1 de junho de 1996

A esquerda e a política de identidade

Eric J. Hobsbawm

NLR I/217 • MAY/JUNE 1996

Tradução / Minha conferência trata de um tema surpreendentemente novo[1]. Estamos tão acostumados a termos como "identidade coletiva", "grupos de identidade", "política de identidade", ou, inclusive, "etnicidade", que custa recordar que só em data recente começaram a formar parte do vocabulário ou jargão atual do discurso político. Por exemplo, se consultássemos a Encyclopedia of the Social Sciences internacional, publicada em 1968 — ou seja, escrita em meados da década de 1960 —, não encontraríamos nenhuma entrada para o termo identidade, salvo uma que trata da identidade psicossocial, redigida por Erik Erikson, preocupado principalmente por temas tais como a chamada "crise de identidade" que sofrem os adolescentes quando tentam descobrir o que são, e um fragmento geral sobre a identificação dos eleitores. E quanto a etnia, no Oxford English Dictionary de princípios da década de 1970, ainda figura só como una palavra pouco comum que indica "o mundo e a superstição pagãs" e que aparece documentada com citações do século XVIII.

Em resumo, nos ocupamos de termos e conceitos que só começaram a ser utilizados realmente na década de 1960. O seu surgimento é mais facilmente seguido nos Estados Unidos, em parte porque sempre foi uma sociedade extraordinariamente interessada em monitorar a temperatura social e psicológica, pressão arterial e outros sintomas e principalmente porque a forma mais óbvia de identidade política, mas não a única, ou seja, a etnia, sempre foi central para a política estadunidense desde que este se converteu em um país de imigração massiva procedente de todos os pontos da Europa. Preliminarmente, pode-se dizer que que a nova etnia faz sua primeira aparição pública em 1963 com Beyond the Melting Pot, de Glazer e Moynihan, e que em 1972 se converte em um programa militante com The Rise of Unmeltable Ethnics, de Michael Novak. O primeiro, eu não preciso dizer, foi o trabalho de um professor judeu e um irlandês, atualmente senador democrata sênior por Nova York; o autor do segundo era um católico de origem eslovaca. No momento, você não precisa se preocupar muito sobre por que tudo isso aconteceu na década de 1960, mas deixe-me lembrá-lo que — pelo menos no cenário dos movimentos dos Estados Unidos, onde estes eventos ocorreram — esta década assistiu também ao surgimento de outras duas variantes da política de identidade: o movimento das mulheres contemporâneo (isto é, pós-sufragista) e o movimento gay.

Não pretendo dizer que antes da década de 1960 ninguém se fazia perguntas sobre sua identidade pública. Às vezes, em situações de incerteza, houve grupos que as fizeram; por exemplo, no cinturão industrial de Lorena, na França, cuja língua oficial e nacionalidade mudou cinco vezes em um século e cuja vida rural tornou-se industrial, semi-urbana, enquanto que suas fronteiras foram alteradas sete vezes no último século e meio. Não é de se estranhar que os habitantes dessa região dizem o seguinte: "Os berlinenses sabem que são berlinenses, os parisienses sabem que são parisienses, mas quem somos nós?". Ou, para citar outra entrevista: "Sou da Lorena, minha cultura é alemã, minha nacionalidade, francesa, e penso em nosso dialeto provincial"[2]. Na verdade, este tipo de situação só levou a problemas de identidade genuína quando as pessoas foram impedidas de manter identidades múltiplas, combinadas, que são naturais para a maioria de nós. Ou, mais ainda, quando estas se encontravam desligadas "das práticas culturais antigas e comuns a todos"[3]. No entanto, até os anos 1960, esses problemas de identidade incerta foram confinados a zonas de fronteira especiais da política. Eles ainda não eram centrais.

Parecem haver adquirido uma importância fundamental a partir da década de 1960. Por quê? Sem dúvida, encontramos razões particulares na política e instituições deste ou aquele país: assim, nos procedimentos peculiares impostos pela Constituição dos Estados Unidos, que deram lugar, por exemplo, aos juízos de direitos civis da década de 1950, que em um primeiro momento tiveram como protagonistas aos negros e depois se estenderam às mulheres, proporcionando um modelo para outros grupos de identidade. Poderíamos dizer que, sobretudo em países onde os partidos competem pelos votos, constituir-se como um grupo de identidade deste tipo pode aportar vantagens políticas concretas: por exemplo, discriminação positiva a favor dos membros do grupo, cotas em postos de trabalho, etc. Os Estados Unidos são de novo um exemplo a respeito, mas não o único. Por exemplo, na Índia, onde o governo se comprometeu a garantir a igualdade social, pode resultar realmente proveitoso declarar-se membro de uma casta baixa ou de um grupo tribal indígena com o fim de desfrutar do acesso extraordinário ao emprego garantido para tais grupos.

A negação da identidade múltipla

Mas, em minha opinião, o surgimento da política de identidade é uma conseqüência dos movimentos e transformações extraordinariamente rápidos e profundos da sociedade humana no terceiro quarto deste século, que tentei descrever e compreender na segunda parte da minha história da "Era dos Extremos: O breve século XX. Esta não é uma visão apenas minha. O sociólogo americano Daniel Bell, por exemplo, argumentou em 1975 que "a separação das estruturas de autoridade tradicional e as unidades sociais afetivas anteriores — historicamente nação e classe... tornam o apego étnico mais saliente".[4]

De fato, sabemos que tanto o Estado-nação quanto os antigos partidos e movimentos políticos de classe foram enfraquecidos como resultado dessas transformações. Mais do que isso, estamos vivendo – estamos vivendo — uma gigantesca "revolução cultural", uma "extraordinária dissolução das normas, texturas e valores sociais tradicionais, que deixou tantos habitantes do mundo desenvolvido órfãos e desamparados". Posso continuar citando a mim mesmo: "Nunca a palavra 'comunidade' foi usada de forma mais indiscriminada e vazia do que nas décadas em que as comunidades no sentido sociológico se tornaram difíceis de encontrar na vida real".[5] Homens e mulheres procuram grupos aos quais possam pertencer, com certeza e para sempre, em um mundo em que tudo mais está se movendo e mudando, em que nada mais é certo. E eles o encontram em um grupo de identidade. Daí o estranho paradoxo, que o brilhante, aliás, sociólogo caribenho de Harvard, Orlando Patterson, identificou: as pessoas escolhem pertencer a um grupo de identidade, mas "é uma escolha baseada na crença fortemente mantida e intensamente concebida de que o indivíduo não tem absolutamente nenhuma escolha a não ser pertencer a esse grupo específico"[6] Que é uma escolha às vezes pode ser demonstrado. O número de americanos que se declaram "índios americanos" ou "nativos americanos" quase quadruplicou entre 1960 e 1990, de cerca de meio milhão para cerca de dois milhões, o que é muito mais do que poderia ser explicado pela demografia normal; e incidentalmente, uma vez que 70 por cento dos "nativos americanos" se casam fora de sua raça, exatamente quem é um "nativo americano" etnicamente, está longe de ser claro.[7]

Então, o que entendemos por essa "identidade" coletiva, esse sentimento de pertencimento a um grupo primário, que é sua base? Chamo a atenção para quatro pontos.

Primeiro, as identidades coletivas são definidas negativamente; isto é, contra os outros. "Nós" nos reconhecemos como ‘nós’ porque somos diferentes de ‘Eles’. Se não houvesse ‘Eles’ de quem somos diferentes, não teríamos que nos perguntar quem ‘Nós’ éramos. Sem Outsiders não há Insiders. Em outras palavras, as identidades coletivas não se baseiam no que seus membros têm em comum — eles podem ter muito pouco em comum, exceto não serem os “Outros”. Sindicalistas e nacionalistas em Belfast, ou sérvios, croatas e bósnios muçulmanos, que de outra forma seriam indistinguíveis — eles falam a mesma língua, têm os mesmos estilos de vida, parecem e se comportam da mesma forma — insistem na única coisa que os divide, que passa a ser religião. Por outro lado, o que dá unidade como palestinos a uma população mista de muçulmanos de vários tipos, católicos romanos e gregos, ortodoxos gregos e outros que podem muito bem - como seus vizinhos no Líbano - lutar entre si em diferentes circunstâncias? Simplesmente que eles não são os israelenses, como a política israelense continuamente os lembra.

Claro, existem coletividades que se baseiam em características objetivas que seus membros têm em comum, incluindo gênero biológico ou características físicas politicamente sensíveis como cor da pele e assim por diante. No entanto, a maioria das identidades coletivas são como camisas em vez de pele, ou seja, são, pelo menos em teoria, opcionais, não inevitáveis. Apesar da moda atual de manipular nossos corpos, ainda é mais fácil vestir outra camisa do que outro braço. A maioria dos grupos de identidade não se baseia em semelhanças ou diferenças físicas objetivas, embora todos eles afirmem que são “naturais” e não socialmente construídos. Certamente todos os grupos étnicos o fazem.

