30 de julho de 2018

O que é feminismo socialista?

Barbara Ehrenreich sobre por que precisamos do feminismo socialista para combater o patriarcado.

Barbara Ehrenreich


New York Historical Society

Tradução / O ensaio de Barbara Ehrenreich “O que é o feminismo socialista?” foi publicado pela primeira vez na WIN Magazine em 1976 e, posteriormente, nos Working Papers on Socialism & Feminism do New American Movement. A introdução abaixo é inédita, escrita por Ehrenreich para esta republicação. Embora Ehrenreich tenha vários problemas com seu ensaio original – como ela detalha em suas notas prefaciais abaixo – estamos muito satisfeitos em republicá-lo em um momento em que cada vez mais pessoas estão sendo expostas à política socialista e feminista pela primeira vez.

O ensaio a seguir é melhor lido como uma amostra básica extraída do pensamento radical de mais de 50 anos atrás, quando tanto o feminismo quanto o socialismo ainda eram ideias novas para a maioria dos norte-americanos. Muitas mulheres jovens, brancas e de classe média, como eu, abraçaram essas duas abstrações e se esforçaram, mesmo que apenas por algum senso de organização teórica, para ver como elas estavam conectadas. Eu jamais empreenderia um projeto como esse hoje. Parece muito pitoresco, muito aberto a respostas divergentes, muito “a-histórico”, para o meu gosto atual.

A única coisa nesse ensaio que me faz estremecer quando o leio agora é o adiamento casual de questões como raça e homofobia para algum estágio posterior, mais abrangente, da teoria feminista socialista. Minha única desculpa é que, na época, o capitalismo e a dominação masculina pareciam ter a dignidade de serem “sistemas”, enquanto o racismo e a homofobia eram facilmente confundidos com “atitudes” mais transitórias. Mas essa é uma desculpa fraca. Meio século depois, não me sinto mais tão fascinada por “sistemas” abstratos e estou muito mais ligada ao concreto, o que inclui quantidades repugnantes de crueldade contra pessoas LGBTQ e pessoas de cor. Qualquer pessoa que goste de teorizar precisa teorizar esses fatos também.

Admito que há também um pouco de desleixo histórico neste ensaio. Parece que estou datando o capitalismo da Revolução Industrial, o que o torna relativamente novo no cenário humano, com não mais do que algumas centenas de anos. Eu deveria estar interessada não no capitalismo, mas nas sociedades de classes – ou sociedades “estratificadas” – que surgiram há cerca de cinco mil anos no mundo mesopotâmico, juntamente com indicações arqueológicas de crescente domínio masculino, guerras e escravidão. Como essas coisas “surgiram” é uma história codificada em milhares de mitos geograficamente específicos, baixos-relevos e outras formas de narrativa; a questão desafiadora é como elas conseguiram persistir durante tantos milênios e mudanças no “modo de produção”.

Atualmente, a única coisa que considero interessante em “O que é feminismo socialista?” é sua sugestão de que ambas as formas de opressão estão enraizadas na violência ou são mantidas por ela. Essa palavra não aparecia com destaque em nosso vocabulário teórico em 1976, que estava muito mais preocupado com noções como “produção” e “reprodução”, salários para o trabalho doméstico e salários nas fábricas locais. O que pode ter chamado minha atenção para isso foi um incidente quase violento com o ex-marido da minha vizinha do andar de cima, mãe solteira e beneficiária da previdência social, que portava uma arma. Na frente teórica, porém, a violência era uma questão exótica e marginal.

Tudo isso mudou, é claro. As feministas começaram a se concentrar na violência contra as mulheres nos anos seguintes e conseguiram obter uma legislação federal contra isso em 1994. Da mesma forma, a “brutalidade policial” era um problema na década de 1970, mas foi necessária a constante onda de violência policial na década de 1990 e nas décadas seguintes para provocar a formação do Black Lives Matter. No século XXI, não havia como evitar a violência contra pessoas LGBTQ, muçulmanos ou imigrantes. E hoje, a violência aleatória com armas de fogo se tornou uma questão que a esquerda não pode mais ignorar com uma referência aos lucros dos fabricantes de armas.

Mas em nossa “teoria” – tal como ela é – a violência continua sendo periférica. Sabemos que o que nos mantém na linha é, em última análise, o medo de termos nossos dentes arrancados ou nossas testas atingidas por tiros, seja por agressores sancionados pelo Estado ou por ex-maridos ou vizinhos perturbados. Talvez precisemos encontrar uma maneira sofisticada de dizer isso.

Em algum nível, talvez não muito bem articulado, o feminismo socialista existe há muito tempo. Você é uma mulher em uma sociedade capitalista. Você fica irritada: com o trabalho, com as contas, com seu marido (ou ex), com a escola das crianças, com o trabalho doméstico, com o fato de ser bonita, com o fato de não ser bonita, com o fato de ser olhada, com o fato de não ser olhada (e, de qualquer forma, com o fato de não ser ouvida) etc. Se você pensar em todas essas coisas, em como elas se encaixam e no que precisa ser mudado, e depois procurar algumas palavras que contenham todos esses pensamentos de forma abreviada, você quase teria que chegar ao “feminismo socialista”.

Muitas de nós chegaram ao feminismo socialista exatamente dessa forma. Estávamos procurando uma palavra/termo/frase que começasse a expressar todas as nossas preocupações, todos os nossos princípios, de uma forma que nem “socialista” nem “feminista” pareciam expressar. Tenho de admitir que a maioria das feministas socialistas que conheço também não está muito satisfeita com o termo “feminista socialista”. Por um lado, é muito longo (não tenho esperanças de um movimento de massa com hífen); por outro lado, é muito curto para o que é, afinal de contas, o feminismo socialista internacionalista, antirracista e anti-heterossexista.

O problema de adotar um novo rótulo de qualquer tipo é que ele cria uma aura instantânea de sectarismo. O “feminismo socialista” se torna um desafio, um mistério, uma questão em si mesma. Temos palestrantes, conferências e artigos sobre o “feminismo socialista”, embora saibamos perfeitamente que tanto o “socialismo” quanto o “feminismo” são muito amplos e muito inclusivos para serem temas de qualquer discurso, conferência, artigo etc. sensato. As pessoas, inclusive as feministas socialistas declaradas, se perguntam ansiosamente: “O que é feminismo socialista?” Há uma espécie de expectativa de que ele seja (ou esteja prestes a ser a qualquer momento, talvez no próximo discurso, conferência ou artigo) uma síntese brilhante de proporções históricas mundiais – um salto evolucionário além de Marx, Freud e Wollstonecraft. Ou que ela não passará de um nada, um modismo aproveitado por algumas feministas e mulheres socialistas descontentes, uma distração temporária.

Quero tentar desvendar um pouco do mistério que se formou em torno do feminismo socialista. Uma maneira lógica de começar é analisar o socialismo e o feminismo separadamente. Como um socialista, mais precisamente, um marxista, vê o mundo? Como uma feminista?

Para começar, o marxismo e o feminismo têm uma coisa importante em comum: são formas críticas de ver o mundo. Ambos eliminam a mitologia popular e a sabedoria do “senso comum” e nos forçam a olhar para a realidade de uma nova maneira. Ambas buscam entender o mundo, não em termos de equilíbrios estáticos, simetrias, etc. (como na ciência social convencional), mas em termos de antagonismos. Elas levam a conclusões que são chocantes e perturbadoras ao mesmo tempo em que são libertadoras. Não há como ter uma perspectiva marxista ou feminista e permanecer como espectador. Compreender a realidade exposta por essas análises é entrar em ação para mudá-la.

O marxismo aborda a dinâmica de classe da sociedade capitalista. Todo cientista social sabe que as sociedades capitalistas são caracterizadas por uma desigualdade sistêmica mais ou menos grave. O marxismo entende que essa desigualdade decorre de processos que são intrínsecos ao capitalismo como sistema econômico. Uma minoria de pessoas (a classe capitalista) é proprietária de todas as fábricas/fontes de energia/recursos etc. das quais todos os outros dependem para viver. A grande maioria (a classe trabalhadora) precisa trabalhar por pura necessidade, sob condições estabelecidas pelos capitalistas, pelos salários que os capitalistas pagam.

Como os capitalistas obtêm seus lucros pagando menos em salários do que o valor do que os trabalhadores realmente produzem, a relação entre as duas classes é necessariamente de antagonismo irreconciliável. A classe capitalista deve sua própria existência à exploração contínua da classe trabalhadora. O que mantém esse sistema de domínio de classe é, em última análise, a força. A classe capitalista controla (direta ou indiretamente) os meios de violência organizada representados pelo Estado – polícia, prisões, etc. Somente com uma luta revolucionária que vise à tomada do poder do Estado é que a classe trabalhadora poderá se libertar e, em última instância, libertar todas as pessoas.

O feminismo trata de outra desigualdade conhecida. Todas as sociedades humanas são marcadas por algum grau de desigualdade entre os sexos. Se examinarmos as sociedades humanas de relance, percorrendo a história e os continentes, veremos que elas são comumente caracterizadas por: subjugação das mulheres à autoridade masculina, tanto na família quanto na comunidade em geral; objetificação das mulheres como uma forma de propriedade; divisão sexual do trabalho na qual as mulheres são confinadas a atividades como criação de filhos, prestação de serviços pessoais para homens adultos e formas específicas (geralmente de baixo prestígio) de trabalho produtivo.

