29 de março de 2018

Pode haver um populismo de esquerda?

O debate europeu sobre o populismo põe em questão a identidade fundamental da esquerda

Jacob Hamburguer

Jacobin

Sylvain Lefevre / Getty

Tradução / Evitado pela Casa Branca e pela mídia norte-americana de direita, aquele que foi um dos principais assessores do governo de Donald Trump, Steve Bannon recentemente buscou restabelecer sua imagem de mentor político ao embarcar em uma turnê européia. Se Bannon tivesse começado a suspeitar que a presidência de Donald Trump não era mais a vanguarda de uma virada global de extrema-direita, pelo menos ele ainda podia mostrar seu apoio aos movimentos neofascistas em todo o Velho Continente. E assim, Bannon fez discursos sobre a importância do partido xenófobo italiano La Lega, elogiou seu amigo brexiteer, Nigel Farage, e apareceu como convidado surpresa na convenção da Frente Nacional Francesa. "A onda populista não acabou", insistiu em entrevista ao jornal britânico The Spectator - "está apenas começando".

É claro que Bannon não é o único a falar de "populismo" dessa maneira. Enquanto as vozes mais influentes na corrente política principal pintam o populismo como um perigo para a sobrevivência da democracia, para outros, o populismo é a chave para o futuro da democracia. Esta última narrativa tem um apelo óbvio para figuras de extrema-direita como Bannon: os populistas de extrema direita podem frequentemente parecer a escolha política mais democrática precisamente porque muitos na classe dominante os condenam como uma ameaça existencial. E, como observou o analista Anton Jaeger, embora muitos desses movimentos de direita nunca tenham adotado valores democráticos no passado, o próprio uso do termo "populismo" contra eles os ajudou a se reinventar como defensores do "povo".

Apesar da associação da palavra com os piores elementos da direita, alguns da esquerda também abraçaram o populismo como a onda do futuro - nada mais articuladamente ou mais consistente do que a cientista política belga Chantal Mouffe. Desde os primeiros anos do governo de Margaret Thatcher, ela e seu falecido marido, o marxista argentino Ernesto Laclau, argumentavam que a centro-esquerda contemporânea perdeu o rumo. Mesmo que a virada neoliberal estivesse apenas começando a atacar as proteções sociais, criando uma força de trabalho empobrecida e precária, e enriquecendo uma oligarquia diminuta - Mouffe castigou liberais sociais da terceira via como Tony Blair e Bill Clinton por adotar uma política de “consenso” que não conseguiu dar voz ao descontentamento das pessoas. À medida que a destruição social promovida pelo neoliberalismo se intensificou ao longo dos anos, Mouffe argumentou que os partidos de centro-esquerda “despolitizados” não conseguiram fornecer uma alternativa vigorosa.

Como resultado, Mouffe acredita que estamos atualmente no meio de uma crise na qual as instituições políticas não parecem mais adequadas para expressar as demandas populares - uma crise na qual o “populismo” é a única solução. A noção de populismo de Mouffe é extraída de sua compreensão da democracia como um reino de conflito, no qual grupos adversários lutam pelo controle hegemônico da política. A política democrática não é sobre o consenso, mas sobre afirmar um "nós" contra um "eles". Mouffe afirma que a direita há muito entendeu isso, então a esquerda tem que começar pelo programa se quiser ter um futuro. Mas para Mouffe e os movimentos europeus que a reivindicaram como inspiração - incluindo o Syriza na Grécia, o Podemos na Espanha e a França Insubmissa na França - o populismo de esquerda é mais do que uma necessidade de sobrevivência. Se a esquerda pode conseguir construir movimentos que falam em termos de “o povo”, contra a oligarquia ou o 1%, ela está confiante de que pode não apenas derrotar os populismos racistas e xenófobos da extrema direita, mas criar uma nova política além do neoliberalismo.

As paixões e os interesses

Os argumentos de Mouffe não são indiscutíveis à esquerda. No primeiro turno da eleição do ano passado na França, um dos interlocutores freqüentes de Mouffe, Jean-Luc Mélenchon da França Insubmissa, ficou a dois pontos percentuais de eliminar a direita e a extrema direita para enfrentar Emmanuel Macron no segundo turno da eleição. Mas nas últimas semanas da campanha, o sociólogo francês Eric Fassin escreveu um pequeno, porém incisivo panfleto, conclamando a esquerda a rejeitar a estratégia populista adotada por Mélenchon. Como o subtítulo do livro de Fassin sugere, ele acredita que o populismo é, essencialmente, uma expressão de "ressentimento" e, portanto, um fenômeno da direita que não tem lugar na luta da esquerda contra o neoliberalismo e o racismo. “Existem dois tipos de colesterol, bons e ruins”, brinca Fassin, “mas, para a esquerda, não existe um bom populismo”.

Fassin compartilha muito da interpretação de Mouffe da crise democrática provocada por décadas de despolitização neoliberal (embora sua autoridade preferida, escrevendo em inglês sobre o assunto, seja Wendy Brown). Ele também não considera a idéia da política democrática como essencialmente conflituosa. Sua rejeição ao populismo de esquerda é, não obstante, uma crítica inconfundível das implicações práticas da teoria de Mouffe e Laclau.

Fassin não é mais simpático ao recente legado dos partidos social-democratas tradicionais do que Mouffe é - um panfleto anterior dele atacou o Partido Socialista francês, sob François Hollande e o primeiro ministro Manuel Valls. Mas ele acredita que Mouffe esquece que o neoliberalismo foi a criação não de "liberais sociais" como Blair e Clinton (ou Barack Obama e Emmanuel Macron), mas dos "populistas autoritários" Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Historicamente falando, ele escreveu, o populismo é “uma arma a serviço do neoliberalismo, não contra ele”.

Fassin não pensa que os populistas de esquerda de hoje sejam secretamente thatcheristas, nem mesmo necessariamente que suas ações servirão de base para mais ganhos neoliberais ou de direita.

Ao contrário, ele acredita que a estratégia política que Mouffe defende tem como premissa uma tentativa desesperada de ganhar para a esquerda certo tipo de eleitor de direita. Muitos movimentos populistas contemporâneos - incluindo os da esquerda - apresentam-se como tentativas de ir além da divisão entre esquerda e direita. Eles dificilmente poderiam fazer o contrário, já que o populismo busca reformular os termos da luta política como uma oposição “vertical” entre os poderosos e “o povo”, uma categoria que não pode ser plausivelmente limitada às bases tradicionais de partidos de esquerda ou direita, definidos em termos ideológicos ou sociológicos. Mouffe e seus aliados, então, não estão apenas buscando criticar as instituições tradicionais da esquerda por estarem fora de contato com o povo. Eles visam construir uma base social inteiramente nova para a esquerda, independente dos partidos, sindicatos e associações existentes, e que inclui todos os empobrecidos e alienados da política após décadas de neoliberalismo. Entre essas fileiras de descontentes, Mouffe e os políticos próximos a ela reivindicam encontrar muitos que apoiaram movimentos populistas de direita. Embora muitos eleitores de extrema direita sejam racistas sinceros, xenófobos ou neofascistas, os populistas de esquerda geralmente acreditam que é possível e necessário fornecer uma expressão alternativa e anti-racista para a raiva que essas pessoas sentem. Uma vez que, diferentemente do populismo de direita, o populismo de esquerda entende as verdadeiras fontes dessa raiva - isto é, o neoliberalismo e suas conseqüências - afirma que sua mensagem acabará se mostrando mais poderosa para aqueles que votariam em nomes como Trump, Farage e Le Pen.

Fassin afirma que esse elemento do pensamento populista de esquerda não é apenas empiricamente falso, mas também politicamente quixotesco. Ele argumenta que a visão comum dos defensores de Donald Trump como americanos "deixados para trás" pela globalização neoliberal é uma ficção. O típico eleitor de Trump não era um operário de fábrica desempregado, mas sim um homem branco de classe média ou alta.

Mas mesmo sendo factualmente verdadeiro que os eleitores de extrema direita expressaram uma rejeição ao neoliberalismo - que Fassin reconhece estar mais próximo da realidade no caso do voto brexit - ele acredita que há uma falha estrutural na estratégia populista de esquerda para conquistá-los. Como Mouffe e Laclau, ele acredita que é essencial levar em conta o papel das paixões e emoções na política. As paixões que ele identifica por trás do apoio aos movimentos de extrema direita, no entanto, são fundamentalmente irreconciliáveis com as da esquerda, populistas ou não. A extrema direita é motivada pelo que Fassin chama de “ressentimento” - em outras palavras, “a idéia de que há outros aproveitando o que é meu, [e que] se eu não estou gostando, isso é por causa deles”. Para aqueles que vêem o mundo em termos de ressentimento, continua ele, a expressão de "raiva impotente" contra esses outros indignos constitui sua própria forma de "prazer".

Para Fassin, esse ressentimento é uma característica definidora do mundo contemporâneo. Em grande parte, resultou da criação de classes relativamente privilegiadas em termos econômicos que, no entanto, não têm o que Pierre Bourdieu chamou de “capital cultural”. Membros dessas classes - retratados brilhantemente pelo romancista Michel Houellebecq em seus numerosos protagonistas brancos - sentem uma profunda insegurança, que produz uma resposta emocional violenta. Eles chegam a odiar tanto os liberais altamente educados para desfilar seu elitismo cultural e valores progressistas em seus rostos, quanto as classes desfavorecidas de que essas elites “despertadas” parecem se importar mais com elas do que com eles.

Não é um mero acidente histórico, então, que o populismo tenha desempenhado um papel fundamental na construção do neoliberalismo sob os governos de direita dos anos 80. Como uma retórica política e práxis, o populismo é inerentemente cultural, explica Fassin, o que o tornou uma ferramenta ideal para os direitistas de Reagan e Thatcher para Trump. A intenção primordial da direita nas últimas quatro ou mais décadas tem sido mobilizar as classes médias brancas, em benefício da elite neoliberal, e o populismo cultural tornou possível apresentar esse esforço como uma defesa do “povo” contra os liberais decadentes.

Fassin, portanto, rejeita a ideia populista de esquerda de que há uma base de apoiadores da extrema-direita cuja raiva pode ser desviada dos movimentos populistas racistas para os movimentos igualitários. Não há um desejo subconsciente de justiça econômica sob o voto de Donald Trump ou da Frente Nacional, apenas ressentimento em relação aos superiores culturais e inferiores raciais. Para Fassin, o populismo é simplesmente ressentimento. Os esquerdistas podem vestir suas idéias em retórica populista o quanto quiserem - eles podem, por exemplo, personalizar sua crítica ao neoliberalismo denunciando membros da “oligarquia” e sua cosmovisão cultural. Mas Fassin insiste que, na medida em que a esquerda opta por seguir esse caminho, sacrifica idéias e métodos propriamente esquerdistas por uma retórica de guerra cultural que se origina na extrema direita, mas nunca pode satisfazer os ressentimentos e inseguranças que a extrema direita nutre.

Excepcionalismo anglo?

