sido anos”. Desde o início, somos impulsionados para a frente, carregados com um pressentimento de que estamos caminhando para o apocalipse.

Desembarcando do vagão em uma cidade siderúrgica do oeste da Pensilvânia no rio Monongahela, os irmãos Moss são gradualmente apresentados a uma guerra de classes sem fim discernível. A cidade fabril, possivelmente inspirada em Duquesne, oferece uma cultura totalmente estranha a esses três recrutas industriais, embora o passado racista de Kentucky tenha sido indelevelmente queimado em sua consciência coletiva. Um de seus primeiros encontros é com uma jovem trabalhadora do sexo negra que tem um seio esquerdo apodrecido e canceroso. Eles então conhecem um trabalhador negro deficiente e meio louco chamado Smothers, que ouve vozes dos moinhos que ameaçam com violência retributiva por espoliar a natureza: “É errado rasgar o chão e derretê-lo na fornalha. ... É o tipo de trabalho infernal. Essas imagens potentes perduram e dão sabor aos eventos que se seguiram, enquanto os três irmãos aprendem a produção de aço durante o dia e se entregam ao sexo, à bebida e às brigas de cães da "Cidade do México" à noite. Attaway não pinta uma massa monolítica afro-americana. As distinções de temperamento e experiência pessoal são destacadas por meio do estilo narrativo indireto do romance, que alterna entre os três irmãos Moss e uma panóplia de cenários. Como Attaway explicou em um “Plano de Trabalho” enviado para sua bolsa, “o ponto forte do romance histórico” é que “ele não apenas nos dá os fatos de um passado obscuro, mas também nos permite experimentar esses fatos por meio de identificação com os seres humanos retratados”.

Mat irradia principalmente uma melancolia de baixa, mas pode se transformar repentinamente em uma cobra enrolada, pronta para atacar; Chinatown, com seu dente de ouro brilhante, traz risos e sociabilidade apesar do ambiente impiedoso; e Melody, a figura taciturna do artista, usa criativamente sua guitarra para “afastar” o que o aflige. O que obtemos é um retrato não sentimental de indivíduos apanhados em uma guerra de classes cruel e impiedosa, onde homens e mulheres lutam para encontrar alguma medida de autodeterminação, suportam uma corrosão de escrúpulos e, principalmente, fazem tudo o que a situação exige para sobreviver. Os julgamentos morais da classe média são questionados, já que quase toda ação traz o risco de perigo.

A decisão de Mat no final do livro de se tornar deputado para esmagar uma greve de trabalhadores em sua maioria brancos foi considerada por alguns como uma crítica à resposta “nacionalista negra” à crise trabalhista. No entanto, há pouco no comportamento de Mat que sugira uma política étnica coerente. Mais provavelmente, ele é movido por uma masculinidade ferida (depois de saber que Anna, a ex-trabalhadora do sexo de quatorze anos por quem ele é obcecado, o abandonou e voltou ao seu ofício para ganhar dinheiro) e um desejo feroz de virar o jogo. ("Ele, Mat, era o chefe da cavalgada, e o ódio daria a essa mão do clube a força de que precisava"). Melody é inicialmente atraído pela causa dos grevistas, mas é dissuadido por políticos negros que insistem que seu próprio emprego não existiria se o sindicato fizesse o que queria; quando ele descobre que esses políticos foram pagos para promover as opiniões dos patrões, ele fica ainda mais desiludido em tomar partido. Chinatown, que já perdeu a visão em uma terrível explosão que matou quatorze homens, está alheio ao dilema.

Capa da reedição de Blood on the Forge. (NYRB)

Para leitores com noções estreitas de “romance proletário” ou “realismo social”, Blood on the Forge fornece um curso intensivo para mostrar que o que também foi chamado de “romance radical” é perpetuamente desafiado e moldado por seus próprios praticantes. É elástico e regenerativo, combinando muitos tipos de escrita e, neste caso, ampliando o repertório emocional de alguém. Talvez devido à classificação cega do ambiente conservador do pós-guerra, os livros de Attaway foram ignorados por críticos e estudiosos por quase duas décadas após a publicação, existindo em um submundo literário por meio de reedições de brochuras. Quando o clima político mudou desde o final do século XX até o presente, Blood on the Forge foi relançado e elevado a objeto de investigação acadêmica. Isso ampliou dramaticamente a apreciação do romance além do objetivo original de Attaway, que era refutar as críticas populares de fura-greves afro-americanos no movimento trabalhista, revelando o contexto mais completo.

Estudiosos destacaram a atenção de Attaway para questões ambientais e compararam sua ficção com a de Carl Sandburg, John Steinbeck e Wright. Outros discordaram dos estereótipos de latinas percebidos no romance e dos tratamentos perturbadores de estupro. No entanto, embora os temas de predadores sexuais masculinos, dinâmicas de poder de gênero e abuso sexual sejam muito fortes e as personagens femininas sejam menos desenvolvidas, o de Attaway não é exatamente um sexismo típico do período em que ele viveu. Melody, uma espécie de substituto para o autor, é praticamente desprovido de agressão masculina. A única exceção é sua fixação em Anna, que começa com o medo de se comprometer e termina com o desejo de dominar e controlar. Ao longo do romance, começando com referências ao espancamento de Mat em sua esposa em Kentucky, aqueles oprimidos pelo racismo mostram-se ainda mais enfraquecidos por ilusões misóginas sobre gênero. O que obtemos é um retrato não sentimental de indivíduos lutando para encontrar alguma medida de autodeterminação, suportando uma corrosão de escrúpulos e, principalmente, fazendo o que a situação exige para sobreviver.