As feministas, impressionadas com a quase universalidade desses fatos, buscaram explicações nos “dados” biológicos que fundamentam toda a existência social humana. Em média, os homens são fisicamente mais fortes do que as mulheres, especialmente em comparação com mulheres grávidas ou que estejam amamentando bebês. Além disso, os homens têm o poder de engravidar as mulheres. Assim, as formas que a desigualdade sexual assume – por mais variadas que sejam de uma cultura para outra – baseiam-se, em última análise, no que é claramente uma vantagem física que os homens têm sobre as mulheres. Ou seja, elas resultam, em última instância, da violência ou da ameaça de violência.

A raiz antiga e biológica da supremacia masculina – o fato da violência masculina – é comumente obscurecida pelas leis e convenções que regulam as relações entre os sexos em qualquer cultura específica. Mas ela está lá, de acordo com uma análise feminista. A possibilidade de agressão masculina é um aviso constante para as mulheres “más” (rebeldes, agressivas) e leva as mulheres “boas” à cumplicidade com a supremacia masculina. A recompensa por ser “boa” (“bonita”, submissa) é a proteção contra a violência masculina aleatória e, em alguns casos, a segurança econômica.

O marxismo rompe os mitos sobre a “democracia” e seu “pluralismo” para revelar um sistema de governo de classe que se baseia na exploração forçada. O feminismo corta os mitos sobre o “instinto” e o amor romântico para expor o governo masculino como um governo de força. Ambas as análises nos obrigam a olhar para uma injustiça fundamental. A escolha é buscar o conforto dos mitos ou, como disse Marx, trabalhar por uma ordem social que não exija mitos para sustentá-la.

É possível somar marxismo e feminismo e chamar a soma de “feminismo socialista”. De fato, é provavelmente assim que a maioria das feministas socialistas o vê na maior parte do tempo – como uma espécie de híbrido, promovendo nosso feminismo em círculos socialistas e nosso socialismo em círculos feministas. Um problema de deixar as coisas assim, no entanto, é que isso faz com que as pessoas fiquem se perguntando “Bem, o que ela é realmente?” ou exigindo de nós “Qual é a principal contradição?” Esses tipos de perguntas, que soam tão convincentes e autoritárias, muitas vezes nos fazem parar em nosso caminho: “Faça uma escolha!” “Seja um ou outro!” Mas sabemos que há uma consistência política no feminismo socialista. Não somos híbridas ou defensoras de posições equivocadas.

Para chegar a essa consistência política, temos que nos diferenciar, como feministas, de outros tipos de feministas e, como marxistas, de outros tipos de marxistas. Temos de estabelecer um tipo de feminismo socialista (perdoe a terminologia) e um tipo de socialismo feminista socialista. Só então haverá a possibilidade de que as coisas se “somem” em algo mais do que uma justaposição incômoda.

Acredito que a maioria das feministas radicais e das feministas socialistas concordaria com minha caracterização resumida do feminismo até onde ele vai. O problema com o feminismo radical, do ponto de vista da feminista socialista, é que ele não vai mais longe. Ele permanece paralisado com a universalidade da supremacia masculina – as coisas nunca mudaram de fato; todos os sistemas sociais são patriarcados; o imperialismo, o militarismo e o capitalismo são simplesmente expressões da agressividade masculina inata. E assim por diante.

O problema com isso, do ponto de vista da feminista socialista, não é apenas o fato de deixar de fora os homens (e a possibilidade de reconciliação com eles em uma base verdadeiramente humana e igualitária), mas também o fato de deixar de fora muitas coisas sobre as mulheres. Por exemplo, considerar um país socialista como a China como um “patriarcado” – como já ouvi feministas radicais fazerem – é ignorar as lutas e conquistas reais de milhões de mulheres. As feministas socialistas, embora concordem que há algo atemporal e universal na opressão das mulheres, insistem que ela assume formas diferentes em ambientes diferentes e que as diferenças são de importância vital. Há uma diferença entre uma sociedade em que o sexismo é expresso na forma de infanticídio feminino e uma sociedade em que o sexismo assume a forma de representação desigual no Comitê Central. E vale a pena morrer por essa diferença.

Uma das variações históricas sobre o tema do sexismo que deve preocupar todas as feministas é o conjunto de mudanças que vieram com a transição de uma sociedade agrária para o capitalismo industrial. Essa não é uma questão acadêmica. O sistema social que o capitalismo industrial substituiu era, na verdade, patriarcal, e estou usando esse termo agora em seu sentido original, ou seja, um sistema no qual a produção é centralizada no lar e presidida pelo homem mais velho. O fato é que o capitalismo industrial surgiu e arrancou o tapete do patriarcado. A produção foi para as fábricas, e os indivíduos se separaram da família para se tornarem assalariados “livres”. Dizer que o capitalismo rompeu a organização patriarcal da produção e da vida familiar não significa, é claro, dizer que o capitalismo aboliu a supremacia masculina! Mas é dizer que as formas específicas de opressão sexual que vivenciamos hoje são, em um grau significativo, desenvolvimentos recentes. Há uma enorme descontinuidade histórica entre nós e o verdadeiro patriarcado. Se quisermos entender nossa experiência como mulheres hoje, devemos passar a considerar o capitalismo como um sistema.

Obviamente, há outras maneiras pelas quais eu poderia ter chegado ao mesmo ponto. Eu poderia ter dito simplesmente que, como feministas, estamos mais interessadas nas mulheres mais oprimidas – mulheres pobres e da classe trabalhadora, mulheres do Terceiro Mundo etc. – e, por essa razão, somos levadas à necessidade de compreender e confrontar o capitalismo. Eu poderia ter dito que precisamos nos dirigir ao sistema de classes simplesmente porque as mulheres são membros de classes. Mas estou tentando destacar algo mais sobre a nossa perspectiva como feministas: não há como entender o sexismo que atua em nossas vidas sem colocá-lo no contexto histórico do capitalismo.

Acho que a maioria das feministas socialistas também concordaria com o resumo da teoria marxista até onde ela vai. E o problema, mais uma vez, é que há muitas pessoas (vou chamá-las de “marxistas mecânicos”) que não vão além disso. Para essas pessoas, as únicas coisas “reais” e importantes que acontecem na sociedade capitalista são aquelas relacionadas ao processo produtivo ou à esfera política convencional. De acordo com esse ponto de vista, todas as outras partes da experiência e da existência social – coisas relacionadas à educação, sexualidade, recreação, família, arte, música, trabalho doméstico (você escolhe) – são periféricas à dinâmica central da mudança social; fazem parte da “superestrutura” ou da “cultura”.

As feministas socialistas estão em um campo muito diferente do que estou chamando de “marxistas mecânicos”. Nós (juntamente com muitos, muitos marxistas que não são feministas) vemos o capitalismo como uma totalidade social e cultural. Entendemos que, em sua busca por mercados, o capitalismo é levado a penetrar em todos os cantos e recantos da existência social. Especialmente na fase do capitalismo monopolista, o reino do consumo é tão importante, apenas do ponto de vista econômico, quanto o reino da produção. Portanto, não podemos entender a luta de classes como algo que se limita a questões de salários e horas de trabalho, ou que se limita apenas a questões de local de trabalho. A luta de classes ocorre em todas as áreas em que os interesses das classes entram em conflito, e isso inclui educação, saúde, arte, música etc. Nosso objetivo é transformar não apenas a propriedade dos meios de produção, mas a totalidade da existência social.

Como marxistas, chegamos ao feminismo de um ponto completamente diferente dos marxistas mecânicos. Como vemos o capitalismo monopolista como uma totalidade política/econômica/cultural, temos espaço dentro de nossa estrutura marxista para questões feministas que não têm nada a ver ostensivamente com produção ou “política”, questões que têm a ver com a família, assistência médica, vida “privada”.

Além disso, em nosso tipo de marxismo, não há “questão da mulher” porque nunca compartimentam as mulheres na “superestrutura” ou em algum lugar. Os marxistas de tendência mecânica ponderam continuamente sobre a questão da mulher não assalariada (a dona de casa): ela é realmente um membro da classe trabalhadora? Ou seja, ela realmente produz mais-valia? Dizemos que é claro que as donas de casa são membros da classe trabalhadora – não porque temos alguma prova elaborada de que elas realmente produzem mais-valia – mas porque entendemos que uma classe é composta de pessoas e tem uma existência social completamente separada do reino de produção dominado pelo capitalismo. Quando pensamos em classe dessa forma, vemos que, de fato, as mulheres que pareciam mais periféricas, as donas de casa, estão no centro de sua classe – criando filhos, mantendo famílias unidas, mantendo as redes culturais e sociais da comunidade.

Estamos saindo de um tipo de feminismo e de um tipo de marxismo cujos interesses fluem juntos de forma bastante natural. Acho que agora estamos em uma posição em que podemos ver por que o feminismo socialista tem sido tão mistificado: a ideia do feminismo socialista é um grande mistério ou paradoxo, desde que o que você entende por socialismo seja realmente o que chamei de “marxismo mecânico” e o que você entende por feminismo seja um tipo de feminismo radical a-histórico. Essas coisas simplesmente não se encaixam; elas não têm nada em comum.

Mas se você juntar outro tipo de socialismo e outro tipo de feminismo, como tentei defini-los, você terá algum ponto em comum, e essa é uma das coisas mais importantes sobre o feminismo socialista hoje. É um espaço livre das restrições de um tipo truncado de feminismo e de uma versão truncada do marxismo – no qual podemos desenvolver o tipo de política que aborda a totalidade política/econômica/cultural da sociedade capitalista monopolista. Só poderíamos ir até certo ponto com os tipos de feminismo disponíveis e com o tipo convencional de marxismo, e então tivemos de partir para algo que não fosse tão restritivo e incompleto em sua visão de mundo. Tivemos de adotar um novo nome, “feminismo socialista”, a fim de afirmar nossa determinação de compreender toda a nossa experiência e forjar uma política que reflita a totalidade dessa compreensão.