Em seu próprio livro, Mouffe não menciona Fassin pelo nome, mas responde a algumas de suas críticas. Reconhecendo que os outros podem não estar tão dispostos a abandonar grande parte do legado histórico da esquerda, por exemplo. Mouffe distingue entre as instituições da Esquerda e seus valores. Embora o populismo de esquerda deva questionar radicalmente o primeiro, explica, ele deve se agarrar ao segundo se quiser permanecer distinto do populismo de direita. Mais importante, Mouffe esclarece que, contrariamente à acusação de Fassin, ela não acredita que o populismo de extrema direita seja um movimento de resistência contra o neoliberalismo, nem nega o racismo sincero de muitos de seus adeptos ou o sofrimento que pode causar. Ainda assim, ela se dobra, sustentando que a extrema direita de hoje é de fato uma reação autêntica contra as formas de “pós-democracia” que o neoliberalismo ajudou a provocar, se não uma reação contra o próprio neoliberalismo. Há o que ela chama de um "núcleo democrático" nas demandas dos populistas de extrema direita, que deixou os populistas se esforçarem para "orientar ... para objetivos igualitários".

Embora em alguns aspectos Fassin e Mouffe possam ter mais em comum do que se poderia admitir, sua divergência sobre o grau de porosidade entre a esquerda e a direita é crucial. A esse respeito, a crítica de Fassin ajuda a identificar o que é tão novo sobre o populismo para a esquerda contemporânea - mas também por que talvez não seja a salvação que seus partidários acreditam ser.

Os defensores do populismo de esquerda acreditam que, nas "pós-democracias" neoliberais de hoje, as estratégias populistas e a retórica fornecem o único caminho para uma política de esquerda bem-sucedida. Embora Mouffe tenha feito mais do que qualquer um para fornecer argumentos consistentes para essa posição, ela tem a tendência de inverter seu próprio raciocínio. Ao ler o último livro de Mouffe, percebe-se que para ela, se algum movimento tiver sucesso em conquistar uma posição à esquerda do liberalismo social dominante, deve ser um movimento populista de esquerda. Isso resulta em algumas alegações peculiares. Por exemplo, no início de Para um populismo de esquerda, Mouffe afirma claramente que os partidos social-democratas estabelecidos "se tornaram muito profundamente integrados dentro da formação hegemônica neoliberal" para representar uma alternativa de esquerda autêntica ao neoliberalismo. Mas durante todo o resto do livro, ela continua elogiando o populismo de Jeremy Corbyn, o líder de esquerda do partido de Tony Blair. E apesar do fato de Bernie Sanders ter escolhido concorrer em 2016 como democrata e mais tarde feito campanha para Hillary Clinton, aprendemos que ele também é "claramente" um populista de esquerda.

Mas, quanto aos movimentos continentais que se alinharam com as idéias de Mouffe, está longe de claro que compartilham uma estratégia comum com Corbyn e Sanders (que são, eles mesmos, pouco idênticos um ao outro). Fassin ajuda a esclarecer a importante diferença entre essas figuras anglófonas - embora a insurgência juvenil de Kevin Kühnert dentro do Partido Social-Democrata Alemão pudesse ser adicionada à lista - e os movimentos de esquerda explicitamente populistas em países como Espanha e França. Não é apenas que Sanders e Corbyn trabalhem com e dentro de partidos estabelecidos; Ambos os líderes procuraram mover esses partidos para a esquerda, fornecendo uma mensagem de esquerda atualizada que pode mobilizar inequivocamente as bases de esquerda. É claro que essas bases mudam com o tempo: as campanhas bem-sucedidas não se esquivam de abraçar novos eleitorados nem se deixam ficar excessivamente ligadas aos blocos de votação que perderam. Assim, se Fassin tem mais admiração pelo que a esquerda está fazendo do outro lado do Canal da Mancha e do Atlântico, pode ser devido ao fato de Corbyn e Sanders serem simplesmente mais eficazes em identificar quais eleitores estão do seu lado, chegando até eles, e oferecendo-lhes o que eles querem. Talvez eles não sejam tanto populistas quanto meramente bons políticos - melhores, pelo menos, do que os centristas em seus partidos.

Movimentos como o Podemos e o França Insubmissa, por outro lado, estabelecem um objetivo muito mais ambicioso. Seguindo a noção de Mouffe de substituir a divisão de esquerda e direita por uma oposição entre o povo e as elites, priorizam a conquista de causas de esquerda, eleitores cuja orientação pode ser fundamentalmente de direita. Embora tais tentativas populistas de superar as definições tradicionais de esquerda e direita possam não ficar sem seus modestos sucessos, Fassin sugere que a esquerda talvez não precise romper tão radicalmente com suas instituições tradicionais e bases sociológicas. Quer dizer, pode ser possível abarcar algumas das idéias filosóficas de Mouffe e Laclau - a natureza conflituosa da democracia, o papel das formações hegemônicas na política - sem abraçar o populismo e todos os seus descuidos.

Populistas de esquerda como Mouffe têm um relato convincente de como alguém como Steve Bannon pode representar um defensor das pessoas comuns. Mas o pequeno livro de Fassin sugere que, para encontrar uma saída para esse estado de coisas, a esquerda pode não estar em tão terrível necessidade de novas idéias, que precisa procurar novos apoiadores entre aqueles que acreditam nela.

27 de março de 2018

O valor de O Capital

O capital não nos mostra apenas como funciona a produção capitalista. Mostra-nos porque o capitalismo é uma afronta à liberdade.

William Clare Roberts


O turno da noite em uma fábrica de vidro de Indiana, 1908. Lewis W. Hines / Biblioteca do Congresso

Tradução / David Harvey fez-me uma grande honra ao revisar meu livro Marx's Inferno: The Political Theory of Capital. A ampla resposta de Harvey destaca uma série de desentendimentos de amplo significado, não apenas para os marxistas acadêmicos, mas também para a esquerda política.

Ele afirma que meu livro será "uma primeira salva no que promete ser uma grande batalha para redefinir o legado intelectual e político de Marx". Eu certamente espero que ele esteja certo.

Atualmente, a esquerda está energizada, mas fraca. Os jovens estão amplamente desencantados com o capitalismo e com a ordem global pós-Guerra Fria, e estão com mente aberta para o socialismo. Ao mesmo tempo, as organizações políticas e econômicas da esquerda estão em frangalhos, e não há centro de gravidade teórico ou tático. Penso que este é precisamente o momento de reler a história da teoria socialista, retornar e refazer os primeiros princípios.

Ninguém é mais importante, a esse respeito, do que Marx. A questão é, qual Marx?

Meu livro defende a dignidade do primeiro volume de O Capital e argumenta que contém um Marx que precisamos recuperar hoje. Harvey discorda, argumentando que “tomar o volume 1 como um tratado independente é profundamente problemático”.

Essa discordância, sua "objeção mais séria" ao meu livro, reflete-se em três diferenças substantivas entre nossas abordagens a Marx. A primeira diz respeito ao tipo de teoria que O Capital apresenta. A segunda diz respeito ao conteúdo do argumento de Marx no Volume 1. E a terceira diz respeito à relação de Marx com o socialismo de seu tempo e o atual.

Quero trazer cada um desses desacordos mais profundos à discussão, pois um amplo debate sobre esses assuntos é da maior importância.

Que tipo de livro é O Capital?

A questão de pesquisa que meu livro coloca e tenta responder é a velha questão do “método de apresentação” de Marx em O Capital. Por que o Volume 1 toma a forma que toma?

Como o próprio Marx aborda essa questão — ainda que elipticamente — no curso de rebater a alegação de que ele está aplicando um método hegeliano ao estudo da economia política, a pesquisa sobre essa questão é dominada por esforços para encontrar um método hegeliano ou quase hegeliano de apresentação no Volume 1. Isto teve resultados mistos.

Todos reconhecem que partes do texto parecem bastante hegelianas. Por outro lado, os principais trechos do livro não parecem hegelianos: grande parte das partes 3, 4 e 8 somam cerca de 40% do livro. Estas são as partes “históricas”.

Os marxistas hegelianos tendem a se envergonhar por essas partes, já que não acrescentam muito ao desenvolvimento dos conceitos. Historiadores sociais como Gareth Stedman Jones pensam que são a única parte valiosa de O Capital. As duas metades nunca são unidas, no entanto.

Minha resposta idiossincrática a esse problema é que Marx estruturou o Volume 1 no modelo do Inferno de Dante. Isso não é tão estranho quanto parece.

Descidas metafóricas no inferno foram difundidas na literatura socialista do século XIX. O bête noir de Marx, Pierre-Joseph Proudhon, fez o máximo com o tropo. Além disso, as categorias morais que estruturam o Inferno de Dante — incontinência, força, fraude e traição — estavam presentes na economia moral do socialismo primitivo, pela simples razão de que a herança cristã-aristotélica permeava a moralidade popular.

Marx, eu argumento, escreveu o Capital como uma queda no inferno social do capitalismo moderno. Ele queria familiarizar seus leitores com o funcionamento interno do modo de produção capitalista, enquanto deslocava as categorias do julgamento moral socialista para "o conjunto das relações sociais".

Como mostra o meu livro, a leitura do Volume 1 permite-nos compreender os seus argumentos de uma forma conectada e holística, e como uma intervenção cuidadosamente construída no movimento socialista da época de Marx, sem extirpar grandes trechos do livro, seja como “Digressões” ou “ilustrações” ou como ônus metafísicos equivocados.

David Harvey objetou, no entanto, que isso "constrói uma versão única e exclusiva que separa outras leituras", e que repousa sobre "a base superficial mas conveniente" de que apenas o Volume 1 foi publicado enquanto Marx estava vivo.

De acordo com Harvey, “se lermos apenas o Volume 1 do Capital, ... também entenderemos mal o argumento do Volume 1.” Faremos isso porque “a suposição em todo o Volume 1 é que todas as mercadorias são trocadas pelo seu valor”. Isso permite que Marx construa “um modelo de atividade capitalista que reflete 'o inferno' do trabalhador”, mas não permite que ele considere a “alienação” do “trabalhador afluente” protegido por um sindicato, vive em uma casa suburbana, tem um carro na garagem, uma TV na sala de estar, um laptop na cozinha e férias na Espanha ou no Caribe.”

Nem permite que Marx explique como “a acumulação de capital... repousa sobre [o] 'consumo racional'" da classe trabalhadora, que deve ser possibilitado pela classe capitalista. Harvey afirma que essas questões podem vir à tona e receber sua explicação adequada apenas uma vez que Marx abandone a suposição de que os preços são iguais aos valores que ele faz nos Volumes 2 e 3.

Assim, o Volume 1, por si só, nos dá uma imagem parcial e, portanto, falsa, do capitalismo. Meu livro, argumentando que o Volume 1 pode se sustentar por si mesmo, presta a Marx e aos meus leitores um desserviço.

O pressuposto básico da interpretação de Harvey é que, quando Marx escreveu e publicou o Volume 1, ele estava "apresentando suas descobertas" e que, a serviço de apresentá-las de uma maneira "persuasiva" e a um público leitor de “artesãos e trabalhadores autodidatas”, ele "simplificou" essas descobertas, "até ao ponto de falsificação." Assim, somente as obras inéditas de Marx - os Grundrisse, Volumes 2 e 3, os vários rascunhos preparatórios — podem nos dar uma imagem verdadeira de suas "descobertas".