Em segundo lugar, segue-se que na vida real as identidades, como as roupas, são intercambiáveis ou vestíveis em combinação, em vez de únicas e, por assim dizer, presas ao corpo. Pois, claro, como todo pesquisador de opinião sabe, ninguém tem uma e apenas uma identidade. Os seres humanos não podem ser descritos, mesmo para fins burocráticos, exceto por uma combinação de muitas características. Mas a política de identidade assume que uma entre as muitas identidades que todos temos é aquela que determina, ou pelo menos domina nossa política: ser mulher, se você é feminista, ser protestante, se você é sindicalista Antrim, ser catalão, se você é um nacionalista catalão, sendo homossexual se você está no movimento gay. E, claro, que você tem que se livrar dos outros, porque eles são incompatíveis com o seu ‘verdadeiro’ você. Assim, David Selbourne, um ideólogo multifacetado e denunciante geral, conclama firmemente “O judeu na Inglaterra” a “deixar de fingir ser inglês” e a reconhecer que sua identidade “real” é a de judeu. Isso é perigoso e absurdo. Não há incompatibilidade prática, a menos que uma autoridade externa lhe diga que você não pode ser ambos, ou a menos que seja fisicamente impossível ser ambos. Se eu quisesse ser simultânea e ecumenicamente um católico devoto, um judeu devoto e um budista devoto, por que não deveria? A única razão que me detém fisicamente é que as respectivas autoridades religiosas podem me dizer que não posso combiná-los, ou que pode ser impossível realizar todos os seus rituais porque alguns atrapalham os outros.

Normalmente, as pessoas não têm problemas em combinar identidades, e isso, é claro, é a base da política geral distinta da política de identidade seccional. Muitas vezes as pessoas nem se dão ao trabalho de escolher entre as identidades, seja porque ninguém pergunta, seja porque é muito complicado. Quando os habitantes dos EUA são solicitados a declarar suas origens étnicas, 54% se recusam ou não sabem responder. Em resumo, políticas de identidade exclusivas não vêm naturalmente para as pessoas. É mais provável que seja imposto a eles de fora - da maneira como os habitantes sérvios, croatas e muçulmanos da Bósnia que viveram juntos, socializaram e se casaram, foram forçados a se separar, ou de maneiras menos brutais.

A terceira coisa a dizer é que as identidades, ou sua expressão, não são fixas, mesmo supondo que você tenha optado por um de seus muitos eus potenciais, da mesma forma que Michael Portillo optou por ser britânico em vez de espanhol. Eles mudam e podem mudar, se necessário, mais de uma vez. Por exemplo, grupos não étnicos, cujos membros são todos ou a maioria negros ou judeus, podem se transformar em grupos conscientemente étnicos. Isso aconteceu com a Igreja Batista Cristã do Sul sob Martin Luther King. O oposto também é possível, como quando o Official ira se transformou de um nacionalista feniano em uma organização de classe, que agora é o Partido dos Trabalhadores e parte da coalizão do governo da República da Irlanda.

A quarta e última coisa a dizer sobre identidade é que ela depende do contexto, que pode mudar. Todos nós podemos pensar em membros pagos e de carteirinha da comunidade gay em Oxbridge da década de 1920 que, após a crise de 1929 e a ascensão de Hitler, mudaram, como eles gostavam de dizer, de Homintern para Comintern. Burgess e Blunt, por assim dizer, transferiram sua homossexualidade da esfera pública para a esfera privada. Ou, considere o caso do erudito clássico alemão protestante, Pater, um professor de clássicos em Londres, que repentinamente descobriu, depois de Hitler, que ele tinha que emigrar, porque, pelos padrões nazistas, ele era na verdade judeu - um fato que até naquele momento, ele não sabia. No entanto, ele havia se definido anteriormente, agora ele tinha que encontrar uma identidade diferente.

O universalismo da esquerda

O que tudo isso tem a ver com a esquerda? Grupos de identidade certamente não eram centrais para a esquerda. Basicamente, os movimentos sociais e políticos de massa da esquerda, isto é, aqueles inspirados pelas revoluções americana e francesa e pelo socialismo, eram de fato coalizões ou alianças de grupo, mas mantidas unidas não por objetivos específicos do grupo, mas por grandes causas universais através das quais cada grupo acreditava que seus objetivos particulares poderiam ser alcançados: a democracia, a República, o socialismo, o comunismo ou o que quer que fosse. Nosso próprio Partido Trabalhista em seus grandes dias era tanto o partido de uma classe quanto, entre outras coisas, das nações minoritárias e comunidades de imigrantes continentais da Grã-Bretanha. Era tudo isso, porque era um partido de igualdade e justiça social.

Não vamos interpretar mal sua pretensão de ser essencialmente baseada em classes. Os movimentos políticos trabalhistas e socialistas não foram, em nenhum lugar, movimentos essencialmente confinados ao proletariado no sentido marxista estrito. Exceto talvez na Grã-Bretanha, eles não poderiam ter se tornado movimentos tão vastos como se tornaram, porque nas décadas de 1880 e 1890, quando os partidos trabalhistas e socialistas de massa de repente apareceram em cena, como campos de jacintos na primavera, a classe trabalhadora industrial na maioria dos países era uma minoria bastante pequena e, de qualquer forma, muitos deles permaneceram fora da organização trabalhista socialista. Lembre-se que na época da Primeira Guerra Mundial os social-democratas representavam entre 30 e 47 por cento do eleitorado em países como Dinamarca, Suécia e Finlândia, que eram pouco industrializados, assim como na Alemanha. (A maior porcentagem de votos já alcançada pelo Partido Trabalhista neste país, em 1951, foi de 48 por cento.) Além disso, a defesa socialista da centralidade dos trabalhadores em seu movimento não era um caso seccional. Os sindicatos perseguiam os interesses seccionais dos assalariados, mas uma das razões pelas quais as relações entre os partidos trabalhistas e socialistas e os sindicatos a eles associados nunca foram isentas de problemas, foi precisamente que os objetivos do movimento eram mais amplos do que os do sindicatos. O argumento socialista não era apenas que a maioria das pessoas eram “trabalhadores manuais ou cerebrais”, mas que os trabalhadores eram a agência histórica necessária para mudar a sociedade. Então, quem quer que você fosse, se quisesse o futuro, teria que seguir o movimento dos trabalhadores.

Por outro lado, quando o movimento trabalhista se reduziu a nada além de um grupo de pressão ou um movimento seccional de trabalhadores industriais, como na Grã-Bretanha dos anos 1970, ele perdeu tanto a capacidade de ser o centro potencial de uma mobilização popular geral quanto a esperança geral do futuro. O sindicalismo militante 'economista' antagonizou as pessoas não diretamente envolvidas nele a tal ponto que deu ao toryismo thatcherista seu argumento mais convincente — e a justificativa para transformar o tradicional Partido Conservador de 'uma nação' em uma força para travar militantes classistas. guerra. Além disso, essa política de identidade proletária não apenas isolou a classe trabalhadora, mas também a dividiu ao colocar grupos de trabalhadores uns contra os outros.

O que tem, então, a política de identidade a ver com a esquerda? Permitam que o diga com firmeza o que nem deveria ser necessário dizer: o projeto político da esquerda é universalista, é para todos os seres humanos. Independentemente da forma como interpretamos estas palavras, não se trata de liberdade para acionistas ou para negros, mas para todos. Não se trata de igualdade para todos os membros do Garrick Club ou para as pessoas com deficiência, mas para todos. Não se trata de fraternidade apenas para os velhos etonianos ou para os gays, mas para todos. E a política de identidade serve, no essencial, apenas para os membros de um grupo específico, e não para todos. Isto é perfeitamente evidente no caso dos movimentos étnicos ou nacionalistas. O nacionalismo sionista judaico, simpatizemos ou não com ele, se centra exclusivamente nos judeus, e isola, ou melhor, bombardeia, o resto. Todos os nacionalismos são exclusivistas. A afirmação nacionalista que sustenta que o que se defende é o direito à autodeterminação para todos é enganosa.

É por isso que a esquerda não pode se basear em políticas de identidade. Tem uma agenda mais ampla. Para a esquerda, a Irlanda foi, historicamente, um, mas apenas um, entre os muitos conjuntos de seres humanos explorados, oprimidos e vitimizados pelos quais lutou. Para o tipo de nacionalismo do ira, a esquerda foi, e é, apenas um possível aliado na luta por seus objetivos em determinadas situações. Em outros, ela estava pronta para pedir o apoio de Hitler, como fizeram alguns de seus líderes durante a Segunda Guerra Mundial. E isso se aplica a todo grupo que faz da política de identidade sua base, étnica ou não.

Agora, a agenda mais ampla da esquerda significa, é claro, que ela apóia muitos grupos de identidade, pelo menos parte do tempo, e eles, por sua vez, olham para a esquerda. De fato, algumas dessas alianças são tão antigas e tão próximas que a esquerda se surpreende quando elas chegam ao fim, assim como as pessoas se surpreendem quando os casamentos se desfazem depois de uma vida inteira. Nos Estados Unidos, quase parece contra a natureza que os ‘étnicos’ – isto é, os grupos de imigrantes em massa pobres e seus descendentes – não mais votem quase automaticamente no Partido Democrata. Parece quase inacreditável que um americano negro possa sequer considerar concorrer à presidência dos Estados Unidos como republicano (estou pensando em Colin Powell). E, no entanto, o interesse comum de irlandeses, italianos, judeus e negros americanos no Partido Democrata não derivava de suas etnias particulares, embora políticos realistas prestassem homenagem a eles. O que os unia era a fome de igualdade e justiça social, e um programa que se acreditava ser capaz de promover ambos.