Entretanto, não quero deixar a teoria feminista socialista como um “espaço” ou um terreno comum. As coisas estão começando a crescer nesse “terreno”. Estamos mais próximos de uma síntese em nossa compreensão de sexo e classe, capitalismo e dominação masculina do que estávamos há alguns anos. Aqui, indicarei apenas um esboço de uma dessas linhas de pensamento:

O entendimento marxista/feminista de que a dominação de classe e de sexo se baseia, em última instância, na força está correto, e essa continua sendo a crítica mais devastadora da sociedade sexista/capitalista. Mas há muito nesse “em última instância”. Em um sentido cotidiano, a maioria das pessoas concorda com a dominação sexual e de classe sem ser mantida na linha pela ameaça de violência e, muitas vezes, sem nem mesmo a ameaça de privação material.

É muito importante, então, descobrir o que é, se não a aplicação direta da força, que mantém as coisas funcionando. No caso da classe, muito já foi escrito sobre por que a classe trabalhadora dos EUA não tem uma consciência de classe militante. Certamente, as divisões étnicas, especialmente a divisão entre negros e brancos, são uma parte importante da resposta. Mas eu diria que, além de estar dividida, a classe trabalhadora foi socialmente atomizada. Os bairros da classe trabalhadora foram destruídos e estão em decadência; a vida se tornou cada vez mais privatizada e voltada para dentro; as habilidades que antes pertenciam à classe trabalhadora foram expropriadas pela classe capitalista; e a “cultura de massa” controlada pelo capitalista superou quase toda a cultura e as instituições próprias da classe trabalhadora. Em vez de coletividade e autossuficiência como classe, há isolamento mútuo e dependência coletiva da classe capitalista.

A subjugação das mulheres, nos moldes característicos da sociedade capitalista tardia, tem sido fundamental para esse processo de atomização da classe. Em outras palavras, as forças que atomizaram a vida da classe trabalhadora e promoveram a dependência cultural/material da classe capitalista são as mesmas forças que serviram para perpetuar a subjugação das mulheres. São as mulheres que estão mais isoladas no que se tornou uma existência familiar cada vez mais privatizada (mesmo quando elas também trabalham fora de casa). Em muitos casos importantes, são as habilidades das mulheres (habilidades produtivas, cura, obstetrícia etc.) que foram desacreditadas ou banidas para dar lugar a mercadorias. São, acima de tudo, as mulheres que são incentivadas a serem totalmente passivas, acríticas e dependentes (ou seja, “femininas”) diante da penetração capitalista generalizada na vida privada. Historicamente, a penetração capitalista na vida da classe trabalhadora tem escolhido as mulheres como alvos principais de pacificação/”feminização”, porque as mulheres são as portadoras da cultura de sua classe.

Portanto, há uma interconexão fundamental entre a luta das mulheres e o que é tradicionalmente concebido como luta de classes. Nem todas as lutas das mulheres têm um impulso inerentemente anticapitalista (particularmente aquelas que buscam apenas aumentar o poder e a riqueza de grupos especiais de mulheres), mas todas aquelas que criam coletividade e confiança coletiva entre as mulheres são de importância vital para a construção da consciência de classe. Por outro lado, nem todas as lutas de classe têm um impulso inerentemente antissexista (especialmente aquelas que se apegam a valores patriarcais pré-industriais), mas todas aquelas que buscam construir a autonomia social e cultural da classe trabalhadora estão necessariamente ligadas à luta pela liberação das mulheres.

Essa é, em linhas gerais, uma das direções que a análise feminista socialista está tomando. Ninguém está esperando que surja uma síntese que reduza a luta socialista e feminista à mesma coisa. Os resumos em cápsulas que fiz anteriormente mantêm sua verdade “última”: há aspectos cruciais da dominação capitalista (como a opressão racial) que uma perspectiva puramente feminista simplesmente não consegue explicar ou tratar – sem distorções bizarras, é claro. Há aspectos cruciais da opressão sexual (como a violência masculina dentro da família) que o pensamento socialista tem pouca percepção – mais uma vez, não sem muita extensão e distorção. Daí a necessidade de continuarmos a ser socialistas e feministas. Mas há uma síntese suficiente, tanto no que pensamos quanto no que fazemos, para que comecemos a ter uma identidade autoconfiante como feministas socialistas.

Colaborador

Barbara Ehrenreich é autora de mais de uma dúzia de livros, incluindo os best-sellers do New York Times Nickel e Dimed. Seu último livro é Natural Causes: An Epidemic of Wellness, the Certainty of Dying, and Killing Ourselves to Live Longer.

26 de julho de 2018

"Capitalismo, responsável pela exploração destrutiva da natureza"

A fim de evitar as armadilhas do primitivismo - que faz do retorno à natureza o único recurso - e também os becos sem saída do transumanismo - que procura transcender a natureza humana - o filósofo Alain Badiou propõe reativar a ideia comunista.

Alain Badiou


Tradução / Nos dias de hoje, tornou-se lugar comum prever o fim da raça humana tal como a conhecemos. Existem várias razões para tais previsões. De acordo com um tipo de ambientalismo messiânico, as excessivas predações de uma humanidade bestial logo trarão o fim da vida na Terra. Enquanto isso, aqueles que, ao contrário, apontam para avanços tecnológicos desenfreados, profetizam, indiscriminadamente, a automação de todo o trabalho pelos robôs, os grandes desenvolvimentos na computação, a arte gerada automaticamente, matadores automáticos revestidos de plástico e os perigos de uma inteligência super-humana.

De repente, vemos o surgimento de categorias ameaçadoras como o transhumanismo e o pós-humano – ou, sua imagem espelhada, um retorno ao nosso estado animal – dependendo se profetiza-se com base na inovação tecnológica ou lamenta-se todos os ataques à Mãe Natureza.

Para mim, todas essas profecias são apenas um barulho ideológico, destinado a obscurecer o perigo real a que a humanidade está hoje exposta: isto é, o impasse a que o capitalismo globalizado está nos conduzindo. De fato, é essa forma de sociedade – e somente ela – que permite a exploração destrutiva dos recursos naturais, precisamente porque conecta essa exploração à busca ilimitada pelo lucro privado. O fato de que tantas espécies estão ameaçadas, que a mudança climática não pode ser controlada, que a água está se tornando um tesouro raro, é um subproduto da impiedosa competição entre predadores bilionários. Não há outra razão para o fato de que a inovação científica está sujeita à questão de quais tecnologias podem vender, em um mecanismo de seleção anárquico.

A pregação ambientalista às vezes usa descrições persuasivas do que está acontecendo – apesar dos exageros típicos do profeta. Mas na maioria das vezes isso se torna mera propaganda, útil para aqueles estados que querem mostrar seu rosto amigável. Assim como o é para as multinacionais que querem que acreditemos – para o maior benefício de seus balanços – na pureza natural, fraterna e nobre das mercadorias que eles traficam.

O fetichismo da tecnologia e a série ininterrupta de “revoluções” neste domínio – das quais a “revolução digital” é a mais em voga – espalharam constantemente tanto as crenças de que ela nos levará ao paraíso de um mundo sem trabalho – com robôs para nos servir, e nós deixando livres ao ócio – e também, por outro lado, que esse “pensamento” digital irá esmagar o intelecto humano. Hoje não há uma revista que não informe seus impressionados leitores da iminente “vitória” da inteligência artificial sobre a natural. Mas na maioria dos casos, nem a “natureza” nem o “artificial” são definidos de maneira clara ou adequada.

Desde a sua origem a filosofia também dedicou uma grande dose de pensamento para a tecnologia, ou as artes. Os gregos meditavam sobre a dialética da Techne e Physis – uma dialética dentro da qual eles situavam o animal humano. Eles estabeleceram a base para que esse animal fosse visto como “uma vareta, a mais fraca da natureza, mas … uma vareta pensante”. Para Pascal, isso significava que a humanidade era mais forte que a natureza e mais próxima de Deus. Há muito tempo, eles viram que o animal capaz de matemáticas faria grandes coisas à ordem da materialidade.

São estes “robôs” sobre os quais eles continuam martelando qualquer coisa mais do que o cálculo na forma de uma máquina? Dígitos em movimento? Sabemos que eles podem contar mais rápido que nós, mas fomos nós que os inventamos, precisamente para cumprir essa tarefa. Seria estúpido olhar para um guindaste levantando um pilar de concreto até uma grande altura, usar isso para argumentar que o homem é incapaz da mesma façanha, e então concluir dizendo que algum gigante muscular sobrehumano emergiu … Contagem-relâmpago também não é sinal de uma “inteligência” insuperável. O transumanismo tecnológico toca a mesma velha melodia – um tema inesgotável de filmes de terror e ficção científica – do criador dominado por sua própria criação. Ele o faz emocionado com o advento do super-homem – algo que esperávamos desde Nietzsche – ou temendo-o e refugiando-se sob a saia de Gaia, a Mãe Natureza.

Vamos colocar as coisas em um pouco mais de perspectiva.

Durante quatro ou cinco milênios, a humanidade foi organizada pela tríade da propriedade privada – que concentra enorme riqueza nas mãos de oligarquias muito estreitas; da família, na qual as fortunas são transmitidas via herança; e do estado, que protege a propriedade e a família pela força armada. Essa tríade definiu a era neolítica de nossa espécie, e nós ainda estamos neste ponto – podemos até dizer, agora mais do que nunca. O capitalismo é a forma contemporânea do neolítico. Sua escravização da tecnologia ao interesse da competição, do lucro e do capital concentrador apenas eleva em sua extensão as desigualdades monstruosas, os absurdos sociais, as guerras assassinas e as ideologias prejudiciais que sempre acompanharam a implantação de novas tecnologias sob o domínio da classe hierárquica ao longo da história.