Um telos da história?

Para aqueles com interesse especial na estética do Partido Comunista, o “Attaway Affair” merece um ensaio separado. A essência, no entanto, é que a resposta dos críticos associados ao partido no Daily Worker, New Masses e mesmo seis anos depois pelo dramaturgo afro-americano Theodore Ward no mainstream do pós-guerra, elogiaram entusiasticamente o estilo do livro e a promessa do jovem Attaway, mas atacaram impiedosamente o que eles consideraram ser a conclusão de Attaway. As duas primeiras publicações foram acompanhadas de um simpósio público na biblioteca Schomburg no Harlem, onde Ellison e o editor do New Masses Samuel Sillen confrontaram Attaway, e depois um debate privado entre Ellison e Attaway no apartamento do cartunista nova-iorquino William Steig.

Ralph Ellison em 1961. (Agência de Informação dos Estados Unidos / Biblioteca do Congresso via Wikimedia Commons)

Os críticos comunistas de Attaway argumentaram que o romance era politicamente enganoso a ponto de ser inútil (ou pior) porque terminava em um impasse cataclísmico, negando ao leitor o modelo de um proletariado negro com consciência de classe, cujos números haviam aumentado na década de 1930 e e com certeza iria expandir ainda mais no futuro. Ralph Warner, pseudônimo de um prolífico crítico de teatro, achava que deveria haver um “Sr. Max”, o advogado pró-comunista em Native Son (1940), para “avaliar o significado social”. Ellison queria um personagem que incorporasse a “fusão” das experiências agrícolas e industriais e, portanto, uma consciência superior. Ward chamou o livro de "derrotista" e o vinculou a uma versão semelhante de The Street (1946), de Ann Petry.

Na verdade, Blood on the Forge foi uma obra refrescantemente livre da suposição de que um romancista comunista deve escrever como se tivesse a chave mestra para a salvação política. Na verdade, apesar da dor de barriga, há evidências de uma consciência de classe em desenvolvimento no romance de Attaway. Há a sugestão de unidade inter-racial da classe trabalhadora quando Mat sente um novo orgulho quando os trabalhadores brancos o apelidam de “irlandês negro” para mostrar sua admiração por sua força e habilidade. Mais tarde, quando Mat morre nas mãos de um membro do sindicato eslavo se defendendo, ele mostra um vislumbre de consciência de que escolheu o lado errado.

Então, novamente, Blood on the Forge pode ter sido apenas o primeiro estágio de uma série incompleta destinada a mostrar um crescimento maior; O “Plano de Trabalho” de Attaway de 1939 explica que ele pensou em “fazer uma sequência para este trabalho em algum momento no futuro”. Assim, embora Attaway não desejasse usar personagens literários para ilustrar didaticamente uma narrativa mestre progressiva tranquilizadora, ele pode muito bem estar revelando vários caminhos tomados erroneamente na tentativa de provocar os leitores a considerar possibilidades alternativas.

Há outra explicação para a resposta quase coreografada dos críticos da CPUSA ao término do livro: a incontestável conclusão anti-guerra de Attaway, na qual o cego Chinatown é emparelhado com um veterano negro cego da Primeira Guerra Mundial. A obra foi concebida durante o Pacto Hitler-Stalin de 1939-41, quando o CPUSA alvejava admiravelmente o racismo dos EUA como o inimigo fascista local, e os negros eram desencorajados de apoiar a intervenção militar para salvar o imperialismo ocidental. Porém, poucos meses antes da publicação do livro, a URSS foi invadida pela Alemanha e Moscou inverteu sua posição. Sob a nova linha comunista, o CPUSA convocou os afro-americanos a promover a plenos pulmões um esforço de guerra; até mesmo a campanha “Double V” dos ativistas negros (a promessa de continuar a luta contra a discriminação junto com a guerra contra o Eixo) foi condenada por minar a unidade necessária.

Na melhor das hipóteses, os antirracistas comprometidos do CPUSA caíram em um estranho limbo epistemológico ao decidir como responder à contínua ameaça de fanatismo. O que se seguiu foi muitas vezes desanimador: o CPUSA apoiou o internamento de nipo-americanos e manchou a Rebelião do Harlem de 1943 como inspirada por Hitler - pronunciamentos que desencadearam o êxodo de Wright, Ellison, Chester Himes e outros. No entanto, um crítico marxista acertou em Blood on the Forge. George Breitman (escrevendo como Albert Parker), um trotskista que mais tarde escreveu O último ano de Malcolm X (1967), escreveu no Militant de 16 de maio de 1942 que Attaway ligou convincentemente a brutalidade do racismo sulista e a recusa do movimento trabalhista em tomar ação antirracista específica. Esses, ele argumentou, foram os fatores decisivos na tragédia de 1919, e o romance foi eficaz em “deixar o leitor tirar a sua conclusão” sobre o que isso significava para a ação no presente.

