26 de janeiro de 2004

Um realista mágico e sua realidade

As formas de escrever sobre o passado, memórias e autobiografias, embora na prática possam se sobrepor, são diferentes.

Perry Anderson

The Nation

Tradução / Como formas de escrever sobre o passado, memórias e autobiografias são empreitadas diferentes, apesar de na prática não se sobreporem. No limite, um livro de memórias pode recriar um mundo ricamente povoado por pessoas, sem contudo falar muito sobre o próprio autor. Uma autobiografia, em compensação, pode assumir a forma de um retrato puro de si, no qual o mundo e os outros aparecem apenas como uma mise-en-scène para a aventura íntima do narrador. Ao recontar sua vida, romancistas já produziram atos de bravura em ambos os gêneros. Entre as obras modernas, To Keep the Ball Rolling [Para Manter a Bola Rolando], de Anthony Powell – quatro volumes agradáveis, embora lacônicos –, é uma obra-prima do primeiro gênero. O breve As Palavras, de Sartre, é talvez o maior exemplo do segundo. Viver para Contar, de Gabriel García Márquez, é classificado como livro de memórias por seus editores, mas há certa dúvida de que, no conjunto, se enquadre nessa categoria. Márquez é, obviamente, um lendário contador de histórias. Além disso, possui uma aguda inteligência autorreflexiva, como podemos observar em Cheiro de Goiaba, em que reproduz suas conversas biográficas com Plinio Apuleyo Mendoza.

Em Viver para Contar, Márquez exerce com comedimento esse outro lado de seus dons. Por opção artística, construiu um livro de memórias mais próximo, na forma, de um romance do que jamais se tenha escrito. Começa com a chegada de sua mãe a Barranquilla, a fim de levar o filho – então com 22 anos – para vender a casa da família em Aracataca, viagem que fez com que se tornasse o escritor que é hoje; e termina com o ultimato escrito por ele durante um voo para Genebra, cinco anos depois, e que transformou uma paixão esquiva de adolescência em sua futura esposa. Entre esses dois coups de théâtre paralelos, o autor rememora sua vida até o momento em que deixou a Colômbia, em 1955, numa narrativa que obedece não aos padrões desordenados da experiência ou da memória, com toda a sua irregularidade, mas às regras de uma composição perfeitamente simétrica. O livro é dividido em oito capítulos de tamanhos praticamente idênticos – um arranjo que corresponde menos ainda à maneira como qualquer vida poderia ser de fato vivida, como que para sublinhar o fato de estarmos diante de outro artifício supremo.

Desde o início de sua carreira, Márquez vem praticando dois estilos de escrita relativamente distintos: a prosa figurativamente carregada, já visível de maneira brilhante em seu primeiro livro de ficção, A Revoada: O Enterro do Diabo, que teve sua publicação rejeitada na época, com a concessão de que era “poética”; e a concisão objetiva de histórias como Ninguém Escreve ao Coronel ou reportagens como Notícia de um Sequestro. Se, tecnicamente, o registro de Viver para Contar fica entre os dois, o tom e o efeito do conjunto – e isso decorre da concepção das memórias – têm a grandeza viva e suntuosa de seus grandes romances. Estamos ali no mundo de Cem Anos de Solidão ou de O General em seu Labirinto, com sua densidade metafórica e seus diálogos típicos: sentenças curtas e sublimes, que funcionam quase como epigramas, de pungência inimitável e ironia bem-humorada.

O que o livro conta é a história da juventude de Márquez na Colômbia. Retratos vívidos de seus pais e avós criam um ambiente familiar dos mais estranhos. Então é mostrada sua infância, até os 8 anos, com o avô na zona bananeira da costa do Caribe; os primeiros dias de escola e a pobreza em Barranquilla, as férias num interior paradisíaco; a subida do rio Magdalena até um liceu nos Andes; o ingresso na universidade em Bogotá; uma descrição em primeira mão dos tumultos apocalípticos na capital após o assassinato do principal político populista do país, Jorge Eliécer Gaitán; o retorno à costa para fugir dos distúrbios; os primeiros anos como jornalista em Cartagena; o entusiasmo literário e a dissipação boêmia em Barranquilla; e, por fim, o trabalho regular como repórter em Bogotá e a ida ao exterior para cobrir a conferência de Genebra, em 1955. Tudo isso com uma grande variedade de incidentes impressionantes, detalhes intrigantes e uma sorte extravagante que poucas obras de ficção seriam capazes de igualar.

No entanto, o resultado não é um Bildungsroman [romance de formação] do autor, cuja personalidade raramente está em foco, mas a recriação de um universo assombroso, a costa caribenha da Colômbia na primeira metade do século XX. Quem acha que a contraparte factual da ficção de Márquez é, na melhor das hipóteses, uma pálida cópia dela pode ficar tranquilo. Uma cena impressionante atrás da outra, um personagem inesquecível atrás do outro, cascatas de gestos que vão além da lógica e coincidências que vão além da razão fazem de Viver para Contar um primo dos grandes romances. Esse primeiro volume é um grande e bem planejado edifício de imaginação literária. É tentador, assim, lê-lo apenas como uma obra de arte, independentemente de seu status de documento biográfico.

Isso, contudo, seria diminuir seu interesse. Para entender o porquê, pode-se compará-lo com as memórias do escritor latino-americano ao qual é mais comumente associado, e que perde somente para ele em fama. Peixe na Água, de Mario Vargas Llosa, publicado há mais de uma década, tem uma estrutura menos convencional. Escrito após a derrota de sua candidatura à Presidência do Peru, em 1990, alterna capítulos sobre a sua infância e a adolescência, e a campanha para liderar o país quando tinha mais de 50 anos – um recurso de contraponto que ele usou mais de uma vez em seus livros de ficção, de Tia Julia e o Escrevinhador até O Paraíso na Outra Esquina. Nesse formato, os três anos de campanha presidencial ocupam mais espaço do que os 22 anos até a idade adulta. Só isso já faz desse um livro de memórias muito diferente do de Márquez. Ainda mais impressionantes, então, são as semelhanças entre suas primeiras experiências, misteriosamente próximas em muitos aspectos.

Ambos os escritores passaram os primeiros anos cruciais da meninice sob o teto de um avô que os adorava, o patriarca da família – um deles um veterano da guerra civil na Colômbia, o outro um fazendeiro e prefeito na Bolívia e no Peru. Os pais, que tinham empregos semelhantes (um era operador de telégrafo, o outro era operador de rádio) e fizeram casamentos semelhantes (contra a vontade da família da noiva, de classe social superior), eram ausentes: um vazio na estrutura emocional da infância, em que mesmo as mães desempenhavam papel secundário. A iniciação sexual veio cedo, em bordéis sobre os quais escrevem com afeição maliciosa. Mais tarde, casaram-se ambos com moças de sua cidade natal. Quando adolescentes, foram enviados contra a vontade para colégios internos pelos pais. Formaram-se com alegria nas províncias e experimentaram a chegada à capital como um infortúnio.

Na universidade, mergulharam numa vida paralela de jornalismo e farras noturnas. Os dois mostraram habilidade para novelas de rádio, inspirados pelo mesmo dramalhão – El Derecho de Nacer, de Félix B. Caignet (sem conotações anacrônicas antiaborto) [No Brasil, exibida no formato de radionovela e telenovela, em diferentes versões, com o título O Direito de Nascer]. Em ambos os casos, a grande descoberta literária da juventude foi Faulkner, cujos romances eles dizem que os marcaram mais fundo do que qualquer outro. Cada um encerra suas memórias no mesmo ponto decisivo, quando o escritor – logo depois de descobrir alguma coisa sobre o interior desconhecido de sua terra (El Chocó e Amazonas) – deixa o país natal em direção à Europa, para nunca mais voltar a fixar residência ali.

Uma série de paralelos desse tipo é um convite para algum futuro Plutarco das letras latino-americanas. Mas o que eles evidenciam, afinal, são os contrastes dos dois romancistas e de suas memórias. Apesar de todas as semelhanças entre as constelações familiares, Vargas Llosa tem – pelo lado materno – uma herança social mais privilegiada, um clã da elite de Arequipa que produziu o primeiro presidente peruano do pós-guerra, Bustamante y Rivero. Classe e cor o situavam mais alto na escala social, naquela que era uma sociedade rigidamente racista, do que um menino mestiço da Colômbia poderia chegar. A educação formal também os separou. Márquez explica quão desafeiçoado era dos estudos na universidade, onde seu pai insistira que cursasse direito e a qual acabou por abandonar. Vargas Llosa, ao contrário, teve um brilhante cursus estudantil e tornou-se assistente do maior historiador de Lima antes mesmo de se formar. A universidade foi uma experiência central para ele, enquanto para Márquez não significou nada. Essa diferença explica por que ele foi para a Europa muito mais cedo, com uma bolsa de estudos em Madri. E também por que, uma vez na Europa, nunca mais a deixou, tendo vivido essencialmente em Paris, Londres e Madri, viajando a passeio para Lima. Márquez, ao contrário, logo retornou à América Latina, terminando por se estabelecer no México.

As trajetórias divergentes têm seus correlatos atmosféricos no trabalho de cada um. Na vida dos autores, a história de seu país – medida em termos de matança, repressão, frustração, corrupção – dificilmente poderia ser mais sinistra, e isso, é claro, encontra expressão em seus romances. Mas os retratos que Márquez faz de sua terra natal, mesmo em seus piores momentos, são repletos de um afeto lírico, um amor imutável, que não têm equivalentes no mundo de Vargas Llosa, no qual a relação do escritor com sua terra de origem é sempre tensa e ambígua.

A razão dessa diferença pode ser encontrada em parte em suas situações individuais. Se, por um lado, a configuração das famílias de origem era de uma similaridade impressionante, a voltagem emocional era oposta. A mãe de Márquez, retratada de forma adorável por ele, era claramente uma mulher de grande força de caráter, capaz de administrar um marido determinado, ainda que inconstante, e onze crianças, tanto na prosperidade como na penúria. O pai de Vargas Llosa, que sem uma palavra abandonou a esposa no quinto mês de gestação e, dez anos depois, apareceu inesperadamente para retomá-la e cooptá-lo, foi, em contraste, um pesadelo traumático: temido pela esposa e odiado pelo filho. Sem nenhum apego por sua terra natal, acabou por emigrar para os Estados Unidos e morreu como faxineiro em Pasadena.

Mesmo o melodrama da primeira experiência sexual dos dois escritores, com roteiros conhecidos de honra e ultraje latinos, reflete esse contraste. Quando Vargas Llosa se casou com a tia – naquela família semidesenraizada, não por coincidência uma boliviana –, seu pai sacou um revólver, denunciou-o à polícia em Lima e ameaçou matá-lo com cinco tiros, como um cão raivoso. García Márquez, apanhado in flagrante com a esposa negra de um policial do interior, também teve de encarar uma pistola, assim como as palavras: “Traição na cama se resolve na bala.” Mas o sargento que sofreu a afronta deixou o menino apavorado escapar com a humilhação – em gratidão a um serviço médico prestado pelo pai de Márquez, e quando vistos pela última vez, bebiam juntos.

As duas cenas, composições de um machismo teatral, ilustram duas sociedades diferentes. A poesia e a humanidade do episódio colombiano capturam o espírito geral de Viver para Contar, assim como os laços de seu autor com a comunidade em que cresceu. Já o título de Peixe na Água inverte a história que na verdade conta. Isso é expresso de maneira mais precisa na primeira edição, intitulada Um Peixe Fora d’Água – uma inversão que não é a menos importante das estranhezas das memórias de Vargas Llosa como um todo. Embora escrito num momento de aguda decepção política, e inevitavelmente um tanto descolorido por ela, o livro é atravessado pelo horror a boa parte da vida peruana – social e cultural, bem como política –, que expressa de modo claro sentimentos havia muito existentes.