Em resumo, o Marx de Harvey é um explicador. Ele tem uma teoria grandiosa e unificada, mas sabe que é muito difícil se comunicar com “artesãos e trabalhadores autodidatas”, simplificando-a e vestindo-a com “referências literárias e culturais”, para “garantir que o público dele entenderia o que ele estava falando ”.

Meu Marx, pelo contrário, é um argumentador. Ele não tem uma teoria totalmente elaborada no bolso de trás. Em vez disso, ele é orientado por um conjunto de desentendimentos com os economistas políticos clássicos, e com seus colegas socialistas, e está elaborando, no Capital, uma resposta completa a essas divergências como ele pode.

A forma literária de sua intervenção não é uma fantasia em que ele veste sua teoria; é a forma da teoria em si. Sua platéia sabe muito bem do que ele está falando, porque ele não está descendo sobre do topo da montanha, mas respondendo aos argumentos e controvérsias em andamento dentro dos movimentos socialistas e operários.

Acho que minha imagem de Marx e do Capital é mais exata que a de Harvey. Afinal, é estranho dizer que você perdeu o argumento do Volume 1 se o ler sozinho. Afinal, Marx publicou o Volume 1 por conta própria. De fato, ele o fez três vezes — duas em alemão e uma em francês. Ele estava se preparando para publicá-lo novamente — por conta própria — quando ele morreu. E ele aprovou uma tradução russa — por conta própria — em 1872. Qualquer que fosse a aspiração que ele tinha para os Volumes 2 e 3, ele claramente achava que o Volume 1 poderia ser lido e entendido por conta própria.

Infelizmente, parecemos estar mais confortáveis com Marx se o imaginamos como um erudito incapaz de comunicar a complexidade de sua verdade em meras novecentas páginas, em vez de ser um pensador político engajado, elaborando suas ideias no meio do debate.

Essa propensão para Marx, o explicador, sobre Marx, o argumentador, é sintomática de uma tendência antipolítica à esquerda. Confiante de que suas idéias estão corretas, e lamentando a necessidade de simplificar as coisas por causa da persuasão, a esquerda anti-política é poupada do trabalho de reconstituir sua teoria com base no engajamento político.

Qual é a teoria de Marx em  O Capital?

No entanto, você poderia dizer que estou interpretando mal a real preocupação de Harvey. Embora eu argumente que o Volume 1 do Capital pode ser lido e entendido por si só, Harvey não está argumentando que o capitalismo não pode ser entendido com base no Volume 1?

Eu suspeito que isso esteja certo, e eu concordo com Harvey sobre isso. Os volumes 2 e 3 podem aprofundar nossa compreensão de como, de acordo com Marx, o capitalismo funciona.

No entanto, a resenha de Harvey não diferencia entre compreender O Capital e compreender o capitalismo. Ele simplesmente procede como se a incapacidade de entender o fordismo ou a sociedade de consumo com base no Volume 1 invalidasse minha afirmação de que o Volume 1 pode ser lido e entendido por si mesmo.

Estou confiante de que temos que ler muito mais que Marx nunca escreveu para entender os caprichos e variedades do capitalismo contemporâneo e do século XX. No entanto, também penso que Marx, no Volume 1, faz um trabalho melhor do que aqueles que vieram antes ou depois de chegar ao que está errado com o capitalismo.

Primeiro, ele tem uma compreensão melhor da dinâmica fundamental do mercado, do local de trabalho, do padrão de desenvolvimento capitalista e do papel do estado capitalista do que seus concorrentes. Mas ele também mostra como tudo isso ofende o desejo demasiado humano de se libertar do poder dominante.

A inovação de Marx é que ele se casou com essa preocupação pela liberdade uma dissecação sistemática do capital. O capital mostra como e por que o mercado domina os produtores, o capitalista e a fábrica dominam o trabalhador assalariado, e o capital domina o estado.

O Capital, portanto, não nos mostra apenas como funciona a produção capitalista; mostra-nos porque quereríamos, em nome da liberdade, sair do regime da produção capitalista.

Isso leva Harvey a afirmar que, enquanto chamei a atenção “para o político em Marx”, fui longe demais na direção de “dispensar a economia”. Eu discordo. O que tentei fazer, ao contrário, é mostrar que Marx tinha uma melhor compreensão da economia do que Proudhon, os owenistas ou os saint-simonianos, precisamente porque ele via o que era político na economia, e em discussões sobre o economia.

Tomemos, por exemplo, a afirmação de Harvey de que, no Volume 1, Marx assumiu, ao contrário de sua posição considerada, que as mercadorias trocam seus valores, ou esse preço é igual a valor. Segundo Harvey, Marx o fez “para tornar a teoria do valor mais palatável para seu público”.

Isso mal representa erroneamente a intenção política e as apostas do argumento de Marx. A posição padrão entre os socialistas nos dias de Marx era que o sofrimento e a exploração dos trabalhadores eram atribuíveis ao fato de que seu trabalho e seus bens eram incapazes de impor seu valor justo no mercado.

A insistência de Marx em tratar os preços como se refletissem valor teria tornado sua teoria do valor mais controversa, não mais palatável. Marx estava cortando indo contra a corrente aqui, escolhendo uma briga. Por quê?

O diagnóstico prevalecente, por insistir na divergência entre preço e valor, perdeu tanto a dinâmica do mercado (pela qual os preços convergem em valor) quanto a distinção de capital, que pode se acumular sem extrair rendas, como uma forma de poder econômico.

Longe de suavizar as complexidades de sua teoria, Marx está preocupado em confrontar os pontos fracos da teoria socialista existente.

Para dar outro exemplo, Harvey afirma que, ao assumir que todas as mercadorias trocam seus valores, Marx é capaz de “evitar” o problema da demanda efetiva e, assim, “com base nessas suposições”, construir "um modelo de atividade capitalista que reflete 'o inferno' do trabalhador ".

Mas, como argumento no Inferno de Marx, Marx não “evita” esse problema de todo no Volume 1. Em vez disso, assume a questão e o incorpora em suas reflexões sobre a mercadoria, a troca e o dinheiro.

Que "o curso do amor verdadeiro nunca correu bem" é crucial para o argumento de Marx de que usar o mercado para mediar a divisão social do trabalho produz ansiedade, incerteza e vigilância servil entre aqueles que dependem do mercado para sua subsistência. Se não fosse assim, cada mercadoria poderia ser convertida em dinheiro, e o programa de Proudhon para "republicar" o dinheiro seria realizado.

Para um exemplo final, há a questão da acumulação primitiva, que Harvey vincula à mesma afirmação sobre as suposições simplificadoras de Marx. De acordo com Harvey, há uma "mudança dramática de suposições" no início da Parte 8, e "os números do usurário, do banqueiro, do comerciante, do senhorio, do estado (e de sua dívida) voltam à narrativa, assim como o poder da demanda efetiva no mercado ”.

Concordo que os latifundiários e o Estado são centralmente importantes para o relato de Marx sobre a acumulação primitiva, e digo isso no capítulo 6 do meu livro. Nosso real desacordo diz respeito à importância do capital dos usurários e dos comerciantes.

De acordo com Harvey, é a disseminação autônoma dessas formas “antediluvianas” do capital — “a propagação da mercantilização e monetização” — que impulsiona a acumulação primitiva.

Existem pelo menos dois problemas aqui. Primeiro, Harvey não pode apontar para nenhum lugar da Parte 8 onde Marx realmente enfatiza o papel dos comerciantes ou usurários. Ele cita o Manifesto, Volume 3, os Grundrisse, e reclama que eu "ignoro tudo isso", mas ele falha em mostrar como o argumento de Marx no Volume 1 depende ou reproduz as afirmações de Marx nesses outros lugares.

De fato, existem apenas dois lugares na Parte 8 onde as formas antediluvianas do capital desempenham um papel na apresentação de Marx. Primeiro, no capítulo 26, onde Marx diz que a demanda por lã em Flandres motivou os senhores a limpar suas propriedades e transformá-las em pastos de ovelhas. Este episódio é parte integrante do meu próprio argumento, por isso não consigo ver qual é a queixa de Harvey sobre este assunto.

Em segundo lugar, no capítulo 31, Marx afirma que “O capital monetário formado por meio de usura e comércio foi impedido de se transformar em capital industrial, no campo pela dissolução feudal, nas cidades pela organização de guildas. Esses grilhões desapareceram com a dissolução da sociedade feudal, com a expropriação e o desejo parcial da população do campo”.

Em outras palavras, a acumulação primitiva permite que o capital monetário comece a funcionar como capital industrial. O capital monetário não dissolve, por sua própria ação, a constituição feudal da sociedade. A alegação de Marx aqui é exatamente o oposto de Harvey. Se estamos falando sobre o que Marx diz no Volume 1, não vejo justiça nas críticas de Harvey.

Mais importante, penso que a leitura de Harvey sobre a acumulação primitiva apaga um dos pontos políticos mais importantes da argumentação de Marx: a brusca ruptura histórica entre a constituição feudal e o modo de produção capitalista.

Commodificação e monetização não são, segundo Marx, processos autônomos. Eles não se espalham por contágio. Uma revolução nas relações de produção é necessária.

Sim, Marx afirma que “a circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital”. Mas, como argumento, ele também começa cada seção principal do Volume 1 com uma nova história sobre a origem do capital: na circulação de mercadorias, no exploração do trabalho, na produção em larga escala e na acumulação primitiva dos fatores de produção.

A leitura de Harvey, ao enfatizar apenas a primeira origem, corre o risco de transformar o mercado na raiz de todo o mal e Marx em outro moralizador socialista, investindo contra o dinheiro e a mercadoria, comerciantes e usurários, a trapaça e a especulação.

Admito sem problemas que minha leitura dos argumentos econômicos de Marx no Volume 1 não é a leitura padrão. Tampouco é sui generis: concorda com algumas das teses avançadas por teóricos da forma valor, como Michael Heinrich, por exemplo. Meus empréstimos a partir dessa abordagem de Marx o situa como proto-austríaco e não como pós-ricardiano (sim, sei que será uma afirmação controversa!) e transforma a leitura da teoria do valor de Marx e sua explicação da exploração.

Estas são questões econômicas fundamentais. O que meu livro traz à mesa que é novo é a afirmação de que o contexto político e a intenção do argumento de Marx são cruciais para entender o verdadeiro conteúdo da posição de Marx.

Quando você aprecia a oposição de Marx a todos os esquemas de dinheiro-trabalho, e você vê o que estava motivando esses esquemas, você está melhor posicionado para entender os argumentos de Marx na Parte 1. Quando você reconhece o contraste entre a abordagem de Marx da exploração e todas as os relatos de exploração como extorsão inspirados em Saint-Simon, você pode apreciar a força do argumento de Marx na Parte 3. Quando você entende o separatismo antipolítico desenfreado no campo socialista em 1800, o argumento da Parte 8 entra em cena.

Essa é a minha aposta, ao menos: a oposição de Marx a outras posições socialistas, tanto teóricas quanto políticas, anima seus argumentos econômicos no Volume 1.

