31 de maio de 2023

As empresas aumentam os preços, protegendo os lucros, mas aumentando a inflação

Os lucros corporativos foram reforçados por preços mais altos, mesmo com a queda de alguns dos custos de fazer negócios nos últimos meses.

Talmon Joseph Smith e Joe Rennison


Consumidores em Nova York. A inflação pode permanecer alta, já que algumas das maiores empresas do mundo disseram que pretendem continuar aumentando os preços ou mantê-los em níveis elevados. Créditos: Gabby Jones/The New York Times

Os preços do petróleo, transporte, ingredientes alimentícios e outras matérias-primas caíram nos últimos meses, à medida que os choques decorrentes da pandemia e da guerra na Ucrânia diminuíram. No entanto, muitas grandes empresas continuaram aumentando os preços rapidamente.

Algumas das maiores empresas do mundo disseram que não planejam mudar de rumo e continuarão aumentando os preços ou os manterão em níveis elevados no futuro próximo.

Essa estratégia amorteceu os lucros corporativos. E poderia manter a inflação robusta, contribuindo para as mesmas pressões usadas para justificar o aumento dos preços.

Como resultado, alertam alguns economistas, os formuladores de políticas do Federal Reserve podem se sentir compelidos a continuar aumentando as taxas de juros, ou pelo menos não baixá-las, aumentando a probabilidade e a gravidade de uma desaceleração econômica.

"As empresas não estão apenas mantendo as margens, não estão apenas repassando os aumentos de custos, elas usaram isso como uma cobertura para expandir as margens”, disse Albert Edwards, estrategista global do Société Générale, referindo-se às margens de lucro, uma medida de quanto as empresas ganham com cada dólar de vendas.

A PepsiCo tornou-se um excelente exemplo de como as grandes corporações reagiram ao aumento de custos, e muito mais.

Hugh Johnston, diretor financeiro da empresa, disse em fevereiro que a PepsiCo havia aumentado seus preços o suficiente para amortecer novas pressões de custo em 2023. No final de abril, a empresa informou que havia aumentado o preço médio de seus lanches e bebidas em 16% nos primeiros três meses do ano. Isso se somou a um aumento de preço semelhante no quarto trimestre de 2022 e aumentou sua margem de lucro.

"Não acho que nossas margens vão se deteriorar", disse Johnston em entrevista recente à Bloomberg TV. "Na verdade, o que dissemos para o ano é que estaremos pelo menos empatados com 2022 e podemos, de fato, aumentar as margens ao longo do ano".

Os saquinhos de Doritos, as caixas de suco de laranja Tropicana e as garrafas de Gatorade vendidas pela PepsiCo agora são substancialmente mais caras. Os clientes reclamaram, mas em grande parte continuaram comprando. Os acionistas aplaudiram. A PepsiCo se recusou a comentar.

Outras empresas que vendem bens de consumo também se saíram bem, continuando a aumentar os preços.

A empresa média no índice de ações S&P 500 aumentou sua margem de lucro líquido desde o final do ano passado, de acordo com a FactSet, uma empresa de dados e pesquisa, contrariando as expectativas dos analistas de Wall Street de que as margens de lucro cairiam ligeiramente. E embora as margens estejam abaixo do pico em 2021, os analistas preveem que elas continuarão crescendo na segunda metade do ano.

Durante a maior parte dos últimos dois anos, a maioria das empresas "tinha uma desculpa perfeitamente boa para seguir em frente e aumentar os preços", disse Samuel Rines, economista e diretor-gerente da Corbu, uma empresa de pesquisa que atende fundos de hedge e outros investidores. "Todo mundo sabia que a guerra na Ucrânia era inflacionária, que os preços dos grãos estavam subindo, blá, blá, blá. E eles simplesmente se aproveitaram disso."

Mas essas razões para elevar os preços, acrescentou, agora estão diminuindo.

O Índice de Preços ao Produtor, que mede os preços que as empresas pagam por bens e serviços antes de serem vendidos aos consumidores, atingiu uma alta de 11,7% na última primavera. Essa taxa caiu para 2,3 por cento nos 12 meses até abril.

O Índice de Preços ao Consumidor, que acompanha os preços das despesas domésticas em tudo, desde ovos até aluguel, também vem caindo, mas em um ritmo muito mais lento. Em abril, caiu para 4,93%, de uma alta de 9,06% em junho de 2022. O preço das bebidas carbonatadas subiu quase 12% em abril em relação aos 12 meses anteriores.

"A inflação vai ficar muito mais alta do que o necessário, porque as empresas estão sendo gananciosas", disse Edwards, do Société Générale.

Mas analistas que desconfiam dessa explicação dizem que há outras razões pelas quais os preços ao consumidor continuam altos. Desde que a inflação disparou na primavera de 2021, alguns economistas argumentaram que, à medida que as famílias emergiram da pandemia, a demanda por bens e serviços - sejam portas de garagem ou viagens de cruzeiro - não foi saciada por causa de lockdowns e cadeias de suprimentos restritas, elevando os preços.

David Beckworth, pesquisador sênior do centro de direita Mercatus da Universidade George Mason e ex-economista do Departamento do Tesouro, disse estar cético de que o ritmo acelerado dos aumentos de preços tenha sido "induzido pelo lucro".

As corporações tinham algum grau de cobertura para aumentar os preços, pois os consumidores eram apimentados com notícias sobre desequilíbrios na economia. No entanto, Beckworth e outros afirmam que esses preços mais altos não seriam possíveis se as pessoas não estivessem dispostas ou não pudessem gastar mais. Nesta análise, os pagamentos de estímulo do governo, os ganhos de investimento, os aumentos salariais e o refinanciamento de hipotecas a taxas de juros muito baixas desempenham um papel maior nos preços mais altos do que a busca de lucro corporativo.

"Parece-me que muitos que contam a história do lucro esquecem que as famílias precisam realmente gastar dinheiro para que a história se mantenha", disse Beckworth. "E uma vez que você olha para o enorme aumento nos gastos, torna-se inevitável para mim onde está a causalidade."

Edwards reconheceu que as medidas de estímulo do governo durante a pandemia surtiram efeito. A seu ver, essa ajuda significava que os consumidores médios não seriam "espancados o suficiente" financeiramente para resistir a preços mais altos que, de outra forma, poderiam fazê-los recuar. E, acrescentou, essa dinâmica também colocou o peso da inflação nas famílias mais pobres "enquanto as mais ricas não sentirão tanto".

Os 20 por cento dos agregados familiares com rendimentos mais elevados representam normalmente cerca de 40 por cento das despesas totais dos consumidores. Os gastos gerais com experiências recreativas e luxos parecem ter atingido o pico, de acordo com dados de cartão de crédito de grandes bancos, mas permanecem robustos o suficiente para que as empresas continuem cobrando mais. As principais linhas de cruzeiros, incluindo a Royal Caribbean, continuaram elevando os preços, já que a demanda por cruzeiros aumentou no verão.

Muitas pessoas que não estão no topo da faixa de renda tiveram que negociar produtos mais baratos. Como resultado, várias empresas que atendem a uma ampla base de clientes também se saíram melhor do que o esperado.

O McDonald's informou que suas vendas aumentaram em média 12,6% por loja nos três meses até março, em comparação com o ano anterior. Cerca de 4,2% desse crescimento veio do aumento do tráfego e 8,4% dos preços mais altos do menu.

A empresa atribuiu os recentes aumentos nos preços do cardápio aos maiores gastos com mão de obra, transporte e carne. Vários grupos de consumidores responderam apontando que os recentes aumentos no custo de transporte e mão de obra diminuíram.

Um representante do McDonald's disse em um e-mail que os bons resultados da empresa não foram apenas resultado de aumentos de preços, mas também "forte demanda do consumidor pelo McDonald's em todo o mundo".

Outras corporações descobriram que menos vendas a preços mais altos ainda as ajudaram a obter lucros maiores, uma dinâmica que Rines, de Corbu, chamou de "preço sobre volume".

A Colgate-Palmolive, que além de comandar cerca de 40% do mercado global de creme dental, vende detergente de cozinha e outros produtos, teve um primeiro trimestre de destaque. Seu lucro operacional para o ano até março aumentou 6% em relação ao ano anterior - resultado de um aumento de 12% nos preços, mesmo com a queda de 2% no volume.

A recente bonança para os lucros corporativos, no entanto, pode em breve começar a fracassar.

A pesquisa da Glenmede Investment Management indica que há sinais de que mais consumidores estão reduzindo as compras mais caras. A empresa de serviços financeiros estima que as famílias que estão no último quarto em termos de renda esgotarão o que sobrar coletivamente de suas economias da era pandêmica em algum momento deste verão.

Algumas empresas estão começando a encontrar resistência de clientes mais sensíveis ao preço. A Dollar Tree relatou aumento nas vendas, mas queda nas margens, já que os clientes de baixa renda que tendem a comprar lá procuraram ofertas. As ações da empresa caíram na quinta-feira, uma vez que reduziu suas expectativas de lucro para o resto do ano. Até a PepsiCo e o McDonald's sofreram recentemente impactos nos preços de suas ações, pois os comerciantes temem que não consigam continuar aumentando seus lucros.

Por enquanto, porém, os investidores parecem aliviados com o desempenho das empresas tão bem quanto no primeiro trimestre, o que ajudou a impedir que os preços das ações caíssem amplamente.

Antes das grandes empresas começarem a relatar como se saíram nos primeiros três meses do ano, o consenso entre os analistas era de que os lucros das empresas do S&P 500 cairiam cerca de 7 por cento em relação ao ano anterior. Em vez disso, de acordo com dados do FactSet, espera-se que os ganhos caiam cerca de 2% depois que todos os resultados forem divulgados.

Savita Subramanian, chefe de estratégia quantitativa e de ações dos EUA no Bank of America, escreveu em nota que os últimos relatórios trimestrais "mais uma vez mostraram a capacidade corporativa da América de preservar as margens". Sua equipe elevou as expectativas gerais de crescimento dos ganhos para o resto do ano e 2024.

Talmon Joseph Smith é um repórter econômico que mora em Nova York. @talmonsmith

Joe Rennison cobre mercados financeiros e negociação, uma batida que varia de narrar os caprichos do mercado de ações para explicar as decisões de negociação muitas vezes inescrutáveis de insiders de Wall Street. @JARennison

A resiliência de Erdoğan

Sobre as eleições turcas.