As consequências literárias dessa diferença não são as que se esperam. O rótulo de “realismo fantástico” – hoje desgastado pelo uso – é habitualmente atribuído aos romances de Márquez. Nunca se ajustou bem a Vargas Llosa, que não reconhece o adjetivo. “Tenho uma fraqueza invencível pelo assim chamado realismo”, observa ele em Peixe na Água. Um dos contrastes mais significativos da ficção de ambos decorre dessas opções distintas – ou talvez as dite. O grosso do trabalho de Vargas Llosa situa-se no presente peruano, contemporâneo à sua própria experiência. A principal exceção são os deslocamentos, não apenas no tempo, como também no espaço – o Brasil de A Guerra do Fim do Mundo ou a França e os mares do sul de O Paraíso na Outra Esquina.

Em compensação, nenhum dos grandes romances de García Márquez representa a época em que ele próprio se tornou escritor. Macondo desaparece na Grande Depressão. O patriarca pertence ao mundo rústico de Juan Vicente Gómez. Os tempos do cólera são vitorianos. O general expira com o fim da Restauração. A modernidade é alérgica à mágica. Os poderes de Márquez sempre necessitaram de uma volta ao passado para serem exercidos com plena liberdade.

É claro que, na mente do público, o que provavelmente distingue os dois escritores é a imagem convencional de suas posições políticas – García Márquez como amigo de Fidel Castro, Vargas Llosa como devoto de Margaret Thatcher, figuras respectivamente da esquerda ecumênica e da direita liberal. Tal polaridade existe, é claro. Mas, ao olhar para a escrita em vez de para as filiações, percebemos um contraste mais impressionante. Vargas Llosa foi desde cedo, e assim permanece, um animal político. Como estudante em Lima durante a ditadura de Odría, foi um ativo militante comunista, levado para o partido por Héctor Béjar, que mais tarde, nos anos 60, comandaria a primeira guerrilha peruana; ao chegar à Europa, mergulhou na teoria marxista na qualidade de entusiasta da Revolução Cubana. No começo dos anos 70, quando rompeu com a esquerda por causa de Cuba, não se recolheu à literatura simplesmente, como outros, mas tornou-se um admirador apaixonado de Hayek e Friedman, e um dos principais defensores do capitalismo de livre mercado na América Latina. Sua candidatura à Presidência do Peru, com o apoio da direita tradicional, não foi um capricho repentino, mas consequência de uma década de atividade pública consistente. Logicamente, sua ficção – desde o primeiro retrato da academia militar em A Cidade e os Cachorros, passando pelas conspirações revolucionárias em Conversa na Catedral e História de Mayta, até A Festa do Bode – usa os conflitos políticos contemporâneos diretamente como tema organizador.

Esse nunca foi o caso de García Márquez, e Viver para Contar ajuda a explicar o porquê, apesar de permanecer algum mistério. Ele retrata um jovem, vindo da costa para o altiplano durante a adolescência, tão absorvido pelos temas literários – primeiro e acima de tudo pela poesia – a ponto de não ter praticamente nenhum interesse pelos assuntos públicos. A Colômbia já se encontrava num estado de grande tensão política em seus últimos anos de escola e, assim que chegou à universidade, o país sucumbiu à guerra civil. Em seu capítulo mais poderoso, Viver para Contarpinta um panoramaao estilo de Goya do terremoto social que engolfou Bogotá quando Gaitán, seu político mais popular, foi assassinado, em 1948. De sua pensión a três quarteirões de distância, García Márquez correu para a cena, chegando a tempo de presenciar o linchamento do assassino e a irrupção de uma maré de tumultos e saques que varreu a cidade. Mas sua reação, tal como se recorda, foi simplesmente voltar à pensão para terminar o almoço. Encontrando-o na rua, um parente mais velho – o qual se tornou um dos líderes da junta revolucionária que tentou direcionar os tumultos para um levante contra o governo conservador – instigou-o a participar dos protestos estudantis contra o assassinato. Em vão. Aterrorizado com a destruição e as mortes em massa nos dias seguintes, quando o Exército entrou na cidade para restaurar a ordem, seu único desejo era fugir.

A violênci aque devastou a Colômbia na década seguinte, opondo os liberais aos conservadores que se mantinham no poder, ceifou 300 mil vidas – uma catástrofe pior do que qualquer outra que o Peru tenha sofrido. Esse foi o pano de fundo histórico do início da carreira de Márquez como jornalista e escritor. Mas ele parece ter continuado misteriosamente intacto. Apesar de ser colunista regular de um diário de Cartagena, escreve que “no meu ofuscamento político da época, eu nem sabia que a lei marcial havia sido imposta de novo no país”. Em Barranquilla, pouco depois, “a verdade de minha alma era que o drama da Colômbia me atingia como um eco remoto, e me comoveu apenas quando transbordou em rios de sangue”. Essa confissão nos desarma, mas a distinção não se sustenta: o drama da Colômbia era o derramamento de sangue. Parece que a realidade foi que o jovem literato, inteiramente envolvido em descobertas e experimentos da imaginação, de fato ignorava o destino de seu país naqueles anos.

Era mais fácil agir assim nas cidades costeiras, já que o litoral do Caribe, embora não estivesse imune às chacinas sectárias, foi poupado do pior da violência que grassava nas fronteiras cafeeiras das terras altas. A identificação de Márquez com sua região – “o único lugar em que realmente me sinto em casa” – conferiu à sua escrita uma intensidade luminosa, mas parece também tê-lo protegido, ou cegado, dos padrões e forças mais amplos da nação. “A Colômbia sempre foi um país com uma identidade caribenha que se abria para o mundo pelo cordão umbilical do Panamá”, escreve. “Sua amputação forçada nos condenou ao que somos hoje: uma nação com uma mentalidade andina, cujas circunstâncias favorecem que o canal entre os dois oceanos pertença não a nós, mas aos Estados Unidos.”

O lamento é palpável e significativo. Não é exagero dizer que as terras elevadas dos Andes, que formam o cerne da sociedade colombiana, permanecem uma espécie de livro fechado para Márquez. Não há dúvida de que vem daí, em parte, o silêncio em Viver para Contar a respeito da guerra civil durante a qual se passa boa parte da história.

A única aventura de Márquez na história contemporânea, Notícia de um Sequestro, humana e cativante como relato do episódio final da carreira de Pablo Escobar, confirma certo mal de altitude intelectual. Falta-lhe a compreensão do contexto social da guerra da droga na Colômbia ou mesmo uma visão crítica da oligarquia que a comandava. Lendo o livro, ficamos tentados a achar que, no fundo, Márquez permanece tão apolítico quanto era no início.

Isso é um erro, como mostra a sequência de Viver para Contar. Mas tanto suas memórias quanto sua ficção sugerem uma mente com uma maravilhosa sensibilidade intuitiva para o temperamento, as cores e os detalhes do mundo em que cresceu, sem muita consideração pela definição de suas relações ou estruturas. Por esse relato, é difícil situar com precisão a família de Márquez na escala social. Seu avô, apesar de ser representado como um patriarca com alguma substância, parece não ter sido originalmente mais do que um artesão, ainda que ourives; a base econômica da lendária casa de Aracataca – o pai é descrito como alguém que pediu a mão de uma “filha de família rica” – é obscura. Os altos e baixos das venturas do pai, da extrema pobreza ao conforto modesto – aparentemente sem relação com a proliferação dos onze filhos –, são apenas um pouco menos incompreensíveis. Com o passar do tempo, as conexões entre o clã se revelam: um tio na polícia de Cartagena, capaz de arranjar empregos; um professor em Bogotá, dono de uma grande livraria. Cabe a nós tentar adivinhar como se encaixava o jovem Gabito nessa hierarquia complicada de classe e cor.

O que dizer, finalmente, do autorretrato que emerge dessas memórias? Ele é curiosamente oblíquo. Márquez oferece um relato abrangente do desenvolvimento de sua vocação literária, do tempo de escola até mais ou menos seus 20 anos, e muitos incidentes cativantes ou encontros arrebatadores em sua jornada rumo à maturidade. Mas não está tão claro como ele era enquanto menino ou jovem. A autoconfiança que seu avô lhe deu na infância parece nunca tê-lo abandonado, salvo nas brevíssimas turbulências da adolescência. Mas há poucos sinais de ambição deliberada. Ele se fecha em sua timidez, mas obviamente era companhia animada, já que nunca lhe faltaram amigos. Mas não revela o quanto se empenhou em procurá-los ou até que ponto era visto apenas como um boêmio inconsequente.

Nas transações com o sexo oposto, as iniciativas de sedução partem na maioria das vezes das mulheres. Apesar de dizer que quando voltou a Barranquilla “tinha a timidez de uma codorna, que eu tentei contrabalançar com arrogância insuportável e franqueza brutal”, ele parece ter se dado bem em geral com parentes mais velhos e amigos, em todos os lugares por que passou. Com exceção de um conflito com o pai sobre a escolha de sua carreira, nenhuma grande discussão marca esse progresso. Ele cita apenas ocasionalmente os lados mais vulcânicos de sua personalidade – “acessos de raiva sem nenhum motivo”, “birras pueris” –, mas não oferece mais detalhes.

Em vez de fazer uma autoanálise detida, Márquez oferece um espelho generoso aos seus contemporâneos. Viver para Contar contém uma abundante galeria de parentes, amantes, colegas, mentores e aliados, capturados num parágrafo ou em uma ou duas páginas. Isso basta para deixar impacientes os leitores anglo-saxões, mas é uma lealdade atraente, que distingue suas memórias das de Vargas Llosa. Um Peixe na Água, pensado desde o início para um público internacional, é mais tênue nesse sentido. As memórias de Márquez são destinadas aos leitores colombianos antes de tudo.

Elas anunciam seu princípio de construção no início, num manifesto gravado como epígrafe na abertura do livro: “A vida não é o que se viveu, mas o que se lembra, e como isso é lembrado para ser contado.” Tomado literalmente, é um convite à memória seletiva, com todas as facilidades de uma amnésia conveniente. Não há motivo para supor que Márquez tenha abusado de sua máxima. Mas é sempre legítimo perguntar em que medida as memórias correspondem aos fatos. Independentemente de quanta licença concedamos a um artista em sua reconstrução do passado, não valorizaríamos do mesmo modo o resultado se tudo se revelasse imaginário.

Nesse caso, a narrativa dá ensejo a alguns pontos de interrogação na margem. Sexo, política, literatura: cada um deixa uma penumbra de incerteza em seu entorno. Comentando “os modos de caçador furtivo” de seu pai, Márquez diz que houve um período em que ficou tentado a imitá-lo, mas logo descobriu que se tratava da “mais árida forma de solidão”. Nada em seu relato corresponde a essa breve afirmação. Em Cheiro de Goiaba, ele diz que, quando estava na universidade, pertenceu a uma célula do Partido Comunista Colombiano. Não há vestígio disso emViver para Contar.

Entre os autores que o formaram, ele enfatiza Faulkner. Mas a afirmação de que “cada sentença deve ser responsável pela estrutura toda” e o uso celestial do adjetivo (ele diz ter aversão a advérbios), que é a marca de sua prosa, derivam de Borges, que ele pouco menciona. A saída do grupo de Barranquilla que produzia a revista literária Crónica, cadinho de seu primeiro florescimento como escritor, é apresentada como uma partida amigável, sem dificuldades ou ressentimentos. No entanto, entrega que renunciou ao cargo de editor num acesso de raiva algum tempo antes, por razões não especificadas. A ruptura pode ter sido mais dolorosa do que ele sugere.