Devemos deixar claro que as invenções tecnológicas foram as condições preliminares da chegada da era neolítica, e de modo algum seu resultado. Se considerarmos o destino da nossa espécie, vemos que a agricultura sedentária, a domesticação de gado e cavalos, cerâmica, bronze, armas metálicas, escrita, nacionalidades, arquitetura monumental e as religiões monoteístas são invenções pelo menos tão importantes quanto o avião ou a Smartphone. Ao longo da história, o que quer que tenha sido humano sempre foi, por definição, artificial. Se isso não existisse, não haveria a humanidade neolítica – a humanidade que conhecemos -, mas uma permanente proximidade com a vida animal; algo que realmente existiu, na forma de pequenos grupos nômades, por cerca de 200.000 anos.

Um primitivismo temeroso e obscurantista tem suas raízes no conceito falacioso do “comunismo primitivo”. Hoje podemos ver esse culto das antigas sociedades em que bebês, homens, mulheres e idosos supostamente viviam em fraternidade, sem nada artificial, e de fato viviam em comum com os ratos, as rãs e os ursos. Em última análise, tudo isso não é nada além de propaganda reacionária ridícula. Pois tudo sugere que as sociedades em questão eram extremamente violentas. Afinal, até mesmo suas necessidades mais básicas de sobrevivência estavam constantemente sob ameaça.

Falar com medo da vitória do artificial sobre a natureza, do robô sobre o homem, é hoje uma regressão insustentável, algo verdadeiramente absurdo. É bastante fácil responder a tais medos, tais profecias. Ao julgar por este padrão, até mesmo um simples machado, ou um cavalo domesticado, para não mencionar um papiro coberto de símbolos, é um caso exemplar do pós ou trans-humano. Até um ábaco permite cálculos mais rápidos que os dedos da mão humana.

Hoje não precisamos nem de um retorno ao primitivismo, nem do medo das “devastações” que o advento da tecnologia pode trazer. Tampouco há qualquer utilidade no fascínio mórbido pela ficção científica de robôs conquistadores. A tarefa urgente que enfrentamos é a busca metódica por uma saída da ordem neolítica. Esta última durou milênios, valorizando apenas a competição e a hierarquia e tolerando a pobreza de bilhões de seres humanos. Deve ser superada a todo custo. Exceto, isto é, ao custo das guerras de alta tecnologia tão bem conhecidas na era neolítica, na linhagem das guerras de 1914-1918 e 1939-1945, com suas dezenas de milhões de mortos. E desta vez poderia ser muito mais.

O problema não é tecnologia ou a natureza. O problema é como organizar as sociedades em escala global. Precisamos postular que uma maneira não-neolítica de organizar a sociedade é possível. Isso significa que não há propriedade privada daquilo que deve ser tido em comum, ou seja, a produção de todas as necessidades da vida humana. Isso significa que não há poder herdado ou concentração de riqueza. Nenhum estado separado para proteger as oligarquias. Nenhuma divisão hierárquica do trabalho. Nenhuma nação, e nenhuma identidade fechada e hostil. Uma organização coletiva de tudo que é de interesse coletivo.

Tudo isso tem um nome, na verdade, um bonito nome: comunismo. O capitalismo é apenas a fase final das restrições que a forma neolítica de sociedade impôs à vida humana. É o estágio final do Neolítico. A humanidade, esse belo animal, deve dar um último impulso para sair de uma condição em que 5.000 anos de invenções serviram a um punhado de pessoas. Por quase dois séculos – desde Marx, de qualquer forma – sabemos que temos que começar a nova era. Uma era de tecnologias incríveis para todos nós, de tarefas distribuídas igualmente entre todos nós, da partilha de tudo e da educação que afirma a genialidade de todos. Talvez este novo comunismo, em toda parte e em toda questão, resista à sobrevivência mórbida do capitalismo. Esse capitalismo, essa aparente “modernidade”, representa um mundo neolítico que, de fato, vem acontecendo há cinco milênios. E isso significa que ele é velho – velho demais.

Estudo do FMI aponta que ajuste fiscal na América Latina também reduz PIB

Não surpreende que estejamos na mais lenta recuperação da história das crises brasileiras

Laura Carvalho


A diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde. Saul Loeb/AFP.

Conforme destacado neste espaço na quinta (19) e em reportagem publicada pela Folha na segunda (23), o FMI reduziu as projeções de crescimento da economia brasileira de 2,3% para 1,8% em 2018.

Embora o relatório tenha responsabilizado sobretudo a paralisação dos caminhoneiros e incertezas ligadas às eleições deste ano, não é a primeira vez que o Fundo muda suas expectativas de crescimento para o nosso PIB desde o início da crise: foram mais de dez revisões no crescimento projetado desde abril de 2014.

O grande número de alterações faz lembrar a sucessão de erros do Fundo quando projetou a retomada das economias da periferia europeia no pós-crise. As frustrações foram tantas que levaram seu departamento de pesquisa a fazer um mea-culpa, com grande repercussão à época.

No artigo intitulado “Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers”, publicado em janeiro de 2013, os autores, o então economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, e o pesquisador Daniel Leigh, concluíram que, “nas economias avançadas, consolidações fiscais mais fortes estiveram associadas a um crescimento menor que o esperado”.

“Uma interpretação natural é que os multiplicadores fiscais foram substancialmente mais altos do que o assumido implicitamente pelos que realizavam as projeções”, resumiram.

Quando confrontados com a forte evidência empírica de que os cortes de gastos e investimentos públicos adiaram muito a retomada em países como Grécia e Portugal, muitos analistas sustentam a tese de que nosso caso é diferente.

Nas economias latino-americanas, os multiplicadores fiscais, que medem o tamanho da redução do nível de renda e emprego nas economias após um corte nos gastos públicos, por exemplo, seriam menores do que nos países ricos. Alguns chegaram a defender a visão extrema de que, nos trópicos, os cortes no Orçamento poderiam até estimular o crescimento.

Os resultados de um novo estudo publicado pelo FMI, em junho de 2018, contradizem essa tese. No Working Paper 18/142, intitulado “Macroeconomic Effects of Fiscal Consolidation in Emerging Economies: Evidence from Latin America”, os pesquisadores Yan Carrière-Swallow, Antonio David e Daniel Leigh montaram nova base de dados a partir dos ajustes fiscais anunciados e implementados nos países latino-americanos entre 1989 e 2016 e concluíram que a redução dos diferentes componentes do PIB causada pelos cortes de gasto e/ou aumentos de imposto é de magnitude muito similar à encontrada para os países ricos.

As estimativas do estudo sugerem que um corte de gastos no valor de 1% do PIB provoca contração de 0,9% na renda das economias da América Latina após dois anos, ante 0,7% nos 17 países da OCDE que compõem a base de dados analisada. Já o efeito sobre o desemprego é um aumento de 0,3 pp (ponto percentual) na América Latina, ante 0,5 pp nos países ricos, que têm grau menor de informalidade.

As evidências acumuladas ao redor do mundo apontam para um efeito ainda maior no caso de um ajuste baseado no corte de investimentos públicos: o estudo de Manoel Pires de 2014, por exemplo, estimou um multiplicador de investimentos de 1,4 para o Brasil (ante -0,28 no caso das elevações de imposto).

Diante da queda no total de investimentos feitos por governos estaduais, municipais, federal e empresas estatais de 3,9% do PIB em 2014 para 2% do PIB em 2017 —um patamar inferior ao de 1999, segundo dados do relatório da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado—, não surpreende que estejamos na mais lenta recuperação da história das crises brasileiras.

Sobre o autor


Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

Nova biografia apresenta Karl Marx sem cair na tentação maniqueísta

Celso Rocha de Barros
Marcos Lisboa

Folha de S.Paulo

August Diehl como Marx no filme "O Jovem Karl Marx" (2017), de Raoul Peck. Crédito: Divulgação

[RESUMO] Biografia "Karl Marx: Grandeza e Ilusão" tem como maior mérito a reconstituição do ambiente em que se deu a formação intelectual do jovem Marx, fundamental para entender como ele passou a pensar o capitalismo. Livro ainda discute com competência fracassos e insights do alemão, mas se concentra pouco em "O Capital".

*

Os países desenvolvidos passaram por transformação espantosa a partir de 1700: a renda por habitante cresceu mais de 50 vezes e a expectativa de vida aumentou em 40 anos.

Para ter uma noção do imenso avanço, a dieta típica de um habitante de um país rico no começo do século 18, como a França, não era melhor do que a de um morador de um dos países mais pobres do mundo na segunda metade do século 20, como Ruanda. Esse notável desempenho, entretanto, não veio sem solavancos.

A transição para o capitalismo foi particularmente dolorosa. A rápida e desordenada urbanização e a superabundância de trabalhadores vindos do campo resultaram em salários baixos, condições sanitárias inadequadas, moradias precárias e proliferação de doenças transmissíveis.

Para a maioria da população nos países desenvolvidos, foi um período de retrocesso, com queda da expectativa de vida e de outros indicadores socioeconômicos.

A pobreza, antes escondida nos campos, tornou-se visível nas cidades, onde a degradação contrastava com um aumento da riqueza que parecia inexoravelmente restrito a poucos. Não surpreende que então tenham surgido movimentos bastante críticos ao capitalismo nascente.