O interesse comum

Mas isto é precisamente o que tanta gente da esquerda esquece, à medida em que se submerge nas águas profundas da política de identidade. Tem havido, desde a década de 1970, uma tendência - uma tendência crescente - para ver a esquerda essencialmente como uma coligação de grupos e interesses minoritários: de raça, gênero, preferências e estilos de vida sexuais e culturais e até mesmo de minorias econômicas, como veio a ser a antiga classe trabalhadora industrial que antes se ocupava das tarefas sujas. Isto é compreensível mas perigoso, tanto mais que ganhar maiorias não é a mesma coisa que somar minorias.

Em primeiro lugar, deixe-me repetir: os grupos identitários vivem centrados em si próprios, para si próprios, e para mais ninguém. Uma coligação desses grupos que não se mantenha através de um conjunto comum de objetivos ou valores não terá mais do que uma unidade ad hoc, um pouco como os estados aliados temporariamente em guerra contra um inimigo comum. Se separam quando já não têm necessidade de estar juntos. Em qualquer caso, como grupos de identidade, não têm um compromisso com a esquerda como tal, mas se limitam a obter apoios para seus próprios objetivos sempre que podem. Pensamos na emancipação das mulheres como una causa intimamente associada à esquerda, como tem sido sem dúvida desde a origem do socialismo, mesmo antes de Marx e Engels. No entanto, historicamente, o movimento sufragista britânico anterior a 1914 era um movimento dos três partidos, e a primeira mulher que chegou a ser membro do parlamento pertencia, como sabemos, ao Partido Conservador.[9]

Em segundo lugar, qualquer que seja sua retórica, os movimentos e organizações atuais de política de identidade mobilizam apenas minorias, pelo menos antes de adquirirem o poder de coerção e lei. O sentimento nacional pode ser universal, mas, pelo que sei, nenhum partido nacionalista secessionista em estados democráticos conseguiu até agora os votos da maioria de seu eleitorado (embora os quebequenses no outono passado tenham chegado perto - mas então seus nacionalistas foram cuidadosos não para exigir secessão completa com tantas palavras). Eu não digo que isso não possa ou não acontecerá - apenas que a maneira mais segura de obter a independência nacional por secessão até agora tem sido não pedir às populações que votem nela até que você já a tenha primeiro por outros meios.

Isso, aliás, dá duas razões pragmáticas para ser contra a política de identidade. Sem essa compulsão ou pressão externa, em circunstâncias normais dificilmente mobiliza mais do que uma minoria - mesmo do grupo-alvo. Portanto, as tentativas de formar partidos políticos femininos separados não têm sido formas muito eficazes de mobilizar o voto feminino. A outra razão é que forçar as pessoas a assumir uma, e apenas uma, identidade as separa umas das outras. Portanto, isola essas minorias.

Conseqüentemente, comprometer um movimento geral com as demandas específicas de grupos de pressão minoritários, que não são necessariamente nem mesmo aqueles de seus constituintes, é pedir problemas. Isso é muito mais óbvio nos Estados Unidos, onde a reação contra a discriminação positiva em favor de minorias específicas e os excessos do multiculturalismo são agora muito fortes; mas o problema existe aqui também.

Hoje, quer a Direita quer a Esquerda estão sobrecarregadas de políticas da identidade. Infelizmente, o perigo de desintegração numa pura aliança de minorias é enorme à Esquerda, visto que o declínio dos grandes lemas universalistas do Iluminismo, que foram essencialmente lemas da esquerda, deixa-a sem qualquer forma óbvia de formular um interesse comum entre os limites seccionais. O único entre os denominados "novos movimentos sociais" que traspassa todas estas fronteiras é o ecologista. Mas, infelizmente, seu atrativo político é limitado e provavelmente continuará a sê-lo.

No entanto, existe uma forma de política identitária que é realmente abrangente, na medida em que se baseia em um apelo comum, pelo menos nos limites de um único Estado: o nacionalismo cidadão. Visto na perspectiva global, isso pode ser o oposto de um apelo universal, mas visto na perspectiva do estado nacional, que é onde a maioria de nós ainda vive e provavelmente continuará vivendo, fornece uma identidade comum, ou em A frase de Benedict Anderson, 'uma comunidade imaginada' não é menos real por ser imaginada. A direita, especialmente a direita no governo, sempre alegou monopolizar isso e geralmente ainda pode manipulá-lo. Até mesmo o Thatcherismo, o coveiro do “toryismo de uma nação”, fez isso. Mesmo seu sucessor fantasmagórico e moribundo, o governo de Major, espera evitar a derrota eleitoral condenando seus oponentes como antipatrióticos.

Por que, então, tem sido tão difícil para a esquerda, e sem dúvida para a esquerda dos países de língua inglesa, ver-se como representante de toda a nação? (Aqui evidentemente me refiro à nação como comunidade de indivíduos de um país, não como entidade étnica.) Por que tem sido tão difícil até mesmo tentar? Afinal, as origens da esquerda europeia remontam ao momento em que uma classe, ou uma aliança de classes, o Terceiro Estado dos Estados Gerais franceses de 1789, decidiu declarar-se "a nação", contra a minoria da classe governante, criando assim o próprio conceito de "nação" política. Afinal, inclusive Marx previa uma transformação desse tipo no Manifesto Comunista [10]. Na verdade podemos ir mais além. Todd Gitlin, um dos melhores observadores da esquerda norte-americana, colocou de forma dramática em seu novo livro, The Twilight of Common Dreams: ‘O que é uma Esquerda se não for, pelo menos de um modo plausível, a voz de todo o povo?... Se não houver povo mas apenas povos, não há Esquerda.’ [11]

A voz abafada do Novo Trabalhismo

Houve épocas em que a esquerda não só queria ser a nação, mas que foi aceita como representante do interesse nacional, inclusive por aqueles que não tinham especial simpatia por suas aspirações: nos Estados Unidos, quando o Partido Democrata rooseveltiano desfrutava de hegemonia política, na Escandinávia desde princípios da década de 1930. De modo mais geral, quando terminou a Segunda Guerra Mundial, a esquerda representava a nação no sentido mais literal quase em toda a Europa, porque representava a resistência e a vitória contra Hitler e seus aliados. Daí a singular união entre o patriotismo e a transformação social, que dominou a política europeia imediatamente depois de 1945. O mesmo aconteceu na Grã Bretanha, onde 1945 foi um plebiscito em favor do Partido Trabalhista como partido que melhor representava a nação, frente ao conservadorismo de toda uma nação, capitaneado pelo dirigente do período de guerra mais carismático e vitorioso da cena política. O qual marcou o rumo dos próximos trinta e cinco anos da história do país. Muito mais recentemente, François Mitterrand, um político sem um compromisso natural com a esquerda, optou por presidir o Partido Socialista como a melhor plataforma para exercer a liderança sobre toda a população francesa.

Alguém poderia pensar que hoje era outro momento em que a esquerda britânica poderia reivindicar falar pela Grã-Bretanha - isto é, por todo o povo - contra um regime desacreditado, decrépito e desmoralizado. E, no entanto, quão raramente as palavras "o país", 'Grã-Bretanha', 'a nação', 'patriotismo', até mesmo "o povo" são ouvidas na retórica pré-eleitoral daqueles que esperam se tornar o próximo governo do Reino Unido!

Tem sido sugerido que isso ocorre porque, ao contrário de 1945 e 1964, “nem o político nem seu público têm nada além de uma crença modesta na capacidade do governo de fazer muito”. [10] Se é por isso que os trabalhistas falam para e sobre a nação com uma voz tão abafada, isso é triplamente absurdo. Primeiro, porque se os cidadãos realmente pensam que o governo não pode fazer muito, por que deveriam se preocupar em votar em um lote em vez de outro, ou em qualquer lote? Em segundo lugar, porque o governo, ou seja, a gestão do Estado no interesse público, é indispensável e continuará a sê-lo. Mesmo os ideólogos da direita louca, que sonham em substituí-la pelo mercado soberano universal, precisam dela para estabelecer sua utopia, ou melhor, distopia. E na medida em que conseguem, como em grande parte do mundo ex-socialista, a reação contra o mercado traz de volta à política aqueles que querem que o Estado retorne à responsabilidade social. Em 1995, cinco anos depois de abandonar seu antigo estado com alegria e entusiasmo, dois terços dos alemães orientais pensam que a vida e as condições na antiga RDA eram melhores do que as 'descrições e relatórios negativos' da mídia alemã de hoje, e 70 por cento pensam ' a ideia do socialismo era boa, mas tínhamos políticos incompetentes'. E, sem resposta, porque nos últimos dezessete anos vivemos sob governos que acreditavam que o governo tinha um poder enorme, que usaram esse poder para mudar nosso país decisivamente para pior e que, em seus últimos dias, ainda estão tentando fazê-lo, e nos levar a acreditar que o que um governo fez é irreversível por outro. O estado não vai desaparecer. É função do governo usá-lo.

