27 de agosto de 2015

Fantasmas da esquerda

Poucos se lembram que o Iêmen já teve movimentos vibrantes e uma esquerda poderosa.

Bilal Zenab Ahmed

Jacobin

Membros armados da Frente de Libertação Nacional do Iêmen, que forçaram os britânicos a se retirarem, em 1967.

Tradução / Em maio de 2004, Mark Seddon, colunista do The Guardian, noticiou que enquanto visitava um mercado negro do norte de Sana'a, ele encontrou rifles automáticos L1A1 entre uma seleção de diversas outras armas de fogo.

As armas eram feitas no Reino Unido, mais uma das muitas outras lembranças de “um século e meio de comando da capital Áden, que foi um dia o mais estratégico dos portos do mundo.” Outras incluíam cemitérios militares, uma réplica em escala real do Big Ben chamado “Litlle Ben”, caixas de correio e ocasionalmente algumas notas de libras.

Os ingleses deixaram o sul do Iêmen derrotados. Eles não foram capazes de controlar uma grande insurgência anti-imperialista durante a Emergência de Áden, e na queda de sua retirada, os grupos marxista-leninistas se uniram a seus antigos aliados para criar a República Democrática do Iêmen.

No entanto, diferentemente do reino britânico, a lembrança do governo de esquerda foi amplamente esquecida. Como foi então que a militância religiosa, através da Al-Qaeda na península arábica e agora o Estado Islâmico, vieram a definir nossas percepções do sul do Iêmen menos de cinco décadas depois da vitória da Frente de Liberação Nacional?

Da emergência para a unificação

A Emergência de Áden foi a cristalização da onda regionalista durante 1950 e 1960, quando os movimentos de liberação nacional de esquerda cresceram em popularidade. Essas tendências foram especialmente dominantes no norte e no sul do Iêmen.

Os iemenitas viviam em um país subdesenvolvido, mesmo comparado a seus vizinhos, e estavam profundamente assustados de séculos de conflito tribal, colonização, e da política dinástica e religiosa. Uma mistura de pan-arabismo, marxismo-leninismo, e revolta de clãs tornou-se a manifestação ideológica de sua exaustação, levando ao termino de uma década de turbulência.

O norte do Iêmen mergulhou em uma guerra civil após um golpe de estado republicano apoiado pelo Egito por Abdullah as-Sallal em 1962. Prenunciando a violência atual, notavelmente por sua aparente falta de sectarismo religioso, a guerra civil no norte do Iêmen viu a Arábia Saudita apoiar a criação de um Califado xiita de Zaydi contra o governo pan-arábico. Riyadh queria deixar passar a aliança dos xiitas com a monarquia para combater o republicanismo secular na península arábica, que ameaçava atingir a família real saudita também.

Enquanto isso, as tensões estavam extremamente exacerbadas no sul do Iêmen devido a um fluxo constante de propaganda anti-imperialista do Egito de Nasser, assim como da Império Britânico e de seus plano de patrocinar um estado monárquico federalista para substituir seu governo depois da independência. Se a transição tivesse dado certo, a Federação da Arábia do Sul teria parecido estruturalmente com os Emirados Árabes Unidos.

Diversas organizações políticas anti-britânicas e guerrilheiros aderiram firmemente a dois campos rivais: a Frente de Libertação Nacional, que estabeleceu relações com o Egito, e a Frente pela Libertação do Iêmen do Sul Ocupado. Esta era composta massivamente por habitantes de Áden, e muitos deles queriam criar uma república socialista após a independência. A Frente de Libertação Nacional partilhava também de muitas dessas aspirações, mas seus membros eram principalmente pessoas vindas do mundo rural, e expunham uma afinidade ideológica muito grande com os partidos marxista-leninistas da China e da União Soviética.

Ambas Frentes atacaram-se uma a outra, assim como tropas inglesas (porém nos anais da guerra, oficiais britânicos admitiram culpar ambos os grupos por muitos dos ataques).

A guerra começou quando foi declarado estado de emergência após um ataque de granada contra o Alto Comissário Kennedy Travaskis. Enquanto os rebeldes impuseram vitorias significantes através de ataques surpresas, particularmente no distrito da cratera de Áden, a maioria das mortes foram de lutas internas.

Os britânicos finalmente fugiram em 1967. Até a guerra do Iraque, essa tinha sido a maior guerra da Inglaterra na região. Depois de um breve governo de conciliação, a Frente de Libertação Nacional deu um golpe contra a outra frente e revolucionários do sul do Iêmen, criando a República Popular Democrática do Iêmen. Esta se alinhou com a União Soviética, passando a expor diversos dogmas do marxismo-leninismo, incluindo o controle estatal de diversos ramos da economia.

Não muito mais tarde, os eventos regionais levariam o bureau político de Áden a reconsiderar seu posicionamento linha-dura. Os eventos chave foram a derrota do levante de Dhofar em Omã, a repulsa pelos quadros da República Popular Democrática após embates na fronteira com a Arábia Saudita, e a inabilidade da revolução da Frente Nacional Democrática em destronar Ali Abdullah Saleh no norte do Iêmen (agora conhecido como República Árabe do Iêmen, depois da vitória republicana na guerra civil, que acabou em 1970)

O levante de Dhofar foi inicialmente uma revolta tribal que começou em 1962 com a insurreição de Musallim bin Nafl, um líder tribal que obteve armas e veículos da Arábia Saudita, assim como suporte do exilado Imam Ghalib bin Ali. Dhofar era uma província totalmente marginalizada ao sul de Omã que sofria de profunda dominação social, econômica e linguística (enquanto a corte do Sultão Taimur em Muscat falava árabe, os habitantes de Dhofar se comunicavam em várias línguas árabes do sul como Shehri e Mehri).

Por volta de 1965 os esforços do Sultão Taimur em pacificar a revolta tinham radicalizando-a, levando os comitês de organização a se envolver com a Frente Popular para a Libertação de Omã. Esta era uma aliança de grupos com várias demandas, incluindo autonomia e desenvolvimento. Os blocos marxista e pan-arabista também pressionavam pela destituição da monarquia, ganhando grande influência com a recém criada República Popular Democrática do Iêmen, que tinha fronteira com Dhofar.

Depois de um sério debate sobre como continuar a revolta, que demandou ajuda estrangeira, os marxista-leninistas tomaram o controle do movimento em um congresso em 1968. Eles renomearam o movimento como a Frente Popular pela Libertação do Golfo Arábico Ocupado, e começaram a receber armas, treinamento, e apoio logístico da República Popular Democrática do Iêmen, China e da União Soviética.

Desejando exportar sua revolução, Áden também apoiou incursões dentro da Arábia Saudita em 1968 e em 1973, e na República Árabe do Iêmen, apoiou uma rebelião da Frente Nacional em 1978.

Sua penetração na Arábia Saudita foi a primeira a ser repelida, com o bombardeio dos guerrilheiros pela Força Aérea Paquistanesa em defesa de Riyadh. O levante de Dhofar tinha, através da “astucia da história”, inadvertidamente forçado o estado de Omã a reinventar a si mesmo através da contra insurgência.

Westminster não tinha nenhuma intenção de sustentar o governo do Sultão Taimur dada a retirada planejada do Reino Unido do golfo pérsico em 1971, e apoiou seu filho o Sultão Qabos na tomada do poder e na transformação ambiciosa do até então subdesenvolvido país. Grandes reformas foram implementadas, tecnologias modernas como os telefones foram introduzidas, e Dhofar foi formalmente incorporada como uma província.

As hostilidades se encerraram em 1975, com a República Popular Democrática do Iêmen falhando em levar a revolução pretendida em Omã. Como resultado, o Iêmen enfrentou uma incerteza ideológica, assim como escassez material vinda do isolamento diplomático. Isso era particularmente grave dado que os confrontos com a Arábia Saudita deram tão errado.

A etapa final foi em 1978 com a rebelião da Frente Nacional no norte do Iêmen. A rebelião foi o maior esforço para destituir Saleh, que tinha vencido naquele mesmo ano e imediatamente se mudado para consolidar seu poder.

A rebelião foi liderada por várias facções de oposição, e foi apoiada pela República Popular e pela Líbia. Apesar do sucesso inicial na guerra, a rebelião não foi capaz de manter um território significativo, e os movimentos de assistência do Iêmen com um conflito na fronteira em 1979 foi pacificado em um acordo mediado pela Organização de Liberação Palestina.

A Frente Nacional foi finalmente derrotada em 1982 por uma combinação de forças militares e a Irmandade Muçulmana Iemenita. O efeito imediato do conflito foi ajudar a galvanizar a diminuição de elites militantes no Iêmen popular.

O Presidente Abdul Fattah Ismail tinha liderado a criação do partido socialista iemenita em 1978, para substituir a Frente Nacional com representação de todas as facções de esquerda na República Popular. No entanto, ele não pode se prevenir da rápida ascensão de membros do partido que, como resultado das derrotas externas, favorecessem uma política externa menos intervencionista e reformas no estado.

Quando Ismail renunciou a seus cargos (alegando razões médicas, mas que porém é possível que tenha sido alertado de um processo de impedimento) em 1980, passando a presidência para o Primeiro Ministro Ali Nasser Muhammad, foi uma indicação de que um bloco de pessoas não militantes tinha tomado o poder no país.

Isso foi um deleite particular para o bureau político de Brezhnev, que tinha por muito tempo considerado Ismail um irresponsável, por sua falta de vontade em comprometer suas ambições regionais e por sua recusa em até mesmo considerar ser paciente com as monarquias do Golfo, o que estava fora de sincronia com a estratégia externa da União Soviética àquele tempo.

Esse pivô de longe da militância acelerou a situação depois da guerra civil de 1986 entre os apoiadores de Ismail e Muhammad, que levou a morte do ex-presidente em uma batalha naval, o exilio do segundo na República Árabe do Iêmen, e a ascensão do Ministro da Defesa Ali Salim al-Beidh ao poder.

Al-Beidh tinha menos interesse na militância burocratizada de Ismail do que Muhammad, e começou imediatamente a explorar as reservas de óleo enquanto reabria as conversas para a unificação com a Republica Árabe do Iêmen.

O governo radical que ele seguiu, entretanto, não deveria ser endossado. Todas facções que estavam com a República Popular modelaram a si mesmas de uma forma autoritária, de partido único à maneira amplamente adotada pelo bloco socialista. Como resultado, a República Popular foi marcada por uma repressão brutal e por um largo período de sua história, Ismail governou como um ditador.

Entretanto, é importante notar suas conquistas materiais. A República Popular encerrou um século e meio de dominação do Império Britânico que, porém, poderia ter continuado na era pós-colonial. Pela década de 1970, se vangloriava do suporte estatal para o emprego, saúde pública, educação, moradia, incluindo zonas fora da cidade de Áden, em províncias que foram negligenciadas pelos britânicos.

Enquanto a atual nostalgia pela República Popular enfatiza essas conquistas materiais, assim como a sua vitória sobre os britânicos, é importante lembrar que esses ganhos não foram tão impressionantes como poderiam ter sido (embora eles tenham diminuído o que foi feito pela República Árabe do Iêmen, que por exemplo nunca implementou um programa de alfabetização focado nas mulheres como a República Popular fez na década de 1970).