Karl Marx (1818-83) foi o mais famoso dos intelectuais revolucionários do século 19, e sua vida é contada na biografia "Karl Marx: Grandeza e Ilusão" [Companhia das Letras, 784 págs., R$ 79,90], de Gareth Stedman Jones, ex-editor da revista "New Left Review".

O maior mérito da biografia talvez esteja na reconstituição do ambiente em que se deu a formação intelectual do jovem Marx. Quem já estudou o autor de "O Capital" e "Manifesto Comunista" sabe que as disputas em torno do legado de Hegel e a relação entre essas disputas e a política prussiana da época podem ser temas áridos.

Entretanto, são fundamentais para entender como o pensador alemão passou da discussão da religião como projeção de conflitos terrenos para a discussão do Estado como projeção de conflitos na sociedade civil, e daí para a discussão do capitalismo.

Ao reconstituir esses debates, Jones mostra como as ideias filosóficas radicais de emancipação do jovem Marx o acompanharam por toda a vida. Durante sua evolução intelectual, o pensador procurou conciliar essa visão emancipatória da juventude com a crítica do capitalismo, formulada muitos anos depois —e aqui ele fracassou.

Se o tratamento dado ao jovem Marx é cuidadoso, o livro como um todo apresenta-se desbalanceado. Jones poderia ter gasto menos espaço com querelas políticas menores e se concentrado no fundamental: a obra tardia e inconclusa de seu biografado, "O Capital".

ACERTOS

A análise econômica de Marx combina alguns momentos de impressionante percepção, para a época, com outros recheados de argumentos inconsistentes.

Começamos pelos melhores momentos. A maioria dos intelectuais de então associava a miséria urbana apenas à substituição da classe dominante. Onde antes havia os grandes senhores herdeiros do feudalismo, agora reinava a burguesia. Marx, porém, desde meados dos anos 1840, reconhecia que o capitalismo trazia algo além de uma nova forma de opressão.

Como escreveu Jones: "Karl foi o primeiro a evocar os poderes aparentemente ilimitados da economia moderna e o seu alcance verdadeiramente global. Foi o primeiro a mapear a assombrosa transformação produzida em menos de um século pelo surgimento de um mercado mundial e pelo desencadeamento das forças sem precedentes da indústria moderna".

Em "O Capital", Marx oferece uma explicação nova para o sucesso da nova ordem em produzir tantas inovações e aumento da produtividade: a concorrência.


Na medida em que um produtor individual seja capaz de introduzir uma mudança que reduza seus custos em relação aos demais produtores, ele obtém um retorno adicional (mais-valia extraordinária, no jargão de Marx). Esse ganho não é duradouro, pois logo seus concorrentes tentam copiá-lo. Mas o retorno, mesmo que temporário, estimula a inovação.

Esse argumento foi posteriormente difundido por Schumpeter e se tornou lugar-comum nos livros de economia.

Em outros momentos, entretanto, o pensador alemão erra feio.

ERROS

Seguindo uma variação do argumento dos economistas clássicos, Marx supõe que o valor das mercadorias é determinado pela quantidade de trabalho necessária à sua produção.

Os salários, por sua vez, são determinados pelo valor da cesta de bens necessários à subsistência dos trabalhadores. Os trabalhadores, porém, produzem mais do que o necessário à sua sobrevivência. A diferença é a mais-valia apropriada pelos donos dos meios de produção.

Segundo Marx, os ganhos de produtividade decorrentes da concorrência terminariam por reduzir a quantidade de trabalho utilizada na produção das mercadorias, aumentando a relação capital/trabalho. Como, para o autor de "O Capital", apenas o trabalho gera valor, o resultado seria a tendência à queda da taxa de lucro, que resultaria na crise do capitalismo.

Marx, entretanto, não consegue demonstrar analiticamente a sua conjectura. Para seu mérito, deve-se ressaltar que ele reconhece as dificuldades, ainda que fracasse sistematicamente ao tentar superá-las nos manuscritos do volume 3 de "O Capital".

Suas conjecturas sobre salários e lucros foram igualmente derrotadas pelos dados das principais economias desde 1900.

Os salários não permaneceram no nível de subsistência, mas cresceram com a produtividade do trabalho; a taxa de retorno do capital não apresentou tendência de queda ao longo do século 20, e sim permaneceu relativamente estável em meio a oscilações ocasionais. E o mesmo é verdade sobre as participações dos salários e da remuneração do capital na renda nacional dos países desenvolvidos.

Como se sabe, Marx se defrontou com problemas analíticos igualmente intransponíveis ao propor que a sua teoria do valor trabalho explicaria o preço das mercadorias.

Os manuscritos preparatórios de "O Capital" (os "Grundrisse") mostram que o plano inicial era muito ambicioso. Tratava-se de analisar o processo de construção social que resultou no capitalismo, na formação do Estado moderno e na constituição do mercado global, além de descrever a causa da sua crise inevitável: a trajetória de queda da taxa de lucro.

Dados os imensos problemas com os argumentos, não surpreende que Marx tenha revisto seu projeto original e decidido publicar, nos termos de Jones, "uma obra muito mais descritiva (...) do que em progressão dialética".

Jones também aponta, corretamente, que grande parte de "O Capital" se concentra na análise "factual do desenvolvimento e do estado das relações entre capital e trabalho, sobretudo na Inglaterra". Ele destaca a extraordinária quantidade de estatísticas, relatórios e informações da imprensa utilizados para descrever as condições de vida dos trabalhadores.

"O Capital" também inclui uma análise da produtividade crescente da agricultura, que tem como efeito colateral a expulsão dos camponeses para as cidades. Daí por que, para o biógrafo, Marx foi "um dos principais fundadores (...) do estudo sistemático de história social e econômica".

SEM DOGMATISMO

Resta-nos concordar com o diagnóstico de Jones: "Se 'O Capital' se tornou um marco no pensamento do século 19, não foi por ter identificado as 'leis do movimento' do capital. (...) [E]mbora tenha produzido um poderoso retrato da miséria (...) [e] das condições de vida dos trabalhadores (...), não conseguiu estabelecer uma ligação lógica e convincente entre o avanço da produção capitalista e a pauperização dos trabalhadores".

Finalmente, Jones acerta ao criticar a análise da democracia na reflexão geral de Marx. Quando o autor do "Manifesto Comunista" se depara com a formação dos primeiros partidos social-democratas, fica claro que sua visão de política era ainda demasiadamente influenciada pela Revolução Francesa.

Marx compreendeu que uma sociedade capitalista era completamente diferente de outros tipos de sociedade, mas não que uma sociedade democrática era completamente diferente de uma sem democracia, o que surpreende, dado seu sucesso como jornalista político.

Após a morte de Marx, as muitas inovações tecnológicas produzidas pela economia de mercado e a expansão das políticas públicas, em meio às pressões típicas nas democracias, permitiram a melhora da qualidade de vida já nas primeiras décadas do século 20.

De 1890 a 1930, a expectativa de vida aumentou 14 anos na Inglaterra e 16 anos nos Estados Unidos. Além disso, a jornada de trabalho caiu em cerca de 20 horas semanais de 1890 a 1990.

A desigualdade de renda na Inglaterra, medida pelo índice de Gini, caiu de 0,65, no começo do século 19, para 0,55, no começo do século 20, atingindo 0,32 em 1973 (quanto mais perto de zero, menor a desigualdade).

Crises ocasionais ocorreram, algumas muito severas, como a de 1929 e a de 2008, mas o resultado de longo prazo foi uma queda sem precedentes da pobreza.

Como Jones enfatiza, muitas das contradições e tensões presentes na reflexão do velho Marx desapareceram quando se constituiu o marxismo tal como o conhecemos. Foi Engels quem, no trabalho de edição das obras póstumas, e em especial em seu livro "Anti-Dühring", apresentou o marxismo como um sistema que deveria ser, para as ciências históricas, o que o darwinismo foi para a biologia.

Essa visão de um processo mecânico inevitável que levaria ao socialismo foi acolhida pelos socialistas alemães num período em que a repressão lhes dificultava a atuação política. Quando puderam disputar eleições, tiveram enorme sucesso, e essa versão do marxismo difundiu-se pela Europa, inclusive na Rússia.

Como sabemos, mais tarde os socialistas alemães começariam a revisão crítica do legado marxista, mas, àquela altura, a história na Rússia já seguia outro caminho.

A biografia de Gareth Stedman Jones discute com competência tanto os fracassos quanto os insights de Karl Marx. Quem sabe esse resgate possa colaborar para enfrentar a narrativa cheia de som e fúria da política contemporânea.

CELSO ROCHA DE BARROS, 44, colunista da Folha, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford.

MARCOS LISBOA, 53, economista, é presidente do Insper e colunista da Folha.

25 de julho de 2018

O socialismo democrático é sobre democracia

No núcleo do socialismo democrático está uma ideia bem simples: a democracia é boa e deve ser expandida.

Shawn Gude

Jacobin

Assembleia dos membros do Sindicato de Funcionários da United Food and Commercial em novembro de 2013. Foto: UFCW Local400 / Flickr

Tradução / Há muitas maneiras de se falar sobre socialismo democrático. Algumas pessoas se concentram em justiça e igualdade. Outras enfatizam a necessidade de consertar as "irracionalidades" do capitalismo. Outras ainda falam sobre "transformar a miséria histérica em uma tristeza qualquer".

A socialista democrática do momento nos EUA, Alexandria Ocasio-Cortez, um tempo atrás forneceu sua própria definição de socialismo democrático no programa de Stephen Colbert:

Acredito que em uma sociedade moderna, justa e rica, nenhuma pessoa nos Estados Unidos deveria ser pobre demais para viver. Então, isso significa saúde como um direito humano. Isso significa que todas as crianças, não importa onde nasçam, devem ter acesso a uma faculdade ou escola técnica se assim o escolherem. E, sabe, acho que ninguém deveria ficar sem um teto se podemos ter estruturas públicas e políticas públicas que permitam que as pessoas tenham casas e comida e que tenham uma vida digna nos Estados Unidos.