O governo não é apenas sobre ser eleito e depois reeleito. Este é um processo que, na política democrática, implica enormes quantidades de mentiras em todas as suas formas. As eleições tornam-se disputas em perjúrio fiscal. Infelizmente, os políticos, que têm um horizonte de tempo tão curto quanto os jornalistas, acham difícil ver a política como outra coisa que não seja uma temporada de campanha permanente. No entanto, há algo além. Aí está o que o governo faz e deve fazer. Aí está o futuro do país. Existem as esperanças e os medos do povo como um todo - não apenas 'a comunidade', que é uma desculpa ideológica, ou a soma total dos que ganham e gastam (os 'contribuintes' do jargão político), mas os britânicos gente, o tipo de coletivo que estaria pronto para torcer pela vitória de qualquer seleção britânica na Copa do Mundo, se não tivesse perdido a esperança de que ainda existisse. Pois não é o menor sintoma do declínio da Grã-Bretanha, com o declínio da ciência, o declínio dos esportes coletivos britânicos.

Foi a força da senhora Thatcher que ela reconheceu essa dimensão da política. Ela se via liderando um povo “que pensava que não poderíamos mais fazer as grandes coisas que fazíamos antes” – cito suas palavras – “aqueles que acreditavam que nosso declínio era irreversível, que nunca mais poderíamos ser o que éramos”. [11] Ela não era como os outros políticos, na medida em que reconhecia a necessidade de oferecer esperança e ação a um povo perplexo e desmoralizado. Uma falsa esperança, talvez, e certamente o tipo errado de ação, mas o suficiente para deixá-la afastar a oposição dentro e fora de seu partido, e mudar o país e destruir tanto dele. O fracasso de seu projeto agora é manifesto. Nosso declínio como nação não foi interrompido. Como povo, estamos mais perturbados, mais desmoralizados do que em 1979, e sabemos disso. Somente aqueles que sozinhos podem formar o governo pós-conservador estão desmoralizados demais e assustados com o fracasso e a derrota para oferecer qualquer coisa, exceto a promessa de não aumentar os impostos. Podemos vencer as próximas eleições gerais dessa forma e espero que sim, embora os Conservadores não lutem contra a campanha eleitoral principalmente com base nos impostos, mas no sindicalismo britânico, no nacionalismo inglês, na xenofobia e na Union Jack, e ao fazê-lo vão nos pegar equilíbrio. Será que aqueles que nos elegeram realmente acreditam que faremos muita diferença? E o que faremos se eles apenas nos elegerem, encolhendo os ombros ao fazê-lo? Teremos criado o Novo Partido Trabalhista. Faremos o mesmo esforço para restaurar e transformar a Grã-Bretanha? Ainda dá tempo de responder a essas perguntas.

Notas:

[1] Este é o texto da Barry Amiel and Norman Melburn Trust Lecture, pronunciada no Institut of Education de Londres, em 02 de maio de 1996.

[2] M.L. Pradelles de Latou, "Identity as a Complex Network", in C. Fried, ed., Minorities, Community and Identity, Berlin 1983, p. 79.

[3] Ibid. p. 91.

[4] Daniel Bell, "Ethnicity and Social Change", in Nathan Glazer and Daniel P. Moynihan, eds., Ethnicity: Theory and Experience, Cambridge, Mass. 1975, P. 171

[5] E.J. Hobsbawm, The Age of Extremes. The Short Twentieth Century, 1914-1991, London 1994, p. 428.

[6] O. Patterson, "Implications of Ethnic Identification" in Fried, ed., Minorities: Community and Identity, pp. 28-29. O. Patterson, "Implications of Ethnic Identification" in Fried, ed., Minorities: Community and Identity, pp. 28-29.

[7] O. Patterson, "Implications of Ethnic Identification" in Fried, ed., Minorities: Community and Identity, pp. 28-29.

[8] Jihang Park, "The British Suffrage Activists of 1913", Past & Present, no. 120, August 1988, pp. 156-7.

[9] "Mas, porque o proletariado deve em primeiro lugar conquistar o poder político, elevar-se à condição de classe nacional, constituir-se em nação, ainda é nacional, embora de modo algum no sentido burguês"; Karl Marx e Frederick Engels, The Communist Manifesto, 1848, II parte. Na edição original (alemã) aparece o termo "classe nacional"; na tradução inglesa de 1888 figura como "a classe que lidera a nação".

[10] Gitlin, The Twilight of Common Dreams, New York 1995, p. 165.

[11] Hugo Young, "No Waves in the Clear Blue Water", The Guardian, 23 April 1996, p. 13.

[12] Citado em Eric Hobsbawm, Politics for a Rational Left, Verso, London 1989, p. 54.

1 de fevereiro de 1996

Do foquismo ao reformismo: Castañeda e a esquerda latino-americana

Luís Fernandes


Jorge G. Castaneda, Utopia Unarmed: The Latin American Left after the Cold War
Knopf: New York 1993

"Nenhum plano sobrevive ao contato com o inimigo." Marechal Helmuth Carl Bernard von Molthe (1800-1891)

Em edição anterior (1), a New Left Review publicou uma resenha basicamente favorável do livro de Jorge Castañeda Utopia Desarmada. Esta resenha foi escrita por James Dunkerley, a partir de um enfoque predominantemente hispano-americano. Pouco depois da publicação desta, o livro de Castañeda foi lançado no Brasil com um subtítulo diferente da versão original (2). O próprio Castañeda veio ao Rio de Janeiro e São Paulo lançar a versão do seu livro em língua portuguesa. Apesar do eficiente esquema de divulgação, no entanto, o livro não chegou a provocar, nos meios acadêmicos e políticos brasileiros, o mesmo frisson polêmico que suscitou nos Estados Unidos e nos países de língua espanhola da América Latina.

Este fato em si é merecedor de maior atenção e reflexão. Em parte, pode ser decorrência da própria fragilidade da identidade latino-americana no Brasil, da perspectiva eurocêntrica adotada por grande parte da sua elite intelectual, bem como da aguda consciência nacional sobre o “excepcionalismo brasileiro” no continente. Estas atitudes foram reforçadas pela imagem excessivamente genérica e indiferenciada da América Latina apresentada pelo próprio Castañeda – apesar de repetidas declarações em contrário. De fato, quando examinadas mais de perto, inúmeras informações veiculadas sobre o Brasil no livro são um tanto bizarras (3). Para além destas inconsistências, no entanto, o livro de Castañeda aborda, de forma corajosa e aberta, os problemas programáticos, estratégicos e táticos mais cruciais que se apresentam para a esquerda latino-americana à luz da derrota de seus próprios intentos revolucionários e do colapso do socialismo no Leste.

Utopia Desarmada procura levar às suas últimas conseqüências (políticas e teóricas) o processo de reorientação político-ideológica atualmente empreendida por grande parte da esquerda do continente, destacando o grau de ruptura que esta reorientação implica para com concepções e práticas do passado – algo que muitos dos seus líderes não conseguem ou não querem fazer. Deste ponto de vista, trata-se – um século depois – de um equivalente latino-americano do trabalho clássico de Eduard Bernstein, Os Pressupostos do Socialismo e as Tarefas da Social-Democracia. Castañeda certamente levanta questões pertinentes e fundamentais. Mas, será que nos apresenta um marco apropriado e viável para confrontá-las? A minha avaliação é que não. Sustentar esta apreciação exige um exame mais detido da construção do seu argumento no livro.

As lentes do Castañeda
O argumento central de Utopia Desarmada é o de que, face à dupla impossibilidade da revolução e do socialismo, a esquerda latino-americana tem de mudar de curso. Este argumento é explorado em duas partes inter relacionadas. Na primeira, um ambicioso painel histórico do desenvolvimento e das derrotas da esquerda no continente ao longo deste século aponta para o esgotamento de perspectivas centradas na “revolução”. Na segunda, Castañeda procura compor uma agenda alternativa para a esquerda latino-americana centrada na “reforma”, já que o colapso do bloco soviético teria revelado a inviabilidade do seu paradigma socialista anterior (4).

A resenha histórica do livro cobre o desenvolvimento tanto da esquerda “política” quanto “social”, mas seu foco principal de análise recai mesmo sobre as “intrigas, dilemas e promessas” (5) das quatro principais correntes da “esquerda política” continental: os partidos comunistas, os movimentos “populistas”, as organizações político-militares inspiradas pela revolução cubana e a “nova esquerda reformista”. Castañeda enfoca esta resenha por um ângulo muito específico: o da ascensão, crise e derrota (ou conversão) de duas grandes "ondas" de movimentos guerrilheiros inspirados (e, em geral, apoiados) por Cuba um conjunto bastante heterogêneo de organizações marcadas por uma fixação quase que obsessiva com a questão da luta armada, a que se convencionou chamar de foquistas, fidelistas ou castristas. Não por acaso, a narrativa histórica do livro toma como ponto de partida os montoneros argentinos, que são apresentados como experiência arquetípica da esquerda latino-americana. A adoção desta perspectiva introduz um viés particular à narrativa, com implicações importantes para a sua análise.