Socialismos, antes e agora

Essa ênfase no esclarecimento da “relação de Marx com Proudhon, Fourier, Saint-Simon e Robert Owen” é o que Harvey mais aprecia sobre meu livro.

Em particular, ele está convencido pelo meu argumento contra GA Cohen, que (junto com muitos outros) enfatizou a continuidade com essa tradição socialista, e sua ênfase na “igualdade e justiça social”. Insisto, pelo contrário, que Marx foi decisivamente contra grande parte dessa tradição, que ele considerava moralista e equivocada, sobre a dinâmica social da economia capitalista.

Embora Harvey elogie esse aspecto do meu argumento, estou um pouco intrigado com sua resposta a ele, por três razões.

Primeiro, Harvey parece pular pelo principal do meu argumento. Em suas palavras, argumento que Marx “voltou a uma antiga tradição aristocrática de governança republicana como não-dominação”, que “transformada pela experiência do industrialismo capitalista produziu uma visão política marxista única”. Harvey pergunta: “Se a desigualdade e a justiça social é insuficiente para a tarefa de definir uma alternativa socialista, então, o que poderia substituí-la? ”

Ele então continua falando sobre a administração industrial de Owen e Saint-Simon, sem sequer hesitar em considerar a resposta que meu livro propõe (e que eu acho que Marx propôs): liberdade.

A “antiga tradição aristocrática de um governo republicano” não era unicamente antiga e nem somente aristocrática. A preocupação republicana com a liberdade da servidão e da dominação perpassou grande parte da política radical, popular e plebeia do século XIX.

Ela corria ao lado da preocupação rousseauniana com a soberania popular e a preocupação utilitarista com a administração racional, mesmo quando se chocava com elas. Pregou resistência a concentrações de poder e associação cooperativa e deliberativa. Meu livro argumenta que todo o argumento de Marx no Capital é orientado por esse desejo republicano de se libertar da dominação.

E então eu acho desconcertante que Harvey só mencione liberdade uma vez em toda a sua resenha, e só então pergunte por que eu não falo mais sobre a tradição jacobina do republicanismo.

Eu voltarei aos jacobinos. Por enquanto, deixe-me apenas indicar que minha reconstrução do republicanismo de Marx ressoa com algumas análises sobre a esquerda contemporânea. Alex Gourevitch argumentou tanto pelas credenciais históricas quanto pela relevância contemporânea de “uma visão de uma sociedade de igual liberdade”. Keeanga-Yamahtta Taylor fez uma poderosa defesa para reviver o movimento pela libertação dos negros. Corey Robin, há vários anos, apelou à esquerda americana para reapropriar-se da política de liberdade da direita. Em minha leitura, Marx concordaria com esse apelos.

Como essa é a orientação do meu livro, também estou intrigado com a tentativa de Harvey de reabilitar os saint-simonianos.

Harvey afirma corretamente que "Marx estava relutante em deixar de lado as melhorias óbvias na produtividade do trabalho alcançadas pelo capitalismo industrial". Ele também observa corretamente que essa relutância era parte da base da apreciação de Robert Owen por Marx. No entanto, ele usa uma das notas de rodapé de Engels no volume 3 para trazer Saint-Simon como um prenúncio da sociedade anônima, que tem o potencial - "quando democratizado para incluir os também os ouvriers" - para fornecer “modos de governança e administração coletiva” para o futuro socialista.

Eu sou extremamente cético de que há algo de valor para a esquerda no pensamento de Saint-Simon. E, apesar da nota de rodapé de Engels, não há evidência confiável de que Marx tenha pensado muito nos planos de Saint-Simon também. Engels sempre teve um fraco por Saint-Simon, como indico em meu livro, mas Marx não deixou registro de compartilhar a alta estimativa de seu amigo. Que Engels nos assegure, após a morte de Marx, que seu amigo havia chegado a compartilhar sua própria opinião não é evidência muito credível de que Marx fosse "atraído" pelo "modo de pensar" de Saint-Simon.

Por um lado, Saint-Simon era um racionalista autoritário que sonhava apenas com uma hierarquia benevolente e uma melhoria ordenada. Portanto, ele era absolutamente alérgico a qualquer coisa tão desordenada quanto os movimentos políticos populares ou a democracia majoritária ou o governo de baixo.

Quando Harvey pareceu identificar a questão sobre a alternativa socialista com a questão de como "conceber uma forma de governo que seja consistente com o objetivo do princípio de associação [e] com a necessidade de organizar a macro-economia de forma produtiva e construtiva", ele aborda a questão de uma forma muito favorável à perspectiva de Saint-Simon. Não vejo, no entanto, como isso é compatível com um projeto de construção de um movimento político para a emancipação universal.

Finalmente, há a questão dos jacobinos. Harvey observa que meu livro "ignora o elemento jacobino" no socialismo da época de Marx. Isso é basicamente certo, com a ressalva de que o jacobinismo britânico de Bronterre O'Brien aparece na minha história.

É certamente correto que Auguste Blanqui e seus seguidores não desempenham nenhum papel em minha conta do argumento do Capital. Por um lado, a relação de Marx com o blanquismo foi exaustiva e autoritariamente tratada em As idéias políticas de Marx e Engels, de Richard N. Hunt (um clássico subvalorizado e difícil de encontrar, infelizmente); não vi nenhum valor em recauchutar esse terreno.

Em segundo lugar, Blanqui não produziu quase nada por meio de uma teoria distinta, e o blanquismo não era uma força a ser considerada na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Marx estava preocupado em desmantelar o proudhonismo e o saint-simonismo, porque esses eram dois corpos teóricos substanciais e influentes. O jacobinismo conspiratório de Blanqui era relativamente inconsequente e desinteressante.

Mais importante, no entanto, a tradição republicana francesa, da qual Blanqui é uma ramificação, é, como Harvey percebe, "muito diferente" da tradição republicana que eu acho que influenciou Marx. Rousseau teve uma influência maciça na tradição francesa, mas quase nenhuma em Marx (como David Leopold mostrou). Eu simplesmente não vejo sinais de influência jacobina ou blanquista no Capital, e Harvey também não aponta para nenhum deles. Na ausência de tal indicação, fico um pouco perplexo com a sugestão de que não posso buscar a evidência que está no texto “sem antes abrir a questão do republicanismo jacobino”.

Com isso, parece que temos um círculo completo. A objeção esmagadora de Harvey ao meu livro é que ele é uma leitura do Volume 1. Ele não acha que eu possa estabelecer minha interpretação do Volume 1 com base no Volume 1. E ele argumenta contra a minha interpretação, mas não, na maior parte de suas críticas, com base no volume 1. Este resultado sugere-me que estou no caminho certo. Como escrevo na introdução de Marx’ Inferno,

Marx, sem dúvida, pensou em O Capital como sua obra-prima. Ao longo do século XX, ela foi relativamente negligenciada, pois supostamente era o assento de Marx que já conhecíamos das proclamações dos partidos marxistas. Por isso, as pessoas atraídas por Marx, mas repelidas pelos partidos, procuravam um “Marx desconhecido” ou outro, à medida que novos manuscritos se tornavam disponíveis. Esse processo certamente enriqueceu nosso conhecimento do pensamento de Marx, mas também produziu a situação bastante perversa em que Marx é mais conhecido por suas anotações inéditas do que por sua grande intervenção pública. Ironicamente, nunca conhecemos muito bem o Marx do Capital. É um livro longo e difícil, sem a clareza programática e a generalidade dos últimos trabalhos de Engels. ... O Volume Um do Capital - o único trabalho de teoria totalmente elaborado e publicado de Marx - acabou sendo amplamente negligenciado. E, portanto, acho importante voltar a lê-lo cuidadosamente do começo ao fim, e fazê-lo sem presumir que sabemos o que vamos encontrar.

Minha esperança é que meu livro possa provocar exatamente esse tipo de leitura. Se isso acontecer, então tenho certeza de que as pessoas encontrarão coisas coisas que vão contra a minha interpretação, que sugiram outras interpretações, que abram o caminho para outros interlocutores. Até lá, agradeço ao professor Harvey por ler e responder ao meu livro, mas continuo indiferente a suas objeções.

Colaborador

William Clare Roberts é professor assistente de ciência política na Universidade McGill e autor de Marx's Inferno: The Political Theory of Capital.

25 de março de 2018

A luta da Irlanda pela escolha

A Irlanda tem as leis sobre aborto mais restritivas da Europa – mas estas irão a referendo este verão

Sinéad Kennedy

Tradução / Todos os anos, perto do Dia de São Patrício, o establishment político irlandês envolve-se numa campanha publicitária autocongratulatória, destinada essencialmente a promover a Irlanda como um bom paraíso-fiscal. A Irlanda, diz a narrativa oficial, é um Estado-nação moderno, favorável aos negócios, com baixos impostos e baixos salários, que é agora liderado por um primeiro-ministro jovem, enérgico, assumidamente gay e neoliberal. Neste contexto, a proibição constitucional do aborto, e as visíveis tragédias por esta produzidas, parecem estar fora de sintonia. Embora o governo se tenha comprometido a realizar um referendo no início do verão para liberalizar as leis de aborto no país, a questão continua a ser fraturante, mesmo para um país que, após a vitória do referendo de 2015 sobre a igualdade no casamento, começou a ver-se como progressista. Então, por que continua o aborto a ser uma questão política tão intransigente na Irlanda, e agora, depois de décadas de campanha, estará a mudança finalmente ao nosso alcance?

A taxa de abortos na Irlanda é comparável à da maioria dos países europeus; a única diferença é o facto de a maioria dos abortos irlandeses não acontecerem na ilha da Irlanda. Há mais de 150 anos que o aborto é ilegal no país, e em quase todas as circunstâncias. É ilegal, mesmo nos casos de violação ou incesto, em casos de anomalia do feto e quando a saúde da mulher se encontra em risco. Apesar deste facto legal, centenas de milhares de mulheres na Irlanda, no Norte e no Sul, já fizeram abortos. Todos os dias, pelo menos 9 mulheres decidem sair da Irlanda e viajar para a Grã-Bretanha. Para aquelas que não podem viajar, pelo menos 2 tomam comprimidos abortivos. As mulheres que tomam comprimidos para este efeito fazem-no à margem da lei e podem ser condenadas até 14 anos de prisão. Mas, para muitas das mulheres que não têm como viajar ou que não têm a documentação necessária para o fazer, este é um risco que têm de tomar.