Cihan Tuğal



A Turquia caminha para tempos difíceis. Recep Tayyip Erdoğan foi reeleito para um terceiro mandato no segundo turno em 28 de maio, obtendo 52% do voto popular, enquanto o candidato da oposição Kemal Kılıçdaroğlu obteve 48%. Embora as pesquisas mais respeitáveis tenham previsto que a coalizão governista nacionalista-islâmica perderia sua maioria, ela agora detém mais de 320 assentos em 600 (abaixo dos 344). E embora Kılıçdaroğlu tenha recebido mais votos presidenciais do que os adversários anteriores de Erdoğan, seu partido superou as expectativas, garantindo 25% dos votos parlamentares em contraste com os 30% que recebeu nas eleições locais de 2019. A oposição estava convencida de que o momento da votação funcionaria a seu favor, após um período de inflação excepcionalmente alta e esforços desastrosos de socorro ao terremoto. Por que suas esperanças foram frustradas?

Existem razões institucionais óbvias para a resiliência do erdoğanismo. O governo passou anos monopolizando a grande mídia e o judiciário. As prisões estão lotadas de ativistas, jornalistas e políticos. A oposição curda, a única força não direitista verdadeiramente organizada no país, viu seus prefeitos eleitos democraticamente substituídos por funcionários nomeados pelo Estado, que consolidaram o domínio do governo sobre as províncias do leste e do sudeste. No entanto, esta é apenas a ponta do iceberg. A resistência do regime não é simplesmente resultado de seu autoritarismo; sua popularidade é muito mais profunda do que isso. Para compreendê-lo, devemos compreender três fatores principais que a maioria dos comentaristas e políticos da oposição se recusam a reconhecer.

A primeira é econômica. Além de usar esquemas de bem-estar para construir confiança entre as camadas mais pobres da população, o governo de Erdoğan integrou ferramentas capitalistas de estado em seu programa neoliberal. Essa mistura manteve a Turquia em um caminho não convencional, mas ainda um tanto sustentável. O regime mobilizou fundos soberanos, substituição de importações e incentivos seletivos para determinados setores, como segurança e defesa. Também reduziu as taxas de juros e impulsionou a produção em indústrias de baixa tecnologia, como a construção. Embora alienando os economistas ortodoxos e as classes profissionais, essas medidas fortaleceram o controle do AKP sobre pequenas e médias empresas e capitalistas dependentes do estado, junto com seus trabalhadores.

O segundo fator é geopolítico. A política externa do governo - que visa estabelecer a Turquia como uma Grande Potência e mediadora independente entre o Oriente e o Ocidente - complementa seu nacionalismo econômico. Claro, na realidade, a Turquia carece de base material para mudar o equilíbrio global de forças. No entanto, os partidários de Erdoğan o apresentam como um poderoso fazedor de reis, e os ideólogos mais ilusórios o veem como o profeta de um império islâmico vindouro. Isso ajudou a manter sua aura e reforçar sua legitimidade, especialmente entre a base de direita do AKP.

O terceiro pilar da força do regime é sociopolítico: sua capacidade de organização de massas. O AKP tem capítulos locais fortes e abrange uma série de associações cívicas: instituições de caridade, sindicatos profissionais, clubes de jovens, sindicatos. Também se beneficia de sua aliança com o partido de extrema-direita Nationalist Action Party (MHP), cuja ala paramilitar - Idealist Hearths - tem pontos de apoio nas forças armadas, no setor de ensino superior e nos bairros sunitas da classe trabalhadora. Esses grupos dão às classes populares uma sensação de poder, estabilidade, força e muitas vezes regalias materiais, mesmo em tempos de dificuldades econômicas. Eles são igualados apenas pelas organizações de massa dos curdos (reforçadas por aliados socialistas em regiões não curdas). No entanto, a prevalência do sentimento anticurdo até agora inibiu a formação de um bloco contra-hegemônico composto por turcos e curdos.

Por mais de um ano, a campanha eleitoral turca ocluiu e até exacerbou as questões mais prementes que o país enfrenta. A principal oposição compreende partidos seculares e de centro-direita comumente conhecidos como Mesa dos Seis. Juntos, eles são liderados pelo Partido Republicano do Povo (CHP) de Kılıçdaroğlu: o partido fundador da República Turca. Embora o CHP tenha se inclinado para a esquerda na década de 1960, ele vem se deslocando para a direita desde meados da década de 1990, tanto em sua política econômica quanto em sua posição sobre a questão curda. O segundo maior partido da coalizão é o İyip, uma ramificação secular do MHP, que se orgulha de ser tão nacionalista quanto resiste ao uso da violência política da mesma forma. Dois dos partidos menores da coalizão são separatistas do AKP, liderados pelo ex-vice-primeiro-ministro Ali Babacan e pelo ex-primeiro-ministro Ahmet Davutoğlu. Apesar de suas minúsculas bases eleitorais, eles tiveram uma influência significativa na agenda da oposição.

Durante a campanha, a Mesa dos Seis recusou-se a discutir o impacto social e ecológico das reformas de livre mercado da Turquia nos últimos quarenta anos; ignorou os custos da dependência das potências ocidentais (que pouco mudou com a maior proximidade de Erdoğan com a Rússia); e manteve silêncio sobre a questão curda. Encobrindo cada uma dessas questões candentes, em vez disso, prometeu inaugurar uma grande "restauração" que supostamente curaria todas as doenças da Turquia. As partes mais explícitas desse programa foram o retorno ao estado de direito e a renovação das instituições estatais, contratando administradores competentes para substituir os homens-sim de Erdoğan.

O objetivo implícito da oposição, no entanto, era retornar à estratégia de desenvolvimento do país anterior a 2010 e restabelecer relações positivas com o Ocidente. O modelo econômico dos anos 2000, concebido por Babacan quando ele era uma figura proeminente no AKP, baseava-se na rápida privatização, nos fluxos de capital estrangeiro e na crescente dívida pública. Embora Kılıçdaroğlu temperasse seus discursos com vagas promessas de redistribuição, esse era o cerne de sua oferta doméstica.

Sua política externa era igualmente fraca. A Mesa dos Seis adotou uma linha amplamente pró-ocidental e anti-russa que efetivamente equivalia a um endosso da hegemonia dos EUA sobre o Oriente Médio. Ao mesmo tempo, negligenciou as questões regionais mais urgentes, como as incursões da Turquia no Iraque e na Síria. Quando questionado sobre essas questões, Kılıçdaroğlu afirmou que as instituições estatais, como os militares, eram totalmente independentes, então ele não poderia fazer promessas em seu nome. A coalizão nacionalista-islâmica, por outro lado, cedeu aos sentimentos antiocidentais e prometeu projetar a influência turca no cenário mundial. Sua campanha baseava-se em cultivar ilusões nacionais de um renascimento otomano.

A oposição esperava que a alta inflação e a má administração do Estado, inclusive do terremoto, destruíssem a credibilidade do governo. Mas, no final, a frustração com essas questões não foi suficiente para derrubar o titular. Para isso, era necessária uma visão alternativa – substantiva, popular, concreta. A Mesa dos Seis não tinha uma. Seu programa fraco e pouco inspirador selou seu destino.

Outra pedra no sapato da oposição era o movimento curdo. Os curdos foram excluídos da Mesa dos Seis desde o início, embora fosse óbvio que Kılıçdaroğlu não poderia vencer sem seus votos. Embora o CHP e seus aliados apoiassem as incursões militares de Erdoğan na Síria e no Iraque, a maioria dos curdos ainda os via como um mal menor. Assim, o partido curdo YSP e seus aliados socialistas declararam seu apoio a Kılıçdaroğlu algumas semanas antes das eleições. No entanto, as negociações com os curdos criaram fraturas dentro da oposição. (O líder do İyip, Meral Akşener, deixou a Mesa dos Seis pouco antes do anúncio do YSP e voltou ao redil alguns dias depois.) Quando os resultados do primeiro turno foram anunciados, com Erdoğan liderando a votação presidencial por uma margem de 5%, muitos comentaristas notaram que as tentativas de Kılıçdaroğlu de cortejar os curdos custaram a ele o eleitorado nacionalista. De fato, os dados sugeriram que um grande número de eleitores de İyip apoiou seu partido nas eleições parlamentares, mas se recusou a apoiar Kılıçdaroğlu para presidente.

Em resposta, a oposição se voltou para a extrema direita durante o intervalo de duas semanas entre o primeiro turno e o segundo turno, na esperança de atrair eleitores anti-sírios e anti-curdos e, ao mesmo tempo, manter os curdos do lado. Essa estratégia baseou-se na captura dos 5% que foram para o candidato linha-dura anti-imigração Sinan Oğan, ex-membro do MHP e o único outro candidato presidencial no primeiro turno. Incapaz de obter um endosso do próprio Oğan, Kılıçdaroğlu assinou um pacto com seu apoiador de maior perfil, Ümit Özdağ, prometendo deportar todos os imigrantes indesejados - Kılıçdaroğlu calculou o valor em 10 milhões - e manter as políticas anti-curdas de Erdoğan. Os liberais alegaram que essa era uma tática eleitoral e não um compromisso genuíno; de qualquer forma, não conseguiu entregar os resultados. Apenas metade dos votos de extrema direita foi para Kılıçdaroğlu no segundo turno, enquanto suas aberturas ao ultranacionalismo pareceram desmobilizar os curdos, já que o comparecimento caiu nas províncias do leste e sudeste.

Agora, após sua derrota, a oposição mainstream está presa entre um liberalismo que não é mais sustentável e um nacionalismo que não pode controlar. O primeiro é construído sobre uma série de perspectivas ilusórias: adesão à UE para a Turquia, uma Pax Americana para o Oriente Médio e um modelo econômico doméstico que depende de crédito barato. A década mais próspera da Turquia, a década de 2000, contou com dinheiro quente do Ocidente e altos níveis de dívida pública e privada. Esse modelo tornou-se insustentável quando os fluxos monetários globais diminuíram consideravelmente após o aumento das taxas de juros no Ocidente. A virada nacionalista do AKP na década de 2010 foi uma resposta a essas mudanças. Suas indústrias de guerra e políticas de substituição de importações forneceram a base material para suas injúrias públicas contra o Ocidente, por um lado, e os curdos, por outro. Sem uma base material semelhante, o nacionalismo da oposição dominante soa vazio. Antes do segundo turno, percebeu que era incapaz de igualar a retórica anticurda do governo e, em vez disso, tentou capitalizar o sentimento antisírio. No entanto, sem as credenciais nacionalistas do regime, essa aposta nunca teria sucesso. Seu único efeito foi naturalizar ainda mais o sentimento de extrema-direita e fortalecer as bases ideológicas do erdoğanismo.