Complexidade e precariedade

Infelizmente, Attaway tornou-se como um corredor que lidera o bando e depois desaparece. Se seus romances foram lidos no ainda amplo ambiente do CPUSA, nenhuma evidência apareceu em sua imprensa de que alguém o defendeu ou sequer o mencionou novamente. Como eles poderiam, após o golpe mortal de 1947 por Ward no Mainstream, descrevendo Blood on the Forge como “parte da literatura contemporânea da derrota”? Na descrição pouco glamorosa do trabalho de Attaway, com os sindicalistas brancos em sua maioria alheios à “questão racial” e trabalhadores afro-americanos não idealizados abusando de mulheres, o autor pretendia de forma provocativa mudar a janela de Overton do discurso politicamente aceitável na esquerda? Ele talvez estivesse procurando intencionalmente uma estética que fosse uma repreensão às supostas formalidades da crítica cultural comunista da época? Seja qual for o motivo, Attaway estava caminhando perigosamente em sua tentativa intransigente de ilustrar as dificuldades políticas do trabalhador negro sulista que foi trazido para o norte, mas ainda estava enredado tanto no legado mais antigo quanto nas formas mais recentes de ódio racial.

Em 2023, Blood on the Forge ainda é um forte lembrete de que a organização pela igualdade negra continua sendo uma parte crucial da luta de classes, uma força motriz de qualquer movimento pela democracia política e uma economia socialista. Não se pode ignorar as demandas específicas da raça e a necessidade de sindicatos e outras instituições de esquerda para liderar a luta contra todas as formas de discriminação. O romance de Attaway, que visava despertar a consciência chocando em vez de instruir, tem a virtude de nos fazer enfrentar os fatos da história e os aspectos de um passado que não passou totalmente.

Colaborador

Alan Wald é membro do Solidariedade e editor de Against the Current e Science & Society.

29 de abril de 2023

A filosofia de Platão é um ataque aristocrático à democracia e ao governo popular

Platão desenvolveu sua filosofia na Grécia antiga durante uma experiência inicial de governo democrático que ameaçava o poder de sua classe. Ele respondeu com um argumento a favor do governo das elites aristocráticas que tem apelado aos conservadores desde então.

Brian O'Boyle

Jacobin

Caverna de Platão, Jan Saenredam, Cornelis Cornelisz. Van Haarlem, 1604. (Sepia Times / Universal Images Group via Getty Images)

Comentaristas modernos remontam o surgimento da filosofia ocidental a Platão. Karl Popper uma vez sugeriu que o pensamento ocidental tem sido platônico ou antiplatônico, mas raramente não-platônico, enquanto Alfred North Whitehead fez a famosa piada de que a história da filosofia ocidental tem sido pouco mais do que “notas de rodapé para Platão”.

Uma razão para sua influência duradoura é a amplitude da escrita de Platão. Em três dúzias de diálogos, Platão aborda tudo, desde teologia, metafísica e epistemologia até teoria política, a natureza do amor e a teoria da linguagem. Outra razão é a inegável profundidade do pensamento de Platão, que assimila percepções de seus predecessores — Parmênides e Pitágoras em particular — ao mesmo tempo em que abre novos caminhos em muitas das áreas destacadas acima.

Uma terceira razão, muito menos comentada, é o papel histórico que a filosofia de Platão desempenhou no ataque à democracia. Sua obra mais influente, A República, é um argumento altamente sofisticado contra a abordagem democrática do governo que tomou forma na época de Platão. A defesa intransigente de Platão da desigualdade humana atraiu os conservadores desde então.

A ordem natural

Na época em que Platão estava escrevendo, nas primeiras décadas do século IV aC, Atenas já era uma democracia há mais de um século. Começando com as reformas de Sólon no início do século VI aC e continuando com as reformas cleistênias em 507, milhares de homens atenienses conquistaram direitos de cidadania apesar da oposição de aristocratas conservadores — membros da família Eupátrida — que se opunham a essa subversão da "ordem natural das coisas".

Platão era um membro do Eupatridae em ambos os lados de sua família. Seu pai era descendente dos antigos reis de Atenas, enquanto a família de sua mãe era ainda mais prestigiosa, traçando suas raízes até o grande legislador ateniense Sólon. Os membros da família de Platão também estavam fortemente envolvidos na política contemporânea. Quando ele tinha vinte e poucos anos, o tio de Platão e o primo de sua mãe lideraram um golpe contra a democracia ateniense após a derrota na Guerra do Peloponeso.

Escrevendo sobre esses eventos cinquenta anos depois, Platão relata como inicialmente apoiou esse golpe antidemocrático na esperança de que seus líderes “colocassem a cidade de volta no caminho da justiça”. Em vez disso, eles agiram com brutalidade, massacrando seus oponentes e destruindo o estado de direito.

Platão quer que seus leitores saibam que ele abominava o comportamento de seus amigos e parentes, mas vale lembrar que sua carta foi escrita muito depois do fracasso do golpe ser um fato bem estabelecido. Não podemos saber que papel Platão poderia ter desempenhado se o golpe tivesse sido bem-sucedido, principalmente porque ele passou a ter relações íntimas com tiranos mais bem-sucedidos na região.

