Remeike Forbes
Cena do filme, "Queimada!" (1969), dirigido por Gillo Pontecorvo. |
Tradução / A maneira com que qualquer grupo decide coletivamente se representar visualmente às vezes desperta o mesmo debate e alvoroço que marcam a elaboração de um manifesto escrito. A imagem que você vê no topo deste site não é uma exceção. Apresentei originalmente quatro opções ao conselho editorial da Jacobin, ao que se seguiu uma discussão. Quatro opções tecnicamente, porque o debate sempre ficou entre duas: o logotipo pictórico, fazendo referência aos jacobinos negros, que por fim ganhou a disputa, e um logotipo abstrato (um dos outros três).
Consigo entender a posição dos meus companheiros jacobinos que estavam no time do logo abstrato. Com uma parte tão grande da esquerda decorando desesperadamente seus panfletos de protesto com qualquer imagem que possa expressar rebeldia – aperto de mão de braços corpulentos; punho cerrado agarrando o objeto X; Angela Davis indignada com alguma coisa – o apetite por algo neutro e mais discreto parece razoável. No entanto, nenhuma imagem é verdadeiramente neutra e tentar dissolver uma identidade visual num banho de ácido de alto modernismo não é exatamente uma solução de design.
É claro que ninguém quer mais uma imitação risível da revista anticonsumismo Adbusters – uma pilha de páginas caras de conteúdo monótono incitando adolescentes suburbanos a comprar botas de cânhamo. Mas por que nós da esquerda precisaríamos escolher entre um conteúdo visual honesto e apaixonado, por um lado, e uma análise política sóbria, por outro? Ironicamente, pessoas de esquerda que zombam de imagens ousadas sofrem das mesmas ilusões da esquerda “Guy Fawkes”; acabam optando por aplicações de estilo preguiçoso ao invés de uma tentativa de lidar com um mundo de significados, pois mesmo um design sóbrio tem conseqüências semânticas. Por meio da abstração simples ou da total falta de design esses acabam nos falando é sobre seu próprio intelectualismo morno, não muito diferente daqueles ativistas do punho erguido que se esforçam para sinalizar para o mundo a sua rebeldia. Em qualquer dos casos, o design deveria ser algo mais do que um simples tratamento superficial.
Uma predileção pelo “modernismo” levou as preferências de alguns pelo “simples”, “abstrato”, pelo “não-literal” entre as opções. O que veio junto de uma certa incompreensão sobre o modernismo e sua história (pelo menos no que diz respeito ao design gráfico). O modernismo se refere a uma tradição diversa que abrange desde as obras altamente expressivas dos anos 20 e 30 até as abordagens “objetivas” de meados do século; dos rígidos desenhos do modernismo suíço às formas mais soltas e divertidas da Escola de Nova York. As preocupações que animavam o modernismo sempre foram mais complexas do que o clichê “menos é mais”. É bem fácil confundir o puro uso da abstração com modernismo, mas as pessoas já usavam a geometria abstrata no design há séculos. O modernismo foi um projeto ideológico condicionado por certas realidades históricas, tecnológicas e práticas; assim, tentativas de se reciclar metáforas visuais modernistas, sem olhar para a sua história, inevitavelmente traem o espírito do projeto. Stephen Heller descreveu o modernismo como a “[exploração] dos limites e da universalidade da comunicação visual”. Essa é certamente uma tradição com a qual me alinho – o que tem implicações para muito além de exercícios frívolos de abstração formal.
Quando comecei a trabalhar na elaboração dos diferentes logotipos, o fiz com algumas considerações em mente (na verdade, preferiria nem ter criado outro símbolo, mas a fonte que já vínhamos usando para o nosso logo, a Futura, era tão indistinta que se mostrou foi necessário). Inicialmente, comecei tentando organizar algum tipo de símbolo abstrato, mas acabou não fazendo muito sentido porque, falando em termos práticos, não era apropriado. Um símbolo abstrato geralmente, embora nem sempre, implora para ser repetido, seja uma repetição por pura reprodução e presença, seja insinuando-se em elementos de um esquema inteiro de design. Caso contrário, pode formar uma identidade bastante fraca.