Nada mal.

Mas eu enfatizaria o seguinte: o socialismo democrático, em sua essência, é sobre o aprofundamento da democracia onde ela já exista e a inserção da democracia onde ela esteja ausente. Em países como os EUA, isso significa incrementar o escopo do controle popular na arena política e ampliá-lo para incluir as esferas social e econômica.

Isso pode soar bastante inócuo – quem se diz contra a democracia nos dias atuais? Mas os socialistas democráticos têm em mente algo mais abrangente. Para nós, a democracia não é simplesmente uma fusão banal de procedimentos, um conjunto incontroverso de normas e regras que todos podem apoiar. É a ideia bem radical de que as pessoas comuns - não os especialistas, não os membros das elites, não os seus "melhores" - podem governar a si mesmas. É a palavra que usamos para descrever o achatamento de hierarquias íngremes, a quebra de estruturas que conferem riqueza, poder e privilégios indevidos.

Quando a democracia está em marcha, ela retira do caminho déspotas estatais e autocratas privados. Ela toma o poder de decisão das mãos dos titãs corporativos, arranca o cassetete das mãos do policial violento, despoja o marido dominador de sua autoridade. Ela coloca os poderes imperiais de joelhos e ergue a coluna do súdito colonial, do escravo, do trabalhador.

Os socialistas democratas traçam sua linhagem a partir dessa longa História de lutas de baixo para cima. Em eras anteriores, reis e igrejas reinavam sobre seus súditos. Com o advento do capitalismo, as correntes do feudalismo foram quebradas, mas surgiram novas formas de dominação. Aqueles que possuíam os meios de atividade econômica - as fábricas, as minas, as ferrovias - gozavam de extraordinário poder sobre aqueles que só tinham seu trabalho para vender.

O movimento socialista – organizado por meio de partidos trabalhistas, de sindicatos radicais e outras associações da classe trabalhadora – surgiu em resposta a isso. Os socialistas levaram os ideais iluministas de autonomia e autodeterminação à sua conclusão lógica e perguntaram: se todos os humanos são iguais, o que dá a uma pessoa o direito de governar arbitrariamente sobre outra? Por que o capital deveria ser o rei?

Essa ideia básica deu ânimo aos socialistas democráticos ao longo dos séculos XIX e XX.

Os primeiros partidos socialistas europeus lutaram contra as restrições ao voto de classe e os controles sobre a liberdade de imprensa. Eugene Debs, o tribuno do socialismo estadunidense, denunciou a Primeira Guerra Mundial como uma fuga antidemocrática e gritou pela derrubada dos "Barões de Wall Street". Os socialistas organizaram movimentos trabalhistas militantes que substituíram o despotismo no local de trabalho por rudimentos de direitos democráticos (a Ford Motor Company, para ficarmos apenas em um exemplo, empregava espiões e capangas para manter os trabalhadores na linha). Bayard Rustin, o líder socialista dos direitos civis, contribuiu com conhecimento tático essencial para derrubar um sistema de castas raciais que asfixiava a democracia estadunidense. Feministas socialistas derrubaram as paredes entre o público e o privado e enfatizaram a necessidade de colocar os parceiros românticos em pé de igualdade. Mais recentemente, socialistas democráticos lideraram a resistência ao colonialismo na Jamaica, ao domínio corporativo na Bolívia e às leis anti-aborto na Argentina.

No entanto, apesar de avanços significativos, ainda convivemos com muitos dos despotismos que os primeiros socialistas abominavam.

O local de trabalho é um dos exemplos mais flagrantes. O lugar onde a maioria das pessoas passa a maior parte de suas vidas adultas, é também um lugar onde os trabalhadores renunciam às suas liberdades democráticas mais básicas. Os chefes podem demitir seus subordinados por quase qualquer motivo; podem dizer aos trabalhadores o que dizer e o que não dizer; podem decidir se querem manter as instalações da empresa onde estão ou transferi-las para o exterior. Eles sozinhos determinam como gastar os lucros da empresa e como investir os recursos que a empresa gerar.

A democracia diz que as pessoas deveriam ter controle igualitário sobre as decisões que afetam suas vidas. O capitalismo gargalha na cara dela.

Ou então vamos considerar um espaço mais democrático, a arena política. Apesar de garantias formais de um voto por pessoa – o que em si mesmo já foi um triunfo dos movimentos democráticos anteriores – as desigualdades de riqueza que o capitalismo cria inevitavelmente se infiltram no processo político tradicional. Os ricos financiam políticos, financiam think tanks e enviam seus lobistas. Eles influenciam quais candidatos a políticos vão subir nas pesquisas, quais ideias circulam de maneira ampla e quais tipos de políticas públicas os governantes eleitos devem priorizar.

Além disso, os interesses empresariais ainda possuem um trunfo crucial: eles controlam as alavancas da economia. Em certos momentos da história da democracia capitalista - especialmente nas décadas após a Segunda Guerra Mundial, em países como a Suécia - os trabalhadores organizados foram fortes o suficiente e os partidos de esquerda tinham poder o bastante para que aqueles que foram historicamente marginalizados pudessem falar com uma voz política relativamente forte. No entanto, como os líderes empresariais eram capazes de efetivamente levar a economia à paralisação, seus interesses tinham de ser levados em consideração. A "confiança empresarial" venceu a "igualdade política".

Para os socialistas, isso é inaceitável. Nós simplesmente não conseguimos tolerar um arranjo social que sistematicamente domestica a democracia - especialmente em áreas tão centrais na vida diária das pessoas.

Todas as reformas radicais que defendemos têm como objetivo aumentar a quantidade e o grau de decisões, relacionamentos e estruturas da sociedade que operam de acordo com os princípios democráticos. O controle do capital sobre o investimento lhe dá muita voz sobre a direção da economia política; nós devemos socializar as indústrias-chave e fomentar as cooperativas de trabalhadores. O sistema de imigração transforma as pessoas em párias; devemos abolir instituições como o ICE nos EUA e permitir que todos votem, tenham documentos regulares no país ou não. Depender de moradias privadas oferece aos desenvolvedores uma influência injustificável sobre os meios de sobrevivência das pessoas; devemos construir milhões de unidades de moradia social. O imperialismo dos Estados Unidos mina brutalmente os movimentos democráticos em países de todo o mundo; devemos desmantelar o império da América. A existência de empresas de combustíveis fósseis ameaça nossa capacidade de até mesmo poder tomar decisões populares no futuro; devemos tirá-las de operação.

Aqueles que possuem poder não gostam de ser privados dele. Quer sejam reis ou patriarcas, capitalistas ou policiais, a ameaça de uma mudança em direção a uma maior igualdade de poder pode levar a um contra-ataque feroz. No entanto, recuar diante da oposição das elites é aceitar uma ordem social ainda repleta de relações entre senhores-e-servos. Um mundo melhor, um mundo mais democrático é possível.

Colaborador

Shawn Gude é editor associado da Jacobin.

23 de julho de 2018

A questão da Rússia e da esquerda

Obter ganho político atacando Donald Trump como fantoche de Vladimir Putin é errado e perigoso.

Corey Robin

Jacobin

Donald Trump e Vladimir Putin fazem declarações à imprensa durante seu encontro em Helsinque, Finlândia, 16 de julho de 2018. Kremlin / Wikimedia

Tradução / Recentemente, tem havido uma ampla discussão nas redes sociais sobre a Rússia, Vladimir Putin, Donald Trump e as reações dos grupos de esquerda a esses temas. Participei ativamente dessas conversas. No último fim de semana, a discussão tomou um rumo inesperado quando Scott Horton, professor de Direito na Columbia e colaborador da Harper’s, fez especulações selvagens e irresponsáveis sobre um possível apoio russo a determinados candidatos democratas nas primárias das eleições atuais.

Nesta manhã, Ryan Cooper opinou sobre o assunto na Week. Discordo de onde ele se manifesta sobre o assunto.

Quero dizer desde já que considero Cooper um aliado. Não o conheço pessoalmente, mas admiro muito o seu trabalho. Seguimos nas redes sociais e retuitamos frequentemente os artigos e publicações uns dos outros. Estamos engajados no mesmo projeto: estamos ambos na ala Sanders da esquerda; queremos centrar a conversa política na economia, na injustiça racial, numa política externa menos imperial e assim por diante; estamos interessados nas possibilidades eleitorais para a esquerda agora.

Como Ryan deixa claro, ele tem sido bastante cético em relação a partes da história da Rússia e, embora tenha reconsiderado sua posição sobre essa história, ele não quer fazer da Rússia o item central da conversa pública. Ele não é um cara espumante na boca, traidor.

Então, esse é o comentário de um esquerdista para outro, que em sua maioria concordam um com o outro.

Ryan acha que a esquerda precisa levar a sério a Rússia e a interferência na eleição. É esse movimento — o chamado para ficar sério (as frases que Ryan usa são “sábio” e “prestar atenção”) — que eu não gosto. É tão impregnado de ruído ambiente — por um lado, é um significante flutuante de algo mais; por outro lado, é tão livre de especificidades que torna difícil saber exatamente como se engajar nela como uma discussão útil ou prática da esquerda — que está fadada a gerar mais confusão, talvez sigla, do que nos ajudar a avançar.

