15 de março de 2012

Uma crise estrutural exige uma mudança estrutural

István Mészáros


Quando se afirma a necessidade de uma mudança estrutural radical é necessário que fique desde logo claro que não se trata de um apelo a uma utopia irrealizável. Bem pelo contrário, a característica essencial das teorias utopistas modernas é precisamente o projeto de que o melhoramento das condições de vida dos trabalhadores pode ser alcançado no quadro estrutural existente nas sociedades criticadas. Foi neste espírito que Robert Owen de New Lanark, que mantinha uma parceria insustentável com o filósofo utilitarista liberal Jeremy Bentham, tentou realizar as suas reformas sociais e pedagógicas. Ele exigia o impossível. Como sabemos, o sonante princípio moral utilitarista do “maior bem para o maior número” não teve, desde que Bentham o advogou, nenhuma tradução real. O problema é que, sem uma correta compreensão da natureza econômica e social da crise do nosso tempo – que hoje já não pode ser negada nem sequer pelos defensores da ordem capitalista, mesmo que estes continuem a rejeitar a necessidade de uma mudança estrutural – as hipóteses de chegar a bom porto ficam seriamente comprometidas. O perecimento do “Estado Social”, mesmo nos poucos países privilegiados onde chegou realmente a ser implementado, apresenta-se como uma grande lição neste domínio.

Permitam-me começar por citar um artigo recente dos editores de The Financial Times, jornal diário de referência da burguesia internacional.

Ao abordar os perigos das crises financeiras – reconhecidas agora até pelos seus editores como perigosas – terminam o seu editorial com as seguintes palavras: “Os dois lados (Democratas e Republicanos) são responsáveis pelo vazio de liderança e pela ausência de uma decisão responsável. É uma falha grave de governança e mais perigosa do que aquilo que Washington pensa.” [1] A sabedoria editorial não vai mais longe que isto no que toca à questão das “dívidas soberanas” e do crescente déficit orçamental. Aquilo que torna o editorial do Financial Times ainda mais vazio que o “vazio de liderança” que critica é o sonante subtítulo do artigo: “Washington deve parar de fazer pose e começar a governar”. Como se os editoriais deste tipo não contribuíssem mais para a pose do que para a governança propriamente dita. Pois o que está realmente em questão é o endividamento catastrófico da toda-poderosa “casa-mãe” do capitalismo global, os Estados Unidos da América, onde a dívida do governo (excluindo as dívidas individuais e privadas) atinge já o valor de 14 trilhões de dólares – valor que aparece projetado na fachada de um edifício público de Nova Iorque a atestar a tendência crescente da dívida.

O que pretendo sublinhar é que a crise com que temos de lidar é uma crise profunda e estrutural que necessita da adoção de medidas estruturais e abrangentes, de modo a atingirmos uma solução duradoura. É também necessário relembrar que a crise estrutural com que lidamos hoje não teve a sua origem em 2007, com o “rebentar da bolha” do mercado imobiliário americano, mas, pelo menos, quatro décadas antes. Eu já tinha exposto esta situação, nestes termos, em 1967, ainda antes da explosão do Maio de 68 em França [2], e escrevi, em 1971, no prefácio à terceira edição de Marx’s Theory of Alienation, que os acontecimentos e desenvolvimentos que então se davam: “testemunhavam de forma dramática a intensificação da crise estrutural global do capital”.

A este respeito é necessário clarificar as diferenças relevantes entre os vários tipos e modalidades de crise. Não é de somenos importância o fato de uma crise na esfera social poder ser considerada periódica (conjuntural), ou de os seus fundamentos serem muito mais profundos do que isso. Pois, como é evidente, a forma de lidar com uma crise estrutural, uma crise dos fundamentos, não pode ser conceitualizada nos mesmos termos e segundo as mesmas categorias que se utilizam para lidar com as crises periódicas ou conjunturais. A diferença fundamental entre estes dois tipos de crise contrastantes é que a crise periódica ou conjuntural pode ser compreendida e resolvida dentro da estrutura atual, enquanto que a outra afeta a própria estrutura estabelecida no seu todo.

Em termos gerais, a diferença não se reduz a uma mera questão de gravidade contrastante entre os dois tipos de crise. Uma crise periódica ou conjuntural pode revelar-se de uma gravidade dramática – como foi o caso da Grande Depressão de 1929-1933 – e ainda assim poder ser resolvida dentro dos parâmetros do sistema em que ocorre. Da mesma forma, mas em sentido inverso, o caráter “não explosivo” de uma crise estrutural prolongada, contrastando com as “grandes tempestades” (palavras de Marx) nas quais se dão e se resolvem as crises conjunturais, pode levar à concepção de estratégias erradas resultantes de uma má interpretação induzida pela ausência de “tempestades”; Como se a ausência dessas “tempestades” fosse a prova cabal da estabilidade infinita do “capitalismo organizado” e da “integração da classe operária” no sistema.

Nunca é demais assinalar que a crise que vivemos não pode ser compreendida se não a remetermos para a estrutura social no seu todo. Isto quer dizer que, para clarificarmos a natureza desta crise, cada vez mais grave e duradoura, que afeta hoje o mundo inteiro, devemos considerar a crise do sistema capitalista no seu todo. Pois a crise do capital que experimentamos hoje é uma crise estrutural que tudo abrange.

Vejamos, de forma tão breve e concisa quanto possível, as características fundamentais da crise estrutural com que lidamos.

A novidade histórica da crise atual manifesta-se em quatro aspectos:

  • O seu caráter universal, por oposição ao caráter circunscrito a uma esfera particular determinada (financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo específico da produção, ou aplicando-se a um tipo de trabalho, com a sua esfera específica de capacidades e níveis de produção, e não a outro, etc…). 
  • O seu âmbito é verdadeiramente global (no mais ameaçador sentido literal do termo) ao invés de estar confinado a um conjunto determinado de países (como estiveram as maiores crises do passado). 
  • A sua escala de tempo é extensa, contínua – permanente se preferirem – em vez de ser limitada e cíclica, como acabaram por ser as anteriores crises do capital. 
  • A sua forma de desdobramento, contrastando com os colapsos mais espetaculares e mais dramáticos do passado, pode ser considerada gradual, não excluindo no mesmo movimento a hipótese de violentas convulsões futuras: ou seja, quando a complexa máquina que se ocupa hoje da “gestão da crise”, acabar, com o inevitável agravamento futuro das contradições crescentes, por perder vapor.

Neste ponto é necessário tecer algumas considerações gerais sobre os critérios que definem uma crise estrutural, bem como acerca das formas que pode tomar a sua superação.

Para o pôr em termos mais simples e mais gerais, a crise estrutural afecta a totalidade de um complexo social, e todas as relações entre as partes que o constituem (ou sub-complexos), bem como a sua relação com outros complexos aos quais possa estar ligado. Em sentido inverso, uma crise não estrutural afeta somente as partes do complexo em questão, e assim, por mais grave que seja para as partes afetadas, não põe em perigo a sobrevivência da estrutura no seu todo.

Consequentemente, o deslocar das contradições é possível apenas enquanto a crise for parcial, relativa e controlável internamente pelo sistema, necessitando apenas de viragens - mesmo que de grandes dimensões - relativamente autônomas dentro do próprio sistema. Desta forma uma crise estrutural põe em questão a existência da totalidade do complexo envolvido, postulando a sua transcendência e a sua substituição por um complexo alternativo.