Imigrantes ilegais
A primeira consequência da adoção deste viés é a desqualificação algo ligeira e superficial das duas correntes que precederam o advento das organizações revolucionárias “político-militares” na esquerda continental: a dos partidos comunistas e a dos movimentos e regimes “populistas”. Os primeiros são apresentados como um produto “não enraizado nas circunstâncias locais” – “uma variedade importada” de “natureza congenitamente estrangeira” (p. 37). Isto explicaria o seu “lento e silencioso esvaziamento” em meados dos anos 1980. Embora tanto Castañeda quanto Dunkerley procurem sustentar essa apreciação em considerações desenvolvidas por Alan Angell (6), o fato é que eles simplesmente generalizam e reproduzem um dos preconceitos mais antigos lançados contra a esquerda pela elites mais conservadoras da América Latina preconceito este que não se sustenta diante de uma análise objetiva e conscienciosa da trajetória dos partidos comunistas mais importantes da região.

É ponto passivo, hoje, o reconhecimento de que os comunistas latino-americanos tenderam a subscrever uma concepção limitada e unilateral do socialismo baseada no “modelo soviético”. Não foram, no entanto, os únicos a fazê-lo, quer entre as correntes de esquerda na região ou entre os partidos comunistas do resto do mundo. Também são conhecidos os traumas e prejuízos causados aos partidos comunistas da região pela implementação de mudanças bruscas e erráticas nas suas respectivas linhas políticas, de forma a adaptá-las às cambiantes exigências da política externa soviética (7). Isto está longe de significar que estes partidos constituíam uma força essencialmente exógena, descolada das circunstâncias locais. Alguns deste partidos – como os de Cuba, Chile, Brasil e Uruguai – exerceram, durante décadas, um papel bastante decisivo e influente na vida política dos seus respectivos países, apesar de serem constantemente discriminados, perseguidos e reprimidos. Isto seria impensável no caso de organizações políticas não enraizadas em necessidades e demandas locais (8). Ademais, a acusação de 'não-latino-americanismo' formulada por Castañeda – e reforçada por Dunkerley – toca uma nota teórica e política anti-universalista, que me parece francamente incompatível com qualquer projeto de emancipação humana (9).

Se os pontos levantados acima são válidos, resta a seguinte questão: por que a influência política da maioria dos partidos comunistas latino-americanos minguou? A resposta para esta indagação não é simples ou direta, e demanda séria pesquisa e debate. O ponto principal levantado por Castañeda é o de que a natureza exógena desses partidos tolheu, de forma irremediável, os seus credenciais reformistas. Sugiro uma explicação diferente: a de que a perda de influência possa ser decorrência da descaracterização política e ideológica que acometeu esses partidos ao assumirem o protagonismo do mesmo tipo de aggiornamento que Castañeda nos propõe hoje (10). Não estou argumentando, aqui, contra a renovação das práticas e concepções da esquerda, mas apenas enfatizando de que variados cursos de aggiornamento são possíveis – e que cabe pesar cuidadosamente os limites, os riscos e as potencialidades de cada um (empreendimento do qual Castañeda se esquiva, por enfraquecer a argumentação em defesa do tipo especifico de renovação que ele propõe).

O "populismo" nacionalista
O tratamento dado aos movimentos e regimes “populistas” pelo livro é, em geral, mais favorável. Estes são vistos como integrantes de uma corrente "profundamente enraizada na história e na tradição do hemisfério" (p. 54). Castañeda se esquiva dos problemas analíticos e conceituais gerados pela própria utilização da categoria 'populismo' – um tema muito polêmico nos Círculos políticos e intelectuais latino-americanos, pois envolve um determinado posicionamento (crítico) diante de importantes partidos, movimentos e lideranças da região no presente e no passado. O mínimo que se pode dizer é que se trata de um conceito carregado e impreciso, que engloba fenômenos bastante heterogêneos, tanto por sua orientação política, quanto por sua base social: desde o trio “original” Vargas-Péron-Cárdenas, até as experiências mais recentes de Alan Garcia no Peru e Leonel Brizola no Brasil, passando por Victor Paz Estenssoro na Bolívia e Ornar Torrijos no Panamá.

Castañeda desqualifica os partidos comunistas e os regimes “populistas”
Uma característica básica comum a todos estes movimentos e regimes era a sua ênfase na afirmação nacional e o seu recurso ao intervencionismo estatal como instrumento crucial para a promoção do desenvolvimento econômico e social. Nesta base, eles desempenharam um papel central na configuração e consolidação de estruturas fundamentais dos aparatos estatais dos seus respectivos países, estruturas estas que são o alvo prioritário da atual ofensiva neoliberal no continente (11).

Por este mesmo motivo, poderá ser precipitada, também, a proclamação do "fim do populismo na América Latina" feita por Castañeda no livro (12). Dadas as implicações antinacionais desta ofensiva, é bem possível que determinadas correntes “populistas” possam se transformar em leitos importantes de resistência contra a agenda neoliberal (13). Ademais, em diversos países, essas correntes constituem uma expressão política legítima dos setores mais excluídos, marginalizados e miseráveis da população, que se encontram alijados das organizações sociais e políticas enraizadas no “setor formal” das suas respectivas economias (14). Como o peso destes setores nas sociedade latino-americanas vem aumentando sob o impacto social negativo das políticas ortodoxas de ajuste, a base social urbana do “populismo” pode mesmo se ampliar.

A principal crítica formulada por Castañeda às correntes “populistas” é o de que elas abrigam fortes tendências autoritárias e são reformistas muito tímidos e hesitantes (dado o seu temor de um ativismo político repentino e descontrolado por parte das “massas de pobres”). O balanço, aqui, também não é tão simples e unívoco. Como líder da Revolução de 1930, por exemplo, Getúlio Vargas – apesar do lapso do Estado Novo, de 1937 a 1945 – foi responsável pela introdução de reformas democráticas fundamentais no Brasil, como o sistema de representação proporcional, o voto secreto, a extensão do sufrágio para as mulheres, o estabelecimento de uma justiça eleitoral independente, além da introdução de direitos sociais básicos. Mais fundamental do que este balanço, entretanto, é o fato de Castañeda não ter abordado a raiz do reformismo tênue e inconsequente do “populismo”: a relutância deste em confrontar e transformar as estruturas de propriedade altamente concentradas prevalecentes na América Latina. O problema é que a agenda alternativa proposta em Utopia Desarmada reproduz esta mesma relutância básica. Voltaremos a isto mais adiante.

As limitações teóricas e políticas do Foquismo
Ao passar para o seu principal foco de interesse na história da esquerda latino-americana – a evolução das variadas organizações “político-militares” inspiradas pela Revolução Cubana desde os anos 1960 – Castañeda destaca que estas organizações foram constituídas a partir de uma falsa contraposição teórica entre “luta armada” e “via pacífica”. Esta oposição genérica e indiferenciada desconsiderava o estudo mais sério das condições concretas de luta em cada país e, de fato, em todo o continente (p. 71). Uma vez mais, me parece que o balanço histórico, aqui, é um tanto mais complexo e contraditório.

A apreciação de Castañeda é certamente apropriada para a safra original de organizações (foquistas) de guerrilha urbana e rural, que se espalharam pelo hemisfério entre meados dos anos 1960 e 1970. Mesmo com todas as suas idiossincrasias, os montoneros argentinos são bastante representativos das concepções e práticas desta "safra". Praticamente todos estes grupos foram dizimados ou se desintegraram, conseguindo pouco mais do que a não-desejada legitimação do terror contra-revolucionário dos regimes militares. Mas inúmeras organizações revolucionárias – sobretudo na América Central – souberam superar estas limitações e vincular a sua luta armada a formas amplas de luta política e social legal, desempenhando um papel crucial na democratização dos seus respectivos países. Basta lembrar os papéis desempenhados pela FSLN na Nicarágua e pela FMLN em El Salvador (15).

Os eventos de Chiapas, é claro, voltaram a colocar a questão da luta armada na agenda política latino-americana. Devemos nos precaver da tentação de generalizar lições políticas e estratégicas do levante zapatista para toda a esquerda do continente – sobretudo por se tratar de um movimento de base indígena. As condições de Chiapas tem pouco a ver com a de outros países onde as populações indígenas foram, basicamente, exterminadas (como o Brasil e os países do Cone Sul). Utopia

Desarmada foi escrito antes da rebelião no México, mas a edição brasileira foi preparada depois. Castañeda escreveu um prefácio especial para esta, em que argumenta que os comentadores que viam uma refutação do seu livro nos eventos de Chiapas não haviam entendido o seu argumento básico. Ele não havia descartado a possibilidade da luta armada de esquerda na região, e sim a idéia da revolução. O zapatismo não passaria, na sua opinião, de um movimento armado reformista. Esta linha de argumentação parece um tanto estranha, sobretudo se levarmos em conta o próprio título do livro e a sua condenação de todas as experiências anteriores de luta armada de esquerda na América Latina. Mas vamos analisá-la nos seus próprios termos.