Nesse contexto, não vale a pena que a carta descrevendo a oposição de Platão a seus associados em Atenas tenha sido escrita para exonerar seu próprio histórico na política de Siracusa, onde um de seus apoiadores de longa data desempenhou um papel central na transformação de uma outrora democracia vibrante em uma guerra civil sangrenta e violência destruidora.

Membros da Academia de Platão também estiveram diretamente envolvidos no derramamento de sangue em Siracusa. A Carta de Platão aos Amigos de Dion foi essencialmente escrita para elogiar seu protegido, apesar do papel de Dion no ciclo de violência, para denunciar os rivais de Dion como homens que Platão tentou (e falhou) transformar em reis-filósofos e exonerar o próprio Platão, tendo em vista o desastre que estava se desenrolando para as pessoas comuns.

Apesar da matança e do caos que se seguiram, Platão nunca desistiu de sua convicção de que homens e mulheres comuns eram incapazes de governar a si mesmos. Ele também manteve sua convicção de que a maneira mais fácil de trazer justiça para a cidade-estado envolveria converter autocratas em reis-filósofos e que a natureza de tal “justiça” só poderia ser verdadeiramente discernida a partir da própria filosofia idealista de Platão.

Uma nova sociedade

A filosofia ocidental foi um produto da polis, uma nova forma de organização política que surgiu na Grécia durante o período de 800 a 500 aC. Essas cidades-estados surgiram de uma Idade das Trevas centrada em bandos de guerreiros e aldeias rurais. O sistema de valores que sustentava a sociedade mais antiga baseava-se nas conquistas militares. Os homens seguiam líderes que podiam proteger a unidade familiar (oikos) e exibir excelência na batalha.

No período entre 1100 e 800 aC, os chefes guerreiros se fundiram em uma aristocracia militar que controlava a terra e se diferenciava por meio da linhagem nobre. Como antes, era a virtude militar que impunha respeito, pois os aristocratas garantiam a honra por meio do sucesso na guerra e da vitória contra nobres rivais. Esses valores foram encapsulados no ideal de aretḗ — a força e a habilidade de um nobre guerreiro junto com sua superioridade sobre os plebeus.

O catalisador mais importante para a polis emergente foi uma explosão populacional facilitada por melhorias na agricultura associadas à mudança do bronze para o ferro. Segundo uma estimativa, a população aumentou sete vezes entre 780 aC e 720 aC, criando uma luta pela terra que, por sua vez, resultou em uma série de consequências importantes para o desenvolvimento da polis.

Uma civilização urbana desenvolveu-se lentamente, ajudando a criar os centros legais e espaciais para essas novas comunidades. Ao mesmo tempo, houve uma onda de migração externa, com os gregos fundando centenas de novas colônias e restabelecendo o comércio com impérios mais antigos a leste e ao sul. A luta pela terra também trouxe as massas mais plenamente para a política quando começaram a reivindicar representação política, redistribuição de terras e perdão de dívidas.

Este último ponto indica a crescente importância de uma economia monetária, que desestabilizou ainda mais uma aristocracia que precisava de riqueza para manter seu poder sem querer se rebaixar à atividade comercial. Com o tempo, o crescimento do comércio criou diferenciais dentro da aristocracia, pois algumas famílias se adaptaram à nova realidade econômica e outras não. Também criou uma classe de fazendeiros prósperos que exigiam representação política à medida que suas fortunas econômicas melhoravam.

O desenvolvimento da guerra hoplita em meados do século VII foi outro marco importante no movimento em direção às cidades-estados, já que a guerra não era mais reservada à aristocracia. Em vez de nobres guerreiros lutando a cavalo, a guerra era realizada por cerca de um terço da população masculina adulta que tinha recursos para comprar o equipamento de um soldado de infantaria hoplita.

O fato de os direitos políticos terem sido historicamente associados à participação na batalha significava que era muito provável que o poder agora começasse a se abrir, particularmente porque a competição interna dentro da nobreza significava que eles nunca impunham um estado de classe sobre os plebeus. A esse respeito, o colapso do Império micênico durante o século XII aC permitiu um espaço essencial para o desenvolvimento de formas mais democráticas de tomada de decisão séculos depois.

Reformas de Sólon

Uma consequência da luta entre as elites foi a ascensão dos tiranos. Estes eram aristocratas que surgiram em um período de conflito para tomar o poder para si. De 650 a 500 aC, homens fortes surgiram em várias pólis com o objetivo de quebrar as bases políticas, familiares e religiosas de seus rivais aristocráticos.

A melhor maneira de conseguir isso era elevar a importância da pólis como centro cívico e religioso. Os tiranos foram associados ao investimento em infraestrutura cívica e religiosa que promoveu um sentimento de solidariedade cidadã. Eles também ofereceram pequenos empréstimos comerciais para quebrar o poder econômico da aristocracia e promulgaram códigos legais que substituíram os julgamentos informais da nobreza por leis mais formais erigidas pela própria polis.

Enquanto isso, o aumento gradual da lógica comercial estava dissolvendo as relações tradicionais, ao mesmo tempo em que aumentava a desigualdade econômica. Em Atenas, as lutas resultantes tornaram-se particularmente agudas por volta de 594 aC, quando o desenvolvimento de uma classe ascendente de prósperos fazendeiros se refletiu em uma massa crescente de camponeses mais pobres. Reconhecido como legislador, Sólon foi encarregado de restaurar a harmonia cívica entre as partes em conflito: a nobreza, os pequenos fazendeiros e os camponeses mais pobres.