O grande problema é que a República Popular foi refém de tendências históricas fora do controle de Áden. Ao tempo que começaram a implementar suas políticas na década de 1970, a maioria de seus aliados (especialmente do bloco socialista) tinha começado a relaxar os controles estatais e a explorar novas relações com o mercado.

Áden também nunca se recuperou do fechamento do canal de Suez de 1967 à 1975, especialmente porque isso ocorreu ao lado da rápido ascensão das monarquias do golfo como novos centros marítimos e de comércio transnacional.

A escala dessa transformação foi tão rápida e imensa que é praticamente impossível lembrar a importância econômica e estratégica que Áden tinha para os britânicos. Depois de uma geração, isso foi quase totalmente substituído por cidades como Dubai, Manama, e Doha, que agora possuem muito mais importância devido a produção e exportação de petróleo.

Não é coincidência que o firme declínio – socialmente e economicamente – do sul do Iêmen coincidiu com um ressurgimento de uma memória popular favorável da República Popular. De fato, o atual movimento de independência do sul tem suas raízes em maio de 2007 quando ex-pensionistas demandaram mais generosidade na assistência de Sana ‘a.

Seus pequenos protestos rapidamente explodiram em amplas reivindicações por autonomia e secessão, principalmente porque em suas demandas por igualdade e maior auxilio do estado, eles galvanizaram um amplo senso de descontentamento da sociedade do sul do Iêmen. Esse senso de impaciência é impossível de ser compreendido sem observar a realidade política e econômica da vida desde a unificação.

O nacionalismo emergente

A atual nostalgia pela República Popular explica muito sobre a presente situação do Iêmen, uma situação pintada pelo descontentamento com os termos da reunificação iemenita e, especialmente desde 2007, com a emergência de um nacionalismo sul-iemenita como uma articulação ideológica de injustiças de longo tempo com a falta de direitos democráticos e econômicos em um país.

Desde a unificação com a República Árabe de Saleh, o sul tem sido subjugado por vários problemas que são resultado da adoção súbita do livre mercado na economia. As tensões sobre a privatização se tornaram graves o suficiente para os líderes do sul tentarem separar o país recém unificado de uma vez.

Sana'a reestabeleceu o controle sobre o sul durante a guerra civil iemenita de 1994, e continuou sua imposição de políticas impopulares apoiado por poderes como os EUA e a Arábia Saudita, assim como por credores internacionais como o FMI.

Os subsídios foram retirados, a moeda foi desvalorizada, o setor público foi dilacerado com horrendas consequências para a habitação, saúde e educação, a rede de eletricidade e de água foi negligenciada e muitas pensões foram cortadas.

A unificação também levou a mais empoderamento das elites do norte, que foram capazes de comprar propriedade, ganhando o controle de industrias importantes como petróleo e turismo, e dominaram as universidades e o mercado de trabalho qualificado.

Saleh também começou rapidamente a implementar políticas culturais no sul que ele tinha usado previamente para neutralizar os dissidentes no norte. Essencialmente, o modo de Saleh era mediar diversas elites em um estado fraco, com ênfase particular destinada a empoderar os reacionários tribais para controlar os beduínos iemenitas.

Enquanto Saleh e seus apoiadores insistiam que isso era necessário devido às várias divisões da sociedade iemenita, era obvio para muitos sulistas que o propósito verdadeiro era prevenir que se juntasse muito poder em qualquer outra área do país, onde ele poderia ser usado para produzir um desafio significante a Sana'a.

Parte dessa estratégia se destinava a abastecer o crescimento da retórica religiosa dos sunitas Wahhabi que crescia em popularidade no Golfo. O renascimento da doutrina religiosa, da forma que foi disseminado pelas elites reacionárias ligadas às monarquias do golfo, serviu adiante para neutralizar o pensamento de esquerda na região.

As consequências foram particularmente severas em países como o Iêmen, onde eles prepararam o terreno para políticas religiosas reacionárias. Após anos de inquietação, eles também começaram a criação de novas formas de militarismo religioso, embora os iemenitas rejeitem amplamente grupos como Al-Qaeda e o IS na península árabe.

Esse é um ponto importante para observadores internacionais entenderem, particularmente da Amarica do Norte e da Europa Ocidental, porque isso desafia as narrativas da hesitação iemenita e a recepção que muitos militantes islâmicos receberam no país.

Muito das atuais disfunções sociais do Iêmen, então, não são um resultado inerente de problemas da sociedade iemenita; eles foram ventilados por Saleh e seus aliados de modo a silenciar a insurreição que um dia dominou o país, e que ameaçou contagiar toda a península, nas décadas anteriores ao seu governo. Sua hegemonia será impossível de ser suplantada sem se abrir espaço para ideologias e plataformas que foram meticulosamente suprimidas da sociedade iemenita.

Interessante é que a repercussão de sua repressão motivou a criação de diversas facções agora em guerra umas contra as outras. Os Houthis começaram como o renascimento da organização cultural xiita Zaydi chamada Juventude Crente, que cresceu em reação direta ao caráter cada vez mais sunita fundamentalista da sociedade iemenita.

As tribos nortenhas reagiram ao clima sociocultural se voltando a identidade xiita que pareceu ter sido destronada com a criação da Republica Árabe do Iêmen. E no sul, o nacionalismo para a agora defunta República Popular começou a crescer ao passo que a política secular cultural foi manifestamente desvendada, com graves consequências particularmente para as mulheres do sul.

Essa tendência atual não pode ser confundida com um desejo de se reestabelecer a República Popular em todos seus aspectos. Há mais ou menos um consenso que o regime anterior era impiedosamente opressor. Antes, de 1994 em diante, o nacionalismo se tornou seguramente uma grande articulação para várias injustiças na sociedade local, que são entendidas amplamente como uma consequência do controle nortenho de Saleh.

As nascentes tendências ideológicas se solidificaram em 2007 quando uma revolta dos oficiais militares aposentados que buscavam suas pensões se espalhou pelo sul, finalmente se amalgamando no Al-Hirak, conhecido internamente como “o movimento do sul”.

Os comitês locais do Al-Hirak variam em suas posições, de desejar abertamente a independência, a autonomia local, a aumentar o federalismo no estado mais amplo. De qualquer forma, eles estão unificados pela nostalgia da República Popular.

Apesar de seu autoritarismo, havia um grau de redistribuição, proteção estatal, e mais importante, estabilidade econômica que foi perdida com sua derrubada. A existência da República Popular também proveio pelo menos esperança de que alternativas sérias ao capitalismo autoritário e monárquico poderiam tomar conta da península arábica.

Isso é precisamente o que fez do Al-Hirak, definitivamente um dos movimentos mais democráticos do país, tão assustador a grandes poderes da região. Os militantes religiosos dominam as novas estórias e trabalham pesadamente em considerações estratégias, em parte porque eles são úteis em marginalizar a força potencial da política democrática no país.

A Primavera Árabe foi um momento no qual a sociedade iemenita começou a reviver brutalmente ideologias reprimidas e movimentos políticos em resposta a novas condições. Foi como que se possibilidades revolucionárias que foram cuidadosamente suprimidas da sociedade iemenita desde que o inicio do período pós-colonial voltou à tona, com consequências particularmente fortes para movimentos de juventude como o Al-Hirak.

Críticas aos bombardeios dos EUA e da Arábia Saudita estão servindo apenas para fragmentar a sociedade iemenita, e subvertendo essas novas possibilidades ao empoderar os jihadistas, perdem o ponto. O rei saudita Salman sempre teve interesse em ver tal desfecho. Movimentos como o Al-Hirak são construídos na memória cultural dos iemenitas, particularmente nos do sul, pressionando por políticas genuinamente democráticas que países como a Arábia Saudita não tem absolutamente nenhum interesse em ver sendo realizadas em suas fronteiras.

É mais palatável para eles ver uma aliança potencial entre forças diversas como aquelas que se engajaram na Conferência de Diálogo Nacional, que incluiu os Houthis, revolucionários tribais, o Al-Hirak, e vários líderes da sociedade civil, que e impossível por uma guerra imposta. A alternativa seria outra República Popular exportando potencialmente ao Conselho de Cooperação do Golfo.

Aquelas armas britânicas no mercado negro iemenita podem ser uma relíquia de uma guerra que ocorreu antes que muitos de nós tivéssemos nascido, mas certamente a dinâmica não mudou. Como era o caso há quarenta e oito anos atrás, ninguém tem nenhum interesse em ver a democracia iemenita vingando e influenciando seus vizinhos. A questão então é como movimentos como o Al-Hirak garantirão seus objetivos contra os desejos de grandes poderes como a Arábia Saudita e os EUA.

A lamentável tendência da história iemenita aponta para mais conflito e não se sabe quão prolongada a guerra continuará a moldar as forças no terreno. Alternativas progressistas permanecem elusivas.

26 de agosto de 2015

O BNDES e o Tesouro Nacional

Luciano Coutinho


Cesar Habert Paciornik

A manchete da Folha do último dia 9 dizia que o custo fiscal dos empréstimos do Tesouro Nacional ao BNDES seria de R$ 184 bilhões nas próximas quatro décadas. O valor é relevante, embora em termos relativos corresponda a 0,1% do PIB do período. Mais importante, ainda que em tese correta, a estimativa é incompleta, pois desconsidera os benefícios, isto é, o retorno do banco e os impactos sobre o investimento e sobre a geração de tributos.

A projeção de R$ 184 bilhões se baseia nas estimativas do custo futuro da dívida pública, aproximado pela taxa Selic, e da TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), referência dos financiamentos do BNDES. É relevante notar que, em 45 anos, pequenos desvios na diferença entre essas taxas provocam grandes impactos no resultado final.

Nesse sentido, é mais apropriado comparar a Selic com a TJLP acrescida da margem de lucro do BNDES. O ganho do banco se reverte ao Tesouro na forma de impostos e dividendos ou retenção de resultado de uma empresa integralmente da União. Por exemplo, de 2009 a 2014, o BNDES pagou cerca de R$ 100 bilhões entre dividendos e tributos, a valores atuais corrigidos pela Selic.

Além disso, os empréstimos de longo prazo do BNDES financiam investimentos que em boa medida não ocorreriam na ausência desse crédito. Isso origina venda de máquinas e insumos, que elevam a arrecadação. Esse efeito fiscal também precisa ser levado em conta.

Projetamos três cenários para avaliar os custos e os benefícios dos empréstimos do Tesouro ao banco. São estimativas conservadoras, pois não incluem os efeitos multiplicadores do investimento sobre a renda e sobre a receita tributária indireta associada. Tampouco consideram os efeitos de longo prazo sobre o potencial de crescimento da economia.

O cenário 1 baseou-se nas projeções do mercado financeiro para a Selic (boletim Focus), em que ela cairia do patamar atual de 14,25% ao ano até se estabilizar em 10% em 2018. É um cenário que carrega o pessimismo do momento. A TJLP seria de 7,5 % a partir de 2016.

O cenário 2 também segue o Focus, mas, numa perspectiva mais razoável, a Selic continuaria caindo suavemente a partir de janeiro de 2018 até se estabilizar em 8% em 2022. A TJLP cai para 6%. Em contraposição, tomou-se um cenário 3 ainda mais conservador que o primeiro. A Selic cairia lentamente do patamar atual para 11,8% em janeiro de 2020, continuando a decrescer nos dois anos seguintes até se estabilizar em 10%. A TJLP seria de 7,5%.