A adoção de símbolos abstratos como elementos centrais de identidades corporativas no pós-guerra não foi apenas consequência do proselitismo suíço; também se ajustava às necessidades de grandes instituições multinacionais verticalmente integradas. Para tais instituições, era útil dispor de identidades que consistem em formas simples, que podem ser adaptadas a muitos departamentos diferentes, colocadas em todo tipo de acessório, transformadas em esculturas, colocadas em aviões, caminhões, nas fachadas dos prédios, e adequadas para uma gama de contextos culturais. Grandes instituições têm orçamentos massivos e podem, portanto, tornar suas identidades onipresentes; não precisam se preocupar tanto com o fato de suas marcas serem meio indistintas, porque elas podem adquirir reconhecimento na base do mero volume.
Transformações sociais e econômicas recentes, dos anos 70 para cá, impactaram o design da identidade visual. O império Unimark colapsou, a Helvética – a fonte da conciliação social-democrata por excelência – se tornou monótona e a linguagem da identidade corporativa foi substituída pela tagarelice pós-moderna sobre identidade de marca. (Pegue qualquer um desses livros asquerosos sobre identidade de marca, e você aprenderá repetidamente que “marca não é o mesmo que um logotipo ou que identidade visual, e que “re-branding” não significa apenas estampar uma nova marca em um material da empresa”. Ainda não tenho bem certeza, mas pelo que entendi, “re-branding” é mais como um exorcismo, uma terapia eletromagnética, ou como mascar uma erva afrodisíaca – para que, quando a equipe de marketing tiver terminado seu trabalho, o cliente possa retornar para seus nichos de mercado com a fragrância e a potência sexual para fodê-los.)
Consigo entender a posição dos meus companheiros jacobinos que estavam no time do logo abstrato. Com uma parte tão grande da esquerda decorando desesperadamente seus panfletos de protesto com qualquer imagem que possa expressar rebeldia – aperto de mão de braços corpulentos; punho cerrado agarrando o objeto X; Angela Davis indignada com alguma coisa – o apetite por algo neutro e mais discreto parece razoável. No entanto, nenhuma imagem é verdadeiramente neutra e tentar dissolver uma identidade visual num banho de ácido de alto modernismo não é exatamente uma solução de design.
É claro que ninguém quer mais uma imitação risível da revista anticonsumismo Adbusters – uma pilha de páginas caras de conteúdo monótono incitando adolescentes suburbanos a comprar botas de cânhamo. Mas por que nós da esquerda precisaríamos escolher entre um conteúdo visual honesto e apaixonado, por um lado, e uma análise política sóbria, por outro? Ironicamente, pessoas de esquerda que zombam de imagens ousadas sofrem das mesmas ilusões da esquerda “Guy Fawkes”; acabam optando por aplicações de estilo preguiçoso ao invés de uma tentativa de lidar com um mundo de significados, pois mesmo um design sóbrio tem conseqüências semânticas. Por meio da abstração simples ou da total falta de design esses acabam nos falando é sobre seu próprio intelectualismo morno, não muito diferente daqueles ativistas do punho erguido que se esforçam para sinalizar para o mundo a sua rebeldia. Em qualquer dos casos, o design deveria ser algo mais do que um simples tratamento superficial.
Uma predileção pelo “modernismo” levou as preferências de alguns pelo “simples”, “abstrato”, pelo “não-literal” entre as opções. O que veio junto de uma certa incompreensão sobre o modernismo e sua história (pelo menos no que diz respeito ao design gráfico). O modernismo se refere a uma tradição diversa que abrange desde as obras altamente expressivas dos anos 20 e 30 até as abordagens “objetivas” de meados do século; dos rígidos desenhos do modernismo suíço às formas mais soltas e divertidas da Escola de Nova York. As preocupações que animavam o modernismo sempre foram mais complexas do que o clichê “menos é mais”. É bem fácil confundir o puro uso da abstração com modernismo, mas as pessoas já usavam a geometria abstrata no design há séculos. O modernismo foi um projeto ideológico condicionado por certas realidades históricas, tecnológicas e práticas; assim, tentativas de se reciclar metáforas visuais modernistas, sem olhar para a sua história, inevitavelmente traem o espírito do projeto. Stephen Heller descreveu o modernismo como a “[exploração] dos limites e da universalidade da comunicação visual”. Essa é certamente uma tradição com a qual me alinho – o que tem implicações para muito além de exercícios frívolos de abstração formal.