A distinção entre luta armada e revolução parece válida
A distinção conceitual estabelecida por Castañeda entre a luta armada (uma questão tática relacionada às formas de luta adequadas para condições históricas determinadas) e a revolução (um programa estratégico de transformações estruturais sociais, econômicas e políticas) me parece válida. Ela nos ajuda a superar a confusão estabelecida entre as duas questões na teoria e na prática do foquismo. Mas no coração desta inadequada contraposição entre “luta armada” e “via pacífica” no pensamento foquista estava uma outra contraposição, igualmente problemática: a que opunha, de forma genérica, a “reforma” à “revolução”. Castañeda não só deixa de examinar criticamente esta segunda (e fundamental) polarização, como a constitui no pilar central de toda a sua linha de argumentação.

A questão da relação entre reforma e revolução não é, evidentemente, uma problemática nova: há muito ela ocupa lugar central nas agudas polêmicas da esquerda em todo o mundo sobre estratégia e tática.

Não tenho a intenção de retomar mais aprofundadamente essa discussão aqui. Quero apenas destacar um fato básico: todas as experiências revolucionárias vitoriosas da era moderna – incluindo a própria revolução cubana – tem em comum processos de ruptura política comandados pela exigência de reformas, que os antigos regimes não queriam ou não podiam atender. A exigência de reformas relacionadas à conquista ou afirmação da sua soberania nacional foi o impulso fundamental de todas as revoluções sociais que varreram as regiões mais atrasadas do mundo capitalista ao longo do Século XX. Isto sugere que contrapor genericamente “revolução” e “reforma” como opostos mutuamente exclusivos – é uma perspectiva simplista e limitada. O verdadeiro desafio teórico e político para a esquerda é o de tentar unir e mobilizar o leque mais amplo possível de forças sociais em torno de bandeiras reformistas capazes de colocar em xeque as estruturas prevalecentes de desigualdade e opressão. Mas isto exige uma visão estratégica alternativa que comece por questionar e confrontar essas mesmas estruturas.

Ao insistir que reforma e revolução são “opções incompatíveis” (p. 362), Castañeda reproduz a mesma limitação conceitual básica do foquismo. Como a revolução é considerada, por ele, uma opção inviável, não restaria à esquerda latino-americana outra alternativa a não ser abandonar qualquer pretensão a “transformações” ou “rupturas” revolucionários, e abraçar com toda força o credo reformista. Isto implica a esquerda deve se resignar ao fato de que o futuro não será mais do que uma versão intensificada do presente (p. 207). Tomando como referência as experiências políticas recentes da esquerda na região, a segunda parte do livro trata de elaborar as bases de uma agenda reformista alternativa. A agenda alternativa de Castañeda

Castañeda apresenta propostas políticas muito concretas e pertinentes para a composição de um curso de desenvolvimento alternativo à ortodoxia neoliberal dominante. Muitas das suas sugestões podem ajudar a esquerda latino-americana a sair de uma posição excessivamente defensiva para tomar a iniciativa política em várias frentes. Sua recuperação da “questão nacional” como elemento central da agenda de esquerda – entrelaçada com as questões “social” e “democrática” – é um ponto importante, muitas vezes incompreendido por intelectuais marxistas ou progressistas na Europa e nos Estados Unidos (16). Me parecem igualmente válidas a sua defesa conscienciosa da integração horizontal latino-americana (o que implica a rendição voluntária de soberania para organismos federais) e da necessidade de explorar com inteligência as contradições sociais, políticas e econômicas da sociedade norte-americana.

Estas propostas, no entanto, não estão inseridas em um confronto estratégico com as estruturas altamente concentradas de propriedade privada no continente. Esta me parece ser a verdadeira “linha divisória”, hoje, entre agendas políticas “reformistas” e “revolucionárias” na região. A não ser por algumas ligeiras referências à reforma agrária, Utopia Desarmada não apresenta qualquer proposta política mais consistente para confrontar esta questão crucial. Mesmo quando defende a persistente relevância da intervenção estatal para a industrialização, Castañeda argumenta que esta intervenção deve se limitar aos setores da economia em que os capitalistas privados ainda não sejam fortes o suficiente para se responsabilizar por tudo (p. 385).

O livro justifica esta agenda reformista com um argumento com fortes ecos de Fukuyama: não existiria qualquer curso alternativo de desenvolvimento no mundo de hoje para além das fronteiras de uma economia de mercado onde o setor privado desempenhe papel central (p. 382), e de uma concepção liberal-processual de democracia (p. 272). No âmbito destes contornos, no entanto, variados cursos de desenvolvimento seriam possíveis, com arranjos institucionais distintos entre estados, mercados e empresas. Castañeda passa em revista os diferentes modelos de desenvolvimento capitalista em "oferta", e conclui que, ao invés de aceitar o modelo anglo-saxão de livre mercado, a América Latina deveria gerar um paradigma endógeno inspirado nos modelos europeu (especificamente, renano) e japonês, que preservam um papel regulatório importante para o Estado em relação aos mercados e às empresas.

A questão da relação entre reforma e revolução não é uma problemática nova
Castañeda deixa fora do seu balanço, no entanto, o grande sucesso econômico deste final de século: a China. O fato é que a experiência chinesa não se encaixa no seu argumento. Experimentando com variadas formas de propriedade (embora mantendo a predominância de formas sociais e coletivas), a China tem sustentado índices impressionantes de desenvolvimento econômico ao longo dos últimos quinze anos (17). Isto indica que existem, sim, experiências vitoriosas e viáveis de desenvolvimento não capitalista no mundo, que tem de ser levadas a sério e estudadas com cuidado. A China, assim, passa na "prova do mapa" que Utopia Desarmada toma emprestado de um líder guerrilheiro salvadorenho: "se um modelo é materializado em algum país do mundo, ele é válido e útil, se não está, não é" (18).

Mesmo em relação às experiências alemão e japonesa, Castañeda desconsidera um dos aspectos cruciais do seu sucesso (e que vale também para as experiências da Coréia do Sul e de Taiwan): dado o temor da "ameaça comunista", as forças de ocupação ocidentais deflagraram reformas fundamentais nas estruturas de propriedade desses países no pós-guerra (sobretudo na propriedade fundiária), reformas estas que não constavam da agenda política das classes dominantes endógenas (19). A ocupação militar desses países cumpriu, assim, papel análogo ao de uma “revolução”. Na Coréia do Sul, por sua vez, o setor bancário, nacionalizado inicialmente durante a ocupação japonesa, voltou a ser nacionalizado em 1961 e desempenhou papel central no “milagre econômico” do país nos anos 1960 e 1970 (20). Mesmo no Chile – a experiência neoliberal de maior sucesso econômico na América Latina – a opção adotada foi a de preservar (e não a de reverter) transformações fundamentais nas estruturas de propriedade implementadas pelo governo socialista anterior de Salvador Allende, como a reforma agrária e a nacionalização da indústria estratégica do cobre (21).

As inadequações políticas e estruturais do reformismo de Castañeda
A questão crítica que emerge, então, é se uma agenda alternativa de esquerda que não confronta as estruturas de propriedade predominantes na América Latina pode ser viável e/ou efetiva do ponto de vista social, político e econômico. Castañeda argumenta que sim, se ela incluir uma política agressiva de legislação social, uma profunda reforma fiscal e uma estratégia nacional de crescimento industrial orientada para a exportação (p. 373-74). Dada a escala de desigualdade social, exclusão e miséria existente na região, no entanto, uma abordagem desta natureza pode se revelar incapaz de reverter a tendência ao agravamento da polarização social, hoje amplamente dominante na região (22).

A persistência de estruturas de propriedade privada extremamente concentradas tende a agravar a destituição de amplas parcelas da população, para além do alcance das políticas compensatórias mais bem intencionadas. Ao mesmo tempo, a intensificação da mobilidade do capital – via a integração global de mercados financeiros e monetários – aumenta a capacidade de resistência dos investidores privados a qualquer tentativa de elevação da sua carga fiscal, com fins redistributivos. Os investidores privados sempre tem aberta para si a opção de simplesmente se retirar do país em questão, e se deslocar para outro(s) que oferece(m) condições mais atraentes de retorno. Como resultado, os mercados nacionais que operam numa lógica que privilegia o setor privado acabam por sofrer severas restrições que impedem a sua capacidade de sustentar, a longo prazo, esforços industrializadores que sejam, simultaneamente, promotores de maior integração social.

Não estou argumentando, aqui, a favor de uma agenda de socialização global e indiferenciada para a esquerda. Os limites desta alternativa já foram evidenciados pelo colapso do antigo “campo socialista” no Leste – e são ainda mais agudos nas condições de relativo atraso prevalecentes na América Latina. Estou convencido, no entanto, de que qualquer alternativa de esquerda na região, se quiser ser eficiente e viável, tem de incluir tanto a extensão de políticas sociais progressistas, quanto a multiplicação de diversas formas de propriedade social nos marcos de economias mistas que preservem uma participação importante para o setor privado. Castañeda enfatiza que a esquerda tem de ancorar as suas políticas redistributivas em capacidades fiscais e produtivas reais. Ele critica, nesta base, o “keynesianismo irresponsável” das experiências “populistas” e reformistas no hemisfério. Isto me parece um ponto pertinente e válido. Mas cabe destacar que a adoção de medidas inflacionárias desta natureza foi, em parte, um meio de promover maior integração e justiça social sem confrontar de maneira mais séria os poderosos interesses empresariais e latifundiários dominantes (23). O problema é que a agenda alternativa apresentada em Utopia Desarmada também se abstém de confrontar esses interesses e as estruturas sócio-econômicas que os sustentam. Neste contexto, a reiterada insistência do livro na “austeridade fiscal” e nas “capacidades produtivas” pode acarretar o efeito perverso de minimizar e/ou adiar indefinidamente reformas sociais urgentemente necessárias.