A questão para a Turquia é se há alguma esperança de construir uma alternativa não liberal, não nacionalista, voltada para o futuro e não para o passado. Durante seu terceiro mandato, o nacionalismo econômico orientado para a exportação de Erdoğan dependerá da intensificação da exploração da mão de obra barata. Em teoria, isso cria uma oportunidade de organizar as classes subalternas que há muito são ignoradas por todos os partidos tradicionais. Em vez de imitar a política de exclusão do governo, as forças anti-Erdoğan poderiam se esforçar para integrar trabalhadores e curdos em sua coalizão. A oposição, tendo visto que não pode flanquear o atual nacionalismo, poderia, em vez disso, tentar trazer o movimento curdo para o reino da política "aceitável". Até agora, eles confiaram demais nas classes médias, burocratas e "especialistas" em sua luta contra o populismo autoritário de Erdoğan. A derrota histórica de 2023 sinaliza que qualquer oposição viável terá que construir uma base mais ampla.

Algum dos críticos de Karl Marx hoje realmente o leu?

A direita parece nunca parar de falar sobre o "marxismo" e seus truques astutos. Mas, apesar de todas as suas denúncias, os especialistas conservadores realmente continuam provando que nem mesmo conhecem os fundamentos do pensamento de Karl Marx.

Ben Burgis

Jacobin

Karl Marx e Friedrich Engels na gráfica do Neue Rheinische Zeitung (jornal publicado em Colônia, Prússia, na época da Revolução de 1848-1849). Pintura de E. Capiro. (Roger Violett via Getty Images)

Na segunfa-feira, colunista da Jacobin, Ben Burgis deu uma palestra no festival How the Light Gets In na vila galesa de Hay. Está uma versão resumida e revisada desta fala.

Tradução / Karl Marx merece críticos de melhor nível. Eu pensei isso muitas vezes nos últimos anos, mas talvez nunca mais do que em março, quando vi o conservador James Lindsay postar uma foto sua fingindo urinar no túmulo de Marx, em Londres.

Não pude deixar de notar a falta de qualquer jato real de urina na foto. De certa forma, isso o tornou uma metáfora perfeita para a abordagem da direita em relação ao seu maior adversário intelectual. Eles estão fazendo um show de profanação de seu túmulo. Mas eles sabem muito pouco sobre suas ideias para sequer fazer contato com o alvo de sua crítica.

Lindsay, Levin, Kirk e Peterson

Lindsay não é uma figura obscura da direita. Ele é uma figura proeminente globalmente. Ele testemunha perante as legislaturas estaduais explicando por que elas deveriam banir a “teoria racial crítica”, que ele vê como marxismo disfarçado. Seu livro Race Marxism foi um best-seller.

Assim como o livro de Mark Levin, American Marxism. Levin nunca foi tão popular quanto seus colegas Rush Limbaugh e Sean Hannity, mas seu programa de rádio tem tocado em centenas de estações AM nos Estados Unidos por muitos anos. Originalmente, eu deveria escrever uma resenha sobre o marxismo americano com Matt McManus, mas depois de muitas tentativas de terminar, acabei admitindo a derrota e deixando Matt escrever sozinho. O livro parece a transcrição de um discurso interminável, ofegante e incoerente. Eu ficaria surpreso se Levin abrisse a magnum opus de Marx, O Capital.

Bem quando eu estava tentando e falhando em engolir o livro de Levin, fiz um debate público com uma das figuras mais onipresentes da mídia conservadora: o fundador da Turning Point USA, Charlie Kirk. A certa altura, Charlie me perguntou o que eu achava de Karl Marx. Respondi que, embora não achasse que Marx estava certo sobre tudo, ele estava certo sobre muitos assuntos importantes – em particular, sua teoria da história. Charlie aproveitou para dizer que a teoria da história de Marx era “basicamente de Hegel” – afinal, ele disse, Marx não era o “presidente dos Jovens Hegelianos”?

Isso dificilmente poderia estar mais errado. G. W. F. Hegel tinha uma teoria “idealista” da história – ele a via como impulsionada pela auto-realização progressiva do que ele chamava de o “Espírito do Mundo”. Marx começou como um jovem hegeliano, mas esse era o nome de uma corrente filosófica, não de uma organização com carteira de membros e um presidente! Mais substantivamente, Marx – embora profundamente influenciado pela metodologia de Hegel – veio a rejeitar o idealismo em favor de uma teoria “materialista” da história na qual a primazia é dada aos fatores econômicos: as “forças de produção” e as “relações de produção”.

Lindsay, Levin e Kirk não são os únicos conservadores proeminentes que insistem em tagarelar sobre Marx, apesar de não conhecerem o básico. No debate de Jordan Peterson em 2019 com o filósofo marxista esloveno Slavoj Žižek, Peterson disse que se preparou para o debate relendo o Manifesto Comunista pela primeira vez desde os dezoito anos.

Isso em si era uma admissão surpreendente. Aqui você tem alguém que escreveu livros best-sellers que contêm denúncias extenuantes do “marxismo”, admitindo que não lia o Manifesto Comunista – um pequeno panfleto que pode ser consumido em uma tarde – há décadas.

Mas ainda mais impressionante foi o pouco entendimento que Peterson parecia ter do que havia lido. Ele expressou surpresa por Marx e Friedrich Engels “admitirem” que o capitalismo estimulou um desenvolvimento econômico mais rápido do que qualquer sistema anterior – quando na verdade eles dedicaram páginas à observação porque é uma parte crucial de sua análise. E em um golpe na primeira frase do capítulo um do Manifesto, sobre como toda “história até então existente” é uma “história da luta de classes”, Peterson argumentou:

Marx não parecia levar em conta... que há muito mais razões pelas quais os seres humanos lutam, do que sua luta de classes econômica. Mesmo que você coloque a ideia hierárquica nisso (que é uma forma mais abrangente de pensar sobre isso), o ser humano luta consigo mesmo, com a maldade que está dentro dele, com o mal que ele é capaz de fazer, com o espiritual e guerra psicológica que acontece dentro deles. E também estamos sempre em desacordo com a natureza, e isso nunca aparece em Marx… (minha ênfase)

Mas a maneira como os humanos estão “em desacordo com a natureza” está bem no cerne da teoria da história de Marx! Marx pensa que a “infraestrutura legal e política” de qualquer sociedade está a jusante das “relações de produção” – ou seja, a relação entre os produtores imediatos (sejam escravos ou camponeses ou trabalhadores assalariados modernos) e a classe encarregada do processo de produção (sejam proprietários de escravos ou uma aristocracia feudal ou capitalistas). E Marx pensa que essas relações são elas próprias, de maneira importante, a jusante do nível de desenvolvimento das forças de produção – grosso modo, a capacidade de uma sociedade de transformar o que obtemos da natureza em produtos que atendem às necessidades humanas.

A teoria da história de Marx

O relato da história de Marx é mais ou menos assim: As primeiras sociedades de caçadores-coletores careciam de uma classe de não produtores porque não haveria o suficiente para comer se houvesse uma classe dominante que não estivesse caçando ou coletando. Escassez absoluta controlada. A revolução agrícola impulsionou a capacidade produtiva humana a ponto de poder sustentar uma classe dominante, mas apenas se parte do que foi criado pelos “produtores imediatos” fosse tomada diretamente pela força – como em modos de produção, como a escravidão, e o feudalismo.

O desenvolvimento da indústria moderna cria (e requer) um modo de produção diferente, onde os produtores imediatos são “duplamente livres” – livres no sentido de serem cidadãos livres com o direito legal de circular e fazer contratos com qualquer empregador que os queira, e também “livres” de qualquer meio de se sustentar, exceto para vender seu tempo de trabalho a um empregador capitalista – então eles acabam se submetendo a uma nova classe dominante. E, no entanto, diz Marx, o capitalismo empurra as forças de produção para níveis tão avançados que há uma nova possibilidade: os próprios trabalhadores podem assumir os meios de produção e criar um futuro melhor.

Marx deixa muito claro que ter que trabalhar para transformar os insumos da natureza em “valores de uso” humanos é uma necessidade originalmente imposta pela natureza e não por qualquer sistema social particular. Mas esses sistemas forçam os produtores imediatos não apenas a produzir para atender às suas próprias necessidades, mas também a gastar horas adicionais fazendo trabalho não remunerado em nome da classe dominante.

Isso acontece abertamente em um sistema como o feudalismo, onde os servos são legalmente forçados a passar parte de seu tempo trabalhando no campo do senhor feudal, em vez do pequeno pedaço de terra com a qual alimentam a si mesmos e suas famílias. Mas Marx acha que a mesma coisa acontece de forma disfarçada no capitalismo – oficialmente, você está sendo pago por cada hora que trabalha, mas na prática parte do trabalho que você faz cria os bens e serviços que são vendidos para pagar seu próprio salário, e parte vai para os lucros do seu chefe. Sob o socialismo, quando as “associações livres de trabalhadores” comandam o show, os próprios trabalhadores decidem como os rendimentos de seu trabalho serão divididos. Uma parte iria para os não-produtores, como crianças, aposentados e incapazes de trabalhar, mas nada seria tomado pela classe capitalista.

Uma das diferenças cruciais entre o marxismo e as formas anteriores de pensamento socialista é que Marx não vê o capitalismo como um erro moral inevitável. Por mais eticamente repugnante e por mais desejável que seja a superação, o capitalismo para Marx é um estágio necessário do desenvolvimento histórico. É por isso que Marx e Engels dedicam tanto espaço no início do Manifesto para falar sobre as formas surpreendentes pelas quais as forças de produção foram desenvolvidas sob o capitalismo. Pela primeira vez, existe a possibilidade de algo melhor – não a combinação de liberdade e dificuldades materiais experimentada pelos primeiros caçadores-coletores, ou mesmo por pequenos agricultores independentes que precisam trabalhar o dia inteiro todos os dias apenas para produzir o necessário à vida, mas uma versão igualitária e democrática da modernidade high-tech.

Existem críticas reais que você pode fazer à visão de Marx. Algumas pessoas argumentam, por exemplo, que para lidar com a crise climática precisamos reverter nossa infraestrutura industrial – precisamos de “decrescimento”. Eu discordo, mas isso é pelo menos uma discussão com pessoas que sabem contra o que estão argumentando. Essa não é a discussão que estamos tendo com a direita.

Uma maneira de dizer isso é que eles citarão as falhas dos governos socialistas autoritários – começando com a União Soviética – como uma grande refutação de Marx. Mas o que Marx realmente disse sobre a Rússia?