Quando comecei a trabalhar na elaboração dos diferentes logotipos, o fiz com algumas considerações em mente (na verdade, preferiria nem ter criado outro símbolo, mas a fonte que já vínhamos usando para o nosso logo, a Futura, era tão indistinta que se mostrou foi necessário). Inicialmente, comecei tentando organizar algum tipo de símbolo abstrato, mas acabou não fazendo muito sentido porque, falando em termos práticos, não era apropriado. Um símbolo abstrato geralmente, embora nem sempre, implora para ser repetido, seja uma repetição por pura reprodução e presença, seja insinuando-se em elementos de um esquema inteiro de design. Caso contrário, pode formar uma identidade bastante fraca.
A adoção de símbolos abstratos como elementos centrais de identidades corporativas no pós-guerra não foi apenas consequência do proselitismo suíço; também se ajustava às necessidades de grandes instituições multinacionais verticalmente integradas. Para tais instituições, era útil dispor de identidades que consistem em formas simples, que podem ser adaptadas a muitos departamentos diferentes, colocadas em todo tipo de acessório, transformadas em esculturas, colocadas em aviões, caminhões, nas fachadas dos prédios, e adequadas para uma gama de contextos culturais. Grandes instituições têm orçamentos massivos e podem, portanto, tornar suas identidades onipresentes; não precisam se preocupar tanto com o fato de suas marcas serem meio indistintas, porque elas podem adquirir reconhecimento na base do mero volume.
Transformações sociais e econômicas recentes, dos anos 70 para cá, impactaram o design da identidade visual. O império Unimark colapsou, a Helvética – a fonte da conciliação social-democrata por excelência – se tornou monótona e a linguagem da identidade corporativa foi substituída pela tagarelice pós-moderna sobre identidade de marca. (Pegue qualquer um desses livros asquerosos sobre identidade de marca, e você aprenderá repetidamente que “marca não é o mesmo que um logotipo ou que identidade visual, e que “re-branding” não significa apenas estampar uma nova marca em um material da empresa”. Ainda não tenho bem certeza, mas pelo que entendi, “re-branding” é mais como um exorcismo, uma terapia eletromagnética, ou como mascar uma erva afrodisíaca – para que, quando a equipe de marketing tiver terminado seu trabalho, o cliente possa retornar para seus nichos de mercado com a fragrância e a potência sexual para fodê-los.)
Nem é preciso dizer que uma revista pequena como a Jacobin não passa pelos mesmos problemas de grandes instituições, de modo que estávamos em posição de julgar nossas opções de logos apenas em seus méritos semânticos, e não formais. É fácil arengar com os meus camaradas jacobinos, mas a reciclagem inábil de efeitos visuais é algo do qual os designers gráficos também sofrem, em igual medida. Tratamentos estilísticos são abundantes, mas poucos designers se preocupam com o significado real de suas obras. No entanto, algumas das marcas visuais mais poderosas eram também verdadeiros desastres formais. Tomemos de exemplo o punho cerrado, talvez a ferramenta mais repetida no arsenal gráfico da esquerda: é confuso e difícil de se reconhecer em escalas menores – semanticamente, pode ser moído e transformado numa massa sem sentido através da má aplicação, como de fato tem acontecido tantas vezes. Porém, como o punho de Wisconsin demonstra, mesmo mais uma repetição horrorosa de uma forma já feia pode ser bastante poderosa, quando feita corretamente.
Portanto, em vez de ficar brincando com formas, coloquei a trilha sonora de Queimada! e peguei uma cópia de “Os Jacobinos Negros” [do marxista negro, de Trinidad e Tobago, C. L. R. James]. Depois de re-assistir aquela cena de Queimada! quando o líder revolucionário José Dolores é capturado pelas forças britânicas, minha busca estava mais ou menos concluída. Marlon Brando, interpretando o agente imperial William Walker, conta a história de Dolores a um oficial que o acompanha: “Um belo exemplar, não é? Veja, é uma história exemplar: no começo ele não era nada, um porteiro, um carregador de água. Aí a Inglaterra faz dele um líder revolucionário e, quando não serve mais, o abandona. Quando ele então se rebela, em nome mais ou menos dos mesmos ideais que a Inglaterra lhe ensinou, ela decide eliminá-lo. Não é uma pequena obra de arte?”