A margem bruta de intermediação financeira do BNDES, descontados seus custos operacionais, seria de 1,8%, semelhante à verificada de 2009 a 2014. No cenário 1, o custo estimado da diferença Selic-TJLP é de R$ 180,7 bilhões, próximo ao apresentado na Folha. Ao incorporar-se a margem do BNDES, porém, o custo cai para R$ 44,5 bilhões.

Somando-se ainda a receita tributária associada aos investimentos adicionados e descontando-se o custo das equalizações futuras do Programa de Sustentação do Investimento, o valor presente do benefício fiscal líquido é positivo em R$ 16,6 bilhões. No cenário 2, o efeito líquido é positivo em R$ 33 bilhões.

Apenas no cenário 3 haveria um custo líquido de R$ 12,8 bilhões, que ainda assim seria menos de um décimo da estimativa do jornal. Ao se considerar a geração de tributos e de lucros, os custos fiscais esperados dos empréstimos do Tesouro ao BNDES passam a ser significativamente menores do que os divulgados. É bem possível que os benefícios sejam maiores que os custos.

Neste momento de instabilidade econômica, as perspectivas de juros mais altos elevam as estimativas dos custos, que mudarão quando os esforços de redução da inflação tiverem efeitos mais evidentes.

Por fim, é preciso destacar que os benefícios mais relevantes não se resumem às receitas fiscais. Entre outros objetivos, a atuação do BNDES é crucial para viabilizar um patamar de investimentos mais alto do que ocorreria em sua ausência, o que aumenta a capacidade produtiva e a produtividade e, assim, amplia o potencial de crescimento do país.

Sobre o autor

Luciano Coutinho, 68, economista e professor da Unicamp, é presidente do BNDES.

Fazendo as perguntas certas

A Esquerda na Europa, e além, enfrenta enormes desafios. Que tipo de estratégia política precisamos para irmos em frente?

Catarina Príncipe e Dan Russell

Jacobin

Trabalhadores da Pirelli contra o carabinieri, no "outono quente" de Milão em 1969. Libcom

Tradução / Seria difícil fazer um trabalho melhor defendendo o projeto politico que era o Syriza – contra tanto aqueles que o condenaram desde o começo quanto aqueles que agora defendem a capitulação da direção – do que Stathis Kouvelakis fez nos últimos meses.

Kouvelakis, porém, não estava apenas defendendo o Syriza ou a “nova” esquerda europeia mais amplamente, mas precisamente a estratégia da construção de partidos de massas dos trabalhadores – para organizar e transformar a consciência da classe mediante a luta – uma estratégia que remonta o século 19.

A posição de Kouvelakis é bastante diferente daquele como Tad Tietze que descartam a possibilidade de uma alternativa política à austeridade e nos pedem para ao invés disso nos focarmos em desenvolver movimentos extraparlamentares.

Mas uma estratégia viável da esquerda para acabar com a austeridade não pode contrapor o social e o político: uma alternativa política deve contribuir para a criação de sua própria base social. Esse era precisamente o projeto do Syriza, que a recém-formada Unidade Popular levará adiante agora que a liderança do Syriza abandonou seu compromisso com a luta contra os memorandos.

Apesar de derrotas e desvios esses projetos seguem o único percurso viável em direção a uma eventual ruptura não apenas com a austeridade mas com o próprio capitalismo. Aqueles que não têm de confrontar a questão do poder estatal imediatamente ainda sim devem aprender as corretas lições tanto do Syriza quanto da história da qual este nasceu.

Reforma e revolução

A primeira experiência na construção de partidos de massas da classe trabalhadoras se encerrou com o deflagrar da I Guerra Mundial e a quase unânime decisão tanto do partido social-democrata alemão quanto do francês – os faróis guias do movimento europeu – de trair a causa do internacionalismo socialista e apoiaram a marcha de seus respectivos governos rumo à guerra.

A tarefa de unir uma oposição minoritária caiu nas mãos dos bolcheviques. Seus esforços lançaram as bases para uma nova Internacional que iria brevemente convergir no despertar da Revolução Russa.

O espaço para uma Terceira Internacional e partidos revolucionários de massas que se definiram contra a social-democracia reformista surgiu por causa de condições concretas, em particular o alto grau de luta de classes desencadeado pela guerra.

Ainda assim, apenas os comunistas alemães – já devastados pelo assassinato de suas maiores lideranças e expulsos do partido social-democrata – foram capazes de fazer uma contínua disputa pelo poder antes de a onda revolucionária retroceder, a social-democracia encontrar seu pé e o Stalinismo fatalmente remodelar os jovens Partidos Comunistas.

Aqueles que intentam traçar um curso revolucionário independente foram expurgados ou isolados tanto pelo movimento Comunista oficial quanto pela social-democracia que viriam a dominar o movimento proletário através da II Guerra Mundial. Algumas mudanças deveriam ocorrer antes de os revolucionários terem novamente públicos massivos: a revelação dos crimes de Stalin, a supressão Soviética dos levantes húngaro e tcheco, e a retomada das lutas de classes militantes nos anos 60 e 70.

Com o tempo, exposto o conservadorismo da maior parte dos Partidos Comunistas da Europa ocidental, abriu-se espaço para novas formações de esquerda, como o Partido Socialista dos Trabalhadores Britânicos e a Liga Comunista Revolucionária na França. Mas com o início da ofensiva neoliberal ao fim dos anos 70 esses partidos foram enfraquecidos.

Os partidos social-democratas tradicionais foram também irrevogavelmente prejudicados. A esquerda reformista social-democrata experimentou derrotas e recuos, enquanto sua ala direita alegremente se encarregou de gerir o neoliberalismo.

Conforme esses antigos partidos dos trabalhadores começaram a implementar a austeridade, dissidentes social-democratas, comunistas e outros construíram novos partidos que trabalharam lado a lado com movimentos sociais e se engajaram em debates sobre a melhor forma de confrontar o neoliberalismo. Através da última década, formações com o Bloco de Esquerda, Die Linke e Syriza preencheram a lacuna deixada pela social-democracia.

Infelizmente, alguns revolucionários fizeram daquilo que de 1930 a 1980 era uma necessidade – construir pequenos grupos revolucionários por conta da dificuldade ou impossibilidade de operar independentemente no interior de partidos reformistas de massas ou comunistas oficiais – uma virtude mediante interpretar erroneamente a experiência da social-democracia em geral e dos bolcheviques em particular.

Os bolcheviques não tentaram construir um partido especial “revolucionário”, mas um social-democrata no contexto repressivo da Rússia tzarista. Foi esse contexto e a cisão com os mencheviques – não qualquer pureza teórica – que tornaram as tendências reformistas, que dominavam o aparato partidário na Alemanha, marginalizadas na Rússia.

A mais relevante lição da social-democracia pré-guerra para a luta de classes de hoje é que devemos primeiramente construir partidos que se tornem dominantes no movimento operário através da luta por reformas. É apenas pela experiência coletiva de conquistar vitórias tangíveis e testar os limites do reformismo que uma maioria será ganha para políticas revolucionárias.

Enquanto é verdade que tais formações iriam recriar muitas das mesmas contradições presentes na social-democracia pré-guerra, isso não significa que estejam fadadas ao mesmo resultado. E revolucionários que cedem aos reformistas a tarefa de criar e modelar formações políticas que possam atrair e mobilizar a maioria da classe trabalhadora na luta política minam não apenas tais organizações, mas na mesma medida qualquer projeto revolucionário “separado”.

Partidos de um novo tipo

Com as ascensão do neoliberalismo e a mudança subserviente de tradicionais partidos social-democratas de partidos de massa de trabalhadores em partidos que administram a austeridade, o centro de gravidade político se deslocou à Direita. Isso significa que as lutas na Europa por estados de bem-estar social funcionais e direitos trabalhistas se tornou órfão por muitas décadas.

O giro à direita, pareado pela queda da União Soviética e os movimentos anti-guerra e alter-mundistas abriram um espaço político que precisava ser ocupado por uma nova esquerda. Esses partidos foram fundado em rejeição ao stalinismo e uma nova ideia de como se relacionar com os movimentos sociais, com a meta de conquistas a base social da social-democracia liberalizada.

Fazê-lo significava adotar pontos programáticos centrais de partidos social-democratas tradicionais – protegendo o estado de bem-estar social e direitos trabalhistas – e acrescentando uma mais ampla camada de demandas feministas e ambientais. Conforme a política na Europa e além se desviou para a direita, era dado aos radicais se organizar ao redor destas políticas.

Esses partidos se orientaram na construção de partidos de massas de trabalhadores com duas coisas em mente. A primeira é que o partido é um instrumento de intervenção social – interagindo com movimentos sociais, com o movimento sindical e esforços organizativos de base – que deveria simultaneamente construir um programa político autônomo e lutar pelo poder estatal.

A segunda é que a base de sustentação da Nova Esquerda é tanto a base tradicional dos partidos de massas de trabalhadores e os milhões que se tornaram descontentes com o sistema político como um todo.

Essas novas correntes se estabeleceram no entendimento de que não há necessidade de contrapor o esforço para ganhar pessoas em torno de um leque de demandas reformistas de esquerda e a necessidade de desenvolver o apoio a ideias e correntes mais radicais. Pelo contrário, esse tipo de engajamento amplo era o único caminho para manter a esquerda radical relevante para as pessoas comuns.

A composição ideológica difusa desses partidos permite sua transformação em sentidos progressistas, bem como oferece aos radicais uma ampla plataforma pública. O que manteve vivas as ideias revolucionárias tem sido precisamente seu engajamento com projetos reformistas de esquerda.

O partidos da Nova Esquerda agora proliferam, mais ainda permanece incerto para muitos na esquerda europeia para onde vamos daqui. Nós oferecemos três ideias estratégicas para contribuir ao debate.

Grandes partidos de esquerda não emergem do ar, ou pela boa vontade de pequenos grupos radicais ou revolucionários: eles são o produto de mudanças nascidas em mobilizações políticas mais amplas das quais os partidos existentes foram incapazes de se aproveitar.

Um dos objetivos centrais desses partidos de “novo tipo” tem sido minar os partidos social-democratas neoliberalizados absorvendo suas bases de apoiadores. Isso só é possível se há um projeto político autônomo que recusa ser uma muleta para os partidos social-democratas tradicionais, enquanto ao mesmo tempo luta por reformas, tenta ganhar maiorias sociais, e disputa o poder estatal.

Além disso, cada ruptura importante com os partidos de centro-esquerda aconteceu porque alguma formação estava aplicando pressão à esquerda – como o envolvimento Oscar Lafontaine e outros membros da ala esquerda do Partido Social-Democrata Alemão na fundação do partido socialista Die Linke.

No entanto, essa tática tem sido apenas meio bem-sucedida. A estratégia de tentar conquistar tanto apoiadores tradicionais dos partidos social-democratas e pessoas que amargaram no sistema político obviamente tem se provado difícil de levar a cabo: esses partidos “de um novo tipo” carregam demais uma lembrança dos outros para aqueles desiludidos com o sistema, e parecem distantes e anti-sistêmicos demais para aqueles despreparados para reformular o sistema político.