Para ajudar os agricultores mais pobres, ele aboliu o sistema hektḗmoroi quase feudal junto com a escravidão por dívida que resultou dele. Ele também abriu cargos políticos para homens ricos e tornou a aristocracia mais responsável perante a justiça administrada pela polis. Seu objetivo era garantir uma forma hierárquica de ordem social (eunomia) baseada nas contribuições proporcionais feitas por diferentes classes para o bem do estado.

No entanto, em meio século, as reformas de Sólon deram lugar a uma tirania ateniense sob Pisístrato. Da mesma forma que os tiranos em outros lugares, Pisístrato promoveu um senso de cidadania ateniense enquanto enfraquecia ainda mais o poder dos Eupátridas. Na batalha subsequente para derrubar Hípias, filho de Pisístrato, Clístenes buscou uma base entre as massas contra a ala conservadora da aristocracia, liderada por Iságoras.

Guerra e Império

A vitória de Clístenes também foi uma vitória para as ordens inferiores. Para confirmá-lo, Clístenes enfraqueceu ainda mais a nobreza tradicional ao abolir seus grupos de parentesco, conhecidos como fratria. Os grupos de parentesco mais recentes estavam ligados diretamente à polis, garantindo que os cidadãos atenienses se tornassem um corpo político autoconsciente e autodefinido.

Clístenes esperava que sua própria família permanecesse próxima ao centro do poder, mas suas reformas logo ganharam impulso próprio, aprofundando o papel do demos enquanto criava novas demandas por igualdade genuína em toda a vida pública (isonomia). Um fator nesse desenvolvimento foi interno às próprias reformas, pois os homens adultos ganharam uma influência sem precedentes por meio de suas maiorias na assembléia e nos tribunais.

O segundo fator foi histórico. As reformas de Clístenes ocorreram dezessete anos antes da invasão da Grécia por um enorme exército persa. Contra todas as probabilidades, o exército cidadão ateniense ajudou a derrotar a tentativa persa de conquistar a Grécia, primeiro em terra na Batalha de Maratona (490 aC) e depois mais decisivamente no mar na Batalha de Salamina (480 aC).

A segunda dessas batalhas anunciou a marinha ateniense como uma grande força militar — uma força tripulada pelos atenienses mais pobres, conhecidos como thetes. Após essa grande vitória, Atenas desenvolveu um império marítimo que dependia fortemente da contribuição da frota.

Essa contribuição, combinada com a riqueza do império, ajudou a atenuar a luta de classes em Atenas durante grande parte do século V e criou as condições para a estratégia final empregada pelos aristocratas mais perspicazes. Eram homens como Péricles, que forjou sua própria influência nas décadas de meados do século ao apoiar as principais demandas da polis democrática.

Classe e democracia em Atenas

A ascensão da democracia implicou um afastamento radical das normas do mundo antigo. Pela primeira vez na história registrada, um número significativo de pessoas tomou suas próprias decisões. No entanto, a força dessa revolução foi limitada por uma série de fatores importantes:

  1. A democracia ateniense limitava-se aos homens nascidos atenienses em idade adulta, que constituíam 10 a 20 por cento da população total.
  2. A escravidão era generalizada: sempre havia duas a quatro vezes mais escravos do que cidadãos.
  3. A nobreza manteve sua riqueza e status, e um modo de produção escravista foi combinado com uma democracia participativa para a minoria dos cidadãos.
  4. A democracia ateniense existia em um ambiente hostil onde os poderes externos dominantes eram antidemocráticos.
  5. A polis ateniense permaneceu uma sociedade de guerra e rapidamente cresceu para se tornar um império marítimo.

As relações de classe resultantes eram adequadamente complexas. Por um lado, os cidadãos atenienses tornaram-se uma elite política unificada, fazendo causa comum em campanhas militares e na proteção de seus privilégios domésticos. Por outro lado, a luta de classes persistiu dentro da própria cidadania, pois a nobreza procurava projetar seus privilégios remanescentes ainda mais na polis, enquanto os cidadãos mais pobres usavam seus números maiores para neutralizá-los.

O sistema de valores refletia essas relações de classe contraditórias de maneiras importantes. Como era uma sociedade envolvida em guerra regular, aretḗ permaneceu a virtude central dos cidadãos atenienses com excelência agora ligada às conquistas de alguém enquanto lutava pela polis. Os cidadãos foram encorajados a conceber sua cidade-estado em termos semidivinos. Esperava-se que eles lutassem ferozmente no exército cidadão e vissem seu próprio sucesso intimamente ligado ao sucesso de seus compatriotas.

Para contrabalançar essas forças centrífugas baseadas na coragem e nas realizações militares, a pólis democrática também promoveu virtudes cooperativas baseadas na moderação e no autocontrole (sophrosyne). Evitar a arrogância tornou-se um atributo essencial da cidadania, pois todo cidadão era encorajado a “agir com medida e dentro de limites justos”, permitindo que a justiça surgisse dentro de uma comunidade de iguais políticos.