Quando apresentei o jacobino negro como opção ao conselho editorial, aflorou certa ansiedade. Havia alguma preocupação com o uso de uma pessoa negra como nosso símbolo e o potencial inerente para causar ofensa. Uma preocupação legítima, dado o fato de que a população negra não tem uma boa história como identidades visuais, dificilmente ultrapassando as caixas de tia Jemima e tio Ben. Ainda assim, foi uma ansiedade que me intrigou, já que eu mesmo sou um imigrante da Jamaica, negro. E foi essa ansiedade que demonstrou o quão significativo seria adotarmos essa imagem. A inversão estava justamente em apresentar uma pessoa negra como um sujeito universal, uma honra que costuma ser concedida exclusivamente ao rosto branco. E não se tratava de um esforço vazio de subversão, criando uma contra-mitologia por meio de atos fáceis de substituição, como aquelas pinturas de Jesus com dreadlocks, onde ele meio que parece um figurante sem camisa de um filme do Tyler Perry.
Embora seja uma história facilmente esquecida – um país “solitário”, na taxonomia de Samuel Huntington – dificilmente haverá um significante maior de universalismo do que a Revolução Haitiana. Os eventos que se desenrolaram na ilha de São Domingos durante treze épicos anos são dignos de figurar em qualquer História Mundial. A revolta dos escravos atingiu em cheio o coração das contradições existentes no iluminismo ocidental. Ao assumir o manto do iluminismo e convertê-lo em um projeto genuíno de emancipação, os revolucionários haitianos confundiram, aterrorizaram e derrotaram todos os impérios do pedaço, desde o enfurecido Napoleão Bonaparte, que pretendia arrancar as dragonas dos ombros de cada negro da ilha, aos agricultores do sul dos EUA, que se recusavam a reconhecer o Estado independente. Na mais profunda expressão de internacionalismo, não só enfureceram como inspiraram a muitos: dos radicais republicanos franceses que defenderam os negros livres, até o revolucionário latino-americano Simón Bolívar, que se refugiou no Haiti. Apenas tente imaginar a confusão dos soldados de Napoleão ao ouvirem as tropas haitianas cantando a Marselhesa.
“Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte” era agora a reivindicação verdadeiramente legítima dos soldados negros que as tropas de Napoleão buscavam suprimir – e os revolucionários não estavam brincando sobre essa quarta parte também. Antes da revolução, os escravizados instituíram, com sucesso, uma política de envenenamento de quase tudo o que respirava, enquanto fossem mantidos em cativeiro: eles se envenenavam, envenenavam seus filhos, envenenavam seu senhor e sua senhora, e todo o resto da maldita plantação. Quando conquistaram a liberdade, não havia força na terra que pudesse devolvê-los à escravidão; então, quando surgiram rumores de retorno da escravidão com a ascensão de Napoleão, eles colocaram fogo em tudo.
A Revolução Haitiana encapsula a missão histórica da esquerda: isto é, a mais verdadeira realização do iluminismo. Uma demonstração de que esses ideais, arrancados dos hipócritas que os apregoam, e assumidos pelos miseráveis da terra, podem se tornar um projeto radical de emancipação humana. Marx enxergou por entre as contradições: sua obra é tanto uma crítica do iluminismo quanto um esforço para expandir os ideais iluministas de emancipação política em um projeto de emancipação humana genuína. Assim ressoa a história da esquerda. É a exigência de que aqueles princípios formalizados em nossas instituições políticas se estendam à nossa experiência vivida – em nossa vida social e econômica, em nossas casas e ruas.
A história da Revolução Haitiana também deveria servir como um lembrete para aqueles na esquerda que, abandonando a crítica ponderada, não conseguem imaginar nenhuma resposta às contradições do iluminismo que não seja a de sua negação absoluta. Lembrando um verso d`A Internacional [na versão de língua inglesa]: “porque a razão em revolta agora troveja”. Nunca se tratou de um grito de revolta contra a razão, mas um anúncio da própria razão em revolta.
Colaborador
Portanto, em vez de ficar brincando com formas, coloquei a trilha sonora de Queimada! e peguei uma cópia de “Os Jacobinos Negros” [do marxista negro, de Trinidad e Tobago, C. L. R. James]. Depois de re-assistir aquela cena de Queimada! quando o líder revolucionário José Dolores é capturado pelas forças britânicas, minha busca estava mais ou menos concluída. Marlon Brando, interpretando o agente imperial William Walker, conta a história de Dolores a um oficial que o acompanha: “Um belo exemplar, não é? Veja, é uma história exemplar: no começo ele não era nada, um porteiro, um carregador de água. Aí a Inglaterra faz dele um líder revolucionário e, quando não serve mais, o abandona. Quando ele então se rebela, em nome mais ou menos dos mesmos ideais que a Inglaterra lhe ensinou, ela decide eliminá-lo. Não é uma pequena obra de arte?”