É ponto passivo que a América Latina precisa implementar urgentes reformas administrativas e fiscais para tornar a ação estatal mais racional e eficiente. Mas, em meio a iniqüidades sociais tão agudas, o fato é que os estados latino-americanos são "gastadores" relativamente avaros em comparação com seus colegas mais industrializados. No final dos anos 1980, os gastos estatais dos principais países da região oscilava entre 27% do PNB na Venezuela e 36,4% no Chile, contra um leque entre os 31,2% dos Estados Unidos e os 64,5% da Suécia para os países capitalistas centrais (24). Ademais, no Brasil (cujos gastos estatais no levantamento acima equivaliam a 31,2% do seu PNB), mais da metade do orçamento nacional (55,1% para ser exato) são destinados a pagamentos das dívidas interna e externa (25).

Qualquer tentativa mais séria de combinar a reversão da desigualdade social com a austeridade fiscal (de forma a escapar da ameaça da hiperinflação) terá de se confrontar com esta sangria de recursos públicos, redirecionando-os para investimentos efetivos em serviços públicos, iniciar as estratégicas de desenvolvimento e políticas redistributivas ampliadoras do mercado interno. Mas isto esbarra em interesses financeiros muito poderosos acostumados a uma promíscua e íntima relação com os poderes públicos. A esquerda, portanto, não pode deixar de considerar a perspectiva da nacionalização parcial ou integral destes interesses como parte integrante de uma estratégia global de desenvolvimento alternativo.

A política de uma alternativa de esquerda efetiva
Dadas as limitações estruturais indicadas acima, a viabilidade política da “agenda alternativa' proposta por Castañeda se sustenta em pouco mais do que em inglês se chama de wishful thinking (“pensar com meros desejos”): a esperança de que, com o fim da Guerra Fria, o stablishment norte-americano ficará mais tolerante em relação a mudanças progressistas na América Latina (dado o seu temor de um “efeito bumerangue” múltiplo na era da globalização) e a comunidade empresarial da região ficará mais sensível à necessidade de reformas sociais (dado o seu temor de que a iniquidade social e a miséria predominantes detonem uma espécie de “efeito Sendero Luminoso” na região). Esta esperança não apenas subestima os vínculos entre a política dos Estados Unidos para a América Latina e os interesses de empresas norte-americanas na região, como se baseia em uma lógica que se auto derrota: se a esquerda adotar a perspectiva sugerida por Castañeda, os interesses dos grandes empresários e latifundiários locais não terão qualquer ameaça política fundamental pela frente para despertar e/ou aguçar a sua sensibilidade reformista. Assim, a nova perspectiva que o livro sugere para a esquerda latino-americana condena esta a um papel de “sócio minoritário” em coalizões dominadas por forças sociais que já se revelaram incapazes de gerar e/ou sustentar um curso de desenvolvimento alternativo ao que é hoje dominante.

Um confronto estratégico deve atacar a alta concentração da propriedade privada
Em contraposição a esta linha de raciocínio, sustento que uma alternativa de esquerda só poderá ser efetiva se conseguir gerar um deslocamento significativo no bloco de forças que comandam os estados na região (isto é, se conseguir gerar, em termos gramscianos, um novo “bloco histórico”). Para tal, me parece crucial a adoção de um estratégia política orientada para estender o atual impulso democratizante para além das limitadas fronteiras processuais em que tem ficado confinado desde os anos 1980 (26). As propostas de reforma política formuladas em Utopia Desarmada, no entanto, se mantém estritamente nos limites das atuais formas liberais-democráticas. Isto não significa que as proposições apresentadas – a defesa do pluralismo político e da representação proporcional, da expansão do sufrágio, do fortalecimento dos órgãos legislativos, do estabelecimento de uma justiça eleitoral independente para coibir fraudes, do respeito de direitos humanos e cívicos, etc. – sejam improcedentes ou inválidas. A esquerda latino-americana aprendeu, a duríssimas penas – via aprisionamento, tortura, exílio e dor pela perda de familiares e entes queridos – a valorizar a importância crucial de se preservar práticas e instituições democráticas. Estas vem sofrendo novas restrições nos últimos anos, dado a sua ameaça potencial para a continuidade das políticas ortodoxas de ajuste (27).

A visibilidade política de Utopia Desarmada se sustenta em pouco mais do que “pensar com meros desejos”
Mas isto não significa que a esquerda deva esmorecer sua apreciação crítica do viés de classe específico materializado neste tipo de institucionalidade democrática, ou deixar de formular proposições concretas para superá-lo, ampliando o controle democrático sobre todas as dimensões da vida social – incluindo o “mundo da produção”. Acredito, mesmo, que a contribuição particular e decisiva da esquerda para a democracia na América Latina origina-se da sua consciência aguda de que as próprias formas liberais-democráticas são permanente ameaçadas pela miséria e destituição social prevalecentes na região. Assim, para confrontar a estas, temos de superar aquelas.

O sucesso político do neoliberalismo
Quero fazer um último comentário sobre o impacto político da hiperinflação e da estabilidade monetária no hemisfério. O advento dos governos Salinas no México, em 1988, Menem na Argentina, em 1989, e Collor de Melo no Brasil e Fujimori no Peru, ambos em 1990, marcaram o deslocamento do grosso da América Latina para a adoção de políticas neoliberais de ajuste ortodoxo, inspiradas no chamado “Consenso de Washington”. Apesar das conseqüências sociais negativas que este deslocamento acarretou, candidatos identificados com sua continuidade obtiveram acachapantes triunfos eleitorais nesses mesmos países cinco ou seis anos depois. No caso do Peru e da Argentina, inclusive os mesmo indivíduos foram eleitos para os cargos de presidente. Não podemos menosprezar a importância política destes resultados. Nesta última safra de eleições, as campanhas dos candidatos vitoriosos foram conduzidos com um apelo claro à continuidade dos programas de estabilização.

Curiosamente, pesquisas de opinião pública apontavam para uma significativa insatisfação com aspectos essenciais destes programas, como a restrição de direitos previdenciários e sociais, a privatização de serviços sociais básicos etc. Por que, então, a população conferiu a esses governantes um mandato eletivo para continuar esses programas?

Acredito que a solução para este enigma reside na legitimidade conferida a esses programas e a essas administrações por terem revertido ou evitado quadros de hiperinflação. Até o momento, o capital político gerado pela relativa estabilização monetária vem rendendo mais do que a insatisfação popular com outros aspectos e conseqüências dos programas de ajuste. Isto tem resultado, inclusive, na desqualificação a priori de outros cursos possíveis de estabilização monetária. As eleições presidenciais de 1994 no Brasil dão evidência gráfica disto: todos os estudos de opinião pública convergem para apontar a implementação da reforma monetária (o “Plano Real”) como fator decisivo para inversão da vantagem que o candidato Lula mantinha em relação ao candidato Fernando Henrique Cardoso na corrida para a presidência, ao provocar o deslocamento da preocupação central da população brasileira do tema da “injustiça social” para o da “inflação” (28). É interessante notar que esta legitimação política, por via indireta, das políticas ortodoxas de livre mercado, ocorreu tanto nos países em que a sua adoção se seguiu a uma ruptura política aberta com administrações anteriores (Argentina e Peru), quanto nos países em que se tratou de uma mudança de política implementada por forças já no poder (México e Brasil).

Vistos de uma perspectiva mais ampla, os resultados eleitorais de 1994-95 marcam a consolidação de um novo projeto hegemônico entre as elites latino-americanas, orientado para o lançamento de um novo ciclo de desenvolvimento econômico na região via o desmonte de instituições, estruturas e práticas de intervencionismo estatal erguidas na fase anterior de industrialização via substituição de importações. Dada a escala e a profundidade da atual ofensiva neoliberal no hemisfério, a esquerda enfrenta o desafio de formular uma alternativa em termos igualmente gerais e estratégicos. Os contornos mais precisos desta alternativa dependem das condições existentes em cada país. Mas sem esta perspectiva estratégica, a esquerda carecerá dos sentidos de propósito e direção necessários para se constituir na coluna vertebral de uma ampla frente de resistência, que agrupe os variados interesses econômicos, sociais e políticos negativamente afetados pelas políticas atuais de ajuste, de forma a acumular forças suficientes para redirecionar o desenvolvimento da região.