Este mesmo contraste pode ser revelado pelos limites imediatos que um complexo social particular tem, em qualquer período de tempo, quando comparados com aqueles que ficam além do seu alcance. Assim, uma crise estrutural não se prende aos limites imediatos, mas sim aos derradeiros limites de uma estrutura global... [3]

Assim, e num sentido óbvio, nada pode ser mais sério que a crise estrutural do modo de reprodução metabólico do capital (que define os derradeiros limites da ordem estabelecida). Mas, apesar da profunda seriedade nos seus parâmetros gerais, a crise estrutural pode, à primeira vista, não aparentar ser de uma importância assim tão decisiva quando comparada com as vicissitudes dramáticas de uma grande crise conjuntural. De fato, as “tempestades” com que se manifestam as crises conjunturais são bastante paradoxais, na medida em que, pelo seu modo de desdobramento, as crises conjunturais não só descarregam tais tempestade mas acabam, no mesmo movimento, por se resolver enquanto crises (na medida em que as circunstâncias o permitem). Isto é possível graças ao seu caráter parcial, que não implica os limites últimos da estrutura global estabelecida. Ao mesmo tempo, e pela mesma razão, as crises parciais podem apenas solucionar os problemas estruturais subjacentes - que inevitavelmente se continuarão a manifestar sob a forma de crises conjunturais - de forma temporária, parcial e bastante limitada: até a próxima crise estrutural começar a surgir no horizonte da sociedade.

Contrariamente, atendendo à natureza necessariamente complexa e prolongada de uma crise estrutural, que, não sendo episódica nem fugaz, se manifesta num tempo histórico determinado e é condicionada pelo sentido de uma época, é na inter-relação cumulativa do todo que a questão se decide, mesmo sob a (falsa) aparência de normalidade. Isto ocorre assim porque numa crise estrutural tudo está em jogo, envolvendo os mais abrangentes e derradeiros limites da ordem em questão, dos quais não pode haver uma instância particular simbólica. Sem a compreensão do todo das relações e implicações sistêmicas dos acontecimentos particulares, perderemos a noção das mudanças significativas reais e das correspondentes alavancas de uma possível intervenção estratégica que possa afeta positivamente o problema, em vista da sua transformação sistêmica. A nossa responsabilidade social clama por uma vigilância crítica e determinada das inter-relações cumulativas emergentes, que não se pode contentar nem reconfortar com a normalidade ilusória que antecede o desabamento do teto que jaz sobre as nossas cabeças.

É por demais necessário sublinhar que, durante as três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a expansão econômica dos países capitalistas de proa gerou a ilusão, mesmo junto dos mais distintos intelectuais de Esquerda, da superação histórica da “crise do capitalismo”, e do surgimento de uma nova fase de “capitalismo organizado avançado “. Gostaria de ilustrar este problema com algumas passagens da lavra daquele que foi um dos maiores intelectuais militantes do século XX: Jean-Paul Sartre; por quem, como ficou claro no livro que escrevi sobre a sua obra, tenho a maior das considerações. No entanto, a verdade é que a adoção da ideia de que pela superação da “crise do capitalismo” a ordem estabelecida se tornou num “capitalismo avançado” foi para Sartre fonte de grandes dilemas. Isto é ainda mais significativo dado que ninguém poderá negar o compromisso que Sartre mantinha com a busca de uma solução emancipatória viável, nem tão pouco a sua integridade moral. Em relação ao nosso problema é da maior utilidade recordar a importante entrevista que Sartre concedeu ao grupo italiano Manifesto – depois de clarificarmos a sua concepção das insuperáveis implicações negativas da sua própria categoria explicativa da institucionalização inevitavelmente prejudicial, que ele chamava “grupo em fusão” na sua Critica da Razão Dialética – na qual ele chegou a esta dolorosa conclusão: “Ao mesmo tempo que reconheço a necessidade de organização tenho de confessar que não vejo como é que podem ser resolvidos os problemas com os quais se confronta uma qualquer estrutura organizada” [4]

A dificuldade prende-se com o fato de os termos da análise social de Sartre serem concebidos de uma forma tal que vários fatores e correlações, que na realidade estão interligados, constituindo as diferentes faces de um mesmo complexo societal, são apresentados separadamente, por dicotomias e oposições, gerando um dilema insolúvel e condenando ao fracasso as forças emancipatórias sociais. Isto é claramente demonstrado na entrevista ao grupo Manifesto:

Manifesto: Em que bases precisas é que se pode preparar uma alternativa revolucionária? 
Sartre: Repito, é mais na base da “alienação” do que na base das “necessidades”. Em suma na reconstrução do individual e da liberdade, reconstrução essa tão necessária que as mais refinadas técnicas de integração não se podem dar ao luxo de ignorar. [5]

Desta forma Sartre, pela sua compreensão estratégica de como superar o caráter opressivo da realidade capitalista, constrói uma oposição indefensável entre a “alienação” dos trabalhadores e as suas “necessidades” alegadamente já satisfeitas, tornando muito difícil prever uma solução prática exequível. O problema não se prende apenas com a desmesurada credibilização das “refinadas técnicas de integração”, teoria sociológica refinada e muito em voga, mas muito superficial. Infelizmente, o problema é bem mais sério.

O real problema é o da validação do “capitalismo avançado”, e da tese subsequente da “integração” da classe operária no sistema, que Sartre partilha em larga medida com Herbert Marcuse. A verdade é que, em contraste com a integração (sem dúvida possível) de alguns trabalhadores na ordem capitalista, a classe trabalhadora - antagonista estrutural do capital, e que representa a única alternativa hegemônica historicamente possível ao sistema do capital - não pode ser integrada na estrutura exploradora e alienante de reprodução social do capital. O que torna impossível tal assimilação é o antagonismo estrutural subjacente entre capital e trabalho que decorre necessariamente da realidade das relações de classe, isto é, da incontornável relação de domínio e subordinação que entre elas existe.

Neste discurso, até a plausibilidade mínima da falsa alternativa, de tipo Sartriano e Marcusiano, entre contínua alienação e “satisfação das necessidades” é “estabelecida” com base na descarrilhante compartimentalização das (suicidarias) indeterminações estruturais do capital, globalmente implementadas e globalmente insustentáveis, das quais depende a mais elementar viabilidade sistêmica da hegemônica ordem social vigente do capital. Assim é extremamente problemático separar o “capitalismo avançado” das chamadas “zonas marginais” e do “terceiro mundo”. Como se a ordem reprodutiva do “capitalismo avançado” se pudesse sustentar por um qualquer período de tempo, e no futuro mesmo indefinidamente, sem a exploração constante das “zonas marginais” e sem o domínio imperialista do “terceiro mundo”.