Tais discrepâncias têm importância? A epígrafe as absolve. Mas uma vida e uma história nunca são a mesma coisa, e os interstícios entre elas – mais largos ou mais estreitos – são inevitavelmente parte do interesse de cada uma. Na luz resplandecente dessas memórias, há um brilho tênue à distância, próprio da latitude.

Sobre o autor

Perry AndersonPerry Anderson teaches history at the University of California, Los Angeles.

1 de janeiro de 2004

Para uma crítica da categoria de totalitarismo

Domenico Losurdo



Uma categoria polissêmica

Tradução / Em 1951, no momento que Hanna Arendt publicou The Origins of Totalitarianism, o debate sobre o totalitarismo vinha se travando havia uma década. Entretanto, o significado do termo ainda não estava bem definido. Como orientar-se naquilo que, à primeira vista, aparecia como um labirinto? Aqui, faço abstração das ocorrências em que o adjetivo “totalitário”, mais ainda do que o substantivo, tem uma conotação positiva, concernente à capacidade atribuída a uma religião ou a qualquer ideologia ou visão do mundo de dar resposta a todos os múltiplos problemas resultantes de uma dramática situação de crise e às próprias indagações sobre o sentido da vida, que empenham o homem em sua totalidade. Ainda em 1958, embora rejeitando o “totalitarismo legal”, isto é, imposto pela lei, Barth celebrava nos seguintes termos a dinâmica universalista e a eficácia onisciente da “mensagem” cristã: “Totalitária, na medida em que visa ao todo,em que exige cada homem e o exige totalmente para si, também é a livre graça do evangelho”. [1]

Concentremo-nos sobre o debate mais propriamente político. Podemos distinguir dois filões principais. Na Dialética do iluminismo, Horkheimer e Adorno se ocupam bem pouco da URSS. Além do Terceiro Reich, o discurso versa sobre o “capitalismo totalitário”: “Primeiro, só os pobres e selvagens estavam expostos às forças capitalistas. Mas a ordem totalitária estabelece completamente, em seus direitos, o pensamento calculista e atém-se à ciência enquanto tal. Seu cânone é sua própria eficiência cruel” [2]. Aqui, as etapas preparatórias do nazismo são identificadas na violência perpetrada pelas grandes potências ocidentais contra os povos coloniais e aquela consumada, no próprio coração das metrópoles capitalistas, contra os pobres e os marginalizados reclusos nos abrigos de desempregados. Não é distinta a orientação de uma autora também influenciada pelo marxismo. Se, por vezes, aproxima a Alemanha hitleriana e a União Soviética staliniana, Simone Weill denuncia o horror do poder total, do totalitarismo, com o olhar, sobretudo, fixado na dominação colonial e imperial: “A analogia entre o sistema hitleriano e a antiga Roma é surpreendente a ponto de levar a acreditar que, após dois mil anos, só Hitler teria sabido copiar corretamente os romanos” [3]. Entre o Império romano e o Terceiro Reich coloca o expansionismo desenfreado e sem peias de Luís XIV: “O regime estabelecido por ele já merecia, pela primeira vez na Europa depois de Roma, a designação moderna de totalitário”; “a atroz devastação do Palatinato (da qual são culpadas as tropas conquistadoras francesas) sequer teve a desculpa das necessidades da guerra” [4]. Procedendo retrospectivamente em relação à antiga Roma, Weill efetua uma leitura em registro proto-totalitário do episódio do Antigo Testamento da conquista de Canaã e do aniquilamento de seus habitantes.

É hora de olhar um pouco os autores de orientação liberal. Na reconstrução da gênese da “democracia totalitária”, Talmon chega à seguinte conclusão:

Se [...] o empirismo é aliado da liberdade e o espírito doutrinário é, ao contrário, aliado do totalitarismo, é provável que o conceito de homem como abstração, independentemente das classes históricas [os diversos agrupamentos] a que pertence, se torne um poderoso meio de propagação do totalitarismo. [5]

Claramente, estão postas em acusação a Declaração dos Direitos do Homem e a tradição revolucionária francesa em seu conjunto (não somente Rousseau, mas também Sieyès).

Passemos, agora, a Hayek: “As tendências que culminaram na criação do sistema totalitário não estavam confinadas nos países que, depois, sucumbiram a ele” e elas não põem em causa somente os movimentos comunista e nazi-fascista. Em particular, no que diz respeito à Áustria:

Não foram os nazistas, mas os socialistas que iniciaram o agrupamento das crianças, desde a mais tenra idade, em organizações políticas, de modo a estarem seguros de que elas cresceriam como bons proletários. Não foram os fascistas, mas os socialistas que pensaram, em primeiro lugar, em organizar esportes, jogos, partidas de futebol e excursões em clubes do partido cujos membros não teriam sido infectados por pontos de vista distintos. Foram os socialistas que primeiro insistiram no fato de que estes membros deveriam distinguir-se dos demais pelo modo de se saudarem e de se dirigirem uns aos outros.

Assim, Hayek pode concluir que “a idéia de um partido político que abarca todas as atividades de um indivíduo do berço ao túmulo” e que difunde uma Weltanschatuung [a] de conjunto é uma idéia que remete, em primeiro lugar, ao movimento socialista. Sobre esse movimento age uma tradição de mais longa data, que se reconhece – como observará, mais tarde, o patriarca do neoliberalismo – na “democracia social ou totalitária”. [6] De todo modo, “controle econômico e totalitarismo” aparecem estreitamente entrelaçados. [7]

Portanto, se de um lado os acusados são principalmente (ainda que não exclusivamente) o colonialismo e o imperialismo, do outro o réu principal (embora não exclusivo) da polêmica é constituído pela tradição revolucionária que de 1789 conduz a 1917, passando pela reivindicação de 1848 do direito ao trabalho e da “democracia social ou totalitária”.

Nesse ponto, podemos fazer intervir uma distinção ulterior. O totalitarismo, por assim dizer, de “esquerda”, pode ser criticado a partir de dois pontos de vista sensivelmente diferentes. Ele pode ser deduzido da infeliz ideologia organicista atribuída a Marx ou a Rousseau, ademais de Sieyès (esta é a abordagem de Talmon e Hayek). Ou então, pode ser referido às características materiais dos países em que o totalitarismo comunista afirmou-se. É desse modo que argumenta Wittfogel: “O estudo comparativo dos poderes totais” – como o diz o subtítulo de seu livro – demonstra que esse fenômeno manifesta-se, sobretudo no Oriente, no âmbito de uma “sociedade hidráulica”, caracterizada pela tendência em direção do controle total dos recursos hídricos necessários para o desenvolvimento da agricultura e a própria sobrevivência dos habitantes. Nesse contexto, bem longe de ser o progenitor do totalitarismo comunista, Marx é seu crítico ante litteram [b], como o mostram sua análise e suas denúncias do “despotismo oriental”, em que emprega uma categoria evocada por Wittfogel já no título de seu livro. [8]

Destes pressupostos decorre, pois, que o “poder total” não remete exclusivamente ao século XIX. Pode-se então pôr em relevo uma distinção ulterior. Se Arendt insiste na novidade do fenômeno totalitário, Popper chega a uma conclusão oposta, segundo a qual o conflito entre a “sociedade aberta e seus inimigos” parece ser eterno: “Aquilo que, hoje, chamamos totalitarismo pertence a uma tradição que é tão velha ou tão jovem quanto nossa própria civilização”. [9]

Finalmente, vimos que o totalitarismo pode ser denunciado olhando-se principalmente para a direita ou para a esquerda, mas não faltam casos em que a denúncia provém de ambientes e de personalidades ligadas ao nazi-fascismo e dirigese exclusivamente a seus inimigos. Em agosto de 1941, no decorrer da campanha, ou melhor, da guerra de extermínio contra a União Soviética, e diante da encarniçada e imprevista resistência que ela provocou, o general alemão Halder a explica pelo fato de que o inimigo preparou-se acuradamente para a guerra “com a completa falta de escrúpulos própria de um Estado totalitário” [10]. No mesmo sentido, Goebbels, mesmo sem lançar mão do termo “totalitarismo”, explica essa inesperada e inaudita resistência encontrada pelo exército invasor no Leste pelo fato de que o bolchevismo, cancelando qualquer resquício de livre personalidade, “transforma os homens em robôs” e em “robôs de guerra”, em “robôs mecanizados” [11]. Por fim, a acusação de totalitarismo pode golpear até os inimigos ocidentais do Eixo. Em 1937, a aspiração da Itália fascista a desenvolver também um império colonial confronta-se com a hostilidade, em primeiro lugar, da Inglaterra, que passa a ser acusada por sua “gélida e totalitária discriminação contra tudo aquilo que não seja simplesmente inglês”. [12]

A virada da guerra fria e a intervenção de Hannah Arendt

A partir da publicação das Origens do totalitarismo, as polissemias do debate aqui delineado em grandes linhas tenderam a diluir-se. Ainda em maio de 1948, Arendt denunciava o “desenvolvimento de métodos totalitários” em Israel, referindose ao “terrorismo” e à expulsão e deportação da população árabe [13]. Três anos depois, não havia mais espaço para críticas dirigidas contra o Ocidente atual. Em nossos dias, mais do que nunca, a única tese politically correct [c] é aquela que tem por alvo sempre e somente a Alemanha hitleriana e a União Soviética.

É a tese que triunfou a partir e no decorrer da guerra fria. Em 12 de março de 1947, Truman proclama a “doutrina” que toma seu nome: depois da vitória alcançada na guerra contra a Alemanha e o Japão, abre-se uma nova fase na luta pela causa da liberdade. Agora, a ameaça provém da União Soviética, “regime totalitário imposto aos povos livres, mediante agressão direta ou indireta, minando os fundamentos da paz internacional e, portanto, a segurança dos Estados Unidos”. [14]

Aqui, o alvo é delimitado com clareza: não se trata de virar as costas em relação ao século XX; de outro lado, não faz sentido golpear também os socialistas, junto com os comunistas: por mais graves que possam ter sido suas responsabilidades no passado, eles passaram a ser, no mais das vezes, aliados do Ocidente. Mas uma abordagem similar à assumida por Wittfogel seria um desvio por duas razões. A categoria de “despotismo oriental” dificilmente poderia legitimar a intervenção dos EUA, por exemplo, na guerra civil desencadeada na China onde, logo após a proclamação de sua doutrina, Truman se empenha em sustentar Chiang Kai-shek [15]. Por outro lado, a insistência sobre as condições objetivas, que explicariam a afirmação do “poder total”, tornaria mais difícil e menos agressiva a acusação feita aos comunistas. É por essa razão que termina por prevalecer a abordagem dedutivista. A guerra fria se configura como uma guerra civil internacional que dilacera transversalmente todos os países: para o Ocidente, o melhor meio de enfrentá-la é apresentar-se como o campeão da luta contra o novo totalitarismo, caracterizado como a conseqüência necessária e inevitável da ideologia e do programa comunista.

Nesse contexto, como colocar a intervenção de Arendt? Logo após sua publicação, Origens do totalitarismo foi submetido a dura crítica por parte de Golo Mann:

As duas primeiras partes da obra tratam da pré-história do Estado total. Mas aqui o leitor não encontrará aquilo que está acostumado a encontrar em trabalhos semelhantes, isto é, pesquisas sobre as peculiaridades históricas da Alemanha ou da Itália ou da Rússia [..] Pelo contrário, Hannah Arendt dedica dois terços de seu esforço ao anti-semitismo e ao imperialismo e, sobretudo, ao imperialismo de matriz inglesa. Não consigo segui-la [..] Somente na terceira parte, em vista da qual todo o resto foi escrito, Hannah Arendt parece abordar realmente o tema. [16]

Portanto, estariam substancialmente fora do tema as páginas dedicadas ao anti-semitismo e ao imperialismo, embora se trate de explicar a gênese de um regime como o hitleriano, que declaradamente ambicionava construir na Europa central e oriental um grande império colonial fundado sobre o domínio de uma pura raça branca e ariana, após ter liquidado de uma vez por todas o bacilo judeu da subversão, que alimentava as revoltas dos Untermenschen [d] e das raças inferiores.