É preciso repetir que a vulnerabilidade e o declínio dos partidos social-democratas foi auto-infligido. Aplicando e gerindo a austeridade ao invés de expandir a prestação social, esses ex-partidos dos trabalhadores têm adotado a mesma abordagem política básica que suas contrapartes conservadoras. É precisamente por conta desta “Pasokificação” que precisamos de fortes organizações reformistas de esquerda: só elas são capazes de convencer e organizar as pessoas que mais tendem a debandar dos partidos social-democratas.

E a presença de revolucionários nessas organizações é e será crucial para prevenir uma guinada à direita.

Outro ponto chave tem a ver com a relação entre a luta social nas ruas e a busca por um gabinete político. Nós temos que entender partidos como instrumentos para a luta social, veículos que nos ajudam a coordenar e construir relações entre diferentes movimentos. Manter as características autônomas desses movimentos não é necessariamente o contrário de construir programas e campanhas para atingir o poder estatal e implementar políticas progressistas.

Embora o que os socialistas possam atingir usando o estado capitalista seja limitado, este têm uma autonomia relativa em relação aos “negócios”. A capacidade estatal de se prestar a finalidade progressistas depende do balanço de poder ente o trabalho e o capital. Não reconhecer essa possibilidade significa perder as esperanças e depreciar qualquer reforma na falta de uma revolução.

A presença de ideias revolucionárias é, mais uma vez, essencial, não apenas pela necessidade de reconhecer os limites de conquistar o poder estatal sem transformá-lo, mas inclusive porque a organização de um poder popular é central para sustentar, e a questão central para qualquer governo de esquerda.

Os limites do “Projeto Europeu”

Desde sua fundação, uma meta dos mais amplos partidos de esquerda tem sido transformar a União Europeia por dentro. Entretanto, os desenvolvimentos recentes expuseram que a EU, e a zona do euro em particular, são apenas capazes de lidar com a democracia, a igualdade e autodeterminação até um limite.

A chantagem do governo grego tornou visíveis e inquestionáveis as fissuras no assim chamado Projeto Europeu, bem como sua verdadeira natureza: uma zona com centro e periferia que almeja esmagar experiências democráticas e tentativas de reformar igualitárias a fim de dar suporte à economia dos países centrais e desmantelar a proteção social dos trabalhadores, em particular do sul da Europa.

“Negociar” de uma posição à esquerda tem rendido pouco, e a margem para manobra têm encolhido exponencialmente. A única alternativa é pensar fora das amarras da zona do euro. Essa não é uma missão fácil. O que alguns têm chamado de “euro-fetichismo” tem uma base material bastante concreta – é o resultado de trinta anos de destruição dos setores produtivos da periferia, e a sua substituição por créditos e dependência excessiva em relação aos fundos europeus.

Entender que há mais de um caminho para a saída da zona do euro é recolocar o c entro da discussão no nível político. Como nós construímos um movimento popular de esquerda que possa se ligar com projetos comuns no resto do continente, imaginar alternativas para essa prisão financeira na qual estamos emperrados e lutar contra a extrema direita e tendências nacionalistas emergentes em toda Europa? Isso não significa que deveríamos cessar as lutas e a construção de interconexões no interior deste quadro; simplesmente significa que devemos começar a pensar sobre e construir essas lutas e interconexões para além desta estrutura.

Nós apenas acharemos a resposta cera para essas difíceis questões se reconhecermos que elas são as questões chave estratégicas para toda a esquerda, se nós mantermos como meta central conquistas maiorias sociais e hegemonia ideológica – e se nós abraçamos esses partidos de “um novo tipo” com suas carências e contradições, como o melhor e mais concreto instrumento para cumprir essa tarefa hoje.

25 de agosto de 2015

Por que os ricos amam o Burning Man

Burning Man se tornou um festival que os libertários ricos amam porque nunca teve uma crítica radical em seu núcleo.

Keith A. Spencer

Jacobin

Trey Ratcliff / Flickr.

Tradução
/ A princípio o festival anual Burning Man parece uma utopia socialista: leva milhares de pessoas a um deserto vazio para criar uma sociedade alternativa. Dinheiro e propaganda estão banidos e a economia se baseia na doação. O festival encoraja seus membros a levar consigo os meios necessários para esse novo mundo, de acordo com as próprias habilidades.

Além disso, apresenta a “inclusão radical”, a “auto expressão radical” e a “desmercantilização” como princípios, e apresenta essa sociedade alternativa como um espaço de liberdade, em que as fronteiras de sexo e gênero são fluidas e devem ser ultrapassadas.

Essas ideias – a essência do Burning Man – são com certeza chamativas.

No entanto, os capitalistas também adoram, sem ironia, o Burning Man, e para quem acompanhou a história recente do festival, a ideia de que ele é absolutamente anticapitalista parece absurda: no ano passado (2014), um investidor bilionário capitalista fez uma festa que custou 16.500 dólares por cabeça no festival, sua área era um negócio hiper exclusivo repleto de convidados e modelos circulando para entretê-los.

O Burning Man está conquistando a reputação de “evento de networking” entre o pessoal de tecnologia do Vale do Silício, e revistas de tecnologia agora mandam jornalistas para fazer a cobertura. CEOs como Mark Zuckerberg do Facebook e Larry Page do Alphabet são fãs entusiasmados, bem como o ícone conservador anti-impostos Grover Norquist e muitos colaboradores da revista libertária (e financiada pelas indústrias Koch) Reason. O CEO da Tesla, Elon Musk, vai ainda mais longe ao declarar que o Burning Man “é o Vale do Silício”.

Auto expressão radical

Com duração de uma semana, o festival Burning Man acontece uma vez por ano no feriado do Dia do Trabalho em um remoto e alcalino campo no Noroeste de Nevada. Duas horas ao norte de Reno, o inóspito Black Rock Desert parece um lugar muito pobre para abrigar uma cidade temporária com 60 mil pessoas — e no entanto esse é justamente o ponto. Na área desértica, um mundo alienígena é criado e depois desmantelado no intervalo de um mês. O festival culmina com a queima deliberada de uma efígie simbólica, o “homem” do título, uma escultura de madeira com mais ou menos trinta metros de altura.

O festival Burning Man tem origens despretensiosas: um grupo de artistas e hippies que se juntou para queimar uma efígie em Baker Beach, São Francisco, e em 1990 se organizaram para realizar o mesmo festival em um local onde a polícia não os incomodaria por causa das pirotecnias não autorizadas. Uma pesquisa os levou ao deserto de Black Rock.

Burning Man é de fato um descendente da contracultura de São Francisco dos tempos passados, e tem o mesmo tipo de libertino “espírito da nudez”. Alguns dos primeiros organizadores do festival tinham uma admiração especial pelos Situacionistas, o grupo francês de esquerda cujos manifestos e grafites como “nunca trabalhe” tornaram-se ícones do Maio de 68 na França.

Apesar de os Situacionistas terem sempre sido um pouco opacos ideologicamente, uma de suas crenças centrais era a de que as cidades haviam se tornado espaços opressores de consumo e trabalho, e precisavam ser reimaginadas como locais de lazer e revolta. Por isso, grande parte do trabalho deles envolvia cortar e rearranjar mapas, e consumir alucinógenos enquanto vagavam por Paris.

É possível lembrar-se dos Situacionistas ao caminhar por Black Rock City, a efêmera cidade do Burning Man. Ainda que Black Rock City pareça em certo sentido uma cidade, com uma malha circular de terra margeando a escultura do “homem”. Por outro lado ela é completamente surreal: as pessoas andam seminuas vestidas com peles e purpurina, canos adornados com a forma de navios ou dragões tocam house music enquanto cruzam a rua.

Como qualquer cidade real, Burning Man tem bares, restaurantes, casas noturnas e teatros, mas são todos levados pelos participantes, pois eles devem levar “alguma coisa“:

As pessoas que vão ao Burning Man não são meros “frequentadores”, mas na verdade participantes ativos em todos os sentidos da palavra: criam a cidade, a interação, a arte, as performances e por fim a “experiência”. A participação é o segredo de Burning Man.

Essa participação parece algo igualitário, mas conduz a contradições interessantes. Os espaços e espetáculos mais elaborados tendem a ser trazidos pelos ricos pois eles têm o tempo, o dinheiro, ou ambos, e portanto podem fazer isso. Os frequentadores mais ricos normalmente pagam funcionários para construir e planejar seus próprios espaços (e muitas vezes exclusivos). Se você examinar a lista online de anúncios gratuitos de São Francisco no mês de agosto, vai ver propagandas para trabalhos de temporada, bicos para cuidar das regalias dos burners ricos.

Os ricos também contratam guias sherpas do Himalaia para acompanhá-los pelo festival. Alguns burners se referem pejorativamente aos espaços dessas pessoas ricas como “os acampamentos desconfigurados”.

A admiração do Burning Man pelo Vale do Silício é antiga e trabalhadores ligados à tecnologia sempre foram fãs do festival. Mas ele nem sempre foi destino de bilionários — no começo, era um festival gratuito com uma roda de tendas altas, arte esquisita e fogos de artificio; mas conforme os anos foram se passando, acampamentos desconfigurados mais exclusivos apareceram e cresceram junto com o preço dos ingressos — que foram de 35 dólares em 1994 para 390 dólares em 2015 (mais ou menos 16 vezes a taxa de inflação do período).

Black Rock City tem seu próprio aeroporto, licenciado pela FAA, desde 2000, e ele fica cada vez mais movimentado. Nos dias do evento você pode ir de San Carlos no Vale do Silício para o festival por 1.500 dólares. Em 2012, Mark Zuckerberg aterrissou no Burning Man em um helicóptero particular, e ficou por um dia apenas, para comer e servir sanduíches grelhados artesanais de queijo. Do New York Times:

“Costumávamos ter trailers e refeições pré-cozidas” afirmou um homem que frequenta o Burning Man com um grupo de empresários do Vale do Silício. (Ele pediu para não ser identificado para não prejudicar suas relações.) “Agora, apareceram os chefs mais exóticos do mundo e pessoas que constroem chalés para nós com camas e ar-condicionado.” Ele acrescentou se divertindo: “É isso, ar-condicionado no meio do deserto!”

A crescente presença da elite no Burning Man não é notada apenas pelos forasteiros — frequentadores antigos resmungam que o Burning Man se tomou “gentrificado“. Comentando sobre a matéria do New York Times, burners revelam desgosto com frequentadores que não trabalham. “Pagar pessoas para vir aqui, cuidar de você, montar suas instalações… fazer a sua faxina… essas pessoas não têm noção.”

Muitos burners ficaram furiosos depois de ler uma mulher contando que foi explorada ao trabalhar para convidados do investidor Jim Tananbaum que custaram 17 mil dólares cada. Em suas declarações, ela mostrou de várias formas diferentes como Tananbaum violava os princípios do festival, mantendo um “status VIP” ao fazer eventos e carros artísticos privativos e gritar com um de seus artistas contratados.

Os funcionários de Tananbaum recebiam 180 dólares por dia sem hora extra, mas a delatora anônima afirma que ela e outros trabalhavam de quinze a vinte horas por dia durante o festival.

A classe emergente dos frequentadores do Burning Man é revelada por dados: o censo do Burning Man (sim, eles têm um censo, exatamente como um Estado nação real) mostrou que de 2010 a 2014, o número de frequentadores que ganham mais de 300 mil dólares por ano dobrou de 1,4% para 2,7%. Esse número é especialmente significativo dada a grande presença dos 1% mais ricos no Burning Man.