É aqui necessário citar a passagem na qual Sartre trata destes problemas. Essa passagem reveladora é a seguinte:

O capitalismo avançado, em relação com a consciência que tem da sua própria condição, e apesar das enormes disparidades na distribuição de dividendos, consegue satisfazer as necessidades elementares da maior parte da classe operária – ficam ainda por satisfazer as zonas marginais, 15 por cento dos trabalhadores dos Estados Unidos, os negros e os imigrantes, os idosos e, a uma escala global, o “terceiro mundo”. Mas o capitalismo satisfaz certas necessidades primárias, e também satisfaz certas necessidades artificialmente criadas, como por exemplo a necessidade de ter um carro. Esta situação, obrigou-me a rever a minha “teoria das necessidades” uma vez que estas necessidades já não estão, no “capitalismo avançado”, em oposição fundamental ao sistema. Pelo contrário, elas tornaram-se, pelo menos em parte e quando controladas pelo sistema, num instrumento de integração do proletariado em certos processos produzidos e dirigidos pelo lucro. O trabalhador esgota-se para produzir um carro e para ganhar o dinheiro para poder comprar um carro; esta compra dá-lhe a impressão de ter suprimido uma necessidade sua. O sistema explora-o ao mesmo tempo que lhe oferece um objetivo e a possibilidade de o alcançar. A consciência do caráter intolerável do sistema já não deve ser procurada na impossibilidade de satisfazer as necessidades básicas, mas sobretudo na consciência da alienação – por outras palavras, no fato de que esta vida não merece ser vivida e não tem significado, que este mecanismo é enganador, que estas necessidades são falsas, artificialmente criadas, extenuantes e que só servem uma lógica de lucro. Mas unir uma classe com base nisto é ainda mais difícil. [6]

Se aceitarmos sem mais esta caracterização da ordem do “capitalismo avançado”, a tarefa de produção de uma consciência emancipatória não é apenas “mais difícil”, é impossível. Mas o fundamento dúbio a partir da qual podemos chegar a uma tal conclusão apriorística, pessimista e derrotista – que prescreve, do alto da “nova teoria das necessidades” formulada pelos intelectuais, a renúncia dos operários, às suas “ávidas necessidades artificiais”, representadas pelos carros, e a sua substituição pelo postulado, completamente abstrato, de que “esta vida não vale a pena ser vivida e não tem sentido” (um postulado nobre, mas consideravelmente abstrato, e de resto efetivamente contrariado pela necessidade real que têm os membros da classe trabalhadora de assegurar as condições de uma existência economicamente sustentável) – é simultaneamente a aceitação de afirmações insustentáveis e a omissão, igualmente inaceitável, de algumas das mais vitais determinações do atual sistema do capital na sua crise estrutural historicamente irreversível.

Desde logo, falar de “capitalismo avançado ” – quando o sistema do capital, enquanto forma de reprodução social metabólica, se encontra na fase descendente do seu desenvolvimento histórico, e, portanto, é avançado apenas de um ponto de vista capitalista e sob nenhuma outra forma, visto que apenas se mantém de uma forma cada vez mais destrutiva e, em última análise, autodestrutiva – é muito problemático. Outra asserção: a caracterização da esmagadora maioria da humanidade – a categoria da pobreza, que inclui “os negros e os imigrantes”, os “idosos” e “em grande escala, o terceiro mundo” – como pertencente a “zonas marginais” (no sentido dos “marginais” de Marcuse), é igualmente insustentável. Pois, na realidade, é o “mundo capitalista avançado” que constitui uma margem privilegiada no seio do sistema, que é, a longo prazo, totalmente insustentável, e que nega à maior parte do mundo as suas necessidades mais básicas. Esta é a verdadeira margem e não aquilo que Sartre descreve na sua entrevista ao grupo Manifesto como constituindo as “zonas marginais”. Mesmo no que diz respeito aos Estados Unidos, a margem de pobreza é consideravelmente subestimada: apenas 15% da população. Para além disso, caracterizar os carros dos operários como meras “necessidades artificiais” que apenas “servem o lucro” é ter um ponto de vista completamente unilateral. Pois, ao contrário de muitos intelectuais, nem todos os operários relativamente bem pagos, para já não falar da classe trabalhadora como um todo, têm a sorte de ter o seu local de trabalho ao lado da porta do seu quarto.

Para além do mais, algumas das mais graves falhas e contradições estruturais encontram-se surpreendentemente ausentes da descrição feita por Sartre do “capitalismo avançado”, o que esvazia virtualmente o conceito de sentido. Assim, uma das mais importantes necessidades, sem a qual nenhuma sociedade – passada, presente ou futura – pode sobreviver, é a necessidade de trabalhar, tanto para os indivíduos produtivamente ativos – reunidos numa ordem social completamente emancipada – como para a sociedade em geral, na sua relação sustentável com a natureza. A incapacidade congênita do sistema do capital para resolver este problema estrutural fundamental, que afeta todas as categorias de trabalhadores, não apenas no “terceiro mundo”, mas também nos mais privilegiados países do “capitalismo avançado”, uma tal incapacidade, que leva a um aumento perigoso do desemprego, constitui um dos limites absolutos do sistema do capital no seu todo. Outro problema sério, que reforça a inviabilidade presente e futura do sistema do capital é o peso cada vez maior dado a sectores parasitários na economia – como a especulação aventureira, produtora de crise, que infesta (sob a forma de uma necessidade objetiva, muita vezes erroneamente representada sobre a forma de erro ou falha pessoal) o sector financeiro, e a fraude institucionalizada que se lhe associa – em contraste com os ramos produtivos da economia social, necessários à satisfação das necessidades humanas genuínas. Uma tal configuração manifesta um acentuado, e ameaçador, contraste com a fase ascendente do desenvolvimento histórico do capital, quando o prodigioso dinamismo expansionista do sistema (incluindo a revolução industrial) era devido a feitos produtivos socialmente viáveis e valorizáveis. Temos ainda que adicionar a tudo isto os fardos econômicos perdulários impostos à sociedade de forma autoritária pelo estado e pelo complexo militar/industrial – a permanente indústria de armamento e as guerras correspondentes – como parte integral do perverso “crescimento econômico” do “capitalismo avançado organizado”. E, para mencionar apenas mais uma das consequências catastróficas do desenvolvimento sistêmico do capital “avançado”, devemos ter em mente a perdulária transgressão ecológica do nosso insustentável modo de reprodução social metabólico num planeta finito [7] a sua exploração gananciosa dos recursos materiais não-renováveis e a cada vez mais perigosa destruição da natureza. Dizê-lo não é tentar parecer sábio depois do fato consumado. Escrevi na mesma altura em que Sartre deu a sua entrevista ao grupo Manifesto que:

Outra contradição básica do sistema capitalista de controlo é que ele não pode separar “avanço” de destruição, nem “progresso” de desperdício – independentemente de quão catastrófico seja o resultado. Quanto mais liberta o seu poder produtivo, mais desencandeia o seu poder destrutivo; e quanto mais aumenta o seu volume de produção, mais é obrigado a enterrar tudo sob montanhas de desperdícios. O conceito de economia é radicalmente incompatível com a “economia” da produção do capital que, necessariamente, junta ultraje ao ultraje ao usar primeiro, num ganancioso desperdício, os recursos limitados do nosso planeta, para depois agravar o resultado através da poluição e do envenenamento do ambiente humano, com a sua produção massiva de lixos e eflúvios. [8]

Assim, as asserções problemáticas e as importantes omissões presentes na caracterização sartriana do “capitalismo avançado” enfraquecem consideravelmente o poder de negação do seu discurso emancipatório. Baseando-se num princípio dicotômico, que afirma repetidamente “a irredutibilidade da ordem cultural à ordem natural”, Sartre procura sempre soluções de “ordem cultural”, ou seja, ao nível da consciência individual, através do trabalho intelectual comprometido da “consciência sobre a consciência”. Sugere assim que a solução está num aumento da “consciência da alienação” - na “ordem cultural” - ao mesmo tempo que rejeita a viabilidade de uma estratégia revolucionária baseada numa necessidade de “ordem natural”. As necessidades materiais, aliás consideradas como estando já satisfeitas para a maioria dos trabalhadores, constituiriam um “mecanismo ilusório e falso” e um “instrumento de integração do proletariado”.