Todavia, Golo Mann aponta um problema real. Como se harmoniza a última parte do livro de Arendt que tem por foco exclusivo a URSS staliniana e o Terceiro Reich, com as duas primeiras, que desenvolvem um requisitório contra a França (pelo anti-semitismo) e, em particular, contra a Inglaterra (pelo imperialismo)? Este último é o país que teve um papel central e funesto no decurso da luta contra a Revolução Francesa: Burke não se limitou a defender a nobreza feudal no plano interno, mas apontou “o princípio de tais privilégios até incluir neles todo o povo britânico, elevado assim ao estatuto de aristocracia entre as nações”. É aí que se deve buscar a gênese do racismo, “a arma ideológica do imperialismo”. [17] Entende-se agora que estas torpezas ideológicas se afirmaram em particular na Inglaterra, obcecada “pelas teorias sobre a hereditariedade e seu equivalente moderno, a eugenia”. Se a atitude de Disraeli não difere da de Gobineau, é porque temos que lidar com “dois devotos defensores da ‘raça’” [18], mas somente o primeiro conseguiu ascender a posições de tal poder e de tal prestígio. Ademais, é sobretudo nas colônias inglesas que começa a ser teorizado e imposto às “raças submetidas” um poder sem os limites que ele conhece nas metrópoles capitalistas; já no âmbito do Império britânico emerge a tentação dos “massacres administrativos” como instrumento de manutenção da dominação [19]. Esse é o ponto de partida necessário para se compreender a ideologia e a prática do Terceiro Reich. De Lord Cromer vem traçado um retrato que não está isento de analogias com aqueles sucessivamente dedicados a Eichmann: a banalidade do mal parece encontrar uma primeira encarnação, mais débil, no “burocrata imperialista” britânico, que “na fria indiferença, na genuína falta de interesse pelos povos administrados”, desenvolve uma “filosofia de burocrata” e uma “nova forma de governo […] mais perigosa que o despotismo e a arbitrariedade” [20]. Este requisitório é impiedoso, mas eis que se dissolve como por encanto na terceira parte das Origens do totalitarismo. O fato é que o livro de Arendt resulta, na realidade, de dois níveis distintos que remetem a dois períodos de composições diversas e separadas uma da outra pelo corte temporal do desencadeamento da guerra fria. Ainda na França, a autora via o trabalho que estava escrevendo “como uma obra exaustiva sobre o anti-semitismo e sobre o imperialismo e uma pesquisa histórica sobre aquele fenômeno que, então, chamava de ‘imperialismo racial’, isto é, sobre a forma mais extrema de opressão das minorias nacionais por parte das nações dominantes de um Estado soberano” [21]. Naquele momento, bem longe de ser um alvo, a URSS era, sobretudo, um modelo. Vinha lhe sendo atribuído o mérito, observa Arendt no outono de 1942 (no meio tempo, tinha desembarcado nos EUA e dali seguia o desenvolvimento da operação Barbarossa desencadeada por Hitler), de ter “simplesmente liquidado o antisemitismo” no âmbito de uma “solução justa e muito moderna da questão nacional” [22]. Ainda mais significativo é um texto de outubro de 1945:

Com respeito à Rússia, aquilo em que todos os movimentos políticos e as nações deveriam prestar atenção – o seu modo, completamente novo e bem-sucedido de enfrentar e compor os conflitos de nacionalidades, de organizar populações diferentes sobre a base da igualdade nacional – tem sido negligenciado tanto por seus amigos quanto por seus inimigos. [23]

Recorri às citações para evidenciar a reviravolta das posições que ocorrerá alguns anos depois, quando ela critica Stalin pela desarticulação calculada das organizações já existentes de forma a produzir artificialmente aquela massa amorfa que é o pressuposto do advento do totalitarismo.

A julgar pela terceira parte das Origens do totalitarismo, o que caracteriza o totalitarismo comunista é o sacrifício, inspirado e estimulado por Marx, da moral sobre o altar da filosofia da História e de suas leis “necessárias”. Arendt tinha, porém, se expressado de modo bem diverso em janeiro de 1946:

No país que nomeou Disraeli primeiro-ministro, o judeu Karl Marx escreveu O Capital, um livro que em seu zelo fanático pela justiça alimentou a tradição judaica de forma muito mais eficaz do que o festejado conceito de “homem eleito da raça eleita”. [24]

Aqui, enquanto teórico da justiça, Marx é contraposto, nítida e positivamente, a um primeiro ministro inglês que enuncia teorias posteriormente herdadas e radicalizadas pelo Terceiro Reich.

Na passagem das duas primeiras partes, escritas ainda sob a emoção da luta contra o nazismo, para a terceira parte, que remete ao desencadeamento da guerra fria, a categoria de imperialismo (que inclui, em primeiro lugar, a Grã-Bretanha e o Terceiro Reich, esse tipo de estágio supremo do imperialismo) cede o posto à categoria de totalitarismo (que inclui a URSS staliniana e o Terceiro Reich).

As species do genus [e] imperialista não coincidem com as species do genus totalitarismo; embora as species permaneçam aparentemente imutáveis, no primeiro caso, a Alemanha é posta em causa pelo menos desde Guilherme II, no segundo caso, somente a partir de 1933. Ao menos no que diz respeito à coerência formal, apresenta-se mais rigoroso o esquema inicial que, depois de ter aclarado o genus “imperialismo”, ao investigar as diferenças específicas desse fenômeno, enfrenta a análise da species “imperialismo racial”. Mas então de que forma as categorias de totalitarismo e de imperialismo podem entrelaçar-se num todo coerente? E qual é a relação que conecta ambas à de anti-semitismo? A resposta que Arendt fornece a essas interrogações dá a impressão de uma harmonização artificial entre dois níveis que continuam a ser dificilmente compatíveis entre si.

Mais do que um livro, Origens do totalitarismo constitui, na realidade, dois livros sobrepostos, para os quais, não obstante sucessivos ajustes, a autora não consegue conferir uma unidade substancial. Ao resenhar a obra, eminentes historiadores e historiadores das idéias (Carr e Stuart Hugues), mesmo exprimindo-se com respeito e por vezes com admiração, não mostram dificuldade em se dar conta da desproporção, na autora, entre o conhecimento real e aprofundado do Terceiro Reich e as informações aproximativas sobre a União Soviética; sublinham, sobretudo, quanto é cansativa a tentativa de adaptar a análise da União Soviética (que remete ao desencadeamento da guerra fria) à do Terceiro Reich (que reenvia aos anos da grande coalizão contra o fascismo e o nazismo). [25]

A guerra fria e as sucessivas adaptações da categoria de totalitarismo

Dos campos de concentração, Origens do totalitarismo falam, sempre e somente, em relação à URSS e ao Terceiro Reich. Chama a atenção, sobretudo, o silêncio sobre uma experiência direta que Arendt teve dessa instituição total: junto com tantos outros alemães, fugitivos da Alemanha nazista e tornados suspeitos, com a eclosão da guerra, por serem cidadãos de um Estado inimigo, ela foi internada, por algum tempo, em Gurs. As condições aí devem ter sido bastante duras: tinha-se a impressão – lembrava Arendt em 1943 – que “tínhamos sido levados para lá pour crever [f] de algum jeito”, tanto que em alguns dos internados surge a tentação do “suicídio” como “ação coletiva” de protesto. [26]

No momento em que Origens do totalitarismo vem à luz, o campo de concentração é um instrumento sinistramente vital até na Iugoslávia, onde, porém, estavam reclusos os comunistas fiéis a Stalin. Mais geralmente, nos países balcânicos a ditadura decerto não é menos férrea que na Europa Oriental. Entretanto, no caso da Iugoslávia que, tendo rompido com a URSS, estava de fato ligada ao Ocidente, podem ser constatados – como observará, em 1953, o secretário de Estado Dulles – “certos aspectos de despotismo”, mas nada mais. [27] É um juízo que, de qualquer forma, desaparece no silêncio observado por Arendt a esse propósito.

Para consolidar, posteriormente, o peso da guerra fria, outros fatores particulares intervieram: “Mussolini, que tanto amava o termo totalitário, não tentou instaurar um regime totalitário propriamente dito, contentando-se com a ditadura do partido único”. À Itália fascista, são assemelhados a Espanha de Franco e o Portugal de Salazar. [28] Deste modo, são poupados da acusação de totalitarismo os dois países que tinham aderido à OTAN. Nesse ponto, a luta entre antitotalitarismo e totalitarismo coincide perfeitamente com a luta entre os dois blocos.

Se poupa a Espanha, Portugal e até a própria Iugoslávia, a acusação de totalitarismo é lançada ou sugerida até para países inesperados:

Uma forma semelhante de governo (o totalitário, DL) parece encontrar condições favoráveis nos países do tradicional despotismo oriental, na Índia e na China, onde há uma reserva humana praticamente inexaurível, capaz de alimentar a máquina totalitária acumuladora de poder e devoradora de indivíduos, e onde, ademais, o sentido da superfluidade dos homens, típico das massas (e absolutamente novo na Europa, um fenômeno associado ao desemprego generalizado e ao crescimento demográfico dos últimos 150 anos) dominou durante séculos sem contestação no desprezo pela vida humana. [29]

Vale a pena observar que, embora gozando de um regime parlamentar, a Índia era, naquele momento, aliada da URSS!

Segundo Arendt, caracterizava o totalitarismo comunista o sacrifício, inspirado e estimulado por Marx, da moral sobre o altar da filosofia da história e de suas leis “necessárias”. O argumento apresentado nas Origens do totalitarismo pode ser lido numa intervenção, em março de 1949, de Dean Acheson, secretário de Estado americano durante a administração Truman: a OTAN é expressão da comunidade atlântica e ocidental, unida “por comuns instituições e sentimentos morais e éticos” e em luta contra um mundo surdo às razões da moral e, assim, inspirado do “sentimento comunista segundo o qual a coerção mediante a força constitui o método apropriado para apressar o inevitável”. [30]

Apesar disso, com as substanciais concessões ao clima ideológico da guerra fria, alguma coisa do projeto original das Origens do totalitarismo continua a se fazer presente mesmo na terceira parte do livro. Salta aqui aos olhos a distinção feita entre a ditadura revolucionária de Lenin e o regime propriamente totalitário de Stalin. Rompendo com a política czarista de opressão das minorias nacionais, Lenin organiza o maior número possível de nacionalidades, favorecendo o surgimento de uma consciência nacional e cultural até entre os grupos étnicos mais atrasados que, por sua vez, conseguem organizar-se como entidades culturais e nacionais autônomas. Algo de análogo se verifica também para as outras formas de organização social e política: os sindicatos, por exemplo, conquistam uma autonomia organizativa desconhecida na Rússia czarista. Tudo isso representa um antídoto em relação ao regime totalitário, que pressupõe uma relação direta e imediata com o líder carismático, de um lado, e a massa amorfa e atomizada, de outro. A estrutura articulada criada por Lenin é sistematicamente desmantelada por Stalin, que, para impor o regime totalitário que almeja, precisa desorganizar a massa de modo que possa tornar-se objeto do poder carismático e inconteste do chefe infalível. [31]

Como explicar a passagem de Lenin a Stalin? E por que a sociedade articulada e organizada que veio à luz na vaga da revolução não consegue contestar eficazmente a obra sistemática de desarticulação e desorganização que abre caminho para a imposição do regime totalitário? Leiamos a resposta: “Sem dúvida, Lenin sofre sua maior derrota quando, com o advento da guerra civil, o poder supremo que ele tinha, originariamente, projetado concentrar nos Sovietes passou definitivamente para as mãos da burocracia” [32]. Mas, então, a passagem ao regime totalitário não é o resultado inevitável de um pecado original ideológico (a filosofia da história de Marx), mas, em primeiro lugar, o produto de circunstâncias históricas bem determinadas e, ademais, de circunstâncias históricas que põem diretamente em causa as potências ocidentais de consolidada tradição liberal, empenhadas em alimentar de todas as formas a guerra civil antibolchevique. Por outro lado, não se entende bem como possa ainda sustentar-se a assimilação do bolchevismo e do nazismo sobre a qual insiste a terceira parte das Origens do totalitarismo: foi Lenin e não Stalin que edificou o partido bolchevique. Sobretudo, justifica-se pouco a acusação lançada contra Marx. Mas, segundo Arendt, na condução de sua política, Lenin teria sido guiado mais por seu instinto de grande estadista do que pelo programa marxista propriamente dito. Na realidade, as medidas de emancipação das minorias nacionais tinham sido precedidas por um longo e complexo debate sobre a questão nacional vista à luz do marxismo.