Um segundo desenvolvimento foi uma fusão de razão, política e superioridade social sentida pelos homens deliberando na polis e julgando nos tribunais. Esperava-se que os cidadãos ouvissem um argumento, avaliassem as evidências e tomassem suas próprias decisões. O resultado foi um sentimento de igualdade entre os cidadãos misturado com um sentimento de superioridade sobre todos os outros.

A razão (logos) tornou-se uma característica definidora da polis democrática, enquanto a sabedoria — ou a excelência da razão — tornou-se associada ao discurso público na assembléia e nos tribunais. O resultado foi um conjunto de virtudes cardeais que foram significativamente além das proezas militares: sabedoria, coragem, prudência e justiça.

Igualdade e ordem

Outra expressão da conexão entre política e razão era a natureza política da metafísica grega, pois os filósofos projetavam as leis de suas pólis nas leis do universo. Substituindo os julgamentos arbitrários da antiga aristocracia, os códigos jurídicos gregos — escritos e expostos ao público — regularizaram as relações entre os cidadãos, garantindo que a justiça se tornasse objetiva, universal e previsível.

O senso de ordem que resultou desse processo logo foi expresso nas leis do universo. O pensamento grego desenvolveu uma analogia entre a justiça da polis e a justiça do universo — uma forma de ordem moral cósmica que estava presente nas almas dos homens, nas relações da cidade e no padrão mais amplo do universo.

Um desenvolvimento posterior era uma disputa sobre a natureza dessa ordem entre representantes da democracia e os filósofos aristocráticos que buscavam um retorno às formas mais tradicionais de hierarquia. Para aqueles do primeiro campo, a polis era enriquecida por meio de reformas democráticas destinadas a criar isonomia — um ideal político que significava simultaneamente “igualdade na lei” e uma distribuição genuinamente igualitária do poder político.

Os pensadores conservadores defenderam uma forma alternativa de “igualdade geométrica” que definiram como eunomia. Aqui, o princípio orientador era que os homens são desiguais por natureza e que aqueles que fazem contribuições proporcionalmente maiores para a polis deveriam receber proporcionalmente mais responsabilidade por seu funcionamento.

A última doutrina provou ser extremamente importante para Platão como um jovem aristocrata crescendo durante os horrores da Guerra do Peloponeso. Testemunhando a tomada de decisões em massa durante a guerra, Platão, como seus parentes maternos, chegou à conclusão de que a democracia estava cheia de bajuladores e ignorantes, que governavam por caprichos irracionais em vez de conhecimento genuíno.

Ele assumiu ainda que a democracia perturbava a ordem natural das coisas, pois permitia que homens inferiores controlassem seus superiores, muitas vezes com consequências desastrosas. De fato, a depravação da democracia ateniense foi confirmada por Platão quando ela executou seu grande mentor Sócrates em 399 aC. No entanto, quando tiveram a chance de substituir essa democracia, os associados de Platão se mostraram não menos depravados, assassinando seus oponentes e destruindo o estado de direito.

Para Platão, isso era evidência de degeneração moral em todo o estado. Também exigia uma base inteiramente nova para a organização política — uma que estaria enraizada nos primeiros princípios divinos da realidade última. Foi para realizar essa tarefa que Platão empreendeu sua obra mais famosa, A República.

A teoria das formas

Os primeiros diálogos de Platão usam seu mestre Sócrates para destacar a ignorância das massas. Sócrates normalmente envolve um colega ateniense em um processo de elenchus, um processo de questionamento e resposta que expõe o erro em sua explicação de senso comum, permitindo que os interlocutores se aproximem da verdade. No entanto, os resultados muitas vezes levam à aporia (perplexidade), pois a verdade se mostra indescritível sob o escrutínio do método socrático.

Para escapar dessa perplexidade, Platão recorre em seus diálogos do período intermediário à inspiração divina em sua teoria das formas. Ele argumenta que enquanto o mundo material está sujeito à geração e degeneração, o fundamento último deste mundo – seu primeiro princípio ontológico — é um reino de formas perfeitas, eternas e absolutas. Os fenômenos da vida cotidiana são mais bem compreendidos como manifestações imperfeitas de princípios estruturantes divinamente sancionados, responsáveis pela ordem exibida em todo o cosmos visível.

O conhecimento dessas formas é essencial para entender como um logos inteligente organizou o cosmo visível em uma hierarquia de seres, refletindo a hierarquia das próprias formas. Também é essencial para governar com justiça, pois aqueles que gastam seu tempo contemplando a forma de justiça estarão determinados a ver seu padrão imitado também na sociedade.

Os materialistas jônicos presumiram que a ordem do universo era imanente à própria matéria. Politicamente, isso tinha conotações igualitárias, pois tudo resulta de padrões de necessidade material e não de intervenção divina. Como todos os seres humanos fazem parte dessa necessidade material, não há nada que os diferencie uns dos outros.

Platão, seguindo Pitágoras, rejeita a metafísica do filósofo jônico Anaximandro como incapaz de explicar a óbvia inteligência subjacente ao mundo material. A matéria é básica e desordenada sem uma forma superior para lhe dar estrutura. Esta é a base de sua metafísica reacionária, pois tudo passa a fazer parte de uma hierarquia do ser.