Sartre está certamente bastante preocupado com o desafio que representa responder à questão de como aumentar “a consciência do caráter intolerável do sistema”. Mas, como é inevitável notar, a própria base tida como condição vital para o sucesso de tal empresa – o poder da “consciência da alienação” sublinhado por Sartre – necessita fortemente de um suporte material. De outra forma, a ideia (mesmo deixando de lado a fraqueza da dita base e a sua circularidade auto-referencial) de que tal consciência “pode prevalecer face ao caráter intolerável do sistema” está condenada a ser posta de lado, como um ideal nobre, mas ineficaz. As declarações pessimistas de Sartre a propósito de necessidade de vencer a realidade materialmente e culturalmente destrutiva, mas solidamente estruturada, deste “conjunto miserável que é o nosso planeta”, com as suas “horríveis, feias e más determinações, sem esperança”, mostram que esta questão é problemática mesmo se vista do interior do sistema de representações sartriano.

Nesta medida, a questão primeira diz respeito à demonstrabilidade, ou não, do caráter objetivamente intolerável do sistema, pois se tal demonstração carecer de substância, como é proclamado pela noção de um “capitalismo avançado” capaz de satisfazer todas as necessidades materiais, com a mera exceção das “zonas marginais”, então “o longo e paciente trabalho de construção da consciência” advogado por Sartre torna-se quase impossível. Este é o tal embasamento objetivo que é necessário (e atualmente pode) ser estabelecido dentro dos seus próprios termos de referência, e que requer a desmistificação radical do caráter cada vez mais destrutivo do “capitalismo avançado”. A ” consciência do caráter intolerável do sistema” só pode ser construída sobre este terreno material – que inclui o sofrimento causado pela incapacidade do capital “avançado” satisfazer mesmo as necessidades mais elementares nas suas “zonas marginais”, o que é claramente demonstrado pelos motins alimentares que têm lugar em vários países – de forma a poder ultrapassar a dicotomia (postulada) entre a ordem cultural e a ordem natural.

Na sua fase ascendente, o sistema do capital pôde basear os seus feitos produtivos num dinamismo expansionista interno – sem ser ainda imperiosa uma orientação monopolista/imperialista que permita aos países mais avançados garantir militarmente o domínio do mundo. No entanto, na senda da circunstância historicamente irreversível que é a sua entrada numa fase produtiva descendente, o sistema do capital tornou-se inseparável de uma necessidade, cada vez mais intensa, de expansão militarista/monopolista e de uma distensão constante de seu quadro estrutural, tendendo, na sua lógica produtiva interna, para o estabelecimento criminoso e perdulário de uma “indústria do armamento permanente”, que vai de par com as guerras que necessariamente se lhe encontram associadas.

Na verdade, ainda antes do estopim da Primeira Guerra Mundial, Rosa Luxemburgo havia identificado claramente a natureza deste fatídico desenvolvimento monopolista/imperialista, rumo a uma orientação destrutivamente produtiva, ao escrever no seu livro A acumulação de Capital que: “O Capital em si mesmo controla, em última análise, o movimento rítmico da produção militar através do poder legislativo e da imprensa, cuja função é a de moldar a chamada “opinião pública”. É por isso que esta região particular de acumulação capitalista parece, à primeira vista, capaz de uma expansão infinita.” [10]

Por outro lado, a utilização cada vez mais perdulária de energia e de recursos materiais vitais e estratégicos, manifesta não apenas a articulação cada vez mais destrutiva das determinações estruturais do Capital no plano militar (através de uma manipulação legislativa da “opinião pública” que nunca é questionada, e muito menos regulamentada), mas também a cada vez maior usurpação da natureza. Ironicamente, mas de forma nada surpreendente, este momento do desenvolvimento histórico regressivo do sistema do Capital trouxe também consigo amargas consequências para a organização internacional do trabalho.

Com efeito, esta nova articulação do sistema do capital, iniciada no último terço do século XIX, com a sua fase imperialista monopolista intimamente ligada a um domínio global total, deu inicio a uma nova modalidade de dinamismo expansionista (ainda mais antagonista e, em última análise, insustentável), que dá lucros esmagadores a um punhado de países imperialistas privilegiados, e que, assim, adia o “momento da verdade”, inseparável da irreprimível crise estrutural vivida pelo sistema nos nossos dias. Este tipo de desenvolvimento imperialista monopolista impulsionou inevitavelmente a possibilidade de uma acumulação e expansão capitalista militar, independentemente do preço a pagar pela destrutividade cada vez maior deste novo dinamismo, que assumiu já a forma de duas guerras mundiais devastadoras, bem como a da total aniquilação da humanidade implícita numa terceira guerra mundial, isto sem contar com a destruição da natureza, que se tornou evidente na segunda metade do séc. XX.

Hoje em dia, estamos assistindo ao aprofundamento da crise estrutural do sistema do capital. A sua destrutividade é visível em todo o lado, e não dá sinais de diminuir. Para o futuro, é crucial a forma como conceitualizamos esta crise, no sentido de encontrar uma solução. Pelo mesmo motivo, é também crucial reexaminar algumas das mais significativas soluções propostas no passado. Aqui não nos será possível mais do que mencionar, com uma brevidade estenográfica, os pontos de vista contrastantes que foram defendidos no passado e indicar a sorte que conhecem nos dias de hoje.

Em primeiro lugar, há que recordar que é mérito do filósofo liberal John Stuart Mill ter notado quão problemático poderia ser um crescimento capitalista infinito, consideração que o levou a propor como solução um “estado estacionário da economia”. Naturalmente, um tal “estado estacionário” no quadro do sistema do capital não é mais do que uma ilusão, uma vez que é totalmente incompatível com o imperativo de expansão e acumulação do capital. Mesmo atualmente, quando tanta destruição é causada por um crescimento inadequado e pelas mais ineficazes utilizações dos nossos recursos energéticos e estratégicos vitais, a mitologia do crescimento constante é constantemente reafirmada, juntamente com a projeção ideal de uma “redução da pegada ecológica” em 2050, quando na realidade se está a seguir uma direção completamente contrária a um tal objetivo. Assim, a realidade do liberalismo revelou-se ser a destrutividade agressiva do neoliberalismo.

Um destino semelhante teve a perspectiva socialdemocrata. Marx formulou claramente os seus receios acerca deste perigo na sua Critica do Programa de Gotha, mas eles foram totalmente ignorados. Também aqui a contradição entre a promessa Bernsteiniana de um “socialismo evolutivo” e a sua realização prática se revelou impressionante. E isto não apenas graças à capitulação dos partidos e governos sociais-democratas face ao engodo das guerras imperialistas, mas também através da conversão da socialdemocracia em geral – incluindo o “New Labour” britânico – a versões mais ou menos evidentes de neoliberalismo, levando ao abandono não apenas do “caminho do socialismo evolutivo”, mas de toda e qualquer promessa de reforma social significativa.