A defasagem entre o projeto inicial e as sucessivas composições das Origens do totalitarismo comporta também uma oscilação de caráter metodológico. Por um lado, Arendt se permite recorrer a uma interpretação dedutivista do fenômeno totalitário, claramente vizinha à dos autores liberais freqüentemente citados: o totalitarismo staliniano era, então, lido como a conseqüência lógica e inevitável da ideologia marxiana. Por outro lado, ela se vê constrangida a remeter às condições históricas particulares que explicam o advento do regime totalitário staliniano: guerra civil, agressões internacionais das potências vitoriosas na I Guerra Mundial (mas nossa autora apenas sobrevoa esse ponto), desagregação das estruturas organizativas etc. A distinção entre o leninismo e o stalinismo, entre ditadura revolucionária e o regime totalitário que a segue, interrompe aquela linha de continuidade férrea e meramente ideológica de Marx ao totalitarismo, instituída desde Hayek e Talmon.

Não por acaso, esta distinção é um dos alvos da polêmica de Golo Mann. Outro, ainda mais relevante, é constituído pelas duas primeiras partes das Origens do totalitarismo em seu conjunto. Além das reservas expressas na resenha, é, sobretudo, eloquente a conversa que o historiador refere ter tido com Jaspers. É um convite a tomar distância das posições heréticas tomadas por sua discípula:

Você acredita que o imperialismo inglês, em particular Lord Cromer no Egito, teve algo a ver com o Estado totalitário? Ou o anti-semitismo francês no caso Dreyfus? “Você escreveria isto?”. “Mas é claro, ela dedica a isso três capítulos”. Acreditando cegamente na amiga amada, ele tinha aconselhado a leitura do livro que ele, no entanto, tinha lido apenas de relance. [33]

Golo Mann tem razão. No tema do totalitarismo, Jaspers é decididamente mais ortodoxo que Arendt. Essa última acaba por ser influenciada pelas críticas dirigida a ela. Isso emerge, em particular, no ensaio Sobre a revolução. Aqui, Marx é o autor da “doutrina politicamente mais danosa da idade moderna, ou seja, que a vida é o bem supremo e que o processo vital da sociedade é o próprio centro de todo o esforço humano”. O resultado é catastrófico:

Este caminho leva Marx a uma verdadeira e própria capitulação da liberdade diante da necessidade. Assim, ele faz o que seu mestre de revolução, Robespierre, tinha feito antes dele e aquilo que seu maior discípulo, Lenin, fará depois dele na mais grandiosa e terrível revolução que seus ensinamentos tenham, até agora, inspirado. [34]

Ora, não é somente em Marx que se dissipa o “zelo fanático pela justiça” do qual Arendt fala em 1946 e do qual já se tinham largamente perdido os rastros apenas cinco anos mais tarde. O elemento mais relevante de novidade é outro: plano e sem obstáculos passa a ser o percurso que conduz de Marx ao totalitarismo passando por Lenin. Sobre os ombros de Marx, age a Revolução Francesa e esta também está plenamente envolvida no juízo de condenação, que marca uma ulterior reviravolta em relação às Origens do totalitarismo.

Agora, fica clara a adesão à abordagem dedutivista de Talmon e Hayek, como fica claro também o triunfo obtido por Golo Mann. Mais além das concessões que lhe faz Arendt, prevalece, em nossos dias, uma leitura das Origens do totalitarismo que parece levar em conta as preocupações ideológicas expressas por ele. Com efeito, quem hoje, no âmbito do debate sobre totalitarismo, se lembra de Lord Cromer e da sua “nova forma de governo”, ainda “mais perigosa que o despotismo”? E quem aponta para os “massacres administrativos” cuja tentação acompanha como uma sombra a história do imperialismo? Quem ainda faz intervir a categoria de imperialismo? Das duas seções das quais resulta o livro de Arendt, só a menos válida, aquela que evita principalmente o peso das preocupações ideológicas e políticas imediatas, continua sendo empregada e interrogada. Ao resenhar Origens do totalitarismo, Golo Mann sintetizava assim o sentido de suas críticas: “Tudo é demasiadamente sutil, demasiadamente inteligente, demasiadamente artificial […] Em breve, teríamos preferido um tom mais rigoroso, mais positivo no conjunto” [35]. Com efeito, a teoria do totalitarismo tornou-se, em seguida, menos “sutil” e mais “robusta” e “positiva”. Adaptou-se em cheio às exigências da guerra fria. Emergindo do organicismo e do holismo de direita e de esquerda e dedutível de algum modo apriorístico desta frutífera fonte ideológica, o totalitarismo, em suas duas distintas configurações, explica todo o horror do século XX: essa é, hoje, a vulgata dominante.

Teoria do totalitarismo e seleção dos horrores do século XIX

É uma vulgata que nem mesmo tenta interrogar-se sobre alguma catástrofe central do século o qual, assim mesmo, pretende explicar. Procedamos como se estivéssemos no passado em relação à Revolução de Outubro, que constituiria o ponto de partida da vicissitude totalitária. Como interpretar a I Guerra Mundial, com seu séquito de mobilizações totais, de arregimentação total, de execuções e dizimações no interior do próprio campo, de impiedosas punições coletivas que comportam, por exemplo, a deportação e o extermínio dos armênios? E, em qual contexto colocar ainda as guerras balcânicas, com os massacres que as caracterizam? Sempre procedendo em retrospectiva, como ler a tragédia dos Hereros [g], considerados inaptos como força de trabalho servil e que foram, conseqüentemente, no início do século XIX, condenados ao aniquilamento por uma ordem explícita?

Agora não mais no passado, procedamos como se estivéssemos no futuro em relação à I Guerra Mundial e à Revolução de Outubro. Pouco mais de duas décadas depois, o campo de concentração faz sua aparição também nos Estados Unidos onde, com base em uma ordem de Franklin Delano Roosevelt, são reclusos em campos de concentração todos os cidadãos americanos de origem japonesa, inclusive mulheres e crianças.

Naquele mesmo momento, na Ásia, a guerra conduzida pelo Império do Sol Nascente assumia formas particularmente repugnantes. Com a tomada de Nanquim, o massacre torna-se uma espécie de disciplina esportiva e, ao mesmo tempo, de divertimento: quem conseguirá ser mais rápido ou mais eficiente ao decapitar os prisioneiros? A desumanização do inimigo alcança então uma inteireza bastante rara e, de fato, com caráter de “unicidade”: em vez de utilizar animais, as vivisseções são praticadas nos chineses, os quais, por outro lado, constituem o alvo vivo dos soldados japoneses que se exercitam à prática de assalto com baionetas. A desumanização também investe em cheio contra as mulheres que, nos países invadidos pelo Japão, são submetidas a uma brutal escravidão sexual: são as comfort women [h] , obrigadas a “trabalhar” a um ritmo infernal a fim de restaurar dos cansaços da guerra o exército de ocupação e logo eliminadas assim que se tornam inúteis pelo desgaste ou por quaisquer doenças. [36]

A guerra no Extremo-Oriente, que vê o Japão tratar cruelmente os prisioneiros ingleses e americanos e lançar mão contra a China até de armas biológicas, termina com o bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki, em um país que já se encontra no extremo de suas forças e se prepara à rendição: é por isso que estudiosos americanos compararam o aniquilamento da população civil das duas cidades japonesas, já indefesas, ao massacre dos judeus pelo Terceiro Reich consumado na Europa.

De tudo isso, não há traços no livro de Arendt. O Japão apenas aparece no índice analítico: à guerra na Ásia se faz um fugaz aceno para denunciar o totalitarismo da China e não somente o do Partido Comunista, mas do país inteiro sobre os ombros do qual age, como já vimos, o “despotismo oriental”. Além do peso da guerra fria (entrementes, o Japão passou a participar da aliança antitotalitária), emergem aqui todos os limites da categoria de totalitarismo.

Ela não consegue explicar adequadamente nem mesmo as tragédias das quais se ocupa de forma específica. A “solução final” tem atrás de si duas etapas que a precederam imediatamente. No decurso da I Guerra Mundial, foi a Rússia czarista (com os países ocidentais aliados a ela) que promoveram a maciça deportação dos judeus das zonas fronteiriças, suspeitos de pouca lealdade relativamente a um regime que os oprimia. Após a derrubada do czarismo e o desencadeamento da guerra civil, são as tropas brancas (apoiadas pelas mesmas potências ocidentais) que lançam a caça ao judeu, apontado como o inspirador oculto da revolução “judaico-bolchevista”: daí decorrem os massacres que, como sublinham os historiadores, parecem antecipar o advento da “solução final”. [37]

Um dedutivismo arbitrário e inconcludente

Se são clamorosamente enviezados os deslocamentos de enfoque da teoria do totalitarismo hoje dominante, é claramente insustentável a abordagem dedutivista sobre a qual ela se alavanca. No comunismo que Marx defendia, diluem o Estado, as nações, as religiões, as classes sociais, todos os elementos constitutivos de uma identidade meta-individual: não há nenhum sentido em falar de organicismo e fazer jorrar desse presumido pecado original o aniquilamento do indivíduo no âmbito do sistema totalitário. No que diz respeito ao sacrifício da moral sobre o altar da filosofia da história, esse motivo é antecipadamente confundido ou drasticamente problematizado pela Arendt de janeiro de 1946, que descreve Marx como uma espécie de profeta hebraico sedento de justiça

A abordagem dedutivista se revela arbitrária e inconclusiva também em relação ao Terceiro Reich. Folheemos a árvore genealógica do nazismo, da forma como tem sido comumente reconstruída pelos mais notórios historiadores. É obrigatório o encontro com Chamberlain: segundo Nolte, trata-se de um “bom liberal” que “levanta a bandeira da liberdade individual” [38]. Com efeito, estamos aqui lidando com um autor para quem o germanismo (sinônimo em última análise do Ocidente) é caracterizado pela recusa do “absolutismo monárquico” e de todas as visões do mundo que sacrificam o “singular” sobre o altar da coletividade. Não por acaso Locke é o “novo elaborador da nova visão do mundo germânico; e se quisermos encontrar precedentes, é necessário buscá-los em Ockam e, antes disso, em Duns Scoto, para quem é “o indivíduo” que constitui “a única realidade”.