As propostas de reforma política em Utopia Desarmada são liberal-democráticas
Uma alternativa efetiva de esquerda tem de confrontar seriamente as estruturas de propriedade extremamente concentradas predominantes na América Latina. Não fazê-lo é a limitação básica do marco alternativo proposto em Utopia Desarmada (e aceito, hoje, por grande parte da esquerda continental). Enquanto tal, esse marco simplesmente reproduz a limitação crucial que determinou, no passado, o fracasso das experiências "populistas" e reformistas na região. Partindo da perspectiva de uma geração de revolucionários que fez da passagem das "armas da crítica" para a "crítica das armas" a sua razão de ser, acredito que Castañeda acaba por desarmar a crítica necessária para a construção de uma alternativa efetiva de esquerda.

Notas
(1) DUNKERLEY, James. "Beyond Utopia: The State of the Left in Latin America", New Left Review, n. 206, 1994.
(2) O subtítulo da versão em inglês era The Latin American Left after the Cold War (a esquerda latino-americana depois da Guerra Fria). A versão em português, editada em 1994 pela Companhia das Letras, vinha com um subtítulo mais "picante" Intrigas, Dilemas e Promessas da Esquerda Latino-Americana. Todas as indicações de número de página neste artigo referem-se à edição brasileira.
(3) Como apresentar as eleições para o governo municipal no Rio de Janeiro em 1982 como um "marco" (p. 30-31), quando se sabe que estas só vieram a ser restabelecidas em 1985: identificar a Luiz Carlos Prestes como "Lendário fundador do PCB" (p. 208), quando este só ingressou no Partido doze anos depois da sua fundação; ou atribuir ao Partido Verde (PV) 10% dos votos no Rio de Janeiro (p. 197), quando este nunca conseguiu mais de 1%.
(4) Esta linha de raciocínio começa no Capítulo 8 do livro que, sintomaticamente, se intitula La Guerre est Finie.
(5) Este, por sinal, é o subtítulo da edição brasileira do livro.
(6) ANGELL, Alan. "The Left in Latin America”, in BETHELL, Leslie. Cambridge History of Latin America, vol. 9.
(7) Como o abandono das políticas nacionais de "frente única contra o fascismo” depois da assinatura do Pacto Molotov-Ribentrop em 1939. Os problemas e constrangimentos que isto causou para os comunistas brasileiros podem ser vistos no livro de Joel Silveira e Geneton Moraes Neto, Hitler/Stalin: O Pacto Maldito, Rio de Janeiro, Record, 1989.
(8) Apesar de dividido organicamente em duas alas desde os anos 1960, o Partido Comunista (fundado em 1922) é a organização política mais antiga entre as que se encontram em atividade no Brasil. Os comunistas foram responsáveis pela introdução ativa do movimento operário na vida política nacional, rompendo com o arraigado apoliticismo das correntes anarquistas que lhe antecederam. O Partido Comunista foi responsável, igualmente, pela introdução de inúmeros temas cruciais na agenda política nacional, entre os quais os da reforma agrária e da autonomia sindical.
(9) Vale registrar que o próprio Castañeda não é consistente no seu regionalismo/particularismo, já que a agenda alternativa que propõe para a esquerda latino-americana busca inspiração no "modelo alemão" da "economia social de mercado".
(10) Vale lembrar que, no imediato pós-guerra, as idéias do dirigente comunista norte-americano, Earl Browder, sobre a dissolução dos partidos em amplas frentes democráticas tiveram muito trânsito entre os comunistas sul-americanos, que as consideravam um desdobramento "natural" das políticas de "união nacional contra o fascismo" adotadas durante a Segunda Guerra.
(11) No seu discurso de despedida do Senado brasileiro, em 14 de dezembro de 1994, o presidente-eleito Fernando Henrique Cardoso justificou a adoção de amplas medidas de privatização e desregulação com base no argumento de que os mecanismos, práticas e instituições remanescentes da "era Vargas" constituem o principal obstáculo para a modernização do país.
(12) Para fundamentar esta proclamação, Castañeda faz referência ao artigo de Alan Touraine, "El Fin de los populismos en Latin America", El País, edição de 6 de agosto de 1989.
(13) No Brasil, por exemplo, lideranças "populistas" como Brizola e Arraes tem tendido a assumir uma oposição mais forte do que outras correntes da esquerda (incluindo o próprio PT) a temas da agenda neoliberal que implicam em perda significativa de soberania nacional. (14) A base social do PDT de Leonel Brizola no Rio de Janeiro é uma expressão disto.
(15) Em ambos, por sinal, a condução da luta armada foi combinada com a organização de frentes políticas muito amplas, como a Frente Patriótica, na Nicarágua, e a Frente Democrática Revolucionária, em El Salvador.
(16) A justificativa teórica apresentada para este ponto, no entanto, não me parece muito consistente. Além de subestimar o papel central desempenhado pelo poder de Estado nos processo de formação de estados nacionais unificados na Europa e nos Estados Unidos, a noção de que o conjunto da América Latina é afligida por um processo comum de "formação nacional incompleta" (p. 229) tende a generalizar para o conjunto da região uma realidade específica aos países que foram berço de importantes civilizações pré-colombianas (na América Central e na região andina), onde persistem fortes comunidades e identidades indígenas. As identidades nacionais de países como o Brasil ou os do Cone Sul da América do Sul são tão ou mais "completas" e consolidadas do que dos Estados Unidos ou de qualquer país europeu. Emprego o termo "completo" com certa relutância, pois ele pode implicar uma concepção reificada (estática e finita) de identidade nacional.
(17) A New Left Review publicou, no seu número 208, artigos muito interessantes de Paul Bowles, Xiaoyuan Dong, Roberto Mangabeira Unger e Zhiyuan Cui sobre o "milagre chinês".
(18) Castañeda comete uma omissão análoga em relação a Cuba quando afirma que nenhum pais latino-americano alguma vez conseguiu combinar crescimento econômico e distribuição eqüitativa de renda (p. 326).
(19) Sobre isto, ver Bruce Cunnings, "The Abortive Abertura: South Korea in the Light of the Latin American Experience", New Left Review, n. 173, 1989 e Alice Amsden, "Third World Industrialization: 'Global Fordism' or a New Model?", New Left Review, n. 182, 1990.
(20) G. van Liemt, Bridging. The Gap: Four Newly Industrialising Countries and the Division of Labour, Genebra, OIT.
(21) Ver Manuel Riesco, "Honour and Eternal Glory to the Jacobins!", New Left Review, n. 212, 1995.
(22) Confirmando os resultados de estudos anteriores, o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1994 do Banco Mundial classifica as nações latino-americanas no topo da lista dos países com maior desigualdade de renda no mundo. O Brasil tem a maior concentração de riquezas entre os 71 países computados pelo estudo: os 10% mais ricos da população se apropriavam de mais de 51% de toda a renda familiar (contra 46% em 1983). Nos anos 1980, a concentração de propriedade fundiária no Brasil, medida pelo índice Gini, alcançava 0,923, contra 0,7 para a Índia e o Paquistão; 0,4 para os Estados Unidos e a Austrália; e 0,3 para a Bélgica, a Holanda e a Noruega (Rodolfo Hoffman, "Evolução da Desigualdade da Distribuição da Posse da Terra no Brasil no Período 1966-1980", Boletim da ABRA, n. 6). O Índice Gini varia de 0 (distribuição perfeitamente igualitária entre todos os membros de uma população) a 1 (concentração de
todos os atributos em um único membro da população). Este quadro foi mantido ao longo da última década.
(23) Agradeço a Robin Blackburn por ter me chamado a atenção para este ponto.
(24) CEPAL, Transformación Productiva con Equidad, Santiago, 1990 e José Maria Maravall, "Las Razones del Reformismo: Democracia y Politica Social", Leviatán, n. 35, 1989.
(25) Paulo Lopes (ed.), A Gestão ao Estado Brasileiro Hoje: Tendências e Propostas, CUT-RJ, Rio de Janeiro, 1995, p. 33.
(26) Um argumento nesta mesma direção pode ser encontrado em Atílio Borón, Estado Capitalismo e Democracia na América Latina, São Paulo, Paz e Terra, 1994.
(27) O "auto-golpe" de Fujimori é emblemático disto. Mas mesmo a experiência mais "civilizada" de Fernando Henrique Cardoso no Brasil tem gerado desenvolvimentos preocupantes, como o sistemático atropelo do poder legislativo pelo executivo, a introdução do princípio da reeleição para um poder executivo altamente concentrado e a pesada pressão para substituir o sistema de representação proporcional atualmente existente por alguma forma de sistema misto (como foi feito na Itália). Infelizmente, alguns setores da esquerda brasileira – assim como ocorreu na Itália – estão mais interessados em explorar as vantagens eleitorais imediatas que tal mudança poderá acarretar, do que preocupados com os prejuízos mais permanentes que isto acarreta para a consolidação e o desenvolvimento d democracia.
(28) Ver, por exemplo, Olavo Brasil Jr., "As Eleições Gerais de 1994: Resultados e Implicações Político-Institucionais", Dados, vol. 38, n. 1, 1995.

Sobre o autor

Professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC/Rio e do Departamento de Ciência Política da UFF. Este artigo foi originalmente publicado na New Left Review, n. 215, 1996.

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