Como Steve Paxton aponta em seu livro Unlearning Marx, Marx escreveu especificamente que seria impossível para a Rússia subdesenvolvida e semifeudal pular o capitalismo, e saltar para o futuro socialista, a menos que uma revolução na Rússia fosse acompanhada por uma revolução na Europa ocidental industrializada. Não me interpretem mal. Sei que os marxistas do século XX teriam preferido ver uma forma politicamente democrática e materialmente próspera de socialismo criar raízes na União Soviética a ver a teoria de Marx confirmada. Mas essa teoria sendo confirmada é exatamente o que aconteceu.

Melhores críticos, por favor

Na verdade, quero melhores críticos do marxismo. Todos deveriam querer isso. Os antimarxistas deveriam querer isso porque eles claramente acham que criticar o “marxismo” é importante – a direita contemporânea nunca se cala sobre isso! – e você não pode fazer isso de forma eficaz se não souber o que é a teoria da história de Marx. Os marxistas deveriam desejá-lo porque a melhor versão de nossa visão virá por meio do engajamento com as críticas mais inteligentes. Quero críticos que possam nos fazer pensar muito sobre nossas premissas e revisar as partes que precisam ser revisadas. É assim que funciona o progresso intelectual.

Dê-me intelectuais conservadores que leram Marx cuidadosamente – que podem formular críticas que me fazem estremecer. Posso não gostar no momento, mas todos nos beneficiaremos com o processo.

Em vez disso, temos o tipo de direitista que diz que os ambientalistas são marxistas secretos e que o plano criptomarxista é nos fazer comer insetos para conservar o meio ambiente. Ou que expressam confusão sobre por que Marx e Engels falam sobre rápido desenvolvimento econômico sob o capitalismo no Manifesto Comunista. Ou quem pensa que Marx pensou que a Rússia czarista poderia pular para o socialismo. Ou quem, meu Deus, diz coisas como: “Na verdade, também estamos sempre em desacordo com a natureza e isso nunca apareceu em Marx”.

Críticos reais podem servir a um propósito útil. Os pretensos profanadores de túmulos? Eles estão apenas desperdiçando o tempo de todos.

Colaborador

Ben Burgis é colunista da Jacobin, professor adjunto de filosofia na Rutgers University e apresentador do programa e podcast do YouTube Give Them An Argument. Ele é o autor de vários livros, mais recentemente Christopher Hitchens: What He Got Right, How He Went Wrong, and Why He Still Matters.

Um legado venenoso da Guerra Fria que desafia uma solução

Um plano de $ 528 bilhões para limpar 54 milhões de galões de resíduos radioativos da fabricação de bombas pode nunca ser alcançado. Os negociadores do governo estão procurando um compromisso.

Por Ralph Vartabedian
Reportagem de Richland, Washington.

The New York Times

B Plant, a primeira instalação de processamento de plutônio do Hanford Site no estado de Washington. Crédito. Mason Trinca/The New York Times

Tradução / O Departamento de Energia dos Estados Unidos produziu entre 1950 e 1990 em média quatro bombas nucleares por dia em fábricas construídas às pressas, com poucas medidas de proteção ambiental, que deixaram para trás um legado imenso de resíduos radiativos tóxicos.

Em nenhum lugar os problemas foram maiores que em Hanford, no estado de Washington, onde engenheiros enviados para fazer a limpeza após o término da Guerra Fria descobriram 54 milhões de galões de lodo altamente radiativo deixados pela produção do plutônio usado nas bombas atômicas dos EUA, incluindo a que foi jogada sobre a cidade japonesa de Nagasaki, em 1945.

Limpar os tanques subterrâneos dos quais resíduos tóxicos estavam vazando na direção do rio Columbia, a apenas dez quilômetros de distância, e estabilizá-los de alguma maneira para seu descarte permanente era um dos problemas químicos mais complexos já vistos. Os engenheiros pensavam que o haviam resolvido anos antes com um plano complexo para extrair o lodo, revesti-lo de vidro e depositá-lo nas profundezas das montanhas do deserto de Nevada.

Um diagrama do local para o que era conhecido como Hanford Engineer Works, estabelecido no estado de Washington como parte do Projeto Manhattan, quando a produção de plutônio estava em andamento em 1945. Crédito. U.S. Army Signal Corps/PhotoQuest, via Getty Images

Mas a construção de uma usina de tratamento químico de cinco andares e 12,8 mil metros quadrados para dar conta da tarefa foi suspensa em 2012 -depois de US$ 4 bilhões (R$ 19,8 bilhões) já terem sido gastos- quando se descobriu que estava cheia de defeitos de segurança. A construção da usina está paralisada há 11 anos, um símbolo potente do fracasso do país, quase 80 anos depois do fim da Segunda Guerra, em lidar com o legado mais mortífero da era atômica.

A limpeza em Hanford agora se encontra em um ponto crítico de inflexão. O Departamento de Energia vem conduzindo discussões com autoridades públicas e a Agência de Proteção Ambiental (EPA), para tentar reformular o plano. Mas muitos receiam que os compromissos mais prováveis, que podem ser anunciados nos próximos meses, coloquem em risco a rapidez e qualidade da limpeza.

Segundo algumas pessoas que acompanham as negociações, o governo avalia a necessidade de deixar milhares de galões de resíduos enterrados nos tanques subterrâneos rasos de Hanford e envolver parte deles não em vidro impenetrável, mas em um revestimento de argamassa de concreto que quase certamente vai se decompor milhares de anos antes dos materiais tóxicos que se pretende que contenha.

"O Departamento de Energia está chegando a uma grande encruzilhada", disse Thomas Grumbly, ex-secretário assistente do departamento que comandou o projeto no início, durante o governo Clinton.

Sucessivos secretários de energia nos últimos 30 anos, disse ele, "bateram a cabeça contra a parede" para criar uma tecnologia e um orçamento que fizessem o problema desaparecer não apenas em Hanford, mas também em outras instalações de armas nucleares em todo o país.

Plantas na Carolina do Sul, Washington, Ohio e Idaho que ajudaram a produzir mais de 60.000 bombas atômicas têm toneladas de detritos radioativos que permanecerão radioativos por milhares de anos. E ao contrário das usinas nucleares, cujos resíduos consistem em pastilhas de urânio seco trancadas em tubos de metal, as instalações de armas estão lidando com milhões de galões de lama semelhante a manteiga de amendoim armazenados em tanques subterrâneos antigos.

Dois milhões de libras de mercúrio permanecem nos solos e águas do leste do Tennessee. Plumas radioativas estão contaminando o aquífero Great Miami perto de Cincinnati.

Local após local, a solução se resumia a uma escolha entre uma limpeza cara, que durava décadas, ou uma ação mais rápida que deixava uma grande quantidade de resíduos no local.

Hanford, que abrange cerca de 1.500 quilômetros quadrados de deserto, é o maior e mais contaminado de todos os locais de produção de armas atômicas, alguns dos quais estão tão poluídos que jamais poderão voltar ao uso público. Mas o problema é urgente, dado o risco de radionuclídeos contaminarem o rio Columbia, fonte vital de água para cidades, fazendas, tribos e fauna em dois estados.

A busca por uma solução se arrasta há tanto tempo que há pressão para ser produzido algum resultado que justifique os gastos imensos, mesmo que ela não atenda às expectativas. Isso pode assinalar um recuo em relação às promessas feitas por muito tempo aos habitantes da área vizinha de que o governo se pautaria pelos padrões de limpeza mais elevados possíveis.

As negociações entre autoridades federais e estaduais envolveram estender o cronograma de limpeza e usar argamassa em vez de vidro para estabilizar cerca de metade dos resíduos radioativos de baixo nível retirados do local, bem como milhares de galões de resíduos presos nos tanques quando o resto do lixo de alto nível é removido.

A possibilidade de um compromisso que permita que parte desses resíduos permaneçam no fundo dos tanques desencadeou divergências entre especialistas. Alguns deles dizem que o uso de argamassa para envolver os resíduos seria uma solução econômica e segura. Críticos do plano dizem que os resíduos podem persistir por mais tempo que a argamassa e voltar a vazar em séculos futuros.

Funcionários do Departamento de Energia dizem que qualquer plano adotado será o bastante para deixar o local seguro para gerações futuras e que quaisquer resíduos que sejam deixados no local não colocarão a saúde humana em risco.

Brian Vance, ex-capitão da Marinha e administrador do local em Hanford, disse que as expectativas originais bateram de frente com obstáculos científicos e financeiros enormes. Segundo ele, os engenheiros estão tentando identificar uma solução que seja ao mesmo tempo segura e viável.

"Se você pensar nas decisões tomadas nos anos 1990, o plano era um pouco diferente na época", disse. Envolvia o uso de tecnologia ainda não comprovada "que era fácil construir na maquete, mas difícil quando se avança e enxerga a realidade concreta".

Grumbly disse que apresentou ao governo Clinton, anos atrás, estimativas orçamentárias de centenas de bilhões de dólares para realizar a limpeza de antigos locais de produção de armas nucleares em todo o país. Ele recordou que funcionários do Escritório de Administração e Orçamento o instruíram a "nunca mostrar essas estimativas publicamente".

"Eles não priorizaram isso", disse ele sobre o governo federal, observando que, mesmo agora, o governo Biden não havia nomeado um secretário adjunto para supervisionar a limpeza.

Tal como está, apenas o tratamento dos resíduos nos tanques de Hanford já é orçado em até US$ 528 bilhões (R$ 2,6 trilhões). Ao ritmo atual, o projeto pode levar séculos para ser custeado e concluído.

O Congresso destinou US$ 2,8 bilhões (R$ 13,8 bilhões) para Hanford este ano, dos quais US$ 1,7 bilhão (R$ 8,4 bilhões) alocado para a limpeza dos tanques. Mas houve poucos avanços reais.

Gary Brunson, o ex-diretor da usina de tratamento de resíduos, disse que a limpeza fracassou. Em 2013 ele e dois outros gerentes técnicos registraram uma denúncia contra a empresa principal responsável pela limpeza, Bechtel, e sua sócia, acusando-a de realizar trabalho falho e depois fazer lobby ilegal por um aumento do orçamento. O Departamento de Justiça se uniu a Brunson em uma ação contra a empresa. A ação foi resolvida em 2016 com um acordo no valor de US$ 125 milhões (R$ 619 milhões).

Colocar o foco no tratamento de resíduos menos perigosos e de baixo nível mais rapidamente seria parte de um recuo significativo na missão, na opinião de Brunson.

"Todo o propósito daquela planta era tratar os resíduos de alto nível", disse ele. "Eles não poderiam fazer isso, então estão tratando resíduos de baixo nível. Eles não têm um plano abrangente, então estão criando essas metas provisórias."