Uma reconstrução histórica das “origens culturais do Terceiro Reich” tampouco pode ignorar Gobineau: o autor do Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas celebra as “tradições liberais dos Arianos”, os quais, por muito tempo, resistem a essa “monstruosidade cananeia” que é a ideia de “pátria”. Se, nesse contexto, inserimos também Langbehn, como sugere, entre outros, Mosse [39], veremos que é ainda mais nítida a profissão de fé individualista, bem como a celebração do “espírito santo do individualismo”, do “princípio alemão do individualismo”, esta “estimulante força fundamental e originária de todo o germanismo”. Os países designados como modelo são, quando muito, os países clássicos da tradição liberal. Se Gobineau dedica seu livro “a Sua Majestade George V”, Langbehn celebra o povo inglês como o “mais aristocrático entre todos os povos” e “o mais individualista entre todos os povos”, bem como Le Bon (um autor bastante caro a Goebbels) contrapõe, constante e positivamente, o mundo anglo-saxão ao resto do planeta. [40]

Mas, por que ir mais longe? Abramos Mein Kampf. Dura é a polêmica contra uma visão do mundo que, ao pretender atribuir ao Estado uma “força criativa e produtora de cultura”, desconhece não somente o valor da raça, mas ainda se torna culpada de “subestimar a pessoa” ou, ainda, a “pessoa singular” [41]. A “civilização de amanhã” repousa, em primeiro lugar, “sobre a genialidade e a energia da personalidade” [42]; portanto, não se pode nunca perder de vista o “homem singular”, o “ente singular” (Einzelwesen) em sua irredutível peculiaridade [43], o “homem singular” em suas “múltiplas e sutilíssimas diferenciações” [44]. Hitler aspira apresentar-se se como o autêntico e coerente defensor dos valores da “personalidade”, do “sujeito”, da “força criativa e da capacidade da pessoa singular, do significado superior da personalidade”, do “princípio da personalidade” contra o “princípio democrático da massa”, que encontra no marxismo a sua expressão mais conseqüente e mais repugnante [45]. Se o marxismo nega “o valor da pessoa”, o movimento nazista “deve promover, por todos os meios, o respeito da pessoa, não deve nunca esquecer que nos valores pessoais reside o valor de tudo que é humano e que cada ação é o produto da força criativa de um homem singular”. [46]

Naturalmente, é fácil ler no nazismo até apelos à unidade em coro na luta contra o inimigo, mas este é um motivo que, por razões óbvias, torna-se um recurso, de tempos em tempos, da ideologia da guerra de todos os países empenhados na segunda Guerra dos 30 Anos [i]. Certo, seria necessário perguntar-se através de que processos a celebração do “indivíduo”, da “personalidade” e do “singular” se transforma, de modo consciente ou sub-reptício, na celebração da cultura e dos povos realmente em posição de colher esses valores, com a conseqüente hierarquização dos povos e a condenação das “raças” consideradas, intrínseca e irremediavelmente, coletivistas [47]. Mas essa é uma dialética que também se manifesta no âmbito da tradição liberal e que, entretanto, não pode ser descrita através da categoria de organicismo ou de holismo.

Na melhor das hipóteses, querer explicar o totalitarismo com o organicismo ou com o sacrifício da moral sobre o altar da filosofia da história é como explicar a virtude soporífica do ópio reenviando a sua vis dormitiva [j].

Totalitarismo e partido único

Agora, façamos pura abstração da origem cultural do totalitarismo e concentremo-nos em suas características. Essas podem ser descritas como “uma ideologia (de Estado), um partido único, geralmente dirigido por um só indivíduo, uma conduta terrorista, o monopólio dos meios de comunicação, o monopólio da violência e uma economia diretamente governada pelo poder central” [48]. Das duas últimas caraterísticas – admitem os autores desta definição – a primeira certamente remete à natureza do Estado enquanto tal e a segunda podia ser encontrada até na Grã-Bretanha, profundamente marcada naquele momento (1956) pelas nacionalizações e pelas reformas sociais trabalhistas. Convém, então, concentrar-se nas outras características. Será que remeter de forma exclusiva ao totalitarismo é o monopólio dos meios de comunicação? Como deve ser conhecido, no curso da I Guerra Mundial, Wilson criou um Comitê para a Informação Pública que fornecia aos jornais, toda semana, 22 000 colunas de notícias, tratando de tudo que era considerado suscetível de poder vir a favorecer o inimigo. Será então a “conduta terrorista” que define, de forma específica, o totalitarismo? Tem-se a impressão que os dois autores aqui citados ignoram a história dos países que abordam e nos quais vivem. Com base na Espionage Act de 16 de maio de 1918, é possível ser condenado a 20 anos de cárcere por ter exprimido opiniões “de forma desleal, irreverente, vulgar ou abusiva sobre a forma de governo dos Estados Unidos, ou sobre a Constituição dos Estados Unidos, ou sobre as forças militares ou navais dos Estados Unidos, ou sobre sua bandeira [..] ou sobre o uniforme do Exército ou da Marinha dos Estados Unidos”. São notórios historiadores americanos que sublinham que as medidas lançadas no decurso do primeiro conflito mundial visavam “a cancelar até os mínimos traços de oposição”. E, à violência de cima se acresce a violência de baixo, tolerada e encorajada pelas autoridades que se exprime numa impiedosa caça a qualquer um que seja suspeito de escasso fervor patriótico. [49]

No que concerne ao “partido único, geralmente dirigido por um só indivíduo”, assistimos aqui à aproximação e à confusão de dois problemas sensivelmente distintos entre si. Sobre o papel do líder, pode ser interessante fazer um confronto. Ao estourar, em 1950, a guerra na Coréia, Truman não teve nenhuma dificuldade em decidir a intervenção independentemente do Congresso [50], ao passo que Mao foi obrigado a enfrentar e a derrotar a dura oposição que encontrou no âmbito do Bureau Político, no qual, inicialmente, foi posto em minoria [51]. Permanecem afirmando que, contrariamente aos USA, na China vigora o partido único e que essa característica é comum aos regimes totalitários. Além de deter o monopólio da ação política, esse é um partido-Exército e ao mesmo tempo, sobretudo no caso dos comunistas, um partido-Igreja. Será essa a confirmação da validade da teoria do totalitarismo?

Ao contrário, se essa teoria tem por alvo, de forma exclusiva, o comunismo e o nazismo, ela já é refutada por Hayek, que, justamente, faz intervir no confronto também os partidos socialistas. Com efeito, ao denunciar a incapacidade da imprensa de influir sobre as “largas massas” e ao declarar que é necessário saber aprender com as campanhas de agitação lançadas pelo “marxismo”, Hitler faz referência, em primeiro lugar, à “imprensa social-democrata” e aos “agitadores” (oradores e jornalistas) da social-democracia. [52]

Mas por sua vez, Hayek volta a se fixar nas observações empíricas, sem ao menos interrogar-se sobre as razões do fenômeno (o partido-Exército e o partido-Igreja) constatado e criticado por ele. Os partidos socialistas aspiram a romper o monopólio burguês dos meios de comunicação, e para isso promovem a publicação de jornais do partido, a organização de escolas para a formação de quadros etc. É um problema que não se coloca para a burguesia: essa pode contar com o controle do aparelho escolar e da grande imprensa de informação, bem como o apoio, de forma direta ou indiretamente, da Igreja e de outras associações e articulações da sociedade civil. A legislação anti-socialista aprovada por iniciativa de Bismarck impõe ao partido a necessidade de adaptar-se às condições da ilegalidade e faz, por outro lado, emergir a aspiração de romper também o monopólio burguês da violência. Essa é uma dialética que já tinha se desenvolvido no decorrer da Revolução Francesa. A burguesia se esforça para manter o monopólio da violência, impondo cláusulas censitárias até para o alistamento nas Guardas Nacionais e eis que, na vertente oposta, organizam-se partidos que são, também, organizações de luta.

Essa dialética alcança seu auge na Rússia czarista. Ao desenvolver a teoria do partido, Lenin tem em mente o modelo constituído pela social-democracia alemã. Mas sua estrutura centralizada foi, posteriormente, reforçada de modo a poder enfrentar o desafio representado pela autocracia czarista e por um regime policialesco de mil olhos e nenhum escrúpulo. Entende-se, então, que o partido bolchevique se revele mais de qualquer outro à altura do estado de exceção permanente que, a partir da I Guerra Mundial, caracteriza a Rússia e a Europa; a tal ponto que se torna um modelo não só para os comunistas mas, também, para seus oponentes. Bukharin observa, no VII Congresso do PCR (b), em abril de 1923:

Os fascistas, mais que qualquer outro partido, apropriaram-se e passaram a pôr em prática a experiência da revolução russa. Se os considerarmos do ponto de vista formal, isto é, do ponto de vista da técnica de seus procedimentos políticos, verificase uma perfeita aplicação da tática bolchevique e especificamente do bolchevismo russo: no sentido de uma rápida concentração de forças e de uma ação enérgica por parte de uma organização militar unida e compacta. [53]

A contiguidade, que, em Hayek, é sinônimo de vizinhança ideológica e política, é aqui sinônimo de antagonismo. Às tentativas dos partidos operários de romper o monopólio burguês da violência, a burguesia responde rompendo o monopólio socialista e comunista dos partidos de luta: essa é a leitura de Bukharin.

De resto, a seqüência temporal fixada por Hayek é esquemática e aproximativa. Em situações diversas, são os socialistas que devem aprender com seus oponentes. Na Itália, enquanto as organizações sindicais e políticas das classes populares são sistematicamente destruídas pelo assalto fascista (estamos às vésperas da marcha sobre Roma, isto é, do golpe de Estado monárquico-mussoliniano), na tentativa de organizar uma defesa, Guido Pacelli (naquele momento, socialista) prega a necessidade de romper com a tradição legalista:

Hoje, há novos métodos. Frente à força armada há a força armada. Donde a necessidade da formação na Itália “do exército vermelho proletário”. Ademais, os fatos demonstraram, claramente, e poucos de nós sustentamos isso desde o início, que o fascismo deve ser abatido no terreno da violência sobre o qual ele foi o primeiro a se instalar. A resignação cristã aconselhada pelos mestres do método reformista fez com que o inimigo se encorajasse e conduziu ao esfacelamento de nossas organizações [..] O proletariado dispõe de um novo órgão de defesa e de batalha: “O seu exército”. Nossas forças devem enquadrar-se e disciplinar-se voluntariamente. O operário deve transformar-se em soldado, soldado proletário, mas “soldado” [..] A burguesia, para nos atacar, não criou um partido que teria sido insuficiente, mas um organismo armado, o seu exército: o fascismo. Nós devemos fazer outro tanto. [54]

Sobretudo, é arbitrário o ponto de partida indicado por Hayek. Pode-se, tranquilamente, proceder da frente para trás em relação ao ponto de partida indicado por ele (a formação dos partidos socialistas). Mais uma vez, estamos em presença de uma dialética que já se manifesta no decurso da Revolução Francesa: se as seções populares jacobinas são a resposta ao monopólio de burgueses e demais proprietários sobre a Guarda Nacional, a jeunesse dorée [k] é a réplica dos burgueses e demais proprietários ao monopólio popular do partido organizado para a luta. Desse confronto, a classe dominante que professa o liberalismo está ausente só em aparência: as organizações proto-fascistas que se constituem na França no início do século XX funcionam como “polícia auxiliar” do poder e da classe dominante. [55]

Uma dialética análoga também se desenvolve no que diz respeito ao sindicato. Obviamente, os capitalistas – como já o notava Adam Smith – não têm necessidade deles [56]; entretanto, aos sindicatos inspirados do marxismo ou aos movimentos de oposição mais ou menos radical opõem-se sindicatos inspirados da Igreja e, mais tarde, outros ainda inspirados do movimento fascista e nazista; enfim, vêm à luz os “sindicatos” do capital.