A esquerda que precisa ficar séria é o equivalente à mancha rosa em O Gato do Chapéu Volta: toda vez que você tenta lavá-la, a mancha simplesmente pula para qualquer material que você esteja usando para lavá-la. Toda vez que você tenta “ficar sério”, a necessidade de ficar sério passa para alguma outra superfície.

Uma boa parte do que Ryan escreve aqui é incensurável e eu não discordo. Aceito a história de que os russos hackearam a eleição (ou seja, que fizeram tentativas de invadir os sistemas de registro de eleitores nos estados, que hackearam os e-mails do DNC e Podesta e que financiaram bots de mídia social e afins); que eles queriam que Trump vencesse (não por qualquer razão de construir uma aliança etnonacionalista, mas simplesmente porque Clinton foi clara durante toda a campanha que pretendia romper com os esforços de Obama para acomodar a Rússia e os russos acreditavam que estariam melhor com Trump do que com Clinton), e que seus esforços foram montados nessa direção. Não tenho dificuldade em aceitar essa conta, de forma alguma.

A questão é o que se segue disso. Na minha opinião, significa simplesmente reforçar os esforços de cibersegurança. Tenho apontado nas redes sociais que o dinheiro já foi destinado aos estados para esse efeito, mas muito desse dinheiro não foi gasto. Mas houve outros projetos de lei e medidas tomadas, que, como Seth Ackerman apontou, quase não receberam atenção nessas discussões (além de uma breve menção, Ryan não lhes dá atenção alguma).

A posição da esquerda sobre tudo isto deveria ser simplesmente a de que devem ser tomadas medidas prudenciais para garantir eleições democráticas — embora sempre salientando que, se as eleições democráticas são realmente a sua grande preocupação, há muitas outras ameaças mais concretas às eleições democráticas neste país, a começar pelo Colégio Eleitoral.

Além disso, a esquerda deve responsabilizar não apenas os republicanos, mas também os democratas por essas medidas (algumas dessas legislaturas estaduais onde os sistemas de votação são vulneráveis são controladas pelos democratas, e eles fizeram muito pouco a respeito).

Mas não é bem aí que Ryan vai nesta peça. Em vez disso, ele toma duas atitudes diferentes.

Uma delas é enfatizar o feno político que pode ser feito ao atacar Trump como fantoche de Putin.

Putin tem sujeira em Trump e está usando isso para manipulá-lo. A maneira como Trump se comporta em torno de Putin – curvando-se silenciosamente e raspando, tomando sua palavra sobre o próprio chefe de inteligência dos EUA e, assim, incitando a reação até mesmo dos republicanos (não muito, mas mais do que o normal) – é simplesmente descontroladamente fora de caráter. Só não soma. Esse é o tipo de narrativa simples e alarmante que pode romper o ruído. [Ryan está se dirigindo àquelas pessoas que dizem que o público não se importa com a Rússia. Ele está dizendo que eles podem se importar em breve, especialmente se concentrarmos a atenção nisso.] Suspeito fortemente que, nos próximos seis meses a ano, o Russiagate se tornará uma maior fonte de atenção pública e, portanto, uma vulnerabilidade potencial decente para Trump. Se assim for, não faria sentido evitar trazer esse ataque, além de um forte programa político tradicional. Não é preciso ser um nacionalista espumante para se preocupar que o presidente esteja tomando ditado de algum ditador implacável.

Penso que este caminho é errado e perigoso. É errado porque, como tenho postado ao longo da semana, observadores atentos da Rússia e dos EUA apontaram todas as múltiplas maneiras pelas quais os EUA estão atualmente seguindo uma política externa muito anti-Rússia, mais agressiva do que qualquer coisa perseguida por Obama (especialmente Obama), Bush ou Clinton.

Na semana passada, a NPR, a rádio pública dos Estados Unidos, fez uma matéria justamente sobre isso, citando este comentário de um especialista em política externa do Atlantic Council:

Quando você realmente olha para a substância do que este governo fez, não a retórica, mas a substância, este governo tem sido muito mais duro com a Rússia do que qualquer outro na era pós-Guerra Fria.

Portanto, a ideia de que Trump – ou seja, seu governo (falarei sobre ele em um minuto) – está simplesmente tomando ditado é empiricamente errada.

É perigoso por dois motivos. Primeiro, alimenta as chamas do nacionalismo e do discurso de traição, resultando no tipo de retórica que vimos no fim de semana, onde Scott Horton estava essencialmente vendo qualquer candidatura de esquerda como uma manifestação de uma potencial operação russa (mais sobre isso em um segundo).

Detesto invocar autoridade aqui, mas escrevi um livro sobre a política do medo, focando especificamente em casos em que a política doméstica e a política internacional se entrelaçam, e esse é um terreno perigoso. Você acha que pode controlar a retórica; ele controla você.

Em segundo lugar, embora eu esteja perfeitamente preparado para acreditar que os russos têm algo sobre Trump, minha preocupação é que entremos em uma dinâmica em que, politicamente, para provar que não estão em sintonia com os russos, o Partido Republicano ou o governo sejam pressionados a tomar medidas cada vez mais hostis, medidas de política externa, que poderiam colocar os EUA em pior forma e gerar mais tensão com a Rússia.

O próprio Trump não fará muita coisa além do que já faz. Mas seu governo e seu partido (que, lembre-se, votou a favor de pesadas sanções contra a Rússia), o farão. E Trump quase não mostrou capacidade de impedi-los de fazê-lo. É uma dinâmica ruim.

Então, essa é uma atitude do Ryan com a qual eu discordo. A outra atitude que ele toma é dizer que, à medida que os democratas ascenderem, terão que enfrentar a ameaça de hackers russos.

E quem vencer as primárias democratas de 2020 – digamos Elizabeth Warren ou Bernie Sanders – tem grandes chances de enfrentar uma campanha séria de truques sujos da inteligência russa. Hackear e-mails será tentado, qualquer história passada comprometedora será desenterrada e candidatos de terceiros impulsionados – tudo em uma tentativa de jogar a eleição para Trump. Provavelmente não vai comover tanta gente, mas Trump só ganhou por menos de 100 mil votos espalhados por três estados. É uma ameaça que precisa ser considerada.

Agora, se tudo o que Ryan quer dizer é: vamos reforçar a segurança cibernética e afins, tudo bem. Mas ele realmente não diz isso. Em vez disso, ao semear a discussão das eleições de 2020 com toda essa conversa de inteligência e operações russas, ao atiçar as chamas políticas em vez de se contentar com apelos mais silenciosos e prudenciais por melhor segurança cibernética, temo que ele subestime, e talvez contribua para, a paranoia que esse tipo de argumento pode gerar.

Em qualquer campanha, estejam os russos envolvidos ou não, a história comprometedora de um candidato será agitada. (Lembram-se do papel que Jeremiah Wright desempenhou na campanha de Obama em 2008? Ou o veloz barco de John Kerry?). Em qualquer campanha, há a possibilidade de candidatos de terceiros serem impulsionados por escritores, ativistas e afins. Uma vez que você introduz a questão da Rússia em tudo isso, torna-se quase impossível distinguir entre alguém trazendo à tona a história comprometedora de um candidato como parte da política normal e alguém fazendo isso como um op russo.

Queremos seriamente uma política americana em que a boa e velha piscina suja – expondo o passado embaraçoso de alguém – seja subitamente lançada como um elemento na trama potencial de uma potência estrangeira? Esse parece não ser um bom caminho.

Só para dar um paralelo histórico. Durante os anos McCarthy, o aparato de segurança e os anticomunistas e liberais bem-intencionados ficaram obcecados com a questão de como detectar quem era comunista e quem não era. O problema era que o Partido Comunista apoiava, de fato estava na vanguarda de muitas causas progressistas: dessegregar a liga de beisebol, dessegregar o suprimento de sangue da Cruz Vermelha e assim por diante.

O mais cínico dos caçadores vermelhos veio com o Teste do Pato: se parece um pato, se charlatanha como um pato, é um pato. Em outras palavras, se você era branco e apoiava uma série de causas progressistas, as chances são, você era comunista e estava em aliança com os russos.

Não foi preciso um gênio para perceber que a estratégia mais lógica era evitar essas causas. O que muita gente fez. (Essas causas também foram ajudadas pela Guerra Fria, mas essa é outra história.)

Até agora, resisti principalmente aos paralelos do macartismo, em parte porque o termo é tão mal usado para algo como “acusações injustas”, e o macartismo era consideravelmente mais do que isso, como discuto em meu livro sobre o medo. Mas agora que a aura de Putin e suas operações está pairando sobre setores cada vez mais amplos da esquerda, e pessoas como Horton estão usando essa aura como uma forma de pensar sobre os desafios aos democratas tradicionais do passado, e estamos entrando neste terreno do teste do pato – onde a atividade política perfeitamente legítima (apoiar terceiros, desenterrar sujeira em seu adversário, apoiar candidatos de esquerda nas primárias [esse era o ponto de Horton]) passa a ser contaminado como estrangeiro e uma operação secreta dos russos — estou trazendo isso à tona porque parece relevante.

Minha abordagem a isso, como eu disse, é simplesmente ter melhores medidas de segurança, e o que quer que você faça, não atiçar as chamas da discussão. Então, por todos os meios, recomendo fortemente que Ryan e outros que estão legitimamente preocupados com isso usem suas plataformas, todos os dias, todas as semanas, para pressionar tanto os republicanos quanto os democratas (porque, novamente, no nível estadual há evidências de que ambos os partidos não estão cuidando dessa questão) para proteger os sistemas de votação, para reforçar a segurança cibernética, e todo o resto.

Mas também acho que é imperativo evitar toda essa conversa de candidatos de terceiros, de atacar candidatos por sua história comprometedora e afins, como de alguma forma uma operação russa.