De modo a compreender como é que a Irlanda passou a ter leis sobre aborto tão reguladas, é necessário observar a forma como a regulamentação e o controlo da sexualidade se tornaram tão profundamente integrados nas estruturas do Estado irlandês. O Estado Livre Irlandês emergiu dos detritos de uma Guerra de Independência com a Grã-Bretanha e de uma curta mas violenta guerra civil. Quase imediatamente, o Estado recém-dividido, criado em 1922, adotou o catolicismo como uma das principais ideologias reguladoras. A Igreja Católica conferiu ao novo Estado a legitimidade que este procurava enquanto novo Estado pós-colonial e garantiu a oferta dos sistemas de ensino e de saúde, já estabelecidos, mas ideologicamente orientados. Para um Estado recém-formado, nascido da luta contra-revolucionária, a regulação e o controlo do comportamento sexual criaram uma sensação de estabilidade para uma sociedade em fluxo. Esse ideal regulador da sexualidade também se tornou numa maneira de estender a hegemonia das recém-formadas classes médias católicas que emergiram como portadoras de estabilidade e moralidade. Também permitiu ao Estado, num contexto pós-colonial onde existia uma forte pressão para definir a Irlanda como "não-Inglaterra", a reprodução de uma identidade nacional coerente que definisse "ser-se irlandês" como sendo católico e branco. A dedicação das mulheres a reproduzir a próxima geração de irlandeses foi “elevada a um símbolo da distinção moral e cultural da Irlanda” em relação à Grã-Bretanha.

A aliança entre a Igreja e o Estado culminou na Constituição irlandesa de 1937, um documento profundamente conservador, produzido numa íntima colaboração entre a Igreja Católica e o establishment político, da autoria de Eamon de Valera e do arcebispo John Charles McQuaid, patriarcas fundadores do país. Na Constituição, o casamento e a família, baseados exclusivamente em relacionamentos heterossexuais, gozam de uma posição privilegiada. A família imaginada nestes artigos tem fortes marcadores de género, com o papel “especial” da mulher na privacidade do lar elevado a um ideal: “[O] Estado reconhece que, a partir da sua vida no lar, a mulher garante ao Estado um apoio sem o qual não seria possível atingir o bem comum”. Na realidade, esta visão da família tradicional estável, tão apreciada pela Irlanda católica, baseia-se num brutal sistema de contenção, no qual as mulheres e os seus filhos são considerados “pouco mais que uma comodidade para troca entre ordens religiosas” com o conhecimento e cumplicidade do Estado.

Proibição Constitucional

Embora a maioria dos países europeus tenham liberalizado as suas leis sobre o aborto nas décadas de 1970 e 1980, como resultado da luta dos movimentos de mulheres, a Irlanda tornou-se uma exceção, organizando em setembro de 1983 um referendo para introduzir a proibição constitucional do aborto. O referendo envolveu pedir ao eleitorado a inclusão na Constituição de um artigo “pró-vida” - conhecido como a oitava emenda - para firmar a proibição do aborto igualando-o, pelo menos em termos legais, a vida de uma mulher grávida à de um feto. Esta afirma: “O Estado reconhece o direito à vida do feto e, com o devido respeito ao igual direito à vida da mãe, e garante, na medida do possível, através das suas leis a defesa e reivindicação deste direito”. Estas palavras subordinam claramente a vida de uma mulher grávida à vida do feto e tornam o aborto ilegal na Irlanda em todas as circunstâncias, exceto quando é considerado medicamente necessário para salvar a vida (numa noção distinta da saúde) das mulheres grávidas. Na prática, estas palavras significam que, legalmente, um feto é uma entidade independente cujos direitos devem ser protegidos, independentemente do risco para a vida, a saúde e o bem-estar da gestante. Estas palavras significam que as raparigas jovens, que foram violadas e se tornaram suicidas como resultado das suas gravidezes, foram impedidas de obter assistência médica e forçadas a enfrentar um sistema legal combativo em que médicos, psiquiatras, advogados e juízes debatem os direitos sobre o controlo dos seus próprios corpos e decidem o que lhes acontecerá.

A campanha para que a emenda “pró-vida” fosse inserida na Constituição foi, até à campanha de 2015 pela igualdade no casamento, o movimento de maior sucesso na história do Estado irlandês. A campanha surgiu no final dos anos de 1970 e 1980, quando um número muito pequeno de grupos católicos conservadores, temendo que o crescente apoio a uma maior liberalização na sociedade irlandesa pudesse levar à legalização do aborto no futuro. Procuraram consagrar na Constituição a visão católica sobre o aborto e, assim, garantir uma "reação" contra o que consideravam ser o crescente avanço de uma agenda social liberal. Após a introdução da legislação sobre igualdade salarial na Irlanda, os conservadores irlandeses começaram a argumentar que a CEE (agora a União Europeia) estava a tentar forçar um regime social liberal no país e que logo forçaria a Irlanda a adotar um regime de “aborto a pedido”. A decisão do Supremo Tribunal dos E.U.A. em Roe vs. Wade (1973), uma extensão de uma decisão dos E.U.A. de 1965 sobre o direito à contraceção, teve um profundo efeito sobre as forças conservadoras na Irlanda. Começaram a temer que surgisse em algum momento um caso semelhante, e que o Supremo Tribunal irlandês decidisse que o direito à privacidade em assuntos conjugais não incluía apenas o direito à contraceção (como o Supremo Tribunal irlandês determinou no caso McGee de 1978), mas também o direito ao aborto. Para os elementos conservadores da Irlanda, o que era necessário era uma provisão na constituição que proibisse o aborto, e não deixar a interpretação ao Supremo Tribunal. Foi esse medo que os levou a iniciar uma intensa campanha para mudar a lei que teria consequências para milhares de mulheres na Irlanda.

O primeiro apelo a uma emenda constitucional surgiu num panfleto produzido por um grupo de católicos fundamentalistas da Liga da Família Irlandesa, liderado por John O'Reilly, que visava especificamente a decisão de McGee e dizia que a questão da contracepção era demasiado importante para ser deixada nas mãos do Supremo Tribunal. O'Reilly veio a criar a campanha PLAC (Campanha pela Emenda Pró-Vida) em janeiro de 1981. Embora o foco do PLAC fosse a proibição do aborto, como argumentou o jornalista Fintan O'Toole, “para todos esses grupos, o aborto era apenas uma frente numa guerra religiosa mais ampla”: a verdadeira agenda era reverter a maré da mudança social progressista.

Desde o início, a ideologia por trás da campanha era muito mais ampla do que apenas a contracepção e o aborto. Uma das primeiras frentes na qual a campanha se organizou foi a oposição à formação de uma escola primária multi-denominacional em Dublin, argumentando que esta era um desafio ao sistema educativo no país dominado pelo catolicismo. Também iniciaram campanhas contra programas de TV "imorais", clínicas de planeamento familiar e opuseram-se veementemente ao estabelecimento do primeiro centro de apoio a vítimas de violação em Dublin. No entanto, rapidamente ficou claro que o aborto era a questão que mais provavelmente iria maximizar o apoio aos valores tradicionais. Após dois anos e meio de campanha feroz, a oitava emenda foi aceite num referendo nacional por uma maioria de dois para um. Encorajados pela sua vitória, os ativistas anti-aborto intensificaram os seus esforços e investigaram processos contra organizações que fornecem aconselhamento sobre aborto ou informações como as Associações de Estudantes e as clínicas da Well Woman. Dois anos mais tarde, voltariam a mobilizar-se com sucesso contra as tentativas de introduzir o divórcio na Irlanda.

Opressão e aborto

As lutas pelo aborto sempre refletiram uma dinâmica mais ampla na sociedade irlandesa. As forças conservadoras descobriram no final da década de 1980 que não conseguiam conter a onda de secularização. O colapso da hegemonia católica, que demorou a concretizar-se, acelerou-se com as revelações sobre abusos sexual, as Magdalene laundries, as instituições religiosas e os lares de mães e bebés. A culpa por este aspecto doloroso e abusivo da história irlandesa não pode ser localizada apenas às portas da Igreja Católica; pelo contrário, está intimamente ligado à estrutura do Estado irlandês.

O apoio à posição antiaborto diminuiu significativamente nos últimos anos. Houve dois importantes pontos de viragem nesse declínio, ambos envolvendo casos trágicos em que as pessoas foram forçadas a confrontar a complexidade das leis do aborto irlandês não como questões éticas teóricas ou abstratas, mas como restrições aos direitos e liberdades das mulheres. O primeiro foi o caso X de 1992, que envolveu uma vítima de violação com 14 anos conhecida apenas como Ms. X. Em fevereiro de 1992, os pais de X tentaram levá-la a fazer um aborto porque a sua filha, que havia sido vioolada, disse que preferiria acabar com a própria vida do que continuar a gravidez até ao fim. A resposta do Estado Irlandês foi a de emitir um embargo do Supremo Tribunal que a impedia de abandonar o país.

Quando a história surgiu nos meios de comunicação irlandeses, alguns dias depois, houve um tumulto público. Milhares de pessoas ocuparam as ruas para expressar o seu choque e raiva com o tratamento de X. Os pais da menina apresentaram um apelo ao Supremo Tribunal e o Tribunal, sob pressão dos protestos em massa em todo o país, determinou que uma mulher tem direito ao aborto na Irlanda se a sua vida estiver em risco, incluindo em risco por suicídio. A consequência dessa decisão do Supremo Tribunal significou que o aborto seria agora legal na Irlanda, embora em circunstâncias altamente restritivas. No seguinte mês de novembro, esperando que a raiva sobre o caso de X tivesse desaparecido, o governo, sob pressão da direita católica, realizou um referendo na esperança de reverter o julgamento do caso de X. Falharam. O povo irlandês votou a favor da manutenção do acórdão do processo de X; apoiaram uma emenda constitucional garantindo o direito de viajar para fora do país para fazer um aborto; apoiavam o direito das mulheres a terem acesso a informações sobre o aborto (até 1995 era ilegal até mesmo dar a alguém o número de telefone de uma clínica de aborto na Grã-Bretanha ou na Europa). O caso de X mudou a opinião pública sobre o aborto na Irlanda, mas, embora o governo tenha prometido legislar, o medo político da direita católica permaneceu. Sete governos sucessivos falharam em reconhecer o julgamento do Supremo Tribunal Corte com legislação favorável.

Em 2012, a oitava emenda produziu uma outra tragédia, contribuindo diretamente para a morte de uma jovem mulher. Savita Halappanavar, uma mulher indiana a viver na Irlanda, apresentou-se no University College Galway Hospital com um aborto espontâneo. Após um exame médico, o aborto foi confirmado, mas os médicos sentiram que, devido à presença de um batimento cardíaco fetal, eles não poderiam agir, citando a oitava emenda. Esse atraso foi fatal e ela morreu de septicemia. A morte de Savita Halappanavar provocou novamente uma onda de horror nacional e internacional sobre o regime punitivo irlandês em relação ao aborto. O governo foi forçado a agir e finalmente introduzir a legislação “Caso X” - a Lei de Proteção da Vida Durante a Gravidez (PLDPA) 2013, permitindo abortos onde a vida de uma mulher está em risco, incluindo o risco de suicídio. Mas a presença da oitava emenda na Constituição significava que até mesmo essa nova lei era altamente restritiva, exigindo que um painel de médicos especialistas avaliasse as alegações de tendências suicidas. Também era difícil de interpretar, com a forte posição antiaborto, consagrada na Constituição, a definir o panorama médico. No verão de 2014, uma jovem migrante, a Sra. Y, que estava grávida como resultado de uma violação, tornou-se suicida depois de lhe ter sido negado um aborto. Implorando pela interrupção da gravidez, a mulher entrou em greve de fome, mas em vez de aceitar seu pedido, foi obtida uma ordem do Supremo Tribunal para a alimentar à força, tendo ela sido coagida a continuar a gravidez até que o feto fosse viável. Foi a morte de Savita Halappanavar e o caso Ms Y que galvanizaria toda uma nova geração de ativistas de “Revogação” determinados a acabar com o horror e a hipocrisia das leis de aborto na Irlanda.