Em uma sociedade realmente democrática, todos têm voz igualmente. No Burning Man todo mundo é convidado a participar mas as pessoas que têm mais dinheiro decidem que tipo de sociedade o Burning Man vai ser — elas escolhem os artistas e constroem suas próprias extravagâncias. Elas também determinam o tamanho da própria generosidade, e como gastar dinheiro.

Pode parecer uma bobagem destacar a falta de democracia no “governo” de Black Rock City. Além de tudo, por que devemos nos preocupar se Jeff Bezos encomendou um unicórnio gigantesco de metal, ou um enorme navio pirata de metal, ou se Tananbaum quer gastar 2 milhões em um acampamento com ar-condicionado? Mas os princípios desses magos da tecnologia — de que as sociedades são criadas a partir da caridade, e que os verdadeiros “construtores do mundo” são os ricos e privilegiados — não desempenham o seu papel apenas no mundo de fantasia do Burning Man. Eles são transmitidos para o mundo real, frequentemente com resultados nada positivos.

Lembremos quando o CEO do Facebook Mark Zuckerberg decidiu ajudar a “arrumar” as escolas públicas de Newark? Em 2010, Zuckerberg — talvez procurando melhorar sua imagem depois de sua representação insensível na cinebiografia The Social Network – doou 100 milhões de dólares para o sistema educacional de Newark para modernizar as escolas.

O dinheiro foi direcionado como uma parte do plano do então prefeito de Newark Cory Booker de reconstruir a cidade como “capital das escolas públicas autônomas do país”, contornando a participação pública através da parceria com a filantropia privada.

Tradicionalmente, a educação pública se embrenha ao processo democrático: em um dado distrito escolar, a comunidade elege a administração da escola por um breve período de tempo. A administração toma decisões e faz deliberações públicas. A doação de Zuckerberg, e o projeto que vinha junto com ela, minam diretamente esse processo democrático ao promover a agenda de privatização das escolas públicas, destruir os colegiados locais, tirar o poder dos professores e colocar o controle da educação pública nas mãos de tecnocratas e investidores.

Talvez isso não esteja ligado ao festival — afinal de contas, o Burning Man é para ser um mundo todo voltado para a diversão e a liberdade. Mas não é. É o contrário. Faça o que quiser, expresse a si mesmo radicalmente e foda-se a visão do resto do mundo, são exatamente as razões da atração dos tecnocratas tecnológicos do Vale do Silício pelo Burning Man.

Para esses jovens trabalhadores da tecnologia — a maioria branca e homem — que vão em bando ao festival, o Burning Man reforça e estimula a ideia de que eles podem refazer o mundo sem a presença de mais ninguém. É uma fantasia libertária radical. Infla-lhes os egos e os convence de
que eles têm o poder e o direito de construir a sociedade para todos nós, de dizer como as coisas devem ser.

É o lado negativo do Burning Man, razão pela qual os capitalistas poderosos — e especialmente os capitalistas libertários — o amam tanto. É o mundo ideal deles: um mundo onde noções vagas de participação substituem a democracia real, e a única forma de imposto é a caridade auto-imposta. Vamos relembrar a propaganda publicada junto aos editoriais dos jornais pelo CEO da Whole Foods, John Mackey, na esteira do anúncio do Obamacare, em que ele propunha um sistema de saúde mantido por “doações voluntárias deduzíveis dos impostos.”

Esse é o sonho dos libertários e do 1% maios rico, e se realiza no Burning Man – a casta mais baixa dos burners que deseja participar no festival depende dos caprichos e fantasias dos ricos para criar a Black Rock City.

Burning Man prenuncia um modelo social futuro que é particularmente atraente para os ricos: uma oligarquia libertária, em que pessoas de todas as classes e identidades coexistam, mas em que o bem-estar social e a comunidade existam apenas na base da caridade.

É claro que a riqueza é capaz de financiar mais, tanto nas dependências quanto no que “traz” para a mesa: então no Burning Man, aqueles com mais dinheiro, que podem proporcionar mais em termos de participação, trabalho e caridade, são os mais celebrados.

É a sociedade a que estamos cada vez mais nos aproximando nos outros 358 (não Burning Man) dias do ano: com um Estado de Bem-estar decadente, cada vez mais instalações públicas existem apenas como consequência da doação de grandes fortunas. Mas quando bens comuns são resultados de doações dos ricos, mais do que a garantia de participação da sociedade, o componente democrático da sociedade civil é muito reduzido e colocado nas mãos da pequena elite que ganhou dinheiro usando sua influência para cortar impostos e desmontar o Estado de Bem-estar do primeiro plano.

É como na minha ex-cidade de Pittsburgh, o sistema de bibliotecas recebe o nome de Andrew Camegie, que doou uma parcela dos fundos iniciais. Mas o dinheiro doado não foi ganho por Carnegie; ele o arrancou das costas de seus funcionários, muitos deles sofrendo de estafa por causa do trabalho e das doenças causadas pela poluição em suas fábricas de metal. O custo social real de uma caridade é o esquecimento do trabalho que a construiu e os efeitos destrutivos que ela acarretou.

No Burning Man o 1% mais rico — que ganhou seu dinheiro do mesmo jeito que Carnegie há algum tempo — aparece com um exército de empregados, mas são eles que levam o crédito pelo que “trouxeram”.

O slogan do Burning Man e seu princípio central é a auto expressão radical:

A auto expressão radical provem de dons particulares do indivíduo. Ninguém além de um indivíduo ou de um grupo de colaboradores pode determinar seu conteúdo. Ela é oferecida como um dom para os outros. Nesse sentido, quem doa deve respeitar os direitos e liberdades de quem está recebendo.

A base da degeneração de Burning Man pode estar em seu próprio conceito. Na verdade, a ideia de uma radical auto expressão é, no mínimo, sob as bases do capitalismo, um ideal direitista de Ayn Rand, e poderia facilmente ser o princípio de ação de qualquer uma das grandes empresas de mídia social no Vale do Silício, que lucram com as pessoas investindo trabalho não pago ao cultivar representações digitais.

É bom para elas que sejamos o mais interessados possíveis em nós mesmos, desde que quanto mais fiquemos obcecados na nossa identidade digital, mais nossas informações pessoais possam ser obtidas e vendidas. É fácil ver por que os fundadores dessas empresas tenham encontrado seu espaço no deserto.

Não parece que o Burning Man possa agora ser reformado ou recuperado das mãos dos empreendedores ricos que começaram a gostar dele e ocupar sua direção. Ele se tornou um festival que libertários ricos gostam porque nunca há uma crítica radical ao seu cerne, e, sem qualquer sombra de democracia, pode facilmente ser controlado por quem tiver influência, poder e riqueza.

Burning Man será lembrado mais como o modelo do sonho do CEO Larry Page de um Estado libertário, do que como o espaço situacionista libertário que poderia ter sido. Como tal, é uma fábula premonitória para radicais e utopistas. Quando “liberdade” e “inclusão” são desconectadas da democracia, muitas vezes levam ao elitismo e ao fortalecimento do status quo.

Sobre o autor

Keith A. Spencer é um escritor freelance e estudante de pós-graduação da Bay Area.

23 de agosto de 2015

O custo do custo-benefício

Mariana Mazzucato e Caetano Penna


O debate sobre o papel do Estado e o do mercado tende a se alternar de tempo em tempo. Desde os anos 1970, a dominância é liberal. Mesmo a mudança no pêndulo com a recente crise financeira global foi logo contra-atacada. A austeridade voltou à crista da onda, inclusive no Brasil. Junto vêm os usuais ataques a instituições estatais. O diabo é acreditar no discurso.

Mundo a fora, o Estado continua fazendo o que o mercado não faz. O Vale do Silício é resultado de brutal intervenção estatal. Toda a tecnologia por trás do iPhone foi financiada por agências públicas, em especial relacionadas ao Departamento de Defesa, cujo modelo foi copiado em saúde e energia.

Hoje, há pesados subsídios para setores-chave como carro elétrico e energia solar. Tesla, SolarCity e SpaceX, firmas ligadas ao empresário Elon Musk, por exemplo, já receberam quase US$ 5 bilhões.

Nos EUA, onde há um profundo mercado de capital, o Estado apoia firmas inovadoras antes do "capital de risco". Mesmo lá, tecnologias, setores e empresas na prática são escolhidas pelo Estado.

No Reino Unido, custos galopantes em pesquisa e desenvolvimento de um novo motor de avião deixaram a Rolls-Royce à beira da falência, só sendo salva pela nacionalização em 1971, seguida de empréstimos públicos de longo prazo. Em 1987, ela foi privatizada, se tornando uma líder de mercado.

No Brasil, um exemplo é a Embraer, fundada em 1969 a partir de uma visão do Estado de criar do zero um setor aeroespacial. O sucesso após sua privatização em 1994 costuma ser visto como exemplo da superioridade da iniciativa privada, que assumiu com as finanças da empresa em frangalhos.

Suas competências tecnológicas centrais, porém, foram fortalecidas nos anos 1970. Ademais, quando a Embraer privada fez uma de suas primeiras grandes vendas, para a American Airlines, o financiamento não veio de bancos privados, desinteressados no perfil arriscado e de longo prazo, mas do BNDES.

Economistas em geral aceitam que o Estado deve suprir as "falhas de mercado": situações em que o mercado não consegue alocar recursos eficientemente. Tal estrutura vem associada a análises do custo-benefício dos gastos públicos, que buscam medir se os benefícios resultantes compensam os custos, incluindo os de oportunidade.

O problema é que essa é uma análise estática de um processo dinâmico, cumulativo e de desdobramentos imprevisíveis (quem diria que tecnologias militares dariam em celulares inteligentes?).

Análises de custo-benefício tendem a levar à mesma dificuldade que motiva a opção por investimentos públicos: a falta de disposição em projetos-chave, por causa de altos riscos e incertezas. Se os Estados aplicassem seus recursos nas "melhores oportunidades", não existiriam Embraer, Rolls-Royce, Apple e boa parte das tecnologias de informação e comunicação.

O arcabouço "falhas de mercado/avaliações custo-benefício" não é apropriado quando o Estado antevê, estrutura e cria mercados. Nenhum país foi bem-sucedido industrialmente guiado por essas decisões de investimento público.

Além disso, levaria a investimentos esporádicos e concentrados na pesquisa básica, não atravessando toda a cadeia de inovação. Ignorar tal história, usando a dicotomia "Estado versus mercado", serve a objetivos políticos, não econômicos.

Estabelecer um direcionamento estratégico em suas iniciativas dificulta a captura do Estado. Isso significa definir as missões que serão os vetores das políticas públicas e das ações privadas a longo prazo.

Em vez de priorizar os duvidosos benefícios da austeridade, esperando passivamente um futuro melhor, o Brasil terá maior chance de sucesso se definir suas missões e fizer seu futuro acontecer.

Sobre os autores

MARIANA MAZZUCATO, 47, é professora de economia da inovação na Universidade de Sussex (Reino Unido) e autora de "O Estado Empreendedor" (Cia. das Letras)

CAETANO PENNA, 35, é pesquisador do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

22 de agosto de 2015

Por que os liberais separam a raça da classe

A tendência de separar as disparidades raciais da desigualdade econômica tem uma longa linhagem liberal.