Aproximando e assimilando dois “fatos” (a insistência no partido-Exército e no partido-Igreja por parte dos socialistas e comunistas, de um lado, e por parte dos fascistas e nazistas do outro), a leitura de Hayek se revela afetada por uma superstição positivista. Mas é nessa superstição que se fundamenta, em última análise, a teoria corrente do totalitarismo. Com a mesma lógica de Hayek, poder-se-ia aproximar Roosevelt de Hitler: partilham entre si o “fato” do recurso aos blindados, aos aviões e navios de guerra!

Por outro lado, ao forjar seus instrumentos de luta, Hitler não se limita a mirar em direção aos partidos socialistas e comunistas. Ao afirmar a incapacidade dos partidos burgueses tradicionais de influir nas classes populares, o autor de Mein Kampf propõe-se a tirar lições, não só da social-democracia, mas também da Igreja católica da qual, apesar de tudo, aprecia a influência sobre as largas massas e a conhecida capacidade de recrutar quadros até nos extratos populares mais modestos [57]. Sobretudo, é uma ordem religiosa que suscita a admiração de Hitler: “Foi com Himmler que a SS tornou-se essa milícia extraordinária, devotada a uma ideia, fiel até a morte. Em Himmler, vejo o nosso Inácio de Loyola” [58]. Já designada e celebrada por De Maistre como a única organização apta a fazer frente à maçonaria revolucionária [59], sucessivamente assumida como modelo por Rhodes para a realização de sua ideia imperialista de “domínio baseado no segredo” – é Arendt que o nota [60] – a ordem dos jesuítas passa, enfim, a ser interpretada como a organização de quadros capazes, disciplinados e devotados à causa, dos quais necessita a guerra civil contra-revolucionária do século XIX. Deveríamos então aproximar e assimilar as lojas maçônicas, Societas Jesus e Schutz Staffeln [l]?

Estado racial e eugenia: Os EUA e o Terceiro Reich

Seria bastante pobre uma definição do Terceiro Reich que se limitasse a pôr em evidência seu caráter totalitário, remetendo em particular ao fenômeno da ditadura do partido único. Enquanto líderes de uma ditadura com partido único, não é difícil relacionar juntos Hitler e Stalin, Mao, Deng, Ho Chi Minh, Nasser, Ataturk, Tito, Franco etc., mas esse exercício escolástico está bem aquém de uma análise histórica. Mesmo se houver a preocupação de distinguir os “totalitários”, Stalin e Hitler, do “autoritário” Mussolini, cujo poder é limitado pela presença do Vaticano e da Igreja, não se terá trilhado um caminho muito maior. Nesse caso, mais do que um percurso real, assistiríamos a um deslizamento: da ideologia teríamos passado, inadvertidamente, a um âmbito completamente distinto, a uma realidade, dados e fatos independentes e preexistentes em relação às escolhas ideológicas e políticas do fascismo.

No que concerne ao Terceiro Reich, é bem difícil dizer alguma coisa determinada e concreta a seu respeito sem referir-se a seus programas raciais e eugenísticos. E estes nos conduzem a uma direção muito diferente daquela sugerida pela categoria de totalitarismo. Logo após a conquista do poder, Hitler se preocupa em distinguir nitidamente, inclusive no plano jurídico, as posições dos arianos em relação aos judeus bem como aos dos poucos mulatos que viviam na Alemanha (ao final da I Guerra Mundial, tropas de cor que participavam do Exército francês tinham tomado parte da ocupação do país). Assim, fica claro que o elemento central do programa nazista era a construção de um Estado racial. Bem, quais eram naquele momento os modelos possíveis de Estado racial? Mais ainda do que a África do Sul, o pensamento corre, em primeiro lugar, ao Sul dos EUA. Ademais, de forma explícita já em 1937, Rosenberg decerto se refere à África do Sul: é bom que permaneça solidamente “em mãos nórdicas” e brancas (graças a oportunas “leis” que distinguem, além dos “indianos”, os “negros, mulatos e judeus”), e que constitua um “bastião sólido” contra o perigo representado pelo “despertar negro”. Mas o ponto de referência principal é constituído pelos Estados Unidos, esse “esplêndido país do futuro” que teve o mérito de formular a feliz “nova ideia de um Estado racial”, ideia que então se tratava de pôr em prática, “com força juvenil”, mediante expulsão e deportação de “negros e amarelos” [61]. Basta dar uma olhada à legislação de Nuremberg para se dar conta da analogia com a situação que reinava do outro lado do Atlântico: obviamente, na Alemanha eram, primeiro, os judeus de origem alemã que ocupavam o lugar dos afro-americanos. “A questão negra” – escrevia Rosenberg em 1937 – “está, nos EUA, no vértice de todas as questões decisivas”; e uma vez que o absurdo princípio de igualdade seja cancelado para os negros, não se vê por que não se devam tirar “as conseqüências necessárias para os amarelos e os judeus” [62]. Por conseguinte, no que diz respeito ao projeto bastante caro para ele de um império continental alemão, Hitler tinha bem presente o modelo dos EUA, dos quais celebra “a inaudita força interior” [63]: a Alemanha era chamada a seguir esse exemplo, expandindo-se pela Europa Oriental como se fosse uma espécie de Faroeste e tratando os “indígenas” à mesma maneira dos peles-vermelhas. [64]

Às mesmas conclusões chegaríamos se fixássemos o olhar na eugenia. É hoje conhecido o débito que a Alemanha contraiu em relação aos EUA, onde a nova “ciência”, inventada na segunda metade do século XIX por Francis Galton (um primo de Darwin), conhece ampla fortuna. Bem antes do advento de Hitler ao poder, às vésperas do desencadeamento da I Guerra Mundial, vem à luz, em Mônaco, um livro que, já em seu título, aponta os Estados Unidos como modelo de “higiene racial”. Seu autor, vice-cônsul do Império Austro-húngaro em Chicago, celebra os EUA pela “lucidez” e pela “pura razão prática” das quais dão prova ao enfrentar, com a devida energia, um problema tão importante e, também, tão freqüentemente relegado a segundo plano: violar as leis que vetam as relações sexuais e matrimoniais mistas pode comportar até 10 anos de reclusão e, em caso de condenação, atingir não só os protagonistas mas igualmente seus cúmplices [65]. Mesmo após a conquista do poder pelo nazismo, os ideólogos e “cientistas” da raça continuam a martelar: “Também a Alemanha tem muito que aprender com as medidas dos norte-americanos: estes sabem o que fazem” [66]. Vale acrescentar que não estamos diante de uma relação de mão única. Com o advento de Hitler ao poder, são os mais radicais seguidores do movimento eugenista americano que erigem o Terceiro Reich em modelo, visitando-o não poucas vezes em viagens de estudo ou de peregrinação ideológica. [67]

Uma questão se impõe: por que, para definir o regime nazista, o recurso à ditadura do partido único deveria ser mais caracterizante do que a ideologia e a prática racista e eugênica? É exatamente desta fonte que derivam as categorias centrais e as palavras-chave do discurso nazista, como vimos a propósito da Rassenygiene, que no fundo é a tradução alemã de eugenics, a nova ciência inventada na Inglaterra e triunfante do outro lado do Atlântico. Mas há exemplos ainda mais clamorosos. Rosenberg manifesta sua admiração pelo autor americano Lothrop Stoddard, a quem pertence o mérito de ter sido o primeiro a cunhar a expressão Untermensch, que já em 1925 se exibe como subtítulo da tradução alemã de um livro publicado em Nova Iorque três anos antes [68]. No que concerne ao significado do termo que ele tinha cunhado, Stoddard esclarece que ele indica a massa dos “selvagens e semi-selvagens”, no interior ou no interior das metrópoles capitalistas, de qualquer modo “inaptos à civilização e inimigos incorrigíveis dela”, com os quais é preciso proceder a um acerto de contas [69]. Nos EUA como no mundo inteiro, é necessário defender a “supremacia branca” contra a “maré montante dos povos de cor”, excitados pelo bolchevismo, “o renegado, o traidor no interior de nosso campo”, o qual, com sua insidiosa propaganda, atinge não somente as colônias, mas as próprias regiões negras dos Estados Unidos” [70]. Bem se compreende a extraordinária fortuna destas teses. O autor americano, que, antes mesmo de receber os elogios de Rosenberg, já os tinha recebido de dois presidentes estadunidenses (Harding e Hoover), foi seguidamente acolhido em Berlim com todas as honras. Lá encontrou-se não somente com os mais ilustres expoentes da eugenia nazista, mas também com a cúpula do regime, inclusive com Adolf Hitler [71], desde então lançado em sua campanha para dizimar e submeter os Untermenschen.

Convém também concentrar a atenção em outro termo. Vimos que Hitler encarava como um modelo a expansão branca no Faroeste. Logo depois de tê-la invadido, Hitler procedeu ao desmembramento da Polônia. Uma parte, da qual os polacos foram expulsos, foi diretamente incorporada ao Grande Reich; o resto constituiu a “Governadoria Geral”, em cujo âmbito, como declarou o governador geral, os polacos vivem numa “espécie de reserva”, submetidos à jurisdição alemã sem serem cidadãos alemães [72]. O modelo americano é aplicado de modo quase escolar.

Ao menos em sua fase inicial, o Terceiro Reich propõe-se instituir também uma Judensreservat, uma “reserva para os judeus”, também semelhante às que serviram para confinar os peles-vermelhas. Até mesmo no concernente à expressão “solução final”, vêmo-la emergir primeiro nos USA, referida à “questão negra” antes que à “questão judaica” e, só depois, na Alemanha. [73]

Assim como não é espantoso que o “totalitarismo” tenha encontrado sua expressão mais concentrada nos países de posição central na Segunda Guerra dos 30 Anos, tampouco surpreende que a tentativa nazista de construir um Estado racial tenha extraído motivos de inspiração, categorias e palavras-chave da experiência histórica mais rica que, sobre este assunto, tinha diante de si, aquela acumulada pelos brancos norte-americanos em suas relações com os peles-vermelhas e o negros. Obviamente, não devemos perder de vista todas as outras diferenças, no que diz respeito ao governo das leis, à limitação do poder estatal (relativamente à comunidade branca) etc. Resta o fato de que o Terceiro Reich se apresenta como a tentativa, levada a efeito nas condições da guerra total e da guerra civil internacional, de realizar um regime de white supremacy em escala planetária e sob hegemonia alemã, recorrendo a medidas eugenéticas, político-sociais e militares.

O coração do nazismo é constituído pela ideia de Herrenvolk, que remete à teoria e à prática racista do sul dos Estados Unidos e, mais geralmente, à tradição colonial do Ocidente; esta ideia é o alvo principal da Revolução de Outubro, que não por acaso conclama os “escravos das colônias” a romper suas cadeias. A teoria corrente do totalitarismo concentra a atenção exclusivamente sobre a semelhança dos métodos atribuídos aos dois antagonistas, fazendo-os até descender de uma pretensa afinidade ideológica, sem fazer nenhuma referência à situação objetiva e ao contexto geopolítico.
Por uma redefinição da categoria de totalitarismo

O defeito fundamental da categoria de totalitarismo é transformar uma descrição empírica, relativa a certas categorias determinadas, numa dedução lógica de caráter geral. Não há dificuldades em constatar as analogias entre URSS staliniana e Alemanha nazista; a partir delas, é possível construir uma categoria geral (totalitarismo) e sublinhar a presença nos dois países do fenômeno assim definido; mas transformar esta categoria na chave de explicação dos processos políticos verificados nos dois países é um salto assustador. Sua arbitrariedade deveria ser evidente, por duas razões fundamentais. Já vimos a primeira: de modo sub-reptício as analogias que subsistem entre URSS e Terceiro Reich quanto à ditadura do partido único são consideradas decisivas, ao passo que são ignoradas e removidas as analogias no plano da política eugênica e racial, que permitiriam instituir conexões bem diferentes.