Estas hipocrisias são provavelmente melhor expressas no referendo de 1992, que acrescentou uma proteção constitucional que garante às mulheres o direito de viajar para fora do Estado para aceder à interrupção da gravidez. Isto facilitou uma situação que se tornou na norma de que os abortos irlandeses ocorressem na Grã-Bretanha - permitindo que o movimento pró-vida reivindicasse por muitos anos que a Irlanda era “livre de abortos”, a que milhares de mulheres irlandesas acediam no estrangeiro. Mas tem sido dada pouca atenção às suposições incluídas neste chamado direito de viajar. Pressupõe que todas as mulheres têm meios financeiros para viajar e que todas as mulheres têm os documentos necessários para viajar para fora do país. Muitos dos casos que acabaram nos tribunais irlandeses envolveram jovens mulheres pobres e vulneráveis, ​ou mulheres migrantes que fugiam da tortura, da pobreza e da perseguição e que já tinham sido deixadas a definhar no notório sistema de acolhimento direto da Irlanda. Por outras palavras, a lei irlandesa facilita o acesso desigual ao aborto, dependendo das circunstâncias socioeconómicas da mulher grávida. As mulheres em melhor situação económica têm um mandato constitucional para viajar para o estrangeiro e, no seu regresso, podem recorrer a serviços de aconselhamento apoiados pelo governo; mulheres incapazes de viajar para o estrangeiro e que interrompem as suas gravidezes na Irlanda, usando, por exemplo, um comprimido abortivo, enfrentam uma sentença de 14 anos de prisão e pouco ou nenhum apoio médico.

A luta pelo direito ao aborto na Irlanda, e em todo o mundo, levanta questões fundamentais sobre o tipo de sociedade em que queremos viver. Ao desenvolver estratégias para lutar pelo direito ao aborto, precisamos considerar o que envolveria o acesso significativo ao aborto e a variedade de questões interligadas - da classe e migração à medicina e saúde mental - que dão forma ao acesso das mulheres ao aborto. Enquanto a Irlanda se prepara para votar as suas leis contra o aborto neste verão, não se trata apenas de um voto no acesso a um procedimento médico, mas no tipo de assistência e apoio que a sociedade oferece aos pais, filhos e famílias para que as mulheres possam fazer escolhas importantes sobre as suas vidas.

Sobre a autora

Sinéad Kennedy is a socialist and feminist activist who teaches in the English Department of Maynooth University.

21 de março de 2018

Nem sequer precisaram de piratear o Facebook

A Cambridge Analytica pirateou a nossa informação online para ajudar à eleição de Donald Trump. É um escândalo, mas não é nada de novo.

Branko Marcetic

Jacobin
Mark Zuckerberg ao lado do número de utilizadores do Facebook, Instagram, WhatsApp, Messenger, e Groups, em Março de 2015. Foto de Maurizio Pesce / Wikimedia.

Tradução / O mundo ocidental foi abalado pelas notícias de que a Cambridge Analytica - a empresa de análise de dados liderada por Steve Bannon e financiada pelo bilionário trumpista Robert Mercer - recolheu dados sobre 50 milhões de utilizadores do Facebook para direcionar anúncios a favor da campanha de Trump. A revelação promoveu declarações de “pirataria”, onde a “informação roubada” dos utilizadores foi “sequestrada” pela empresa, que estaria a utilizar dados privados para fins nefastos. “Nós quebrámos o Facebook”, disse o denunciante, ao que se seguiu o jornalista a perguntar se a plataforma teria sido “pirateada”.

A estória da Cambridge Analytica é escandalosa, por uma série de razões. Mas, enquanto nos concentramos nesta estória, deveríamos direcionar a nossa raiva para a forma como o nosso comportamento online é documentando, colecionado e utilizado de forma rotineira para fins comerciais, exigindo e desenvolvendo esforços para finalmente regular as empresas em quem confiámos para serem responsáveis pelo que se tornou um dos aspetos mais íntimos das nossas vidas.

É claro que há elementos específicos ao caso Cambridge Analytica, características que levantam preocupações legais e éticas muito específicas. Por um lado, a empresa violou padrões éticos de forma grosseira ao aceder à informação dos utilizadores, com a ajuda de uma aplicação que disse aos mesmos que a informação seria utilizada para pesquisa académica, ao invés de ser utilizada por uma campanha política. Depois, as potenciais ilegalidades são óbvias: os Estados Unidos da América impedem o emprego de estrangeiros nas campanhas políticas.

Mas a distinção entre as ações da empresa e o “business as usual” é, na verdade, uma diferença de grau, e não de espécie.

O que a Cambridge Analytica fez não foi, de facto, “violação de dados”. A recolha de dados teve lugar em 2014, quando os termos de serviço do Facebook permitiu a aplicações externas a recolha de dados dos amigos de um utilizador, uma ferramenta explorada por milhares de aplicações, e algo que o Facebook permitiu até 2015. Como Lorenzo Franceschi-Bicchierai escreve para a VICE Motherboard, isto significa algo bem pior do que uma simples violação de dados: significa que a escandalosa violação da privacidade dos utilizadores era, até recentemente, apenas a forma como o negócio funcionava.

Mesmo que o Facebook já não permita a recolha e utilização de dados apenas porque um dos nossos “amigos” tenha tido a vontade de jogar ao Farmville, isso não significa que a informação esteja a salvo. Na realidade, o Facebook - e quase todas as outras empresas digitais que existem - continuam a violar a nossa privacidade com o único propósito de nos manipular, apesar de ser com fins comerciais.

Como já deveríamos todos saber (expectavelmente), o volume incomensurável de informação que o Facebook reúne acerca das nossas atividades enquanto usamos a sua plataforma - bem como quando não a utilizamos - é entregue a publicitários, que a utilizam para direcionaram melhor os anúncios e nos venderem produtos. O alcance da informação recolhida é espantoso, incluindo até os locais e lojas onde realizamos compras (se tivermos a sua aplicação móvel instalada), e pode detetar coisas tão laterais quanto o facto de nos inscrevermos ou não em programas de fidelização, ou se adicionamos produtos ao carrinho de compras online, e muito mais.

Mas as empresas também ganham acesso direito à informação do utilizador através do Facebook Connect, uma ferramenta que permite aos utilizadores do Facebook utilizarem o seu perfil para aceder a outros sítios na internet, como por exemplo a publicação de comentários. As empresas utilizam esta ferramenta para construir o perfil dos utilizadores, perfil que documenta tudo, desde o estilo de vida, ao tipo de habitação onde vivem e até a sua personalidade - um tipo de ferramenta idêntico ao perfil psicológico que a Cambridge Analytica utilizou para os seus propósitos.

As preocupações sobre ética e consentimento levantadas pela Cambridge Analytica também são aplicáveis à operação de recolha de dados do próprio Facebook. É óbvio que o Facebook nos permite desligar algumas destas ferramentas, tais como a geo-localização. Mas quantos utilizadores do Facebook estão de facto cientes de que podem fazer isso? E quantos estão sequer conscientes de que estão a ser seguidos em primeiro lugar, ou quão invasivo é o Facebook a recolher informação sobre as suas vidas?

Depois, existem inúmeras formas de recolha de dados que os utilizadores não podem desligar porque fazem parte da própria experiência do Facebook. A sua única escolha é apenas aceitar que as suas atividades serão documentadas e utilizadas, ou simplesmente abandonar o Facebook. É difícil considerar que isto uma definição de consentimento adequada.

E o problema é que não é apenas o Facebook. Isto é o que se passa em todas as empresas digitais, incluindo a Google, a Apple e a Microsoft, que fazem o mesmo tipo de extração de dados invasiva – particularmente a Google, que armazena todas as nossas pesquisas, e colige essa informação com o que reúne no browser, no serviço de e-mail, e noutros serviços como o Google Docs, de forma a construir perfis cada vez mais exatos de cada um de nós. Não estamos a salvo sequer nos nossos browsers, com a maioria dos websites que visitamos a colocarem inúmeros rastreadores que monitorizam o nosso comportamento de navegação na internet, informação utilizada depois por empresas de publicidade (Facebook, Google e Twitter são os líderes neste tipo de rastreamento também). Depois, existem as empresas de dados do consumidor, que absorvem, analisam, e vendem a informação que tornamos pública em sites como o Facebook, Twitter e LinkedIn.

Parte de tudo isto é desenvolvido com fins políticos. Uma empresa criou sítios na internet e utilizou anúncios ligados ao motor de pesquisa da Google com termos específicos de forma a espalhar mensagens inflamatórias durante as eleições do Quénia, no ano passado, provavelmente utilizando informação recolhido nestas plataformas.

A Cambridge Analytica não é sequer o primeiro exemplo de dados serem desenvolvidos especificamente para a política dos EUA. Como já foi amplamente noticiado, foi a campanha de Obama que foi pioneira na extração de dados nas eleições, incluindo esforços para corresponder os hábitos de visualização de milhões de subscritores por cabo com a sua própria lista de eleitores e respostas de sondagens. Carol Davidsen, a diretora de análise de dados na campanha de 2012, vangloriou-se que “éramos capazes de recolher toda informação das redes sociais… dos EUA”, explorando a mesma ausência de regras que a Cambridge Analytica explorou em 2014. A única diferença é que, aos utilizadores que deram à campanha de Obama permissão para utilizar a sua informação pessoal, não lhes foi dito que seria utilizada para investigação académica.

Mas devemos limitar a nossa indignação para quando a nossa informação é utilizada com objetivos políticos? Se somos contra a ideia de que a nossa informação privada seja rastreada e coligida de forma a manipular o nosso comportamento, certamente que o propósito último para o qual estamos a ser manipulado é um assunto secundário.

Se assim é, então a utilização da nossa informação pela vasta maioria de empresas digitais, com o propósito de nos vender produtos, é igualmente escandalosa. A página com as “histórias de sucesso” do Facebook dá relevo a exemplo como, entre outros, farmacêuticas e serviços financeiros. Considerando o histórico destas empresas, quão confortáveis estamos nós com, por exemplo, produtores de droga, empresas de empréstimos rápidos, ou até bancos, a utilizarem o perfil psicológico dos utilizadores destas plataformas para lhes direcionar produtos?

E as implicações da recolha de dados não termina aqui. Neste momento, a utilização responsável da nossa informação está totalmente dependente dos escrúpulos éticos de empresas como o Facebook, Google, e outros, o que não inspira confiança. E se verdadeiramente acreditamos que a Cambridge Analytica foi capaz de “piratear” as eleições de 2016 e colocar Trump na Casa Branca, então é difícil de sobrestimar o perigo que é permitir bancos de dados bastante mais vastos nas mãos de companhias como a Google e o Facebook – ou quem quer que seja no futuro que seja capaz de verdadeiramente piratear os seus sistemas.