Quando apresentei o jacobino negro como opção ao conselho editorial, aflorou certa ansiedade. Havia alguma preocupação com o uso de uma pessoa negra como nosso símbolo e o potencial inerente para causar ofensa. Uma preocupação legítima, dado o fato de que a população negra não tem uma boa história como identidades visuais, dificilmente ultrapassando as caixas de tia Jemima e tio Ben. Ainda assim, foi uma ansiedade que me intrigou, já que eu mesmo sou um imigrante da Jamaica, negro. E foi essa ansiedade que demonstrou o quão significativo seria adotarmos essa imagem. A inversão estava justamente em apresentar uma pessoa negra como um sujeito universal, uma honra que costuma ser concedida exclusivamente ao rosto branco. E não se tratava de um esforço vazio de subversão, criando uma contra-mitologia por meio de atos fáceis de substituição, como aquelas pinturas de Jesus com dreadlocks, onde ele meio que parece um figurante sem camisa de um filme do Tyler Perry.
Embora seja uma história facilmente esquecida – um país “solitário”, na taxonomia de Samuel Huntington – dificilmente haverá um significante maior de universalismo do que a Revolução Haitiana. Os eventos que se desenrolaram na ilha de São Domingos durante treze épicos anos são dignos de figurar em qualquer História Mundial. A revolta dos escravos atingiu em cheio o coração das contradições existentes no iluminismo ocidental. Ao assumir o manto do iluminismo e convertê-lo em um projeto genuíno de emancipação, os revolucionários haitianos confundiram, aterrorizaram e derrotaram todos os impérios do pedaço, desde o enfurecido Napoleão Bonaparte, que pretendia arrancar as dragonas dos ombros de cada negro da ilha, aos agricultores do sul dos EUA, que se recusavam a reconhecer o Estado independente. Na mais profunda expressão de internacionalismo, não só enfureceram como inspiraram a muitos: dos radicais republicanos franceses que defenderam os negros livres, até o revolucionário latino-americano Simón Bolívar, que se refugiou no Haiti. Apenas tente imaginar a confusão dos soldados de Napoleão ao ouvirem as tropas haitianas cantando a Marselhesa.
“Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte” era agora a reivindicação verdadeiramente legítima dos soldados negros que as tropas de Napoleão buscavam suprimir – e os revolucionários não estavam brincando sobre essa quarta parte também. Antes da revolução, os escravizados instituíram, com sucesso, uma política de envenenamento de quase tudo o que respirava, enquanto fossem mantidos em cativeiro: eles se envenenavam, envenenavam seus filhos, envenenavam seu senhor e sua senhora, e todo o resto da maldita plantação. Quando conquistaram a liberdade, não havia força na terra que pudesse devolvê-los à escravidão; então, quando surgiram rumores de retorno da escravidão com a ascensão de Napoleão, eles colocaram fogo em tudo.
A Revolução Haitiana encapsula a missão histórica da esquerda: isto é, a mais verdadeira realização do iluminismo. Uma demonstração de que esses ideais, arrancados dos hipócritas que os apregoam, e assumidos pelos miseráveis da terra, podem se tornar um projeto radical de emancipação humana. Marx enxergou por entre as contradições: sua obra é tanto uma crítica do iluminismo quanto um esforço para expandir os ideais iluministas de emancipação política em um projeto de emancipação humana genuína. Assim ressoa a história da esquerda. É a exigência de que aqueles princípios formalizados em nossas instituições políticas se estendam à nossa experiência vivida – em nossa vida social e econômica, em nossas casas e ruas.
A história da Revolução Haitiana também deveria servir como um lembrete para aqueles na esquerda que, abandonando a crítica ponderada, não conseguem imaginar nenhuma resposta às contradições do iluminismo que não seja a de sua negação absoluta. Lembrando um verso d`A Internacional [na versão de língua inglesa]: “porque a razão em revolta agora troveja”. Nunca se tratou de um grito de revolta contra a razão, mas um anúncio da própria razão em revolta.
Colaborador
Remeike Forbes é o diretor criativo da Jacobin.
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