De fato, o diálogo mais famoso de Platão tenta obter justiça na cidade e na alma, fundamentando-a na forma de justiça revelada como divina e eterna. Para conseguir isso, ele cria uma famosa analogia entre a vida interior dos homens e sua vida exterior como cidadãos — entre as relações das partes que constituem suas almas e as relações das classes que constituem sua cidade. Em ambos os casos, a justiça emerge da ordenação proporcional das partes dentro de uma totalidade hierarquicamente estruturada.

Existem seis princípios nesse processo de ordenação que garantem que a justiça emerja: As partes em qualquer todo formam uma unidade, mas não uma igualdade. As partes são desiguais por natureza, mas complementares em função.

  1. A unidade é criada — não é um processo aleatório de necessidade material, mas um processo inteligente alcançado pelo logos por meio do design racional.
  2. A unidade é hierárquica — há partes superiores e inferiores em cada totalidade com base no nível de logos que possuem.
  3. As partes superiores devem governar as partes inferiores — elas têm mais capacidade natural em virtude de sua razão, mas devem governar para o bem da totalidade.
  4. As partes superiores são proporcionalmente mais importantes do que as partes inferiores, mas todas as partes devem estar juntas em proporções matematicamente harmoniosas.
  5. Esse processo é moralmente bom e ontologicamente ótimo — ele permite que as partes alcancem seu potencial sendo tão boas e racionais quanto possível.

Variedade de naturezas

A primeira tarefa de Platão é aplicar essa estrutura às relações na cidade. Para conseguir isso, ele constrói um experimento mental — uma cidade-estado ideal — com a ajuda de seus dois interlocutores aristocráticos, Glaucon e Adeimantus.

A primeira suposição de Platão é a mais importante. Ele assume que a natureza faz homens e mulheres de diferentes qualidades e que essas diferenças naturais significam que a sociedade deve ser composta de classes separadas, cada uma com seu próprio papel dentro de uma totalidade harmoniosa. Sua discussão inicialmente se concentra nos benefícios da especialização econômica, argumentando que “pessoas diferentes são inerentemente adequadas para atividades diferentes, pois as pessoas não são particularmente semelhantes umas às outras, mas têm uma grande variedade de naturezas”.

Nesse contexto, Platão parte da maioria dos cidadãos que passam seus dias em diferentes ocupações. Seu trabalho fornecerá recursos para a polis, mas, diferentemente dos fazendeiros hoplitas da Atenas democrática, eles não serão responsáveis por nenhuma atividade militar. Platão imagina um exército totalmente profissional, livre das exigências do trabalho manual, seguindo o modelo de Esparta.

No entanto, ele também assume uma divisão adicional dentro dos auxiliares para garantir que aqueles que têm um “amor filosófico ao conhecimento” se tornem o elemento racional dentro do estado, enquanto aqueles que são naturalmente corajosos recebem orientação dos próprios guardiões. Isso nos deixa com uma classe de produtores, uma classe de auxiliares e uma classe de guardiões. Logo fica claro que o cerne do argumento de Platão não é sobre a especialização econômica, mas sim para erigir um sistema de classes rígido, com a maioria excluída do acesso à tomada de decisões políticas e aos meios de violência.

Historicamente, os aristocratas guerreiros tendiam a usar seu controle da violência para promover seus próprios interesses seccionais. Mas Platão acredita que isso pode ser evitado se aqueles com as naturezas mais racionais treinarem os auxiliares para trabalhar dentro dos limites adequados — para mostrar coragem e ferocidade ao enfrentar o inimigo, mas gentileza e honra ao lidar com seus concidadãos.

Divisão do trabalho

Neste ponto, Platão apresenta o argumento político fundamental da República, que é que uma comunidade harmoniosa só pode surgir quando há proporcionalidade dentro da totalidade social, com todas as três classes trabalhando juntas para o bem do todo. Organizada pela sabedoria dos guardiões, a cidade ideal exibe uma forma de ordem hierárquica que permite que todas as partes alcancem seu potencial.

A sabedoria dos guardiões será complementada pela coragem dos guerreiros. Os trabalhadores demonstrarão moderação ao aceitar que não têm nada a ver com governar, enquanto seus superiores agirão com moderação, garantindo que seu governo seja do interesse de todos. O resultado geral exibirá justiça e moralidade, pois cada parte recebe a quantidade de honra e responsabilidade compatível com sua habilidade natural e treinamento social:

Quando cada uma das três classes — os que trabalham para viver, os auxiliares e os guardiões — desempenha sua própria função e faz seu próprio trabalho... então isso é justiça e torna a comunidade moral.

Aceitando as quatro virtudes cardeais da cidade-estado ateniense, Platão deu a elas um toque aristocrático. Para o cidadão ateniense, todas as quatro virtudes constituem a excelência de seu caráter. Para Platão, por outro lado, a sabedoria é possuída apenas por uma classe de cidadãos, a coragem por outra.

Esses dois grupos compõem as classes dominantes, com moderação e justiça formadas em torno de um pacto entre governantes e governados. Os membros de uma classe aceitarão sua sujeição, enquanto os membros da outra os governarão com justiça.

O próximo passo no argumento é traçar uma analogia entre a cidade que funciona bem e a alma que funciona bem. Tendo mostrado que uma sociedade justa contém três classes organizadas em uma totalidade hierárquica, Platão insiste que existem três partes análogas à alma, com a razão refletindo o papel dos guardiões, a paixão o dos auxiliares e o desejo o dos trabalhadores.