Escândalos como este – ou a experiência psicológica secreta que o Facebook aplica aos seus utilizadores – irão continuar a acontecer enquanto a industria digital e a recolha e gestão de informação privada continuar sem regulação. Mas se a ideia de privacidade e liberdade de vigilância corporativa e do Estado significa alguma coisa, então significa ser capaz de utilizar a internet e plataformas como o Facebook sem medo de ter as suas atividades constantemente vigiadas, documentadas, e transformadas em propriedade de alguém para, eventualmente, serem comoditizadas.

Há décadas que as empresas digitais, e outras, a trabalhar no mundo obscuro de recolha de informação digital receberam um passe livre para rastrear a nossa atividade online e utilizar a informação resultante como bem lhes apeteceu, sem restrições. A fúria contra a Cambridge Analytica é encorajadora, mas não deveria ficar por aí. É altura de exigir uma alteração radical na forma como tratamos empresas como o Facebook e a Google.

Sobre o autor

Branko Marcetic is a Jacobin staff writer and the author of Yesterday's Man: The Case Against Joe Biden. He lives in Toronto, Canada.

19 de março de 2018

Jordan Peterson e o misticismo fascista

Pankaj Mishra

The New York Review of Books

Tradução / “Os homens tem que endurecer,” escreve Jordan B. Peterson em 12 Regras Para a Vida: Um antídoto para o Caos, “Outros homens exigem-no, e as mulheres o querem.” Assim, a primeira regra é “Ande ereto e com os ombros para trás” e não se esqueça de “limpar seu quarto.” Aliás, “a consciência é simbolicamente masculina e o é desde os primórdios.” Ah, e “a alma do indivíduo anseia eternamente pelo heroísmo do Ser autêntico.” Pronunciamentos desse tipo – ao mesmo tempo didáticos e metafísicos, indo do absurdo do politicamente correto ao “fardo do Ser” – transformaram Peterson, um professor de psicologia da Universidade de Toronto, numa sensação do YouTube e num best-seller em vários países ocidentais.

12 Regras Para a Vida é apenas o segundo livro de Peterson em vinte anos. Escrito especialmente para pessoas que cresceram lendo listas do BuzzFeed, a vertente de populismo intelectual de Peterson tem crescido com velocidade impressionante; e é impulsionada predominantemente, assim como os populismos políticos de nossa era, por seguidores homens exaltados, que parecem sempre dispostos a atacar seus críticos nas mídias sociais. É imperativo questionar porque e como esse obscuro acadêmico canadense, que insiste que as hierarquias de gênero e classe são ordenadas pela natureza e validadas pela ciência, de repente veio a ser aclamado como o intelectual público mais influente do ocidente. Porque sua apoteose é sinal de um crise ao menos tão profunda quanto a que levou Donald Trump à inesperada liderança do mundo livre.

Peterson diagnostica essa crise como uma perda de fé em antigas verdades. “No ocidente,” escreve ele, “temos nos distanciado de nossa tradição, nossa religião, e até mesmo de nossas culturas baseadas na nação.” Para aliviar o consequente “desespero da ausência de sentido,” Peterson oferece um retorno à “sabedoria ancestral.” “É possível evitar o niilismo”, ele afirma, e “encontrar um sentido satisfatório na consciência individual e na experiência,” com o auxílio dos “grandes mitos e histórias religiosas do passado.”

Na trilha de Carl Jung, Peterson identifica arquétipos em mitos, sonhos e religiões, que aparentemente definem verdades sobre a condição humana desde o início dos tempos. “A cultura,” começa um de seus argumentos típicos, “é simbólica e arquetipicamente masculina” – e é por isso que a resistência à dominação masculina seria antinatural. Os homens representam a ordem, e “o Caos – o desconhecido – é simbolicamente associado ao feminino.” Em outras palavras, os homens que resistem aos arquétipos perenemente estabelecidos de homem e mulher e não conseguem endurecer são fracassados patéticos.

Tais verdades evidentemente universais não são mais oferecidas na universidade moderna; as especulações de Jung foram amplamente desacreditadas. Mas Peterson, munido de seus “mapas do sentido” (o título de seu livro anterior), nutre somente desprezo por seus pares acadêmicos que tendem a enfatizar a natureza socialmente construída e provisória de nossas percepções. Como Jung, ele apresenta algumas opiniões idiossincráticas e semi-religiosas como se fossem ciência empírica, constantemente recorrendo à psicologia evolutiva para legitimar sua sabedoria ancestral.

Examinadas de perto, no entanto, as ideias atemporais de Peterson revelam ser um produto típico, senão arquetípico, de nossos próprios tempos: um senso-comum direitista sedutoramente mitologizado para nossas gerações perdidas de hoje em dia.

O próprio Peterson credita seu despertar intelectual à Guerra Fria, quando ele começou a meditar profundamente sobre “os males associados à crença,” tais como Hitler, Stalin e Mao, e tornou-se leitor atento do Arquipélago Gulag, de Solzhenitsyn. Essa é uma trajetória intelectual comum entre direitistas ocidentais que creem piamente em Solzhenitsyn e tendem a sugerir que uma crença na igualdade conduz diretamente à guilhotina ou ao Gulag. Um exemplo recente é o polemista inglês Douglas Murray, que deplora a atração dos jovens por figuras como Bernie Sanders e Elizabeth Warren e expressa o desejo de que a ideia de igualdade fosse “maculada por uma infâmia ideológica equivalente à imposta sobre o conceito de fronteiras.” Peterson confirma seu alinhamento a essa seita de extrema-direita ao jamais identificar os males causados pela crença no lucro ou Mamon: escravidão, genocídio e imperialismo.

Homens brancos reacionários certamente ficarão excitados com o desprezo de Peterson pelos “justiceiros sociais” e sua afirmação de que as leis de divórcio não deveriam ter sido flexibilizadas nos anos 1960. Os que lutam contra o politicamente correto nos campi universitários endossarão entusiasticamente a afirmação de Peterson de que “há disciplinas inteiras nas universidades patentemente hostis aos homens.” Islamofóbicos se sentirão encorajados por sua especulação de que “as feministas evitam criticar o islã porque, inconscientemente, desejam a dominação masculina.” Os libertários aplaudirão a glorificação de Peterson do batalhador individual e sua mensagem dura aos que ficaram para trás. (“Talvez a culpa não seja do mundo. Talvez o culpado seja você. Você falhou.”). Os demagogos de nossa era não leem muito; mas, enquanto restringem impiedosamente a entrada de refugiados e imigrantes, podem extrair suporte filosófico dos títulos dos sub-capítulos de Peterson: “A compaixão é uma fraqueza” e “Vire homem, seu rato!”

Em todos os sentidos, a sabedoria ancestral de Peterson é indubitavelmente moderna. A “tradição” que ele promove não vai além do final do século XIX, quando surgiu pela primeira vez uma sinistra correlação entre exortações intelectuais para “endurecer” e uma política de “líderes fortes.” Esse foi um período em que charlatões intelectuais prosperaram vendendo credos de redenção e purificação enquanto crises políticas e econômicas se acentuavam e a fé no capitalismo e na democracia fraquejava. Muitos artistas e pensadores – do filósofo alemão Ludwig Klages, membro do enormemente influente Círculo Cósmico de Munique, do pintor russo Nicholas Roerich ao ativista indiano Aurobindo Gosh – montaram colagens à la Peterson de noções em parte ocultistas, em parte psicológicas e em parte biológicas. Esses neo-românticos estavam respondendo, da mesma forma que o faz Peterson em nossos dias, a uma necessidade urgente, nascida de uma experiência traumática de modernidade social e econômica, de acreditar em qualquer coisa que traga segurança e conforto.

Essa nova crença tendia a ser exótica e esotericamente pré-moderna. O Oriente, e a Índia em particular, tornou-se uma tela em que ocidentais carentes projetavam suas fantasias; Jung, entre muitos outros, discorreu tediosamente sobre o atemporal – e feminino – “ego” indiano. Em 1910, Romain Rolland resumiu o sentimento generalizado em que o progresso sob os auspícios do liberalismo aparecia como uma farsa e muitas pessoas estavam ávidas por substituir o ideal iluminista da razão individual por coordenadas transcendentais, como os “arquétipos”. “O portal dos sonhos havia se aberto,” escreveu Rolland, e “com a religião vieram pequenos sopros de teosofia, misticismo, fé esotérica e ocultismo visitar as câmaras da mente ocidental.”

Uma série de empreendedores intelectuais, dos Teosofistas e vendedores de espiritualidade asiática como Vivekananda e D. T. Suzuki a estudiosos da Ásia, como Arthur Waley e ideólogos fascistas como Julius Evola (o guru de Steve Bannon) montaram suas tendas no novo mercado de ideias. W. B. Yeats, adaptando a filosofia indiana às necessidades da Renascença céltica, pontificou sobre o “Ego Ancestral”; Jung teceu suas próprias variações sobre esse inconsciente evidentemente primevo. Categorias conceitualmente nebulosas como “espírito” e “intuição” passaram a ser moeda corrente; as palavras favoritas de Peterson, “ser” e “caos,” começaram a aparecer em letras maiúsculas. A própria linhagem de Peterson entre esses curandeiros da alma do homem moderno pode ser traçada por meio de suas influências constantemente invocadas: não somente Carl Jung, mas também Mircea Eliade, o estudioso romeno das religiões, e Joseph Campbell, professor na Universidade Sarah Lawrence, que, assim como Peterson, combinou uma carreira acadêmica convencional com reflexões sobre indivíduos heróicos voltadas ao mercado de massas.

O “desespero da ausência de sentido” que grassou amplamente no final do século XIX, parecia especialmente desesperador nos anos que se seguiram a duas guerras mundiais e ao Holocausto. Jung, Eliade e Campbell, todos credenciados pela universidade, depararam-se com um espanto generalizado ao sugerirem a existência de um conhecimento secreto, quase gnóstico, do mundo. Alegando jogar luz sobre os recessos do inconsciente humano, eles conquistaram fã clubes imensos e fanaticamente fiéis. As entrevistas de Campbell com Bill Moyers em 1988 causaram uma resposta particularmente extraordinária. Assim como Peterson, esse popularizador de mitos arcaicos, que acreditava que “a filosofia marxista havia tomado de assalto a universidade americana,” estava notavelmente à par dos preconceitos contemporâneos. “Siga sua própria felicidade,” incitava ele a um público que, durante uma era de ascenso neoconservador, estava pronto a crer que havia uma espécie de profunda sabedoria ancestral por trás dos panegíricos de Ayn Rand do individualismo desenfreado.

Peterson, no entanto, parece ter modelado sua persona pública à imagem de Jung ao invés de Campbell. O sábio suíço usava um anel ornamentado com a efígie de uma cobra – o símbolo da luz num culto gnóstico pré-cristão. Peterson afirma ter sido iniciado na “tribo Kwakwaka’ wakw, do Pacífico costeiro”; ele também é visivelmente orgulhoso da casa comunal indígena que construiu em sua residência em Toronto.