Touré F. Reed


Manifestantes na Marcha dos Pobres em Washington, D.C. em junho de 1968. Warren K. Leffler / Biblioteca do Congresso

Depois de escutar um discurso de Bernie Sanders em um comício em Seattle a favor da Segurança Social, Medicare e Medicaid, a ativista do Black Lives Matter, Marissa Johnson, declarou ao Tamron Hall da MSNBC que ela se sentia motivada pelo desejo de contestar os candidatos liberais.

Isso é mais do que compreensível. Apesar de aumentar as expectativas dos progressistas, o presidente Obama continuou a promover uma sombria "guerra ao terror" global, minou a educação pública ao promover escolas autônomas e renegou as promessas ao movimento operário organizado de promulgar o Employee Free Choice Act (EFCA) e ao público americano de estabelecer um sistema de saúde verdadeiramente universal.

Tudo isso deixou claro, com certeza, a importância de tomar a palavra dos supostos liberais, mesmo para alguém tão jovem como Johnson, cujo despertar político progressivo remonta ao assassinato de Trayvon Martin em 2012 pelas mãos do vigilante sociopata George Zimmerman.

Em algum nível, então, a circunspecção de Johnson sobre Sanders e o governador Martin O'Malley (nenhuma palavra sobre Clinton) poderia ser considerada encorajadora, mesmo se sua decisão de sequestrar o comício de Sanders caísse em algum lugar entre arrogante (ela não representa nenhum constituinte) e politicamente equivocado - muitas vidas negras, incluindo as de minhas avós, se beneficiaram muito com a Previdência Social, Medicare e Medicaid por décadas.

Se pudéssemos atribuir as ações de Johnson em Seattle à arrogância juvenil, esse incidente poderia ser facilmente descartado. No entanto, à medida que a entrevista na MSNBC continuava, Johnson expôs uma perspectiva problemática que se espalhou pelo universo de ativistas, agentes políticos e especialistas ligados ao Black Lives Matter.

Johnson classificou a perspectiva de Sanders como a de "basicamente um reducionista de classe". Ela prosseguiu, dizendo: “[Sanders] nunca realmente fez uma análise forte de que há racismo e supremacia branca que é separado das coisas econômicas que todos experimentam.”

A organização horizontal do Black Lives Matter garante uma diversidade de perspectivas entre os participantes e até mesmo ramos. No entanto, a alegação agora comum no cerne dos recentes protestos do Black Lives Matter contra Sanders é que os liberais brancos há muito reduziram o racismo à desigualdade de classe, a fim de desviar a atenção das disparidades raciais.

Isso não é apenas errado, mas a formulação - que em última análise trata a raça como imutável e permanente, em vez de um produto de relações econômicas históricas e políticas específicas - enfraquece tanto a causa da igualdade racial em geral quanto a busca de tratamento equitativo no sistema de justiça criminal em especial.

Na verdade, é mais provável que Sanders faça ligações entre a desigualdade econômica em geral e as disparidades raciais no emprego, habitação, riqueza e encarceramento do que o presidente Carter, os Clinton ou mesmo o presidente Obama.

No entanto, os liberais realmente tendem a divorciar as disparidades raciais da desigualdade econômica por mais tempo do que Marissa Johnson, os fundadores do Black Lives Matter, ou até mesmo eu estive vivo. The Negro Family: The Case for National Action, de Daniel Patrick Moynihan, por exemplo, traçou a fonte final das altas taxas de pobreza negra e desemprego (que eram quase o dobro dos brancos) até o que alguns hoje chamariam de racismo sistêmico.

De acordo com Moynihan, no entanto, "o vírus racista que ... aflige todos nós" desencadeou um ciclo autoperpetuante de pobreza e dependência que quase garantiu que nem as oportunidades econômicas nem as políticas antidiscriminação por si só seriam capazes de encerrar a diferença de renda e emprego entre negros e brancos.

No final da década de 1980, a visão distópica de Moynihan - que presumia que a pobreza afro-americana tinha ganhado vida própria, tornando-a quase impenetrável à intervenção econômica - se tornou a ortodoxia liberal.

Embora liberais centristas como os presidentes Clinton e Obama tenham encorajado discussões sobre raça e estejam dispostos a admitir que o racismo pode minar as oportunidades de negros e latinos, é mais provável que eles atribuam a pobreza e a desigualdade aos hábitos, atitudes e cultura dos mais pobres do que os efeitos desastrosos das políticas trabalhistas ou comerciais ou mesmo da saúde de um determinado setor da economia.

Sanders é, portanto, mais propenso a chamar a atenção para as ligações entre racismo e exploração de classe do que o presidente democrata em exercício ou outros candidatos presidenciais, não porque ele seja um liberal - como os liberais centristas Carter, os Clintons ou Obama - mas porque ele é, pelos estreitos padrões de hoje, um esquerdista.

Situar o esquerdismo de Sanders no quadro histórico adequado é a chave para compreender a miopia que molda as críticas de alguns ativistas do Black Lives Matter a ele. O programa Sanders - Medicare para todos, um salário mínimo, o direito à negociação coletiva, políticas de comércio justo, ensino superior público gratuito, etc. - parece muito menos com a ditadura do proletariado do que com o liberalismo trabalhista do New Deal.

E é a política para os negros da era do New Deal especificamente - e o que se seguiu - que demonstra o problema fundamental com a tendência de alguns ativistas, como Johnson, de tratar a raça como "sua própria coisa", distinta da desigualdade de classe.

Muitos ativistas contemporâneos, amplamente definidos, são rápidos em descartar como deflexão racista qualquer tentativa de ver as disparidades raciais através das lentes da desigualdade de classe, mas nas décadas de 1930 e 1940 os principais líderes dos direitos civis afro-americanos - entre eles Lester Granger da National Urban League , Walter White da NAACP, John P. Davis do National Negro Congress e, claro, A. Philip Randolph da Brotherhood of Sleeping Car Portters (BSCP) - freqüentemente argumentaram que precisamente porque a maioria dos negros eram da classe trabalhadora, a igualdade racial só poderia ser alcançada através de uma combinação de políticas anti-discriminação e políticas econômicas social-democratas.

Mas, na década de 1950, o anticomunismo da Guerra Fria teve um efeito inibidor sobre a política de direitos civis orientada para a classe, preparando o cenário para análises do racismo que divorciaram o preconceito da exploração econômica - a razão fundamental para a escravidão e o Jim Crow. Na verdade, esta foi a era em que o racismo foi reformulado como uma aflição psicológica, em vez de um produto da economia política.

À medida que o macarthismo retrocedia no final da década de 1950, no entanto, os líderes dos direitos civis negros mais uma vez identificaram oportunidades econômicas para todos - empregos com salários decentes e políticas social-democratas - como essenciais para a igualdade racial.

Os organizadores negros da Marcha em Washington por Empregos e Liberdade de 1963 (é revelador que “Empregos e Liberdade” não fazem mais parte das reflexões coletivas da marcha), Randolph e Bayard Rustin - ambos socialistas - foram muito claros sobre isso.

Randolph - que mais de vinte anos antes usou a ameaça de uma passeata na capital do país para arrancar do Presidente Franklin D. Roosevelt o Comitê de Práticas de Trabalho Justas, um conselho anti-discriminação no local de trabalho - afirmou seu apoio contínuo à Lei de Práticas de Trabalho Justas, ou o que viria a ser conhecido como ações afirmativas.

Ainda assim, mesmo que Randolph tenha sido motivado pelas disparidades no desemprego e na renda, ele afirmou explicitamente que as medidas anti-discriminação por si só fariam pouco para corrigir a pobreza negra e o desemprego que, disse ele, tinham menos a ver com racismo ou discriminação (que certamente estavam vivos e prosperando em 1963) do que a automação, mecanização e desindustrialização.

É preciso perguntar se aqueles que pensam que Sanders merecia o que aconteceu com ele na Netroots Nation e em Seattle escalariam hoje Randolph (Negro American Labor Council), junto com Rustin, Whitney Young (National Urban League), Roy Wilkins (NAACP) John Lewis (SNCC), James Farmer (CORE) e Martin Luther King Jr (SCLC) como reducionistas de classe vulgares.

É por isso que as demandas da Marcha sobre Washington incluíram não apenas medidas anti-discriminação, mas uma economia de pleno emprego, programas de empregos e um aumento do salário mínimo. Randolph e Rustin aliariam-se ao economista Leon Keyserling para redigir o Freedom Budget For All de 1966, que traçava um plano de políticas social-democratas para lidar com a pobreza negra confrontando sua fonte final - a erosão de empregos bem pagos para trabalhadores de baixa qualificação que antes haviam servido de caminho para que os trabalhadores brancos chegassem à classe média.

É verdade que os negros americanos não dividiram os frutos desses empregos em pé de igualdade com os brancos entre 1940 e 1953, e o racismo teve muito a ver com isso. Mas deve-se notar que este período testemunhou a maior expansão no crescimento econômico - significando que a diferença racial de renda e emprego diminuísse substancialmente - que os afro-americanos já viram.

Apesar disso, esses empregos bem remunerados para trabalhadores pouco qualificados não iriam desaparecer depois de 1954 por causa do racismo; eles estavam desaparecendo, como Randolph et al, argumentaram, por causa da desindustrialização.

Mesmo durante os debates sobre as ações afirmativas no início dos anos 1960, os principais líderes negros deixaram claro que as medidas anti-discriminação por si só eram insuficientes.

A maioria havia apoiado inicialmente o projeto de lei antidiscriminação apresentado pelo senador Hubert Humphrey (S-1937), que estava vinculado a um programa de empregos abrangente. Isso, no entanto, foi considerado muito ambicioso e posto de lado em favor do que obtivemos: Título VII da Lei dos Direitos Civis de 1964.

De Richard Nixon em diante, a visão de que o racismo está inextricavelmente ligado à exploração econômica começou a cair continuamente no esquecimento, tanto por causa da virada conservadora na política americana em geral quanto pelos limites da ideologia do Black Power que, ironicamente, se mesclou com a virada conservadora.

A crescente aceitação da visão de que o racismo era distinto da desigualdade econômica e da exploração capitalista preparou o cenário para a ideologia da subclasse e, em última análise, para o paradoxo da presidência Clinton. Clinton, embora popular entre os eleitores negros, fez muito para minar o bem-estar material dos negros americanos.

O NAFTA (exceto na construção, os negros estão sobrerrepresentados entre os sindicalistas e os sindicalistas estão super-representados na classe média negra), o Omnibus Crime Act, o Ato de Responsabilidade Pessoal e Oportunidades de Trabalho e HOPE VI (a iniciativa federal de habitação que demoliu habitações públicas para os pobres, em favor de empreendimentos privados de “renda mista” de alto padrão, que acabaram deslocando os residentes pobres para os quatro ventos), todos tiveram um impacto desproporcionalmente negativo sobre os negros, porque visaram a pessoas pobres e da classe trabalhadora.

Mas apesar do fato de que essas políticas provavelmente prejudicam os afro-americanos mais do que qualquer outro grupo demográfico racial, Bill Clinton foi e continua sendo muito popular entre os negros porque frequentava igrejas afro-americanas e tinha amigos negros. Essa estrutura só funciona se alguém enxergar o racismo e a marginalidade econômica como duas coisas distintas - a visão de mundo endossada por Marissa Johnson e uma série de especialistas liberais, do Salon à MSNBC.