A arquitetura original para a imobilização dos resíduos previa a separação química, usando a usina cuja construção foi paralisada, em fluxos radiativos altos e baixos. Então, duas usinas de derretimento separadas –espécies de vulcões criados pelo homem que operam na temperatura de lava— envolveriam os dois fluxos em vidro. 

Mas ainda não foi encontrada maneira de fazer isso em segurança.

"Construíram uma das ratoeiras mais complexas do mundo", disse Brunson. "Não vai funcionar nunca."

A realidade, afirma, é que os 54 milhões de galões de lodo radiativo provavelmente nunca serão removidos. Ele acredita que serão envolvidos em argamassa e deixados no local para que gerações futuras se ocupem do problema.

A construção da usina de tratamento químico foi sustada pelo secretário de Energia do ex-presidente Barack Obama, Steven Chu, em meio a alegações de que o processo poderia levar a explosões de gás hidrogênio e fissão nuclear espontânea.

O Government Accountability Office (GAO, órgão dos EUA responsável pela prestação de contas públicas) recomendou que a usina seja abandonada, devido aos custos necessários para fazê-la funcionar algum dia. "Poderíamos construir um elevador até a Lua. Eu colocaria a usina na mesma categoria", disse Nathan Anderson, diretor da equipe ambiental do GAO.

Depois vem a questão da estabilização permanente dos resíduos. Quase ninguém discorda que os resíduos mais perigosos, de nível radiativo mais elevado, devem ser involucrados em vidro e enterrados em um repositório geologicamente estável, como o repositório de Yucca Mountain, em Nevada, que há décadas está fora de cogitação por motivos políticos.

Mas o que fazer com os resíduos de nível mais baixo é mais incerto e forma uma parte importante das negociações em curso. O GAO concluiu que envolver boa parte deles em argamassa será ambientalmente tão seguro quanto envolvê-los em vidro, que o trabalho seria concluído em menos tempo, pouparia bilhões de dólares e encerraria um risco menor de acidente industrial.

Mas o gerente de projeto de Hanford no Departamento de Ecologia do estado de Washington, David Bowen, enxerga isso como risco à segurança e quer que esses resíduos sejam levados para fora do estado. 

O que está em jogo com o tratamento dado aos resíduos altamente tóxicos é ainda maior.

Segundo funcionários do estado e documentos do Departamento de Energia, mesmo que a maior parte desses resíduos seja vitrificada, engenheiros estimam que até 1% do lodo radiativo pode ficar para trás quando a maior parte for removida.

Autoridades de energia dizem que os níveis de radioatividade de qualquer resíduo residual seriam relativamente baixos e que a argamassa impediria que os tanques desmoronassem à medida que enferrujassem.

Mas o total de resíduos deixados para trás pode chegar a centenas de milhares de galões, e os críticos dizem que pode ser altamente perigoso.

"Quanto mais perto você chega do fundo desses tanques, mais resíduos radioativos, tóxicos e perigosos ficam", disse Geoffrey Fettus, advogado do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais, que processou o governo pela limpeza de Hanford.

"Nós nos oporíamos a isso", disse Nikolas Peterson, diretor executivo do grupo de vigilância Hanford Challenge, que há muito pressiona por uma solução segura.

Houve algum progresso. Trabalhadores de limpeza demoliram prédios contaminados, limparam o solo ao longo do Columbia e estabilizaram sete reatores que produziram plutônio.

Mas em torno do centro de Washington, uma área que abriga os famosos vinhedos e pomares de macieiras do estado, há um crescente sentimento de impaciência.

Líderes da nação Yakama, uma tribo de 11.000 membros cujas terras ancestrais já incluíram o local de Hanford, dizem que seu tratado de 1855 prometia que os membros da tribo teriam o direito de caçar e pescar em terras saudáveis.

"Antes do Projeto Manhattan, havia um acordo de que esta área seria devolvida ao que era", disse Trina Sherwood, especialista em cultura do departamento de recursos naturais da tribo. "Como podemos concordar em deixar o veneno na terra?"

No entanto, devolver a terra ao que era antes é um resultado que quase ninguém espera.

"Existem partes do local que nunca serão devolvidos", disse Vance, gerente do local de Hanford. "Vamos ficar aqui por muito tempo."

Reprodução não é criatividade e IA não é arte

A inteligência artificial está prestes a sugar a alma da arte - e tornar a já precária existência dos artistas ainda pior.

Luke Savage


Um "formato maior" gerado por IA de Starry Night , de Vincent van Gogh. (Lee Brimelow / Twitter)

Tradução / Em Tim's Vermeer (2013), o ator libertário Penn Gillette documenta os esforços de seu amigo Tim Jenison para reproduzir as técnicas do pintor holandês do século XVII, Johannes Vermeer. Para isso, seu amigo, executivo de uma empresa de software e engenheiro visual, desenvolve uma série de métodos elaborados que usam espelhos e luz para replicar as marcas registradas de Vermeer, como profundidade de campo e aberração cromática.

O filme em si é razoavelmente divertido, e a recriação de Jenison da obra de Vermeer de 1660, The Music Lesson, certamente não deixa de impressionar como um esforço de engenharia. Tanto Jenison quanto Gillette, no entanto, acabam confundindo a criação com algo que ela não é.

Na estreita concepção de arte oferecida pelo filme, é simplesmente uma tecnologia como qualquer outra — um método, ou uma série de métodos, que aspira a representar a realidade com a maior fidelidade possível. Não há nenhum processo social ou cultural envolvido, nenhuma inspiração além de um ato de produção mecânica e nenhum propósito maior para o próprio projeto de Vermeer além do fotorrealismo.

Em seu comentário, Gillette fala sobre as qualidades “fotográficas” e “cinematográficas” da obra de Vermeer sem nunca se deter em suas dimensões muito mais interessantes e abstratas. “Meu amigo Tim pintou um Vermeer! Ele pintou um Vermeer!” Gillette exclama sobre algo que é nem mais, nem menos que um experimento extremamente elaborado de pintura por números — um simulacro derivado de algo belo cuja existência interpreta erroneamente a própria ideia de beleza.

Tanto na tese quanto na execução, o filme foi o precursor perfeito para o ciclo de notícias efervescente que continua a cercar a inteligência artificial generativa. De pinturas a conversas de podcast geradas por IA, redação de roteiros e muito mais, um esforço concentrado está em andamento para suplantar a criatividade impulsionada pelo ser humano com automação computadorizada — ao mesmo tempo, dispensa toda a noção de arte como a conhecemos.

Como qualquer processo industrial impulsionado pela tecnologia, a introdução da IA pode acabar tendo profundas implicações sociais e materiais. Sob o utopismo transhumanista do Vale do Silício, encontra-se invariavelmente o mesmo imperativo que impulsionou o capitalismo desde o século XIX, ou seja, um impulso implacável em direção a uma produção cada vez mais eficiente a um custo cada vez mais baixo, e há poucas razões para acreditar que a IA será diferente.

No domínio cultural, os resultados serão excepcionalmente brutos: pinturas artificiais criadas por computador (vendidas, talvez, em um mercado de escassez gerada artificialmente, como criptomoedas ou NFTs); música estereotipada gravada por estrelas pop CGI que na verdade não existem; as salas dos roteiristas substituídas por algoritmos generativos que reduzem as nuances do diálogo e da construção do enredo a um processo de produção fordista com poucos ou mesmo nenhum roteirista envolvido.

Tais desenvolvimentos são uma ameaça para artistas e trabalhadores culturais. Como a artista Molly Crabapple observou recentemente, aplicativos existentes como Stable Diffusion e Midjourney já podem gerar imagens detalhadas com base em nada mais do que prompts de texto por quase nenhum dinheiro.

“Eles são mais rápidos e mais baratos do que qualquer ser humano pode ser e, embora suas imagens ainda apresentem problemas — uma certa falta de alma, talvez, excesso de dedos, tumores que brotam das orelhas — já são boas o suficiente para terem sido usadas em capas de livros e trabalhos de ilustração editorial que são muitos pães com manteiga dos ilustradores.”, escreveu ela.

O que essas invenções não são, no entanto, é algo que possa ser chamado de arte.

Como Jenison e Gillette, os impulsionadores mais efusivos da cultura da IA ​​confundem fundamentalmente reprodução com criação e veem incorretamente realismo e expressão artística como sinônimos. Nessa concepção, a criatividade é, em última análise, um empreendimento mecanicista, arte de todos os tipos — pinturas, filmes, música, poesia — sendo nada mais do que a agregação de pontos de dados granulares; literalmente, a soma de suas partes componentes.

Em seu entusiasmo tecno-utópico, eles também elidem até que ponto o admirável mundo novo que procuram criar já está aqui. Acelerado pelo monopólio corporativo, o entretenimento de massa tornou-se cada vez mais um terreno baldio de “conteúdo” derivado e gerado por algoritmos, muito pouco dele significativamente novo.

Auxiliados pela tecnologia, os conglomerados corporativos já aprimoraram um modo zumbificado de produção cultural em que a propriedade intelectual (PI) existente é infinitamente reciclada e produzida na forma de sequências, prequelas, reinicializações e pastiches idiotas. Enquanto a IA representa uma revolução, ela será, portanto, principalmente uma que refina ainda mais esse processo, o que não é exatamente uma revolução.

É tortuoso e complicado fazer julgamentos qualitativos sobre o que constitui arte boa ou ruim. Porém, pode-se dizer com segurança que tornar um processo criativo mais “eficiente” não é o mesmo que torná-lo melhor.

A arte, a música e praticamente toda a vida e o pensamento humanos, além das necessidades básicas de dormir e comer, exalam uma essência ou Geist que não pode ser reduzida a processos mecanicistas. Independentemente do nome que decidamos usar — inteligência, humanismo, criatividade, alma — por definição, eles produzem algo que não pode ser quantificado ou taxonomizado em sua origem.

Após criada, uma pintura ou uma peça musical pode ser posteriormente dividida em seus elementos componentes — que podem, por sua vez, ser reorganizados ou reconfigurados para produzir algo diferente. No entanto, sem a introdução de algum novo elemento criativo, o resultado será apenas uma reprodução ersatz.

Em um mundo onde as máquinas podem substituir os artistas, toda a cultura será simplesmente uma versão cada vez mais estreita e derivada do que já existe.

Colaborador

Luke Savage é redator da equipe da Jacobin. Ele é o autor de The Dead Center: Reflections on Liberalism and Democracy After the End of History.