Peterson pode parecer o último numa longa linhagem de sabichões que romantizaram, pretensiosa mas inofensivamente, o bom selvagem. Mas é bom lembrar que Jung fazia generalizações grosseiras sobre a “alma ariana” superior e a “psiquê judia” inferior e foi inicialmente simpático aos nazistas. Mircea Eliade era devoto da Guarda de Ferro, partido da extrema-direita romena. A aversão de Campbell a acadêmicos “marxistas” em sua universidade escondia um ódio virulento de judeus e negros. Solzhenitsyn, o reverenciado mentor de Peterson, era um zeloso expansionista russo, que denunciou a independência da Ucrânia e celebrou Vladimir Putin como o homem certo para conduzir a retardada regeneração russa.

Em nenhum momento, em seus escritos publicados, Peterson enfrenta a questão dos fiascos morais de seus gurus e suas ramificações políticas; ele não parece preocupado com o fato de que pensar nas relações humanas em termos de dominação e hierarquia vincula-se facilmente a idéias terríveis e (re) emergentes de misoginia, anti-semitismo e islamofobia. Ele pode defender-se dizendo que seus mapas de sentido foram pensados para ajudar pessoas perdidas ao invés de racistas, ultra-nacionalistas ou imperialistas. Mas ele não pode alegar, dada sua frequente hostilidade à “doutrina assassina da igualdade” do feminismo e outras ideias progressistas, que está acima de nossas guerras ideológicas e culturais.

De fato, a fascinação moderna com o mito jamais esteve livre de uma agenda anti-liberal e anti-democrática. Richard Wagner, juntamente a muitos outros nacionalistas germânicos, tornou-se notório por usar mitos com o intuito de regenerar o volk e alimentar o ódio a estrangeiros – em grande parte judeus – que, segundo ele, poluíam a comunidade pura baseada no sangue e no solo. No início do século XX, chauvinistas étnico-raciais de toda parte – supremacistas hindus na índia bem como ultra-nacionalistas católicas na França – ofereciam a povos desterrados visões de uma sociedade orgânica e enraizada, em que hierarquias e valores haviam sido estáveis. Como observa Karla Poewe em Novas Religiões e os Nazistas (2005), cultistas políticos faziam tipicamente uma mistura de “tradições iogues e abraâmicas” com “noções populares de ciência – na verdade, pseudo-ciência – como os conceitos de ‘raça,’ ‘eugenia,’ ou ‘evolução.’” Foi esse amálgama oportunista de ideias que ajudou a alimentar “novas mitologias de regimes com pretensões totalitárias.”

Peterson tem vociferado também contra a “frouxidão,” argumentando que os homens têm sofrido “grande pressão para se efeminar.” Em seu best-seller Degeneração (1892), o crítico zionista Max Nordau já descrevia, mais de um século antes de Peterson, seu medo de que os impérios e nações do Ocidente estivessem povoados pelos fracos, os efeminados e os degenerados. O filósofo francês George Sorel identificou o mito como o antídoto necessário à decadência e o estímulo necessário ao rejuvenescimento. Uma inspiração intelectual para os fascistas de toda a Europa, Sorel era particularmente nostálgico em relação aos sistemas patriarcais da Grécia e Israel antigos.

Assim como Peterson, muitos desses pensadores hiper-masculinistas viam a compaixão como uma fraqueza e incitavam os homens inseguros e endurecer seus corações contra os fracos (mulheres e minorias), na medida em que os últimos seriam biológica e culturalmente inferiores. Celebrando o mito e os sonhos como repositórios de verdades humanas fundamentais, eles tornaram-se populares porque saciaram uma fome espiritual amplamente sentida: a de homens que procuravam desesperadamente mapas de sentido num mundo que eles viam como opaco e incontrolável.

Foi contra esse pano de fundo estranhamente familiar – uma “revolta contra o mundo moderno,” como dizia o título do livro de Evola de 1934 – que demagogos emergiram tão rapidamente na Europa do século XX e foram tão bem-sucedidos em exaltar mitos nacionais e raciais como a verdadeira fonte da saúde individual e coletiva. A drástica transformação individual exigida por esses visionários acabou por demandar um retiro concertado e massivo da fracassada modernidade liberal para um domínio tradicional idealizado de mitos e rituais.

Ao fim e ao cabo, intelectuais de gabinete pedantes e fantasistas ajudaram a implantar, nas palavras de Thomas Mann, um extensa “devastação moral” com sua “idolatria do inconsciente” – que “não conhece valores, nem bem nem mal, nenhuma moralidade.” Nada menos que as fundações do conhecimento e da ética, da política e da ciência entraram em colapso, em última instância disparando os cataclismos do século XX: duas guerras mundiais, regimes totalitários e o Holocausto. Não é exagero dizer que estamos em meio a um colapso moral e intelectual comparável, que parece pressagiar uma grande calamidade. Peterson chama-o, corretamente, de “dissolução psicológica e social.” Mas ele é um sintoma perturbador da doença para a qual promete a cura.

16 de março de 2018

Como começou a propriedade privada?

Os libertários tendem a ficar confusos quando confrontados com essa simples pergunta.

Matt Bruenig


Colorado. "Round up" no Cimarron, uma impressão de photochrom de 1898. Biblioteca do Congresso.

Tradução / Talvez a coisa mais interessante sobre o pensamento libertário de direita é que a corrente não possui nenhum modo de justificar coerentemente a aquisição inicial da propriedade. Como algo que alguém que não tinha propriedade se torna proprietário sem destruir de maneira não consensual a liberdade de outras pessoas? É impossível. Isso significa que sistemas libertarianistas de pensamento não possuem bases sólidas; estão presos ao ponto zero de uma história hipotética sem fundamento.

Não precisa tomar minha palavra como final. Libertários de direita sérios fazem concessões quanto se deparam diante desta questão. Eis Robert Nozick:

É implausível ver a melhoria de um objeto tendo sobre ele total propriedade, se o estoque de objetos não apropriados for limitado. Pois, um objeto que esteja sob a propriedade de uma pessoa muda a situação de todas as outras. Enquanto antes essas pessoas estavam em liberdade (no sentido de Hohfeld) para usar o objeto, agora não estão mais.

Eis Matt Zwolinski:

Se eu ponho uma cerca ao redor de um pedaço de terra que antes era aberto ao uso de todos, tomando-o, assim, para mim, e anunciando a todos que me utilizarei da violência contra qualquer um que ande sobre esta minha terra sem meu consentimento, isso certamente aparentaria como se eu fosse aquele a usar a força (ou pelo menos a ameaça da força), contra os outros. Eu estou restringindo sua liberdade de movimento tal qual antes eram livres para fazer e o faço ameaçando-os com violência física ao menos que aceitem minhas demandas. Estou fazendo isso não tanto em resposta a qualquer provocação de terceiros, mas simplesmente para que eu possa me servir do recurso sem sua interferência.

Novamente, o que é engraçado nisto é que o argumento não é só um contraponto ao libertarianismo, mas também o fato de que parece sugerir que os princípios libertaristas proíbem em si a propriedade privada.

Certamente, filósofos do libertarismo desenvolveram várias formas de nebular a questão. John Locke famosamente restringiu a aquisição pela condição de que ainda haja propriedades “suficientes e boas” para os outros. Nozicki parte daí para tentar mostrar que a condição literal de Locke é impossível de ser satisfeita, apresentando uma restrição similar, segundo a qual a aquisição de propriedade não piora “a posição” de outros uma vez que “a posição” é definida em termos vagamente “bem-estaristas”. Zwolinski vai um passo além de Nozicki e diz que os danos à aquisição inicial de propriedades devem ser compensados em uma renda básica.

Nenhuma destas tentativas resolve a questão central de que a aquisição de propriedade viola a liberdade de outros. Os teóricos em questão apenas tentam compensar essas violação de algum modo, mais ou menos como uma versão de aquisição-inicial de domínio eminente. Suponho que não haja problema nisso, no que diz respeito às coisas, mas tende a cair no problema de que a maioria dos libertários de direita se opõem aos tipos de transferências implicadas nesses esquemas de compensação.

Caplan vacila

Em seu debate na Liberty Con, Elizabeth Bruenig perguntou a Bryan Caplan como a propriedade sem posse se torna privada. Ele lutou com a questão durante o debate, mas sua resposta eventual (que agora foi elaborada de modo mais eloquente em seu website), se apoio em chutes mal-dados (“moralidade popular”, como ele declarou alhures):

Há inúmeros casos de aquisição correta; uma vez que as entendermos, podemos utilizá-las para analisar casos mais complicados. Quais são esses casos bem definidos? Um indivíduo vivendo sozinho em uma ilha produz um pouco de comida, constrói uma casa, esculpe ou explora uma pedreira. Se alguém mais aparece na ilha, o recém-chegado parece moralmente obrigado a respeitar aquela propriedade. Isto não “parece” só para mim, ou “parece para os libertários”; isto “assim parece para quase todos a não ser para os filósofos socialistas”. Outros casos bem-definidos: se duas pessoas concordam mutuamente em angariar recursos e esforços e então dividir as recompensas de acordo com uma fórmula explícita – seja 50/50, 90/10, ou o que seja. Ou: eu te pago 10 libras de comida para você me construir uma nova cabana.

Há dois problemas aqui, um estreitamente relacionado ao caso que ele escolhe, e outro amplamente relacionado ao método eleito.

O problema com o caso é que, retiradas todas as pessoas da ilha, elimina-se a liberdade que faz da aquisição da propriedade algo tão problemático. E se, ao invés de um indivíduo aparecendo numa ilha, dez indivíduos aparecerem? Então um deles diz que certos recursos e pedaços de terra são dele e que aqueles que não respeitarem isso serão violentamente atacados? Isto é mais análogo a um caso real de aquisição de propriedade, na qual existe mais de um ser humano. E também apresenta o problema da aquisição de propriedade, ao invés de tentar desviar do problema criando uma sociedade hipotética de um indivíduo só.

O problema com o método é que a moralidade popular geral, quando tomada como um todo, não é libertarista. Qualquer avaliação sobre como as pessoas geralmente se sentem sobre as coisas no reino econômico não gerará a conclusão de que elas geralmente pensam que o capitalismo laissez-faire é o correto. Sabemos disso porque nenhuma sociedade elege aquelas instituições e porque libertários de direita escrevem livros o tempo todo dizendo o quão má é a democracia exatamente porque o povo como um todo não é simpático à visão de mundo libertarista.

Uma avaliação honesta sobre onde se posiciona a moralidade popular em relação à economia provavelmente seria algo do tipo: pessoas tem ideias de certo modo contraditórias sobre moralidade econômica que de alguma maneira resumem a visão de mundo que diz que direitos de propriedade deveriam existir, mas também que esses direitos deveriam dar origem à justiça e ao bem-estar em alguma medida. Não estou dizendo que concordo com esta visão geral, ou mesmo que você deva construir suas visões normativas deste modo. Mas, se você disser que o método normativo apropriado é o da moralidade popular, como Caplan diz, então parece que você deve ter uma compreensão mais abrangente sobre o que a moralidade popular realmente é, e não se servir de uma parte dela oportunisticamente.

Sobre o autor

Matt Bruenig é o fundador do People's Policy Project.

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