O argumento central em sua discussão sobre o estado é que a justiça requer que todas as três classes trabalhem juntas. Aqui encontramos Platão argumentando que uma alma bem ordenada só pode florescer quando cada uma de suas partes faz sua função apropriada e permite que as outras façam o mesmo.

Razão e paixão

A razão, para Platão, é a faculdade mais elevada da alma humana. É a ligação da alma com a inteligência divina e, como tal, é a única parte capaz de compreender o bem do todo. Seu papel é ordenar as partes em relações proporcionais para que a bondade surja.

Para conseguir isso, deve alistar as paixões como seu leal auxiliar — como seu impulso emocional — para garantir que cada ser humano possa viver uma vida bem ordenada. As pessoas racionais recrutam com sucesso suas paixões para garantir que apenas aqueles desejos que facilitam seu florescimento de longo prazo (eudaemonia) serão atendidos. O desejo desempenha o papel do trabalhador na analogia de Platão, como a faculdade mais baixa, mais inferior e mais numerosa dentro da alma.

Nesse esquema, os desejos bem regulados têm seu devido lugar na vida bem vivida. No entanto, quando não são controlados, os desejos têm o potencial de ultrapassar seus limites, minando a proporcionalidade e lançando uma totalidade harmoniosa na desordem. Desejos indisciplinados, como trabalhadores indisciplinados, “tentam dominar e governar coisas sobre as quais não estão equipados por seu status hereditário para governar e, assim, mergulhar toda a vida de todos no caos”.

Neste ponto, as duas partes da analogia de Platão podem ser alinhadas harmoniosamente. A natureza faz diferentes tipos de pessoas com diferentes tipos de almas. Aqueles com as almas mais racionais e a educação correta terão sabedoria suficiente para organizar suas próprias almas — e as classes na polis — em relações matematicamente proporcionais modeladas no padrão de justiça evidente nas formas.

Aqueles que carecem de sabedoria suficiente e treinamento social ainda podem fazer sua parte, permitindo que os guardiões moderem desejos indisciplinados e tomem decisões políticas para o bem de todos. Em sua essência, esta é uma versão sofisticada da eunomia de Sólon mencionada acima.

Platão aceitou a centralidade da igualdade na polis democrática, mas mais uma vez deu a ela um toque aristocrático. Homens que contribuem proporcionalmente mais devem ser recompensados com proporcionalmente mais. Tratar homens iguais em capacidade como iguais é justiça — todo o resto é injustiça.

Metafísica contra a democracia

O filósofo neoconservador Leo Strauss certa vez descreveu A República como “a acusação mais dura possível contra a democracia reinante... que já foi proferida”. Strauss também não era democrata, mas seu argumento é bem feito quando visto à luz da metafísica de Platão.

Enraizando sua análise na natureza do divino, Platão argumenta que a democracia representa uma tentativa desastrosa de derrubar a ordem hierárquica da própria realidade. Distinções entre superior e inferior, melhor e pior, estão entretecidas no tecido da realidade — uma realidade que também é matemática em sua estrutura, contendo relações proporcionais entre suas partes.

A justiça depende de as diferentes partes receberem o que lhes é devido, com relações matematicamente proporcionais entre a hierarquia das formas, a hierarquia dos cidadãos e a hierarquia dos constituintes da alma. A justiça no estado exige a distribuição de bens políticos relevantes para que quem mais contribui receba mais em troca.

Platão contrapõe esse modelo à democracia, que insiste em tratar os homens naturalmente desiguais como se fossem iguais. Isso dá a esses tipos inferiores mais do que eles têm direito moral de receber, destruindo a proporcionalidade que sustenta a justiça e criando o caos em todos os domínios.

As pessoas nas democracias elogiam sua liberdade e igualdade. No entanto, para Platão, isso mascara um servilismo mais profundo, pois homens e mulheres desordenados são empurrados de pilar em poste por desejos que os escravizam. O caos em suas vidas internas é agravado pelo caos em sua cidade-estado. O resultado é a proliferação de bajuladores na vida pública, à medida que os demagogos vendem suas mercadorias entre as massas ignorantes.

Um segundo resultado é a corrupção da filosofia, pois aqueles que não podem esperar entender a natureza das formas, entretanto, invadem o trabalho daqueles que o fazem. Respeitando a ordem hierárquica do universo, o governo aristocrático não apenas expressa a ordem natural das coisas. É moralmente justo e supremamente bom.

Platão, portanto, tornou o domínio de classe universalmente benéfico em uma base tríplice. Ele apresentou a realidade como impregnada de uma razão que opera nas costas das pessoas comuns; apresentou sua própria classe como herdeira dessa razão, uma vez reformada segundo a filosofia; e ele utilizou sua metafísica para santificar a regra de classe como o reflexo de uma justiça cósmica mais profunda.

A República racionaliza a classe como parte da ordem natural das coisas. Sua influência e sucesso duradouros certamente estavam ligados à morte da democracia ateniense, apenas 25 anos após a morte do próprio Platão.

Colaborador

Brian O'Boyle é o autor, com Kieran Allen, de Tax Haven Ireland, Durkheim: A Critical Introduction e Austerity Ireland. Ele leciona economia no St Angela College, National University of Ireland, Galway, e é editor da Irish Marxist Review.

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