Por falar nisso, a "corrida para o topo" do presidente Obama e a guerra do prefeito Rahm Emanuel contra o sindicato dos professores de Chicago tiveram um impacto desproporcionalmente negativo na classe média afro-americana porque os professores são uma parte vital da classe média negra. E uma vez que o mesmo pode ser dito dos funcionários do setor público em geral, qualquer liderança política que pedir cortes no setor público como o governador Scott Walker está minando as classes média e trabalhadora negras.

Sanders, portanto, não é mais um reducionista de classe do que os líderes negros do movimento moderno pelos direitos civis. E, francamente, ele e outros que clamam por ver as disparidades raciais através das lentes da guerra de classes neoliberal costumam ser menos culpados de deflexão do que aqueles que sugerem que o racismo e a exploração de classe ocupam um terreno distinto.

Ao separar o problema da brutalidade policial da economia política, muitos ativistas - como, ironicamente, a abordagem liberal em oposição à abordagem de esquerda para a desigualdade racial - não apenas minam a oportunidade para alianças políticas mais amplas e talvez algumas vitórias significativas, mas contornam o mesmo ponto crucial sobre a brutalidade policial que tanto liberais quanto conservadores ignoram.

Pouco depois do assassinato de Michael Brown pelas mãos do oficial Darren Wilson, a personalidade conservadora do talk show de rádio Michael Medved questionou os méritos dos protestos em Ferguson, MO, argumentando que a maioria das vítimas da brutalidade policial são brancas, mesmo que os negros sejam super-representados. Na opinião de Medved, os chorões negros e os liberais brancos culpados exageraram a difusão da má conduta policial, desviando a atenção do problema real que os afro-americanos enfrentam: o chamado crime de negros contra negros.

Embora a maioria das pessoas mortas pela polícia sejam de fato brancas, as alegações de Medved procediam de uma estrutura racialista estreita que não apenas representava mal as questões, mas exibia um desprezo semelhante pela economia política que alguns ativistas do Black Lives Matter demonstraram ao discutir a brutalidade policial.

Especificamente, houve muitos casos divulgados em que brancos foram vítimas de brutalidade policial ou mesmo de atos flagrantes de má conduta do Ministério Público (conhecido como “railroading”). Claro, as vítimas brancas de má conduta e abusos flagrantes são desproporcionalmente pobres e da classe trabalhadora.

Os exemplos incluem: James Boyd, o sem-teto branco desarmado assassinado pela polícia de Albuquerque em março passado; Ryan Keith Bolinger, um formado do ensino médio branco desarmado e responsável pela área de feiras estadual morto pela polícia em Des Moines, IA em junho; e Damien Echols, Jessie Misskelley e Jason Baldwin - os adolescentes residentes do parque de trailers conhecidos como West Memphis Three - que foram condenados com evidências falsas em uma série de assassinatos horríveis antes de finalmente serem libertados da prisão em 2011, depois de mais de dezoito anos.

Embora as vítimas negras da brutalidade policial obviamente percorram toda a gama de classes, a realidade é que as vítimas afro-americanas do excesso policial são desproporcionalmente pobres e da classe trabalhadora.

De acordo com alguns críticos de Sanders, a tragédia de Sandra Bland deixa claro que a raça não é redutível à classe. Como Joy Reid de Thegrio.com afirmou em uma aparição em 21 de julho no The Ed Show da MSNBC, "ter um emprego remunerado ... no Texas não impediu [Sandra Bland] de acabar morta." Reid - assim como outros convidados, o professor Michael Eric Dyson da Georgetown University e o ex-senador do estado de Ohio e amigo dos Clintons Nina Turner - questionou a relevância do foco de O'Malley e Sanders na desigualdade econômica para os negros americanos.

Embora não haja como negar que um trabalho não isolava Bland da má conduta policial, abuso de poder ou mesmo negligência por parte dos oficiais penitenciários, vale a pena considerar aqui que o propósito da raça na origem e sua função contínua hoje foi e é para denotar o status socioeconômico de uma pessoa, bem como o seu valor como trabalhador. Desde o início, "negro" e, eventualmente, "de cor" foram essencialmente abreviações para trabalhadores altamente exploradas que, no segundo terço do século XIX, eram considerados como possuidores de características distintas e inatas que os tornavam exclusivamente adequados para executar "empregos ruins" - os o exemplo mais óbvio é o trabalho escravo.

Por fim, e isso inclui hoje, essas alegadas características também são o que tornou os afro-americanos excepcionalmente “qualificados” para o desemprego em massa e o encarceramento. Para as pessoas que podemos chamar de racistas, “negro” e “afro-americano” - apesar das mudanças na nomenclatura - continuam a ser abreviações para “pessoa pobre” e / ou “mau trabalhador” hoje. Assim, mesmo na mente do racista médio, raça e classe estão inextricavelmente ligadas.

Um resultado dessa realidade é que, independentemente das realizações individuais dos negros - e esta é uma das coisas que fazem o caso Bland parecer especialmente trágico - os afro-americanos costumam ser tratados por trabalhadores "menos que esclarecidos" no sistema de justiça criminal, possíveis empregadores, supervisores, administradores escolares, etc., da mesma forma que os brancos pobres são: moralmente desonrosos, intelectualmente suspeitos e potencialmente perigosos.

Se alguém enxergar os excessos e fracassos do sistema de justiça criminal apenas pelas lentes da raça, então as vítimas da brutalidade policial e má conduta do Ministério Público tendem a ser negras ou latinas. No entanto, se entendermos que raça e classe estão intimamente ligadas, então as vítimas da brutalidade policial não são simplesmente negras ou latinas (e os latinos superam os negros nas prisões federais neste momento), mas tendem a pertencer a grupos sem influência e poder político, econômico e social.

Desse ponto de vista, a visão de mundo expressa por Johnson e outros erra o alvo e cai na mesma armadilha que, ironicamente, os liberais têm oferecido um estrato de respeitados líderes negros americanos por décadas: oportunidades dentro de uma estrutura política e econômica impulsionada pelo mercado que deprecia as demandas por justiça social e econômica para todos (incluindo a maioria dos negros) como socialistas, comunistas, não americanos ou mesmo reducionistas de classe.

Sobre o autor

Touré F. Reed é professor associado de história na Illinois State University.

20 de agosto de 2015

Os comunistas do Black Belt

Durante a Grande Depressão, meeiros negros e o Partido Comunista travaram uma guerra contra os arrendatários no sul.

Robin Kelley

Jacobin

Uma família meeira no Alabama (1939). Educação Mundial Plana

Mesmo na década de 1930, os fazendeiros negros no Alabama trabalhavam sob um sistema altamente explorador de arrendatários que preservava muito das relações de poder da escravidão. Mas com a ajuda do Partido Comunista, um movimento militante de meeiros surgiu para desafiar esse sistema.

Robin Kelley conta a história em seu livro clássico Hammer and Hoe: Communists in Alabama During the Great Depression, agora em uma edição do vigésimo quinto aniversário e trechos abaixo.

*

O mundo rural organizado pelos organizadores comunistas em 1930-1931 fez as ruas pobres de Birmingham parecerem um paraíso. Os produtores de algodão estavam em meio a uma crise de pelo menos uma década. Após a Primeira Guerra Mundial, os preços do algodão despencaram, forçando os plantadores a reduzir a área plantada, apesar do aumento das dívidas, e o bicudo destruiu grandes extensões de colheita.

Quando o mercado de ações entrou em colapso e os preços do algodão atingiram o nível mais baixo de todos os tempos, as verdadeiras vítimas foram os pequenos proprietários de terras que foram forçados a arrendatários e arrendatários cujo bem-estar material se deteriorou ainda mais. Não é coincidência, portanto, que os fazendeiros negros que se situavam na linha entre o arrendamento e a propriedade formaram o núcleo do movimento rural liderado pelos comunistas do Alabama.

Dentro do mundo limitado da cultura do algodão existia uma variedade de relações de produção. Arrendatários de dinheiro, mais frequentemente brancos do que negros, geralmente arrendavam terras por vários anos de cada vez, forneciam seus próprios implementos, animais de tração, sementes, ração e fertilizantes e cultivavam sem supervisão. Os arrendatários compartilhados, por outro lado, podiam possuir alguns animais de tração e materiais de plantio, mas o proprietário da terra fornecia qualquer equipamento adicional, abrigo e, se necessário, adiantamentos em dinheiro, comida ou outros bens de subsistência, como roupas.

Contratos verbais eram feitos anualmente e o proprietário geralmente comercializava a safra, dando ao arrendatário entre três quartos e dois terços do preço, menos quaisquer adiantamentos ou dívidas anteriores. A forma mais comum de arrendamento no Sul era a meação.

Virtually propertyless workers paid with a portion of the crops raised, sharecroppers had little choice but to cultivate cotton — the landowner’s choice of staple crops. The landowner supplied the acreage, houses, draft animals, planting materials, and nearly all subsistence necessities, including food and cash advances. These “furnishings” were then deducted from the sharecropper’s portion of the crop at an incredibly high interest rate.

The system not only kept most tenants in debt, but it perpetuated living conditions that bordered on the intolerable. Landowners furnished entire families with poorly constructed one- or two-room shacks, usually without running water or adequate sanitary facilities. Living day-to-day on a diet of “fat back,” beans, molasses, and cornbread, most Southern tenants suffered from nutritional deficiencies — pellagra and rickets were particularly common diseases in the Black Belt.

The gradations of tenancy must be understood in relation to both race and geographic distribution of cotton production. The Black Belt, the throne of King Cotton in Alabama, with its rich, black, calcareous clay soil, still resembled its antebellum past in that blacks outnumbered whites four to one in some counties in 1930.

As with other cotton-growing areas, the plant’s life cycle and seasonal need determined the labor and living patterns of those who worked the land. In early spring, after the land had thawed and dried from winter, cotton farmers plowed and fertilized rows in preparation for planting, which followed several weeks later.

When the young plants began to sprout, the cotton had to be “chopped” — grass and weeds were removed and the stalks separated so that they did not grow too close together. If this was not done regularly the crop could be lost. Picking time, the most intense period of labor involving all family members, began around September 1 and continued through October. Once the cotton had been picked, ginned, baled, and sold, accounts were settled between the tenant and the landowner.

The tenants, who usually found themselves empty-handed after settling accounts, cultivated gardens to survive the winter, begged for food and cash advances, or spent several days without anything to eat. And throughout the entire year, particularly during the lean winters, tenants hauled firewood, cut hay, repaired their homes, fences, tools, and watering holes, cared for their stock, cleared trees, and removed stalks from the previous harvest.

Women’s lives were especially hard in the world of cotton culture. Rising before dawn and the rest of the family, wives and daughters of tenant farmers prepared meals over a wood stove or open fire, fetched water from distant wells or springs, washed laundry by hand in pots of boiling water, toted firewood, tended livestock, made preserves, dyes, clothes, and medicinal remedies, ground cornmeal, fathered eggs, and tried to keep a house that generally lacked screens, windows, indoor plumbing, and electricity tidy.