Para além disso, uma solução muito propagandeada, após a II Guerra Mundial, às desigualdades crescentes do sistema do capital, foi a difusão mundial do Estado Social. No entanto, a realidade prosaica deste alegado feito histórico é hoje em dia evidente, não só na total incapacidade para instituir o dito Estado Social onde quer que seja no chamado “Terceiro Mundo”, mas através da liquidação, em curso, das conquistas relativas desse Estado Social do pós-guerra – nos campos da segurança social, saúde e educação – até mesmo nos poucos países privilegiados onde ele alguma vez chegou a ser instituído.

E, claro, não podemos ignorar a promessa (feita por Stálin e outros) de realizar a fase mais elevada do socialismo através da derrubada e da abolição do capitalismo, pois, tragicamente, sete décadas após a Revolução de Outubro, os países da antiga União Soviética e da Europa de Leste vivem uma restauração do capitalismo na sua forma regressiva neoliberal.

O denominador comum de todas estas tentativas – apesar das suas diferenças fundamentais – é que todas elas tentaram alcançar os seus objetivos do interior do quadro estrutural da ordem metabólica social estabelecida. Todavia, como nos ensina a dolorosa experiência histórica, o nosso problema não é simplesmente “derrubar o capitalismo”. Pois, mesmo que um tal objetivo possa ser alcançado numa determinada extensão, ele está condenado a ser um feito muito instável, visto que tudo o que é derrubado pode também ser restaurado. A verdadeira – e muito mais difícil – questão, é a da necessidade de uma mudança estrutural radical.

O significado tangível de uma tal mudança estrutural é a completa erradicação do capitalismo do processo social metabólico, ou, por outras palavras, a erradicação do capital do processo metabólico de reprodução societal.

O capital é em si mesmo um modo de controle global; o que significa que ou ele controla tudo ou implode enquanto sistema de controle societal reprodutivo. Consequentemente, o capital, enquanto tal, não pode ser controlado nalguns dos seus aspectos, enquanto outros são deixados de lado. Todas as medidas e modalidades experimentadas para “controlar” as várias funções do capital de forma permanente, falharam. De acordo com a sua incontrolabilidade estrutural – que significa que não é concebível, dentro do quadro estrutural do sistema do capital, uma qualquer alavancagem que permita manter o próprio sistema controlado de forma duradoura – o capital deve ser completamente erradicado. Este é o sentido central do trabalho de Marx.

Nos nossos dias, a questão do controle – através de uma mudança estrutural que responda ao aprofundamento da crise estrutural – tornou-se urgente, não só no sistema financeiro, devido ao desperdício de bilhões de dólares, mas em todos os sectores. Os mais importantes jornais financeiros capitalistas queixam-se de que “a China está sentada sobre três milhões de milhões de dólares em dinheiro”, alimentando ilusões de que, através de um “melhor uso desse dinheiro”, possa surgir uma solução. Mas a dura verdade é que o endividamento global crescente do capitalismo eleva-se a um valor dez vezes superior ao dos dólares “não usados” pela China. Para além disso, mesmo que o enorme montante da dívida pudesse ser eliminado de alguma forma, ainda que ninguém saiba dizer como, a verdadeira questão mantém-se: Como é que ele foi gerado e como podemos estar seguros que não o voltará a sê-lo no futuro? É por isso que a dimensão produtiva do sistema – nomeadamente a própria relação do capital – deve sofrer uma mudança fundamental no sentido de ultrapassar a crise estrutural através de uma mudança estrutural apropriada.

A dramática crise financeira que vivemos durante os últimos três anos é apenas um aspecto das três vertentes da destrutividade do sistema do capital:

  • No campo militar, as intermináveis guerras que o capital tem gerado desde que surgiu, nas últimas décadas do séc. XIX, o imperialismo monopolista, e as ainda mais devastadoras armas de destruição em massa surgidas nos últimos sessenta anos. 
  • A intensificação do impacto destrutivo do capital no domínio ecológico, que afeta diretamente e põe em risco a base mais elementar da própria existência humana; e 
  • No domínio da produção material, um desperdício cada vez maior, resultante do desenvolvimento de uma “produção destrutiva”, que se substitui à anteriormente louvada, “destruição produtiva” ou “criativa”. 

Estes são os graves problemas sistêmicos da nossa crise estrutural, que apenas podem ser resolvidos através de uma mudança estrutural abrangente.

Como conclusão, gostaria de citar as últimas cinco linhas de Dialéctica da Estrutura e da História, onde se lê:

Naturalmente, a dialética histórica, por si só e em abstrato, não nos pode garantir um desfecho positivo. Esperar tal coisa seria renunciar ao nosso papel no desenvolvimento da consciência social, que é parte da dialética histórica. A radicalização da consciência social num sentido emancipatório é o que precisamos, mais do que nunca, para o futuro. [11]

Notas:

1. “Breaking the US budget impasse,” The Financial Times, June 1, 2011, http://ft.com.
2. Ver a minha entrevista de 2009 ao Denate Socialista, republicada como “The Tasks Ahead,” em The Structural Crisis of Capital (New York: Monthly Review Press, 2010), 173–202.
3. Esta citação é retirada da secção 18.2.1 de Beyond Capital (New York: Monthly Review Press, 1995), 680–82.
4. Entrevista de Sartre ao grupo italiano Manifesto publicada em: “Masses, Spontaneity, Party” in Ralph Milliband and John Saville, eds., The Socialist Register, 1970 (London: Merlin Press, 1970), 245.
5. Ibid., 242.
6. Ibid., 238-39.
7. A gravidade deste problema não pode continuar a ser ignorada. Para nos apercebermos da sua magnitude, é suficiente citar um excerto de um excelente livro que nos dá uma visão global do desenvolvimento do processo de destruição da natureza, na medida em que ele resulta do ultrapassar de determinadas barreiras proibitivas traçadas pelas ciências do ambiente: “estes limiares já foram nalguns casos ultrapassados e, noutros, sê-lo-ão se se mantiver o curso atual do desenvolvimento econômico. Para além disso, isto pode ser reconduzido, em todos os casos, a uma causa primeira: o padrão recorrente do desenvolvimento socioeconômico global, ou seja, o modo de produção capitalista e as suas tendências expansionistas. O problema pode ser designado, em termos globais, como “brecha ecológica global”, se nos referirmos à quebra generalizada da relação humana com a natureza que nasce de um sistema alienado de acumulação capitalista infinita. Tudo isto sugere que o uso do termo Antropoceno para descrever uma nova era geológica, que se substitui ao Holoceno, é simultaneamente a descrição de um novo fardo sobre os ombros da Humanidade e o reconhecimento de uma crise imensa – um acontecimento potencialmente terminal na ordem da evolução geológica, que poderá destruir o mundo tal como o conhecemos. Por um lado, tem-se verificado uma grande aceleração do impacto humano no sistema planetário desde a revolução industrial e, mais particularmente, desde 1945 – ao ponto de os ciclos bio-geo-químicos, a atmosfera, o oceano e o sistema terrestre como um todo já não poderem ser vistos como impermeáveis à atividade econômica humana. Por outro lado, o curso atual dos acontecimentos não poderá tanto ser descrito como o aparecimento de uma nova era geológica estável (o Antropoceno), mas mais propriamente como um Holoceno terminal, ou, mais sinistramente, como um fim do Quaternário, o que é uma forma de nos referirmos às extinções em massa que geralmente separam as eras geológicas. Os limites e pontos de ruptura planetários, que levam à degradação das condições de vida na Terra, podem ser alcançados dentro em breve, diz-nos a ciência, se se prosseguir o rumo atual. O Antropoceno pode ser o separador mais breve, um momento rapidamente aniquilado na linha do tempo geológico.” John Bellamy Foster, Brett Clark and Richard York, The Ecological Rift: Capitalism’s War on the Earth (New York:Monthly Review Press, 2010), 18-19.
8. Ver a minha conferência em memória de Isaac Deutscher The Necessity of Social Control na London School of Economics em 26 de Janeiro de 1971.Reeditada em Beyond Capital, 872-97.
9. Sartre, 239.
10. Rosa Luxemburg, The Accumulation of Capital (London: Routledge, 1963), 466.
11. István Mészáros, Social Structure and Forms of Consciousness, vol. 2: The Dialectic of Structure and History (New York: Monthly Review Press, 2011), 483