30 de maio de 2023

O futuro pertence ao povo

A história do pan-africanismo é a história dos esforços do povo africano para se unirem para enfrentar desafios comuns como a escravidão, o colonialismo ou o racismo. Enquanto tais questões continuarem, o pan-africanismo permanecerá relevante.

Uma entrevista com
Hakim Adi


Bloomsbury Publishing

Entrevista por
Selim Nadi

A história do pan-africanismo é a história dos esforços do povo africano para se unirem para enfrentar desafios comuns como a escravidão, o colonialismo ou o racismo. Enquanto tais questões continuarem, o pan-africanismo permanecerá relevante.

Conversamos com Hakim Adi, professor de História Africana e da Diáspora Africana na Universidade de Chichester, Reino Unido, que escreveu extensivamente sobre a história do Pan-africanismo e da Diáspora Africana. Suas publicações mais recentes incluem Pan-African History: Political Figures from Africa and the Diaspora since 1787 (2003), Pan-Africanism and Communism: The Communist International, Africa and the Diaspora, 1919-1939 (2013) e Pan-Africanism. A History (2018).

Selim Nadi

Por que você usa o termo "pan-africanismo" em vez de "internacionalismo negro", por exemplo?

Hakim Adi

Eu uso o termo pan-africanismo porque é o que tem sido usado em todas as principais reuniões pan-africanas de africanos (incluindo aqueles da diáspora africana) desde 1900. Por pan-africanismo eu me refiro ao movimento pela libertação social, econômica, cultural e política da África e dos povos africanos, incluindo os da diáspora africana. Podemos pensar nesse movimento como um rio, com muitos afluentes e correntes diferentes. Subjacente às múltiplas visões e abordagens do pan-africanismo e dos pan-africanos está a crença na unidade, história comum e propósito comum dos povos da África e da diáspora africana, bem como a ideia de que seus destinos estão interligados.

Até onde eu sei, ninguém usou o termo "internacionalismo negro" para descrever organizações ou reuniões. O termo "internacionalismo negro" foi cunhado na década de 1920 por Jeanne Nardal, originalmente da Martinica, mas ativa em Paris, ao lado de sua irmã Paulette. Ambos foram figuras importantes, empenhadas no desenvolvimento de um pan-africanismo francófono do qual emergiu o movimento da Negritude. Pode-se dizer que as irmãs Nadral são as mães da negritude. Jeanne usou o termo "internacionalismo negro" para se referir aos interesses e preocupações comuns de "negros de todas as origens e nacionalidades", a um "certo orgulho de ser negro" e ao "retorno à África, berço do negro, reminiscente do uma origem comum". Ela também tinha em mente o movimento do Congresso Pan-Africano, iniciado por W.E.B. Du Bois, e a influência da UNIA de Marcus Garvey. Mas essa expressão praticamente desapareceu depois que ela a usou pela primeira vez em La Dépêche Africaine, em 1928. Mais recentemente, foi redescoberta por acadêmicos americanos que a usam para se referir às lutas que "bem que estão localizadas em lugares muito particulares" são "ligados pela noção mais global de libertação negra". Esta é uma descrição do pan-africanismo, então não vejo razão para usar qualquer outro termo.

Selim Nadi

Para além da experiência histórica do pan-africanismo, até que ponto este conceito lhe parece relevante para pensar o mundo contemporâneo?

Hakim Adi

Se olharmos para a história do pan-africanismo, podemos ver que se trata dos esforços dos africanos de se unirem para enfrentar desafios comuns: escravidão, colonialismo, racismo, etc. Na medida em que tais questões e seus legados continuam existindo, acredito que o pan-africanismo continua relevante. No período após 1945, o pan-africanismo tornou-se mais firmemente entrincheirado na África, tornando-se parte das lutas anticoloniais em curso. Nkrumah e outros imaginaram uma África unida, os Estados Unidos da África, como um meio necessário para promover os interesses da África e alcançar a libertação total do continente africano. Duas organizações continentais, a OUA e a UA, foram estabelecidas desde então, ambas baseadas nos princípios do pan-africanismo, mas por várias razões não se pode dizer que a libertação total da África e de seus povos tenha sido alcançada. É por isso que se pode dizer que o pan-africanismo na sua forma continental continua a ser relevante e, como se sabe, a UA abarca toda a diáspora africana como uma sexta região. No mês passado, Julius Malema, o famoso político sul-africano, falou sobre a importância do pan-africanismo, a necessidade de uma língua franca na África e muitas outras questões relacionadas.

Selim Nadi

Por que você escreveu um capítulo inteiro sobre as lutas africanas no século XVIII?

Hakim Adi

Escrevi um capítulo introdutório que analisa a história do pan-africanismo a partir do século 18, embora alguns argumentem que houve manifestações dele antes dessa época. Eu simplesmente tentei mostrar que há exemplos dessa unidade e propósito comum entre os africanos, particularmente aqueles na Diáspora, muito antes do primeiro Congresso Pan-Africano em Londres em 1900. Olaudah Equiano e os Filhos da África em Londres no século XVIII é um bom exemplo de africanos, de diversas origens, se unindo para enfrentar problemas comuns colocados pela opressão. Eles se uniram para superar essa opressão comum, o tráfico de seres humanos da África através do Atlântico, naquela época. Menciono também a revolução na colônia francesa de Santo Domingo. Os africanos de diferentes línguas se organizaram, destruíram o sistema escravista, se libertaram, criaram a primeira república africana moderna, desenvolveram o primeiro conceito moderno de direitos humanos e estabeleceram um refúgio e um símbolo de liberdade para outros africanos. Também podemos dizer que a Revolução Haitiana é um dos primeiros exemplos de pan-africanismo em ação.

Selim Nadi

Qual era a relação de Du Bois com o pan-africanismo? O que ele quer dizer com pan-negroísmo?

Hakim Adi

A principal contribuição de Du Bois foi a organização de quatro congressos pan-africanos de 1919 a 1927. O primeiro ocorreu em Paris e pretendia apresentar a voz da África e dos africanos nas condições do pós-guerra. Naquela época, as forças vitoriosas da Primeira Guerra Mundial, França e Grã-Bretanha, dividiam o mundo entre si. É obviamente por isso que houve a guerra e Du Bois já havia escrito seu famoso artigo "As Raízes Africanas da Guerra". Eles redividiram a África, confiscaram as colônias da Alemanha e as incorporaram em seus próprios impérios coloniais. Du Bois (assim como Garvey) se opôs a essa engenharia reversa e argumentou que esses territórios "mandados" deveriam ser administrados por africanos. Não conseguiram fazer triunfar este argumento, por razões óbvias, mas defenderam-no nestes congressos e exigiram também várias reformas do sistema colonial, bem como uma campanha contra as manifestações de racismo anti-africano.

O pan-negroísmo de Du Bois pode ser visto como uma forma inicial de pan-africanismo. Ele usa esse termo em um artigo publicado em 1897, "a conservação das raças". Nele, ele está interessado principalmente na posição e no futuro dos afro-americanos, bem como na criação da American Negro Academy. Seu principal argumento é que os afro-americanos devem se unir e se ver como um só corpo e estabelecer suas próprias instituições para defender seus interesses. Especificamente, Du Bois e outros acreditavam que isso poderia ser feito por meio de uma educação superior esclarecida, através do que ele chamava de "décimo talento". Ao mesmo tempo, afirmou que os afro-americanos faziam parte da grande "raça" e que esse reconhecimento deveria nortear "a construção de um ideal racial na América e na África, para glória de Deus e exaltação do povo negro."

Selim Nadi

Quão importante foi o caso de Scottsboro e a invasão da Etiópia pela Itália fascista na década de 1930 para o desenvolvimento do movimento pan-africano?

Hakim Adi

Essas duas questões foram extensivamente discutidas em meu livro anterior, Pan-Africanism and Communism. Ambos geraram campanhas globais que uniram os africanos, assim como outros povos. Das duas, a invasão fascista foi a mais significativa, pois a Etiópia foi o único país independente da África a manter sua soberania por meio de proezas militares. Era um símbolo da liberdade africana. A invasão fascista não apenas destacou o perigo do fascismo e da guerra, mas também destacou as conquistas coloniais da Grã-Bretanha e da França. Ela contribuiu para o aumento da organização anticolonialista e pan-africana, incluindo voluntários para ir e lutar, que culminou no famoso Congresso Pan-Africano em Manchester em 1945. Este evento foi originalmente realizado em Paris, mas foi transferido para Manchester no último minuto - talvez por causa das melhores condições climáticas?

Selim Nadi

O capítulo 5 do seu livro centra-se na França: qual a importância da relação das organizações pan-africanas com o PCF no período entre guerras?

Hakim Adi

Não há dúvida de que o PCF e a Internacional Comunista tiveram considerável influência sobre os pan-africanos na França, como em outros países, no período entre guerras. O movimento comunista foi o único organismo internacional a ser abertamente anticolonial e antirracista e a oferecer uma visão de mundo e um programa de ação para acabar com o domínio colonial e o sistema imperial de estados. Além disso, o PCF apoiou a criação do Comitê de Defesa da Raça Negra, da Liga de Defesa da Raça Negra e do Sindicato dos Trabalhadores Negros. Os comunistas desempenharam um papel fundamental no movimento contra a invasão da Etiópia e tiveram claramente uma influência considerável sobre personalidades como Lamine Senghor, Aimé Césaire e outros, tanto na França como no mundo francófono, como André Aliker e Jacques Roumain.

Selim Nadi

Enquanto C.L.R. James publicou em 1938 um livro intitulado A History of Negro Revolt, ele renomeou este livro History of Pan-African Revolts (ed. Amsterdam, 2018) em 1969. Como explicar a importância assumida pelo pan-africanismo após a Segunda Guerra Mundial e em particular nas décadas de 1960 e 1970?

Hakim Adi

Como eu disse, um pan-africanismo centrado na África ganhou destaque após 1945, depois que alguns argumentaram que o pan-africanismo deveria voltar para casa. Foi uma corrente que uniu as lutas anticoloniais na África e apresentou a necessidade de os africanos se unirem para libertar todo o continente africano. Isso assumiu várias formas, os escritos e atividades de Nkrumah, a formação da OUA e da Organização Pan-Africana de Mulheres, os festivais culturais de Argel em 1969 e Lagos em 1977, o surgimento de uma consciência negra liderada por Steve Biko na África do Sul, apoio à luta contra o colonialismo na África Austral. Era uma época em que os movimentos populares avançavam, apesar das duras condições da Guerra Fria. Os anos 1960 foram a década da libertação africana, mas nos anos 1970 o regime fascista em Portugal também foi derrubado graças às lutas anticoloniais na África, Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, etc. Não podemos esquecer que houve também o importante 6º Congresso Pan-Africano na Tanzânia, em 1974. Estas décadas foram por isso muito importantes, a vitória parecia estar no horizonte, ao contrário de hoje, onde tudo parece estar em baixa.