Women also worked in the fields, especially during picking and chopping time, and in the midst of physically exacting labor they bore and raised children. Many had little choice but to take in laundry or perform domestic work for meager wages, thus tripling their workload. Women choppers and pickers generally earned half as much as their male counterparts.

To make matters worse, because husbands and elder sons occasionally migrated to nearby cities or mines to find work, escape family responsibilities, or avoid persecution in one form or another, many women and children in a variety of female-headed households and extended families were left to organize production without the benefit of adult male labor.

It is tempting to characterize the Black Belt as a timeless, static, semi-feudal remnant of the post-Reconstruction era, but such an idyllic picture ignores the history of rural opposition and does not take into account significant structural changes that have occurred since the 1890s.

Black and white populists waged a losing battle against the expansion of tenancy, and in the wake of defeat, many landless farmers resisted debt peonage with their feet. Drowning in a sea of debt, tenants often broke their contracts, leaving an unsuspecting landowner at a critical moment in the planting cycle.

Given the demography of the plantation, open collective rebellion was virtually impossible. Shacks were placed near the edge of the plantation, and two or three miles often separated tenant families from one another. Therefore, more individualized forms of resistance (theft, arson, sabotage, “foot dragging,” slander, and occasional outbreaks of personal violence) were used effectively to wrest small material gains or to retaliate against unfair landlords.

Such tactics were legitimated by folk cultures that celebrated evasive and cunning activities and, ironically, by the dominant ideology of racist paternalism that constructed an image of blacks as naturally ignorant, childlike, shiftless laborers with a strong penchant for theft.

Resistance, in some ways, altered the structure of production as well as the planters’ ability to make a profit. With the onset of World War I, for example, large numbers of workers left the countryside altogether to take advantage of employment opportunities in the sprawling urban centers of the North and South. Areas most affected by the exodus were forced to adopt limited forms of mechanization to make up for the dwindling labor force and rising wages.

The movement off the land was accompanied by improved roads and the availability of affordable automobiles, which increased rural mobility. The number of automobiles owned and operated by Alabama farmers increased from 16 to 592 in 1920 and to 73,634 in 1930. Small holders and tenants who acquired vehicles were no longer beholden to the plantation commissary and could now purchase supplies at much lower prices in the nearby urban centers.

The revolution in transportation compelled landowners to furnish tenants in cash in lieu of credit lines at plantation commissaries and county stores in an attempt to retain rural labor in the face of competitive wages offered in the cities. But after 1929, cash was a rare commodity, and landowners resurrected the commissary system, effectively undermining their tenants’ newly acquired freedom and mobility.

By the time the Birmingham Communists established links to the cotton belt in early 1931, tenancy seemed on the verge of collapse. Advances of food and cash were cut off, debts were piling higher, and the city offered fewer opportunities to escape rural poverty. Subterranean forms of resistance were by no means abandoned, but groups of black farmers now saw the logic in the Communist Party’s call for collective action.

The slogan demanding self-determination in the Black Belt did not inspire Birmingham’s nascent Communist cadre to initiate a rural-based radical movement. James Allen, editor of the party newspaper the Southern Worker, argued that only industrial workers were capable of leading tenants and sharecroppers because the latter lacked the collective experience of industrial labor. Aside from spouting rhetorical slogans, party organizers all but ignored the Black Belt during their first year in Birmingham.

Then, in January 1931, an uprising of some five hundred sharecroppers in England, AR, compelled Southern Communists to take the rural poor more seriously. Birmingham party leaders immediately issued a statement exhorting Alabama farmers to follow the Arkansas example:

Call mass meetings in each township and on each large plantation. Set up Relief Councils at these meetings. Organize hunger marches on the towns to demand food and clothing from the supply merchants and bankers who have sucked you dry year after year... Join hands with the unemployed workers of the towns and with their organizations which are fighting the same battle for bread.

The response was startling. The Southern Worker was flooded with letters from poor black Alabama farmers. A sharecropper from Waverly, Alabama requested “full information on the Fight Against Starvation,” and pledged to “do like the Arkansas farmers,” with the assistance of Communist organizers.

A Shelby County tenant made a similar request: “We farmers in Vincent wish to know more about the Communist Party, an organization that fights for all farmers. And also to learn us how to fight for better conditions.” Another “farmer correspondent” had already begun to make plans to “get a bunch together for a meeting,” adding that poor farmers in his community were “mighty close to a breaking point.”

District leadership enthusiastically laid plans for a sharecroppers’ and farmworkers’ union that would conceivably unite poor white farmers of northern Alabama and black tenants and sharecroppers in the Black Belt. An attempt to bring black and white farmers together in a joint conference, however, brought few results. The party’s position on social equality and equal rights alienated most poor white farmers, and within a few months the party’s white contacts in Cullman and St Clair counties had practically dissipated.

The Croppers’ and Farm Workers’ Union (CFWU) was eventually launched in Tallapoosa County, a section of the eastern piedmont whose varied topography ranges from the hill county of Appalachia in the north to the coastal-like plains and pine forests of the south. In 1930, almost 70 percent of those engaged in agriculture were either tenants or wage workers, the majority of whom were sharecroppers.

Blacks comprised the bulk of the county’s tenant and rural laboring populations, and resided in the flat, fertile southeastern and southwestern sections of the county. As in the Black Belt counties further south, antebellum planter families in these two areas retained political and economic ascendancy, despite competition from textile and sawmill interests. Not surprisingly, the impetus to build a union came from local tenant farmers living primarily in southeastern Tallapoosa County.

Soon after the cotton had been planted and chopped, several landlords withdrew all cash and food advances in a calculated effort to generate labor for the newly built Russell Saw Mill. The mill paid exactly the same for unskilled labor as the going rate for cotton chopping — 50¢ per day for men and 25¢ a day for women.

By mid-May the Southern Worker reported significant union gains in Tallapoosa County and announced that black sawmill workers and farmers in the vicinity “have enthusiastically welcomed Communist leadership.”

The nascent movement formulated seven basic demands, the most crucial being the continuation of food advances. The right of sharecroppers to market their own crops was also a critical issue because landlords usually gave their tenants the year’s lowest price for cotton and held on to the bales until the price increased, thus denying the producer the full benefits of the crop.

Union leaders also demanded small gardens for resident wage hands, cash rather than wages in kind, a minimum wage of $1 per day, and a three-hour midday rest for all laborers — all of which were to be applied equally, irrespective of race, age, or sex.

By July 1931 the CFWU, now eight hundred strong, had won a few isolated victories in its battle for the continuation of food advances. Most Tallapoosa landlords, however, just would not tolerate a surreptitious organization of black tenant farmers and agricultural workers. Camp Hill, Alabama became the scene of the union’s first major confrontation with the local power structure.

On July 15 Taft Holmes organized a group of sharecroppers near Camp Hill and invited several union members to address the group in a vacant house that doubled as a church. In all, about eighty black men and women piled into the abandoned house to discuss the CFWU and the Scottsboro case. After a black informant notified Tallapoosa County sheriff Kyle Young of the gathering, deputized vigilantes raided the meeting place, brutally beating men and women alike.

The posse then regrouped at CFWU leader Tommy Gray’s home and assaulted his entire family, including his wife, who suffered a fractured skull, in an effort to obtain information about the CFWU. Union organizer Jasper Kennedy was arrested for possessing twenty copies of the Southern Worker, and Holmes was picked up by police the following day, interrogated for several hours, and upon release fled to Chattanooga.

Despite the violence, about 150 sharecroppers met with Mack Coad — an illiterate Birmingham steelworker originally from Charleston, SC who had become the party’s organizer in Tallapoosa — the following evening in a vacant house southwest of Camp Hill. This time sentries were posted around the meeting place.

When Sheriff Young arrived on the scene with Camp Hill police chief J. M. Wilson and Deputy A. J. Thompson, he found Ralph Gray — Tommy Gray’s brother and fellow CFWU organizer — standing guard about a quarter-mile from the meeting. Although accounts differ as to the sequence of events, both Gray and the sheriff traded harsh words and, in the heat of the argument, exchanged buckshot. Young, who received gunshot wounds to the stomach, was rushed to a hospital in nearby Alexander City while Gray lay on the side of the road, his legs riddled with bullets.

Fellow union members carried Gray to his home where the group, including Coad, barricaded themselves inside the house. The group held off a posse led by Wilson long enough to allow most members to escape, but the wounded Ralph Gray opted to remain in his house until the end.

The posse returned with reinforcements and found Gray lying in his bed and his family huddled in a corner. According to his brother, someone in the group “poked a pistol into Brother Ralph’s mouth and shot down his throat.” The mob burned the home to the ground and dumped his body on the steps of the Dadeville courthouse. The mangled and lifeless leader became an example for other black sharecroppers as groups of armed whites took turns shooting and kicking the bloody corpse of Ralph Gray.

Over the next few days, between thirty-four and fifty-five black men were arrested near Camp Hill, nine of whom were under eighteen years of age. Most of the defendants were charged with conspiracy to murder or with carrying a concealed weapon, but five union members were charged with assault to murder.

Although police chief Wilson could not legally act out his wish to “kill every member of the ‘Reds’ there and throw them into the creek,” the Camp Hill police department stood idle as enraged white citizens waged genocidal attacks on the black community that left dozens wounded or dead and forced entire families to seek refuge in the woods. Union secretary Mack Coad, the vigilantes’ prime target, fled all the way to Atlanta.

Behind the violence in Tallapapoosa County loomed the Scottsboro case. But unlike Scottsboro, the Camp Hill defendants were members of the party’s organization; there was no question as to who was going to defend them. After lawyers associated with the party secured the release of all but seven of the imprisoned sharecroppers, prominent Alabama citizens wary of creating another Scottsboro episode pressured authorities to quietly drop the case.

National Communist leadership praised the union’s resistance at Camp Hill as vindication of the party’s slogan calling for the right of self-determination. The successful legal defense of the sharecroppers was further proof, they reasoned, of the effectiveness of mass pressure outside the courtroom.

But union organizers found little romance in the bloodletting or in the uprooting of hundreds of poor black farmers that followed the Camp Hill battle. Moreover, rural conditions in Tallapoosa County had not improved at all.

By September, the height of the cotton-picking season, landlords again promised to cut off all food and cash advances after the cotton was picked, and many tenants had to pick cotton on other plantations in order to earn enough to survive the winter. The going rate at the time was a meager 30¢ per one hundred pounds, a tidy sum considering the average laborer could only pick about two hundred pounds per day.

A repressão e a deterioração das condições econômicas prejudicaram inicialmente o crescimento do sindicato, mas as lições de Camp Hill também forneceram um estímulo para um novo tipo de movimento, renascido das cinzas do antigo. O movimento comunista no Alabama ressoou com as culturas e tradições dos trabalhadores negros, mas ao mesmo tempo ofereceu algo fundamentalmente diferente. Propunha uma nova direção, um novo tipo de política que exigia a auto-atividade de pessoas geralmente consideradas inarticuladas.

O sol ainda não havia se posto na orgulhosa história dos comunistas no Alabama - os meeiros negros continuariam a lutar.

Republicado de Hammer and Hoe: Alabama Communists During the Great Depression.

Colaborador

Robin D. G. Kelley é o professor Gary B. Nash de História Americana na UCLA e autor de Hammer and Hoe: Alabama Comunistas durante a Grande Depressão.

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