Redescobrindo a pobreza

Barbara Ehrenreich (*)


Miséria à Americana: Vivendo de Subempregos nos Estados Unidos

Tradução / Faz exatamente 50 anos que os estadunidenses, ou pelo menos os não-pobres entre eles, “descobriram” a pobreza, graças ao envolvente livro de Michael Harrington, The Other America (A Outra América). Se atualmente esta descoberta parece um pouco exagerada, como a “descoberta” de Colombo da América, é porque os pobres, de acordo com Harrington, estavam tão “escondidos” e “invisíveis” que foi preciso a imprensa de esquerda fazer uma cruzada para descobri-los.

O livro de Harrington chocou uma nação que até então se orgulhava de sua ausência de classes e até mesmo queixava-se dos efeitos da riqueza abundante. Ele estimava que um quarto da população vivia na pobreza – negros dos bairros pobres, brancos da região de Apalaches, trabalhadores agrícolas e os americanos idosos entre eles. Os estadunidenses não poderiam mais vangloriar-se, como o Presidente Nixon fez em seu “debate doméstico” com o primeiro ministro soviético Nikita Khrushchev em Moscou apenas três anos antes, sobre os esplendores do capitalismo americano.

Ao mesmo tempo em que deu seu soco no estômago, The Other America também ofereceu uma visão diferente da pobreza, que parecia destinada a confortar os que já estavam confortáveis. Os pobres eram diferentes do resto de nós, alegou. Radicalmente diferentes, e não apenas no sentido de que eles foram privados, prejudicados, mal alojados ou mal alimentados. Eles se sentiam diferentes, pensavam diferente, e buscavam estilos de vida caracterizados por uma visão estreita e pela intemperança. Como Harrington escreveu “Existe… uma linguagem dos pobres, uma psicologia dos pobres, uma visão de mundo dos pobres. Ser pobre é ser um estrangeiro em seu próprio país, para crescer em uma cultura que é radicalmente diferente da que domina a sociedade”.

Harrignton realizou um trabalho tão bem feito, ao fazer os pobres parecerem “diferentes”, que quando li seu livro em 1963 não reconheci nele meus próprios antepassados e familiares. Tudo bem, alguns deles levavam vidas desordenadas pelos padrões da classe média, envolvendo bebida, brigas e filhos fora do casamento. Mas eles também eram trabalhadores e em alguns casos ferozmente ambiciosos – qualidades que Harrington parecia reservar para os economicamente privilegiados.

De acordo com ele, o que distinguia os pobres era sua singular “cultura da pobreza”, conceito que pegou emprestado do antropólogo Oscar Lewis, que o obteve a partir de seus estudos a respeito de moradores de favelas mexicanas.

A cultura da pobreza deu a The Other America um toque moderno acadêmico, mas também deu ao livro uma mensagem dupla e conflitante: “Nós” – os leitores sempre presumivelmente ricos – precisávamos encontrar alguma forma de ajudar os pobres, mas também precisávamos entender que havia algo errado com eles, algo que não podia ser curado com uma simples redistribuição da riqueza. Pense em um liberal fervoroso que encontra um mendigo, e é movido por pena pela óbvia miséria do homem, mas se recusa a oferecer um trocado – uma vez que o mendigo pode, afinal, gastar o dinheiro em bebida.

Em sua defesa, Harrington não quis dizer que a pobreza foi causada pelo que ele chamou de tendências distorcidas dos pobres. Mas ele certamente abriu as comportas para essa interpretação. Em 1965, Daniel Patrick Moynihan – um liberal esporádico e um dos companheiros de bebida de Harrington na famosa taberna no Cavalo Branco em Greenwich Village – jogou a culpa da pobreza do centro da cidade no que ele viu como sendo a estrutura precária da “Família Negra”, abrindo caminho para décadas de culpabilização das vítimas. Poucos anos depois do Relatório Moynihan, Edward C. Banfield urbanista de Harvard, que passou a servir como um conselheiro de Ronald Reagan, sentiu-se livre para afirmar que:

"As vidas individuais de classe baixa cada vez mais... impõem ao governo seu comportamento. Ele é portanto radicalmente imprudente: o que ele não pode consumir imediatamente considera sem valor... [Ele] tem uma percepção frágil, atenuada de si mesmo."

Nos casos mais difíceis, opinou Banfield, o pobre pode ter de ser cuidado em "semi-instituições"... E aceitar certa vigilância e supervisão de um semi-assistente-social-semi-policial.

Na era Reagan, a “cultura da pobreza” tornou-se o ponto nevrálgico da ideologia conservadora: a pobreza não foi causada por baixos salários ou pela falta de empregos, mas por más atitudes e estilos de vida defeituosos.

Os pobres eram imorais, promíscuos, mais propensos aos vícios e ao crime, incapazes de demonstrar gratidão, ou possivelmente até mesmo de ajustar um despertador. A última coisa que poderia ser confiada a eles era dinheiro. Na verdade, Charles Murray argumentou em seu livro Losing Ground, em 1984, que qualquer tentativa de ajudar aos pobres com as suas circunstâncias materiais só teria a consequência inesperada de aprofundamento da sua depravação.

Por isso, foi com um espírito de justiça e até mesmo compaixão que Democratas e Republicanos se uniram para reconfigurar programas sociais para curar, não a pobreza, mas a “cultura da pobreza”. Em 1996, a administração Clinton promulgou a regra “One Strike” banindo das moradias públicas qualquer pessoa que cometesse um crime. Poucos meses depois, o benefício foi substituído por Assistência Temporária a Famílias Carentes (TANF) que na sua forma atual fornece assistência financeira disponível apenas para aqueles que têm emprego ou são capazes de participar da política de trabalho imposta pelo governo.

Em mais uma concessão para a teoria da “cultura da pobreza” o projeto inicial de reforma do bem-estar destinou 250 milhões de dólares em cinco anos para o “controle de natalidade” para mães solteiras pobres. (Este projeto de lei, deve ser salientado, foi assinado por Bill Clinton).

Ainda hoje, mais de uma década depois e há quatro anos em um grave declínio econômico, como as pessoas continuam a cair das classes médias para a pobreza, a teoria mantém sua força. Se você é carente, você necessita de correção, supõe-se; portanto, os que recebem a Assistência Temporária são frequentemente instruídos a melhorar suas atitudes e os candidatos aos crescentes programas da rede de segurança são submetidos a testes de drogas.