Selim Nadi

Você poderia voltar à sua própria experiência de lutas pan-africanas?

Hakim Adi

Na minha opinião, o pan-africanismo é uma orientação, como eu disse, um rio com muitas correntes, mas a questão é: qual dessas correntes vai levar as coisas adiante? Assim, a minha própria experiência de colaboração com e dentro de organizações pan-africanas, particularmente na década de 1980, é que não basta ser pan-africano, o importante é saber que rumo tomar e que problemas resolver. Quem são os inimigos e quem são os aliados? Quais são as perspectivas de avançar a qualquer momento? Lembro que a Guerra Fria criou muita confusão naquela época. Qual foi o papel da União Soviética e de outros países da África? Foi positivo ou negativo? Houve uma tendência a se sentir compelido a tomar uma posição, mesmo em relação às organizações de libertação nacional na África. Então, na Grã-Bretanha, havia a questão das principais questões em torno das quais organizar as pessoas e como isso poderia ser feito. Acho que a conclusão dessa pergunta é que ela deve fazer parte de um movimento mais amplo de povos exigindo mudança e empoderamento e essa foi a percepção dos pan-africanos mais visionários ao longo da história, como Lamine Senghor, Jacques Roumain, Olaudah Equiano e aqueles que se reuniram em Manchester em 1945.

Selim Nadi

Como vê o futuro do pan-africanismo?

Hakim Adi

O futuro é do povo, disso tenho certeza. Os pan-africanos devem, portanto, organizar-se nesta perspectiva. Se tomarmos a África, fica claro que a luta anticolonial deve ser concluída e a luta é para livrar o continente das intervenções estrangeiras e de todos os vestígios do colonialismo. Na Europa, os pan-africanos podem desempenhar um papel para pôr fim à intervenção das grandes potências na África, abordando a questão do seu próprio empoderamento, ou seja, assumindo um papel de liderança neste movimento de empoderamento na França, Grã-Bretanha, etc Imagine se os pan-africanos estivessem entre os tomadores de decisão na Europa, em estados com governos anti-guerra, recusando-se por princípio a interferir nos assuntos africanos e dispostos a pagar reparações por crimes passados ​​e presentes.

Esta entrevista foi realizada em inglês e traduzida para o francês por Sophie Coudray e Selim Nadi para a revista Contretemps em março de 2019, em conexão com a publicação do livro de Hakim Adi, Pan-Africanism. A History editada pela Bloomsbury Publishing em 2018.

Colaboradores

Selim Nadi é Doutor em História e faz parte do comitê editorial das revistas QG Décolonial, Période e Contretemps. Ele também é membro do Parti des Indigènes de la République, uma organização antirracista e de esquerda na França.

Hakim Adi é Doutor em Filosofia e História Africana pela School of Oriental and African Studies da London University (Inglaterra) e Professor de História Africana e da Diáspora Africana na Universidade de Chichester (Inglaterra). É autor de livros de referência sobre a história das lutas anticoloniais, pan-africanismo e relações transnacionais entre os movimentos afro e o comunismo.

Adam McKay: Não é tarde demais para exigir uma resposta sã do governo às mudanças climáticas

O mundo logo ultrapassará 1,5 grau Celsius de aquecimento global além dos níveis pré-industriais, o que significa uma séria desestabilização do ecossistema da Terra. Mas ainda podemos mitigar os piores efeitos da mudança climática com uma ação drástica do governo.

Adam McKay

Jacobin

Nesta foto aérea, uma visão geral mostra a área inundada causada por fortes chuvas na região norte da Emilia Romagna, na Itália, durante um reconhecimento do território em 26 de maio de 2023. (Antonio Masiello / Getty Images)

Tradução / Nós podemos correr em círculos, mas não podemos nos esconder.

Provavelmente cruzaremos 1,5 graus celsius de aquecimento global além dos níveis pré-industriais nos próximos dois a quatro anos. Essa é a temperatura na qual os cientistas alertam, há algum tempo, que pode ocorrer uma desestabilização séria.

Embora as temperaturas globais sejam geralmente medidas como a linha de tendência de longo prazo, em vez da temperatura de um único ano, 1,5 grau Celsius é um limite assustador a ser ultrapassado.

Em vez de nos sentirmos impotentes, frustrados e apavorados agora, é de vital importância que nos lembremos de uma coisa muito importante: não deveria ser dessa forma.

Coletivamente, nos acostumamos muito com governos, mídia e indústria em todo o mundo raramente, ou nunca, resolvendo problemas. Parece que em 2023 eles existem principalmente para garantir que os mercados financeiros permaneçam robustos e que os trabalhadores permaneçam calados.

E como crescer com um pai viciado em jogos de azar faz uma família normalizar lances livres perdidos no último segundo, o que significa sem luz ou comida por um mês, ficamos confortáveis ​​com níveis ridículos de corrupção e incompetência de nossas instituições de elite.

Saladas de palavras, gestos incrementais, besteira absoluta e, acima de tudo, fingir que não há problema, inundam nosso discurso público dia após dia.

Então, apenas um lembrete de que não, você não é louco, há coisas realmente óbvias que deveríamos e poderíamos estar fazendo.

Aqui estão seis etapas reais nas quais qualquer governo semifuncional estaria trabalhando se não fosse invadido por bilhões de dólares em dinheiro escuro e macio:

1. Declarar uma emergência climática.

Como?

Estamos em uma emergência climática, então declare. E liberar poderes executivos, nos Estados Unidos, que permitem que um governo comece a resolver problemas em vez de qualquer coisa que esteja fazendo agora.

O fracasso de Joe Biden em declarar uma emergência e fazer um discurso histórico sobre o clima faz com que Neville Chamberlain pareça mais decisivo do que o Rock in San Andreas. Que vergonha para ele, e vergonha para uma equipe de imprensa que raramente ou nunca pergunta a ele sobre isso.

2. Nossa infraestrutura à prova de clima.

Devemos cobrir todas as estruturas possíveis em energia solar, eólica, armazenamento de bateria e pintura reflexiva para proteger as redes elétricas, reduzir as emissões de carbono e mitigar o calor extremo.

Como pagaríamos por isso?

Hum! Se ao menos houvesse um orçamento anual de quase US$ 800 bilhões para guerras que não estão acontecendo.

O orçamento dos militares!

Use um pedaço dele. Agora. Trocamos arados por espadas, mas agora é hora de trocar espadas por painéis solares e parques eólicos. Nossos militares estão sem uma missão clara há décadas, e a emergência climática é a missão de todas as missões.

3. Nacionalizar e transformar empresas de combustíveis fósseis em empresas de energia renovável.

Fizemos isso durante o colapso do mercado imobiliário de 2007 com bancos que se comportaram de maneira horrível e quebraram. O que as empresas petrolíferas estão fazendo não apenas põe em perigo a economia mundial, como também a destruirá totalmente.

Se isso parece drástico, lembre-se de que durante a Segunda Guerra Mundial não havia fábricas de tanques Panzer para os nazistas nos Estados Unidos ou no Reino Unido, embora eu tenha certeza de que teria sido bom "para os mercados".

4. Investir em tecnologia de remoção de carbono.

Devemos criar uma dúzia de laboratórios de pesquisa multibilionários para ampliar e aperfeiçoar a remoção de carbono.

Já estamos com metade da carga de carbono da extinção do Permiano, e fizemos isso em uma pequena fração do tempo.

Não há dúvida de que precisaremos remover o carbono da atmosfera. E há novas tecnologias promissoras sendo desenvolvidas que só carecem de financiamento e escala.

Esta é a resposta mágica?

Não. Mas pode ajudar, e temos que tentar.

5. Preparação.

Incêndios, inundações, mega-secas, tornados, escassez de alimentos, falta de energia e eventos perigosos de calor estão mudando para uma nova marcha em todo o mundo.

Vamos nos preparar com centros de resfriamento, novos sistemas de alerta meteorológico, quebra-mares, capacidades ampliadas de combate a incêndios, planos de evacuação, etc.

Esta preparação salvará inúmeras vidas.

6. Transformar como cultivamos alimentos e carne para reduzir as emissões de metano.

O segundo maior produtor de gases de efeito estufa atrás da queima de petróleo e gás?

Metano das centenas de milhões de animais que cultivamos para alimentação em escala industrial.

Existem alternativas. Alternativas muito saborosas.

Faça a transição dos agricultores de animais produtores de metano para proteínas livres de carbono com enormes subsídios e apoio de agências governamentais que oferecem suporte emergencial de engenharia e infraestrutura.

"Mas eu gosto de um bom bife!"

Eu também, mas também gosto de não ter minha casa pegando fogo nem mais um fio de cabelo.

Esta é apenas a minha lista e apenas um começo. Se você acha que é terrível, por favor, faça um melhor.

Se muitas pessoas começarem a falar sobre "o plano", talvez Washington DC pare de olhar para os números das pesquisas e coletar cheques em coquetéis e trabalhe em um também.

Muitos dirão: "Você tem que ser realista. Trabalhe com o sistema como ele é."

Gostaria de lembrá-los de que fazemos isso há quarenta anos. E os resultados não poderiam ser piores.

É hora de desafiar o sistema a fazer algo realmente radical: começar de fato a resolver problemas.

Colaborador

Adam McKay é um diretor de cinema e roteirista.

O árduo caminho para a integração sul-americana

Lula terá que convencer alguns governos de que a Unasul não é um projeto ideológico

Guillaume Long
Analista no Center for Economic and Policy Research (Washington DC, EUA); foi ministro, chanceler e embaixador do Equador


A cúpula dos presidentes da América do Sul em Brasília, nesta terça-feira (30), é de particular importância para o futuro da região. O presidente Lula tentará convencer os 12 presidentes dos países fundadores da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), ou aqueles que comparecerem, de que o regionalismo sul-americano deve ser a opção estratégica para enfrentar os desafios da nova ordem multipolar que está se formando. Também é preciso persuadi-los de que a Unasul é o guarda-chuva institucional sob o qual essa integração deve ser construída.

A tarefa não é fácil, especialmente considerando o contexto sul-americano atual, marcado pela desunião. Lula terá de demonstrar paciência e capacidade de escuta para que todos os chefes de Estado sintam que suas preocupações estão sendo levadas em conta. Mas, ao mesmo tempo, terá que enviar uma mensagem clara de que o trem da Unasul está em movimento e que o convite é para que os presidentes subam a bordo, não para que o parem.