Quanto à segunda razão, mesmo se concentrarmos a atenção sobre a ditadura do partido único nos dois países geralmente postos em confronto, por que remeter à afinidade de suas ideologias antes que à semelhança das situações políticas (o estado de exceção permanente) ou ao contexto geopolítico (a particular vulnerabilidade) que os dois países tinham de enfrentar? Parece-me evidente, em vez disso, que como fundamento do fenômeno totalitário, juntamente com as ideologias e as tradições políticas, age poderosamente a situação objetiva.

A tal respeito pode ser instrutiva uma reflexão sobre a origem do termo “totalitarismo”. Dois anos após a explosão da Revolução de Outubro, quando ainda perduram os ecos do primeiro conflito mundial, eis que emerge a crítica do “totalismo revolucionário” (revolutionärer Totalismus) [74]. O uso do adjetivo parece supor que haveria um “totalismo” distinto daquele caracterizado como revolucionário. Enquanto indica diretamente uma species (o “totalismo revolucionário”), o genus (totalismo) remete, ainda que de modo indireto, a uma species distinta, a do totalismo bélico. Com efeito, este substantivo, que era utilizado naquele momento (antes, pois, de ser substituído por totalitarismo) tinha imediatamente a seu lado um adjetivo que, a partir de 1914, começa a ressoar de modo obsessivo. Fala-se de “mobilização total” e, alguns anos depois, de “guerra total” e até mesmo de “política total” [75]. A “política total” é a política adequada à “guerra total”. Mas não é esse também o significado real que convém atribuir à categoria de “totalitarismo”? Tanto Mussolini quanto Hitler declaram explicitamente que os movimentos e regimes por eles dirigidos são filhos da guerra e à guerra também remetem inevitavelmente a revolução que contra ela se desencadeou e o regime político que dela se originou.

Sendo assim, pôr lado a lado União Soviética e Alemanha hitleriana, enquanto expressões eminentes do totalitarismo, é, enfim, uma banalidade: onde o regime correspondente à guerra total deveria evidenciar sua característica de fundo senão nos dois países situados no centro da Segunda Guerra de 30 Anos? Não é nada espantoso que o universo concentracionário tenha assumido nestes países uma configuração nitidamente mais brutal do que, por exemplo, nos Estados Unidos, protegidos pelo oceano do perigo de invasões e que, durante o gigantesco confronto, sofreram perdas e devastações largamente inferiores àquelas sofridas pelos principais contendores. Cerca de um século e meio antes, às vésperas da mudança da constituição federal, Hamilton tinha explicado que a limitação dos poderes e a instauração do governo das leis tinham tido sucesso em dois países de tipo insular, protegidos pelo mar das ameaças das potências rivais. Em caso de falência do projeto de União e de formação, sobre suas ruínas, de um sistema de Estados análogo ao existente no continente europeu, advertiu o estadista americano, também teriam surgido na América os fenômenos do exército permanente, de um forte poder central e, enfim, do absolutismo. No século XX, ainda que continue a ser um elemento de proteção, a posição insular não mais é um obstáculo insuperável: na seqüência da guerra total com as grandes potências europeias e asiáticas, o totalitarismo irrompe também nos Estados Unidos, como o demonstra a legislação terrorista visando a quebrar qualquer oposição e, de modo particularmente clamoroso, o surgimento da instituição mais típica do totalitarismo, a saber, o campo de concentração.

Pode-se dizer que, relativamente à União Soviética e ao Terceiro Reich, os campos de concentração na França e nos Estados Unidos assumiram uma configuração mais branda (mas seria superficial e irresponsável sugerir uma banalização); mas permanece o fato de que, para tornar-se adequada, uma teoria deve estar em condição de explicar o surgimento desta instituição em todos os quatro países, incluídos aqueles que gozavam de um ordenamento liberal, e deve esclarecer em que medida as diferenças remetem à diversidade das ideologias ou à diversidade das situações objetivas e do contexto geopolítico. E uma teoria realmente adequada deve, além disso, explicar os campos de concentração nos quais o Ocidente liberal em seu conjunto enclausurou as populações coloniais (há muitos séculos alvos da guerra total). Assim como, em termos mais gerais, deve explicar o fato por meio do qual, com o desencadeamento da I Guerra Mundial, atribuiu-se ao Estado, também nos países de ordenamento liberal, segundo a observação de Weber, um “poder legítimo sobre a vida, a morte e a liberdade” dos cidadãos. Longe de oferecer uma resposta, a teoria corrente do totalitarismo nem sequer chega a formular o problema.

Contradição performativa e ideologia da guerra na teoria corrente do totalitarismo

Marx lançou a semente do totalitarismo comunista que nele reivindicou inspirar-se: uma tese que está presente em Arendt a partir da guerra fria e que, desde então, é parte integrante da teoria corrente do totalitarismo. Mas, para parafrasear uma célebre frase de Weber a propósito do materialismo histórico, também a tese da não-inocência da teoria não é um táxi no qual se possa entrar e do qual se possa descer a gosto do freguês. Assim, pois: que papel desempenharam a teoria costumeira do totalitarismo e a palavra de ordem de luta contra o totalitarismo no massacre que, na Indonésia de 1965, custou a vida de centenas de milhares de comunistas? No que concerne à história contemporânea da América Latina, suas páginas mais sombrias não remetem ao “totalitarismo”, mas à luta contra ele. Para dar um só exemplo, há alguns anos, na Guatemala, a “comissão para a verdade” acusou a CIA de ter fortemente ajudado a ditadura militar a cometer “atos de genocídio” contra os maias, culpados de ter simpatizado com os opositores ao regime caro a Washington. [76]

Em outras palavras: com seus silêncios e suas obliterações, a teoria costumeira do totalitarismo não terá se transformado ela própria numa ideologia da guerra, e da guerra total, contribuindo a alimentar ulteriormente os horrores que pretende, no entanto, denunciar e caindo assim numa trágica contradição performativa?

Em nossos dias chovem as denúncias, com o olhar voltado para o Islã, de “totalitarismo religioso” [77] ou então do “novo inimigo totalitário que é o terrorismo” [78]. Irrompe com renovada vitalidade a linguagem da guerra fria. Confirma-o a advertência dirigida por um eminente senador americano (Joseph Lieberman) à Arábia Saudita: ela deve ficar bem atenta para rejeitar a sedução do totalitarismo islâmico e para não se deixar isolar do Ocidente por uma “cortina de ferro teológica” [79]. Se o alvo polêmico foi assim mudado, a denúncia do totalitarismo continua a funcionar eminentemente como ideologia da guerra contra os inimigos do Ocidente. E em nome desta ideologia são justificadas as violações da Convenção de Genebra e o tratamento desumano reservado aos detentos na baía de Guantanamo, o embargo e a punição coletiva impostos ao povo iraquiano [m] e a outros povos, bem como o ulterior martírio infligido ao povo palestino. A luta contra o totalitarismo serve para legitimar e transfigurar a guerra total contra os “bárbaros” estrangeiros ao Ocidente.

Notas:

1 In Pombeni 1977, pp. 324–5. Italics are mine.
2 Horkheimer and Adorno 2002, pp. 43, 67–8. 
3 Weil 1990, pp. 218–19. 
4 Weil 1990, pp. 204, 206.
5 Talmon 1960, p. 4. 
6 Hayek 1986, pp. 8–9. 
7 Hayek 1986, p. 85. 
8 Hayek 1960, p. 55. 
9 Hayek 1986, Ch. VII.
10 Wittfogel 1959. 
11 Popper 1966, Vol. 1, p. 1. 
12 In Ruge-Schumann 1977, p. 82. 
13 Goebbels 1991, Vol. 2, pp. 163, 183.
14 Scarfoglio 1999, p. 22. 
15 Arendt 1989, p. 87. 
16 In Commager 1963, Vol. 2, p. 525. 
17 See Mao’s argument against the American Secretary of State, Dean Acheson (the speech is dated 28 August 1949).
18 Mann 1951. 
19 Arendt 1958, pp. 176, 160
20 Arendt 1958, pp. 176, 183. 
21 Arendt 1958, pp. 131, 133–4, 216. 
22 Arendt 1958, pp. 211, 212, 213. 
23 Young-Bruehl 1984, p. 158. 
24 Arendt, 1989, p. 193.
25 Arendt 1978c, p. 149. 
26 Arendt 1978a, p. 110.
27 Gleason 1995, pp. 112–3, 257, note 30. 
28 Arendt 1978b, p. 59.
29 In Hofstadter 1982, Vol. II, p. 439. 
30 Arendt 1958, pp. 308–9. 
31 Arendt 1958, p. 311.
32 In Hofstadter 1982, Vol. II, p. 428. 
33 Arendt 1958, pp. 318–9. 
34 Arendt 1958, p. 319.
35 Mann 1991, pp. 232–3.
36 Arendt 1963, pp. 58–9.
37 Mann 1951.
38 See Chang 1997; Katsuichi 1999; Hicks 1995. 
39 For the general overview of the twentieth century, see Losurdo 1996, and 1998.
40 Nolte 1978, p. 351. 
41 Mosse 1964, passim. 
42 For the analysis of Gobineau, Langbehn, Chamberlain, and Le Bon, see Losurdo 2002, Chapter 25, § 1.
43 Hitler 1971, pp. 382–3. 
44 Hitler 1971, p. 345. 
45 Hitler 1971, p. 421. 
46 Hitler 1971, p. 442. 
47 Hitler 1971, pp. 443–5 and passim. 
48 Hitler 1971, pp. 65, 352. 
49 See Losurdo 2002, Ch. 33, § 2.
50 Friedrich-Brzezinski 1968, p. 21. 
51 See Losurdo 1993, Chapter 5, § 4. 
52 Chace 1998, p. 288.
53 Chen 1994, pp. 181–6. 
54 Hitler, 1971, pp. 528–9.
55 In Strada-Kulesov 1998, p. 53.
56 In Del Carria 1970, Vol. 2, p. 224. 
57 Nolte 1978, pp. 119, 146–8. 
58 Smith 1981, p. 67 (Book I, Chapter VII). 
59 Hitler 1971, pp. 481–2.
60 Hitler 1952–4, Vol. I, p. 164. 
61 Maistre 1984, p. 205. 
62 Arendt 1958, p. 214.
63 Rosenberg 1937, pp. 666, 673. 
64 Rosenberg 1937, pp. 668–9. 
65 Hitler 1971, pp. 153–4. 
66 See Losurdo 1996, Chapter 5, p. 6.
67 Hoffmann 1913, pp. ix, 67–8. 
68 Günther 1934, p. 465. 
69 See Kühl 1994, pp. 53–63. 
70 Rosenberg 1937, p. 214. 
71 Stoddard 1925a, pp. 23–4.
72 Stoddard 1925b, pp. 220–1. 
73 On all of this, see Kühl 1994, p. 61. President Harding’s flattering comment is quoted at the beginning of the French translation of Stoddard 1925b. 
74 In Ruge-Schumann 1977, p. 36. 
75 See Losurdo 1998, pp. 8–10.
76 Paquet 1919, p. 111. Nolte 1987, p. 563 has drawn attention to this. 
77 Ludendorff 1935, p. 35 and passim. Clearly, the motif of total mobilisation is particularly tied to Ernst Jünger.
78 Navarro 1999.
79 Friedman 2001. 
80 Spinelli 2001. 
81 In Dao 2002, p. 4.

Referências: 

Arendt, Hannah 1958 [1951], The Origins of Totalitarianism, New York: Meridian Books. 
Arendt, Hannah 1963, On Revolution, New York: The Viking Press. 
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