Legisladores em 23 estados estão considerando testar as pessoas que se candidatam para tais programas de treinamento de trabalho, vale-alimentação, habitação pública e assistência de aquecimento doméstico. Com base na teoria de que os pobres são suscetíveis a abrigarem tendências criminosas, os requerentes de programas de segurança estão sendo cada vez mais submetidos à impressão digital e a investigações na web com padrões excepcionais de exigências de garantias.

O desemprego, com suas amplas oportunidades de “malandragem”, é outra condição obviamente suspeita, e no ano passado 12 estados cogitaram a exigência de testes de urina como condição para receber benefícios de desemprego. Tanto Mitt Romney quanto Newt Gingrich sugeriram teste de drogas como condição para todos os beneficiários dos programas do governo, inclusive, presumivelmente, o Social Security. Se a vovó insistir em tratar sua artrite com maconha, ela poderá ter de passar fome.

Como Michael Harrington julgaria os atuais usos da teoria da “cultura da pobreza” que ele tanto popularizou? Trabalhei com ele na década de 1980, quando fomos co-presidentes do Socialistas Democráticos da América, e suspeito que ele se sentiria desapontado, se não mortificado. Em todas as discussões e debates que tivemos, ele nunca dirigiu sequer uma palavra depreciativa para designar os necessitados e assim proferiu a expressão “cultura da pobreza”. Maurice Isserman, biógrafo de Harrington, disse-me que ele provavelmente agarrou-se a isso em primeiro lugar, só porque "não queria parecer um estereotipado agitador marxista preso aos anos trinta."

A artimanha – se é que se pode chamar assim – funcionou. Michael Harrington não protestou no anonimato. Na verdade, seu livro se tornou um bestseller e uma inspiração para a batalha do Presidente Lyndon Johnson contra a pobreza. Mas ele havia fatalmente remendado a “descoberta” da pobreza.

No entanto, o que os estadunidenses ricos encontraram em seu livro, e em todas as ásperas críticas conservadoras que o seguiram, não foi o pobre, mas uma nova forma agradável de pensar em si mesmos – disciplinados, cumpridores da lei, sóbrios e concentrados. Em outras palavras, não pobres.

Cinquenta anos depois, uma nova descoberta da pobreza está muito atrasada. Desta vez, teremos de levar em conta não só os estereótipos dos cidadãos sem-teto de Skid Row e Apalaches, mas o direito dos moradores de subúrbios privados de resgatar suas hipotecas, trabalhadores do setor de tecnologia desempregados, e o cada dia maior exército americano de trabalhadores pobres. E se olharmos bem de perto, teremos de concluir que a pobreza não é, afinal, uma aberração cultural ou uma falha de caráter. A pobreza é a falta de dinheiro.

(*) Barbara Ehrenreich é a autora de Nickel and Dimed: On (Not) Getting By in America (agora em uma edição de aniversário de 10 anos com novo epílogo).

3 de março de 2012

O jacobino negro

Sobre nossa identidade.

Remeike Forbes


Cena do filme, "Queimada!" (1969), dirigido por Gillo Pontecorvo.

Tradução / A maneira com que qualquer grupo decide coletivamente se representar visualmente às vezes desperta o mesmo debate e alvoroço que marcam a elaboração de um manifesto escrito. A imagem que você vê no topo deste site não é uma exceção. Apresentei originalmente quatro opções ao conselho editorial da Jacobin, ao que se seguiu uma discussão. Quatro opções tecnicamente, porque o debate sempre ficou entre duas: o logotipo pictórico, fazendo referência aos jacobinos negros, que por fim ganhou a disputa, e um logotipo abstrato (um dos outros três).

Consigo entender a posição dos meus companheiros jacobinos que estavam no time do logo abstrato. Com uma parte tão grande da esquerda decorando desesperadamente seus panfletos de protesto com qualquer imagem que possa expressar rebeldia – aperto de mão de braços corpulentos; punho cerrado agarrando o objeto X; Angela Davis indignada com alguma coisa – o apetite por algo neutro e mais discreto parece razoável. No entanto, nenhuma imagem é verdadeiramente neutra e tentar dissolver uma identidade visual num banho de ácido de alto modernismo não é exatamente uma solução de design.

É claro que ninguém quer mais uma imitação risível da revista anticonsumismo Adbusters – uma pilha de páginas caras de conteúdo monótono incitando adolescentes suburbanos a comprar botas de cânhamo. Mas por que nós da esquerda precisaríamos escolher entre um conteúdo visual honesto e apaixonado, por um lado, e uma análise política sóbria, por outro? Ironicamente, pessoas de esquerda que zombam de imagens ousadas sofrem das mesmas ilusões da esquerda “Guy Fawkes”; acabam optando por aplicações de estilo preguiçoso ao invés de uma tentativa de lidar com um mundo de significados, pois mesmo um design sóbrio tem conseqüências semânticas. Por meio da abstração simples ou da total falta de design esses acabam nos falando é sobre seu próprio intelectualismo morno, não muito diferente daqueles ativistas do punho erguido que se esforçam para sinalizar para o mundo a sua rebeldia. Em qualquer dos casos, o design deveria ser algo mais do que um simples tratamento superficial.

Uma predileção pelo “modernismo” levou as preferências de alguns pelo “simples”, “abstrato”, pelo “não-literal” entre as opções. O que veio junto de uma certa incompreensão sobre o modernismo e sua história (pelo menos no que diz respeito ao design gráfico). O modernismo se refere a uma tradição diversa que abrange desde as obras altamente expressivas dos anos 20 e 30 até as abordagens “objetivas” de meados do século; dos rígidos desenhos do modernismo suíço às formas mais soltas e divertidas da Escola de Nova York. As preocupações que animavam o modernismo sempre foram mais complexas do que o clichê “menos é mais”. É bem fácil confundir o puro uso da abstração com modernismo, mas as pessoas já usavam a geometria abstrata no design há séculos. O modernismo foi um projeto ideológico condicionado por certas realidades históricas, tecnológicas e práticas; assim, tentativas de se reciclar metáforas visuais modernistas, sem olhar para a sua história, inevitavelmente traem o espírito do projeto. Stephen Heller descreveu o modernismo como a “[exploração] dos limites e da universalidade da comunicação visual”. Essa é certamente uma tradição com a qual me alinho – o que tem implicações para muito além de exercícios frívolos de abstração formal.

Quando comecei a trabalhar na elaboração dos diferentes logotipos, o fiz com algumas considerações em mente (na verdade, preferiria nem ter criado outro símbolo, mas a fonte que já vínhamos usando para o nosso logo, a Futura, era tão indistinta que se mostrou foi necessário). Inicialmente, comecei tentando organizar algum tipo de símbolo abstrato, mas acabou não fazendo muito sentido porque, falando em termos práticos, não era apropriado. Um símbolo abstrato geralmente, embora nem sempre, implora para ser repetido, seja uma repetição por pura reprodução e presença, seja insinuando-se em elementos de um esquema inteiro de design. Caso contrário, pode formar uma identidade bastante fraca.