O presidente Lula e o mandatário argentino, Alberto Fernandéz, em Buenos Aires, em janeiro. - Luis Robayo/AFP - AFP

O retorno do Brasil e da Argentina à Unasul, em abril do ano passado, deu nova relevância a uma organização que muitos consideravam moribunda. Hoje, dos 12 membros fundadores originais, 7 continuam membros, mas 5 —Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Uruguai— ainda não retornaram depois de denunciar o Tratado Constitutivo da Unasul, entre 2018 e 2020.

A primeira tarefa de Lula será convencer alguns governos mais conservadores de que a Unasul não é um projeto ideológico, muito menos um clube de amigos de esquerda. O conservadorismo político conseguiu estabelecer que somente a esquerda é "ideológica", enquanto a direita encarna o "pragmatismo". Lula terá de ignorar essa manifesta falácia intelectual para insistir fortemente na natureza estratégica —e não ideológica— de uma maior convergência entre os dois principais subsistemas sul-americanos, Atlântico e Pacífico, a fim de criar um espaço de governança regional de peso real no sistema internacional. É a geografia, não a política ou a ideologia, que define a composição da Unasul.

É provável que vários dos convidados concordem com a criação de um espaço sul-americano, mas talvez se oponham a fazê-lo por meio da Unasul, favorecendo, em vez disso, a criação de um novo modelo. De fato, foi assim que o Fórum para o Progresso e Integração da América do Sul, mais conhecido como Prosur, foi criado —uma estrutura vazia que agora deixou de funcionar.

Lula (à dir.), o ex-presidente da Venezuela Hugo Chavéz (centro) e o então secretário-geral da Unasul e ex-presidente da Argentina, Néstor Kirchner, durante evento em 2010 na capital venezuelana, Caracas - Divulgação Palácio Miraflores - 6.ago.2010/Reuters - Divulgação Palácio Miraflores/Reuters

Lula, no entanto, terá de insistir na Unasul que, significativamente, conta com um tratado, para o qual foram necessários muitos anos de árdua gestão política e diplomática: as cúpulas presidenciais em Brasília e Guayaquil, em 2000 e 2002; a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações na cúpula de Cochabamba, em 2004; a criação da Unasul na cúpula da Ilha Margarita, em 2007; a assinatura do Tratado Constitutivo da Unasul na cúpula de Brasília, em 2008; a ratificação gradual do tratado pelos 12 Parlamentos da região; e, com sua nona ratificação legislativa, a entrada em vigor do tratado em 2011.

Esse longo e tortuoso caminho em direção a uma Unasul juridicamente estabelecida permitiu que a organização tivesse um horizonte acordado, regras de coexistência e uma estrutura institucional incipiente, incluindo uma secretaria-geral e 12 conselhos setoriais que já estavam começando a moldar políticas conjuntas. Sem um tratado, não pode haver organização internacional, mas apenas presidências temporárias, gerenciadas pelo serviço de relações exteriores dos países que se sucedem a cada ano, sem dar à entidade criada sua própria força.

Ter um tratado significa gerar um compromisso vinculativo que transcende os altos e baixos políticos da região e de seus membros. Não existe nenhum projeto regional ou multilateral de longo prazo que não tenha um tratado para seu funcionamento.

Também é importante partir do fato de que o Tratado Constitutivo da Unasul ainda está —apesar dos esforços para acabar com ele— em pleno vigor e efeito. A interpretação que afirma que para que o tratado permaneça em vigor é necessário o mesmo número de membros para que as ratificações entrem em vigor, ou seja, nove membros, não tem fundamento e ignora o direito internacional. Como afirma a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: na ausência de uma cláusula de caducidade, o tratado permanece em vigor em nível internacional enquanto pelo menos dois Estados permanecerem membros da organização.

Portanto, a Unasul existe e atualmente tem sete membros. Lula deve, é claro, encantar, convencer, convidar; mas, ao mesmo tempo, deve ser claro sobre o caminho que o Brasil decidiu seguir.

Há vários incentivos para que os países que antes não gostavam da Unasul voltem gradualmente a participar da união. Projetos estratégicos —por exemplo, em infraestrutura, por meio de uma versão mais atualizada e ambientalmente sustentável da Iirsa (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana) ou do Cosiplan (Conselho de Infraestrutura e Planejamento)— devem atrair interesse. O efeito gravitacional do Brasil é uma realidade. Se o Brasil fizer da Unasul uma prioridade real de política externa, mais cedo ou mais tarde os países sul-americanos estarão inclinados a retornar à organização.

Na reunião presidencial desta terça-feira (30), maior abertura, flexibilidade e pluralismo devem prevalecer, mas sempre sem desespero: afinal, mesmo que várias nações se recusem agora, os países da região não acabarão se excluindo de um bloco regional sul-americano que lhes é benéfico. E aqueles que (ou os herdeiros imediatos daqueles que) saíram da Unasul para se diferenciar politicamente dos governos progressistas que os antecederam e se insinuaram temporariamente com o monroísmo radical do governo Trump nem sempre estarão no poder.

Além dos passos políticos e processuais que ainda precisam ser dados para relançar a Unasul, somente com a elaboração de novas políticas sul-americanas de segurança, saúde, infraestrutura e meio ambiente, entre tantas outras que a região necessita urgentemente, poderemos dizer que retomamos o caminho de nossa integração.

Lula defende moeda comum em abertura de reunião com líderes da América do Sul

Ao lado de representantes de 11 países, presidente pediu mobilização de bancos de fomento como BNDES

Renato Machado
Ricardo Della Coletta

Folha de S.Paulo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu nesta terça-feira (30), ao lado de 11 líderes sul-americanos, a integração da região e o legado da Unasul (União de Nações Sul-Americanas).

Lula disse ainda que os interesses que unem os países "estão acima de divergências ideológicas", uma reação às críticas de que a reativação do órgão responde a um contexto de viés à esquerda na região.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa na abertura de cúpula com líderes da América do Sul, no Palácio do Itamaraty, em Brasília - Evaristo Sá/AFP

"Permitir que as divergências se imponham teria um custo elevado, além de desperdiçar o muito que já construímos conjuntamente", disse o petista. Na linha de discursos anteriores, também propôs a criação de uma "unidade de referência comum para o comércio", para tentar reduzir a dependência do dólar.

A declaração aconteceu na abertura do encontro com representantes de todos os países da América do Sul, em Brasília, uma iniciativa do próprio Lula na busca de um novo modelo de integração regional.

Lula também usou a fala de abertura para se referir aos ataques golpistas de 8 de janeiro, quando as sedes dos Três Poderes no Brasil foram depredadas por bolsonaristas, ao dizer que as ofensivas a instituições democráticas "ofereceram uma trágica síntese da violência de grupos extremistas, que se valem de plataformas digitais para promover campanhas de desinformação e discursos de ódio".

Participaram da reunião Alberto Fernández (Argentina), Luís Arce (Bolívia), Gabriel Boric (Chile), Gustavo Petro (Colômbia), Guillermo Lasso (Equador), Irfaan Ali (Guiana), Mário Abdo Benítez (Paraguai), Chan Santokhi (Suriname), Luís Lacalle Pou (Uruguai) e Nicolás Maduro (Venezuela).

Apenas a presidente do Peru, Dina Boluarte, não compareceu à reunião, por estar legalmente impedida de deixar o país. Ela foi representada pelo presidente do Conselho de Ministros, Alberto Otárola.

O governo brasileiro buscava inicialmente relançar a Unasul, mas hoje há resistência de alguns países que consideram o organismo guiado apenas por ideologia. O órgão foi lançado em 2008, em um período considerado a época de ouro da esquerda sul-americana. Além de Lula, eram presidentes na ocasião alguns dos expoentes dessa corrente na região, como Cristina Kirchner (Argentina) e Hugo Chávez (Venezuela). O objetivo era criar um mecanismo regional sem a influência dos Estados Unidos.

O petista fez diversas referências à Unasul em seu pronunciamento e defendeu o legado da entidade, classificado por ele de "patrimônio coletivo". "Lembremos que ela [a Unasul] está em vigor. Sete países ainda são membros plenos. É importante retomar seu processo de construção." Apesar do aceno, afirmou também que é necessário "avaliar criticamente o que não funcionou e levar em conta essas lições", num reconhecimento das dificuldades para chegar a um consenso em torno do relançamento da organização.

Lula afirmou ainda que não pretende dizer aos países qual será o formato de integração, mas defendeu "mecanismos de coordenação flexíveis, que confiram agilidade e eficácia na execução de iniciativas". Nesse sentido, sugeriu que o modelo de integração não seja regido pela regra de consenso em todas as suas decisões, mas que ela se aplique apenas a "temas substantivos". Para o presidente brasileiro, isso é importante para evitar que "impasses nas esferas administrativas paralisem nossas atividades".

Ao final de sua fala, Lula propôs ainda a mobilização de bancos de fomento como CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina), Fonplata (Fundo Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata) e BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social); convergência regulatória; ação coordenada para o combate à crise climática; reativação do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde; constituição de um mercado sul-americano de energia e investimento na mobilidade regional de estudantes e pesquisadores, além da retomada da cooperação na área de Defesa.

Dada a resistência à Unasul, Lula já vem amenizando o discurso e trabalha com a possibilidade de criação de um novo órgão ou mesmo de um fórum de discussões permanente. O líder brasileiro inclusive já havia diminuído as expectativas de um anúncio mais concreto ao fim do encontro desta terça-feira.

Durante reunião com Maduro, na segunda (29), o petista afirmou que a cúpula "não decide nada" e é "uma prospecção de possibilidade". Afirmou ainda que a própria Unasul foi discutida por mais de quatro anos antes de se concretizar. "A ideia central é que precisamos formar um bloco para trabalharmos juntos, na questão econômica, de investimento, de meio ambiente. Isso não é difícil porque temos mais ou menos os mesmos problemas. Então eu penso que vamos ter sucesso amanhã na primeira reunião", disse Lula.

Logo após o petista, o presidente da Argentina, Alberto Fernández criticou durante a reunião o processo de desarticulação na América Latina, argumentando que ela segue uma lógica imposta pelos EUA. "Acabamos de vivenciar um processo impressionante de desarticulação na América Latina. Não posso deixar de mencionar como foram [para a região] os anos de Donald Trump na Presidência dos EUA."

O líder argentino também afirmou que o Grupo de Lima, fórum criado e integrado por quase todos os países da região durante o período de governos liderados por nomes mais à direita, tinha o único propósito de realizar uma "intervenção militar em um país sul-americano", uma referência à Venezuela

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