A adoção de símbolos abstratos como elementos centrais de identidades corporativas no pós-guerra não foi apenas consequência do proselitismo suíço; também se ajustava às necessidades de grandes instituições multinacionais verticalmente integradas. Para tais instituições, era útil dispor de identidades que consistem em formas simples, que podem ser adaptadas a muitos departamentos diferentes, colocadas em todo tipo de acessório, transformadas em esculturas, colocadas em aviões, caminhões, nas fachadas dos prédios, e adequadas para uma gama de contextos culturais. Grandes instituições têm orçamentos massivos e podem, portanto, tornar suas identidades onipresentes; não precisam se preocupar tanto com o fato de suas marcas serem meio indistintas, porque elas podem adquirir reconhecimento na base do mero volume.

Transformações sociais e econômicas recentes, dos anos 70 para cá, impactaram o design da identidade visual. O império Unimark colapsou, a Helvética – a fonte da conciliação social-democrata por excelência – se tornou monótona e a linguagem da identidade corporativa foi substituída pela tagarelice pós-moderna sobre identidade de marca. (Pegue qualquer um desses livros asquerosos sobre identidade de marca, e você aprenderá repetidamente que “marca não é o mesmo que um logotipo ou que identidade visual, e que “re-branding” não significa apenas estampar uma nova marca em um material da empresa”. Ainda não tenho bem certeza, mas pelo que entendi, “re-branding” é mais como um exorcismo, uma terapia eletromagnética, ou como mascar uma erva afrodisíaca – para que, quando a equipe de marketing tiver terminado seu trabalho, o cliente possa retornar para seus nichos de mercado com a fragrância e a potência sexual para fodê-los.)

Nem é preciso dizer que uma revista pequena como a Jacobin não passa pelos mesmos problemas de grandes instituições, de modo que estávamos em posição de julgar nossas opções de logos apenas em seus méritos semânticos, e não formais. É fácil arengar com os meus camaradas jacobinos, mas a reciclagem inábil de efeitos visuais é algo do qual os designers gráficos também sofrem, em igual medida. Tratamentos estilísticos são abundantes, mas poucos designers se preocupam com o significado real de suas obras. No entanto, algumas das marcas visuais mais poderosas eram também verdadeiros desastres formais. Tomemos de exemplo o punho cerrado, talvez a ferramenta mais repetida no arsenal gráfico da esquerda: é confuso e difícil de se reconhecer em escalas menores – semanticamente, pode ser moído e transformado numa massa sem sentido através da má aplicação, como de fato tem acontecido tantas vezes. Porém, como o punho de Wisconsin demonstra, mesmo mais uma repetição horrorosa de uma forma já feia pode ser bastante poderosa, quando feita corretamente.

Portanto, em vez de ficar brincando com formas, coloquei a trilha sonora de Queimada! e peguei uma cópia de “Os Jacobinos Negros” [do marxista negro, de Trinidad e Tobago, C. L. R. James]. Depois de re-assistir aquela cena de Queimada! quando o líder revolucionário José Dolores é capturado pelas forças britânicas, minha busca estava mais ou menos concluída. Marlon Brando, interpretando o agente imperial William Walker, conta a história de Dolores a um oficial que o acompanha: “Um belo exemplar, não é? Veja, é uma história exemplar: no começo ele não era nada, um porteiro, um carregador de água. Aí a Inglaterra faz dele um líder revolucionário e, quando não serve mais, o abandona. Quando ele então se rebela, em nome mais ou menos dos mesmos ideais que a Inglaterra lhe ensinou, ela decide eliminá-lo. Não é uma pequena obra de arte?”

Quando apresentei o jacobino negro como opção ao conselho editorial, aflorou certa ansiedade. Havia alguma preocupação com o uso de uma pessoa negra como nosso símbolo e o potencial inerente para causar ofensa. Uma preocupação legítima, dado o fato de que a população negra não tem uma boa história como identidades visuais, dificilmente ultrapassando as caixas de tia Jemima e tio Ben. Ainda assim, foi uma ansiedade que me intrigou, já que eu mesmo sou um imigrante da Jamaica, negro. E foi essa ansiedade que demonstrou o quão significativo seria adotarmos essa imagem. A inversão estava justamente em apresentar uma pessoa negra como um sujeito universal, uma honra que costuma ser concedida exclusivamente ao rosto branco. E não se tratava de um esforço vazio de subversão, criando uma contra-mitologia por meio de atos fáceis de substituição, como aquelas pinturas de Jesus com dreadlocks, onde ele meio que parece um figurante sem camisa de um filme do Tyler Perry.

Embora seja uma história facilmente esquecida – um país “solitário”, na taxonomia de Samuel Huntington – dificilmente haverá um significante maior de universalismo do que a Revolução Haitiana. Os eventos que se desenrolaram na ilha de São Domingos durante treze épicos anos são dignos de figurar em qualquer História Mundial. A revolta dos escravos atingiu em cheio o coração das contradições existentes no iluminismo ocidental. Ao assumir o manto do iluminismo e convertê-lo em um projeto genuíno de emancipação, os revolucionários haitianos confundiram, aterrorizaram e derrotaram todos os impérios do pedaço, desde o enfurecido Napoleão Bonaparte, que pretendia arrancar as dragonas dos ombros de cada negro da ilha, aos agricultores do sul dos EUA, que se recusavam a reconhecer o Estado independente. Na mais profunda expressão de internacionalismo, não só enfureceram como inspiraram a muitos: dos radicais republicanos franceses que defenderam os negros livres, até o revolucionário latino-americano Simón Bolívar, que se refugiou no Haiti. Apenas tente imaginar a confusão dos soldados de Napoleão ao ouvirem as tropas haitianas cantando a Marselhesa.

“Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte” era agora a reivindicação verdadeiramente legítima dos soldados negros que as tropas de Napoleão buscavam suprimir – e os revolucionários não estavam brincando sobre essa quarta parte também. Antes da revolução, os escravizados instituíram, com sucesso, uma política de envenenamento de quase tudo o que respirava, enquanto fossem mantidos em cativeiro: eles se envenenavam, envenenavam seus filhos, envenenavam seu senhor e sua senhora, e todo o resto da maldita plantação. Quando conquistaram a liberdade, não havia força na terra que pudesse devolvê-los à escravidão; então, quando surgiram rumores de retorno da escravidão com a ascensão de Napoleão, eles colocaram fogo em tudo.

A Revolução Haitiana encapsula a missão histórica da esquerda: isto é, a mais verdadeira realização do iluminismo. Uma demonstração de que esses ideais, arrancados dos hipócritas que os apregoam, e assumidos pelos miseráveis da terra, podem se tornar um projeto radical de emancipação humana. Marx enxergou por entre as contradições: sua obra é tanto uma crítica do iluminismo quanto um esforço para expandir os ideais iluministas de emancipação política em um projeto de emancipação humana genuína. Assim ressoa a história da esquerda. É a exigência de que aqueles princípios formalizados em nossas instituições políticas se estendam à nossa experiência vivida – em nossa vida social e econômica, em nossas casas e ruas.

A história da Revolução Haitiana também deveria servir como um lembrete para aqueles na esquerda que, abandonando a crítica ponderada, não conseguem imaginar nenhuma resposta às contradições do iluminismo que não seja a de sua negação absoluta. Lembrando um verso d`A Internacional [na versão de língua inglesa]: “porque a razão em revolta agora troveja”. Nunca se tratou de um grito de revolta contra a razão, mas um anúncio da própria razão em revolta.

Colaborador

Remeike Forbes é o diretor criativo da Jacobin.

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