Porque, novamente, não há como distinguir um candidato desenterrando sujeira em outro candidato, como parte do curso da política normal, de um op russo. O único resultado será mais paranoia, mais ansiedade e mais deslegitimação de esforços políticos e eleitorais perfeitamente legítimos e, como resultado, uma conquista do espaço político.

No final, eu realmente não tenho certeza do que é que Ryan gostaria que fizéssemos e quem de fato seu público está nesta peça. Suspeito que sejam pessoas como eu (não me refiro literalmente, apenas pessoas como eu): Embora eu tenha sido muito claro desde o início que acho que a investigação de Mueller deve ir adiante, embora eu tenha sido perfeitamente aberto à história de interferência russa, certamente não foi minha paixão, eu tendo a pensar nisso principalmente como uma distração, e tenho sido hostil e crítico do discurso de traição (tanto porque acho que não é verdade quanto porque odeio nacionalismo).

Mas o que Ryan gostaria que eu (ou pessoas como eu) fizéssemos? Ele não está pedindo àqueles de nós da esquerda que não se juntaram ao coro de queda do céu da Rússia que apoiem medidas mais agressivas de segurança cibernética. Ele não está nos pedindo para pressionar por uma abordagem mais confrontativa com a Rússia (não acredito que ele mesmo apoie essa abordagem).

Parece mais como se devêssemos sinalizar algo em nossa retórica. Pessoalmente, não gosto desse tipo de movimento em discussões políticas. Chega muito perto: você precisa mostrar sua boa-fé, e eu não gosto desse tipo de política. É um pouco como sinalização de virtude.

Mas mesmo que isso não fosse verdade, o que Ryan nos diria a respeito? Que também achamos que Trump é o fantoche de Putin? Que achamos que isso faz parte de uma aliança de oligarcas (uma afirmação que não posso fazer dada a política externa real dos EUA contra a Rússia e os oligarcas agora). Eu disse que acredito que há evidências para a interferência, e acho que a resposta é reforçar a segurança cibernética. Além disso, não estou disposto a ir ou participar, pelas razões que descrevi. Penso que isso deveria ser suficiente.

E se houver alguns duvidosos ou céticos fundamentais na esquerda sobre a história da interferência, acho que tudo bem: ou sua dúvida e ceticismo se revelarão úteis (de alguma forma todos nós esquecemos nosso John Stuart Mill aqui) ou não será.

Suspeito que a verdadeira questão para algumas pessoas da esquerda – não Ryan, mas outras que leio frequentemente sobre este tema – é que elas temem que essa dúvida e ceticismo façam a esquerda parecer ruim. Vou esclarecer isso: tenho tolerância zero com pessoas que tomam suas posições políticas a partir de uma percepção temida de como poderiam parecer de outra forma, cujo senso de política é essencialmente uma versão colegial de não querer parecer desagradável. Saí do ensino médio há mais de trinta anos. Não vou voltar.

Vi muito disso depois do 11 de setembro, particularmente na esquerda: com pessoas tentando provar sua boa-fé em sua antipatia ao terrorismo e ao islamismo, apenas para mostrar que poderiam ser tão duras quanto o próximo. Não tenho nada além de desprezo por esse tipo de postura. É constrangedor – e constrangedor.

Colaborador

Corey Robin é o autor de The Reactionary Mind: Conservatism from Edmund Burke to Donald Trump e editor colaborador da Jacobin.

O caso Benalla

Um dos principais assessores de Emmanuel Macron foi pego "disfarçado" de policial agredindo manifestantes. É um escândalo que simboliza a presidência.

Cole Stangler

Jacobin

Emmanuel Macron durante uma reunião com Vladimir Putin, 29 de maio de 2017. Serviço de Imprensa do Presidente da Federação Russa / Wikimedia

Tradução / Poucas horas depois da marcha anual do 1º de maio esse ano em Paris, centenas de estudantes que protestavam reuniram-se numa pequena praça no Quartier Latin, com planos para se manifestarem contra reformas na educação. Mas foram imediatamente atacados pela Polícia, com violência.

Num dos incidentes — filmado por um ativista do partido France Insoumise da esquerda francesa, e fartamente noticiado nos dias seguintes – um grupo de policiais da polícia de choque jogou um manifestante pacífico e desarmado ao chão, e puseram-se a espancá-lo repetidas vezes, com os cassetetes.

Sem novidades, não fosse o fato de que nem todos os espancadores eram policiais.

Semana passada, Le Monde noticiou que um dos homens que espancaram o manifestante é, na verdade, um dos principais assessores de segurança, do primeiro escalão, assessor pessoal do presidente Emmanuel Macron, mascarado com um capacete da polícia de choque e uma jaqueta do uniforme policial. A notícia rapidamente se tornou o mais espantoso escândalo da presidência da França até hoje, num governo que mal chega ao primeiro ano de mandato. Somado aos detalhes que não param de vir à tona, o caso parece mais estranho e mais danoso para a imagem da presidência, a cada minuto.

Encobrir o caso

Pouco depois de os funcionários do Palácio do Eliseu descobrirem o caso, o espancador e guarda da segurança de Macron, de 26 anos, Alexandre Benalla, foi suspenso. Oficializada dia 4 de maio, a pena resumiu-se a mera suspensão de 15 dias. Muito impressionantemente, os funcionários da presidência não notificaram os procuradores de Justiça, como a lei exige de todos os funcionários públicos que tenham conhecimento de crime praticado por colega.

Cumprida a rápida pena de suspensão, Benalla foi autorizado a retomar seus serviços na equipe de segurança do presidente. Dia 1º de julho, estava ao lado de Macron numa cerimônia no Pantheon. E novamente estava ao lado do presidente dia 14 de julho, nas comemorações do Dia da Bastilha. E uniu-se à equipe de futebol da França no desfile da vitória quando a equipe retornou da Rússia, pela avenida dos Champs-Elysées semana passada, dois dias antes de o escândalo eclodir. Detalhe também estranho, no início do mês Benalla ganhou um apartamento luxuoso no 7ème arrondisement de Paris, destinado, segundo o Guardian a receber funcionários do Eliseu. Alguma espécie de castigo, sabe-se lá.

Desde que as primeiras notícias começaram a aparecer, a polícia francesa anunciou que havia aberto inquérito sobre Benalla. Foi detido para interrogatório e agora enfrenta possíveis acusações de "violência cometida por funcionário público" e de se fazer passar por policial.

Mas o caso teve outra reviravolta. Pouco depois de Le Monde ter procurado Benalla semana passada para confirmar que era realmente o homem filmado espancando manifestantes no Quartier Latin dia 1º de maio, o segurança do presidente teria contatado altos funcionários da polícia de Paris e requisitado as fitas do incidente. Três policiais cumpriram o pedido - eles já foram suspensos e levados sob custódia para interrogatório. Um deles é um dos comandantes encarregados dos contatos entre a Polícia e o Palácio do Eliseu.

Inicialmente, a presidência tentou defender o modo como estava administrando o caso, enfatizando que a punição de 15 dias de suspensão aplicada a Benalla seria suficiente. Provocou fúria e risos entre os franceses. Rapidamente ficou evidente para os franceses indignados, que nada ali fazia sentido, e o Palácio não poderia sustentar essa posição. Na sexta-feira, funcionários afinal anunciaram a demissão de Benalla.

Ao mesmo tempo, membros da oposição na Assembleia Nacional iniciaram inquérito parlamentar, o que forçou o governo a adiar a agenda legislativa por várias semanas. Na 2ª-feira, convocaram o ministro do Interior, Gérard Collomb, para depor perante uma comissão de investigação. Collomb — principal defensor da lei e da ordem, defensor do modo duríssimo como o governo trata refugiados e pessoas que solicitam asilo na França — soube dos malfeitos de Benalla logo no dia seguinte, 2 de maio. Por que não tomou qualquer providência? Em audiência, o ministro de Macron alegou ignorância dos fatos, disse que não sabia da participação de Benalla naquele momento e que não era sua responsabilidade tomar qualquer medida.

Enquanto as investigações avançam, dentro e fora do Parlamento duas perguntas cruciais continuam à procura de resposta: Por que Benalla, muito jovem, sem experiência policial, recebeu do Eliseu tão ampla autoridade? Segundo, por que os funcionários do palácio e da presidência não o enquadraram e disciplinaram desde o primeiro dia em que foi visto por lá?

Parábola de um governo

O escândalo capturou a opinião pública. De um lado, porque é história bizarra e intrigante, por ela mesma. Imaginem o impacto de matérias em todos os jornais, sobre um serviçal da Casa Branca ou da Rua Downing, filmado em plena rua espancando manifestantes – aparentemente por prazer –, com legiões de outros serviçais dedicados a esconder tudo e garantir 'cobertura' ao criminoso. A repressão policial na França contra a esquerda é evento regular, que já nem recebe grande cobertura nos jornais, mas as intrigas presidenciais adicionais tornaram a história impossível de ser ignorada pela grande imprensa.

Mas o affair parece ecoar na imaginação do grande público, também, pelo muito que deixa ver de algumas duras verdades sobre Macron e sua filosofia de governo. Ilustra de modo macabro o desdém do presidente por manifestações e manifestantes, especialmente quando tenham a ver com a esquerda da população. Deixa ver o real significado dessa presidência "jupiteriana" de Macron, que desdenha completamente quaisquer controles democráticos e checks and balances. E ainda faz ver a arrogância profunda e o senso de infalibilidade que já define claramente a gestão desse banqueiro de banco de investimentos.

Muito eloquentemente, Macron sequer se deu o trabalho de comentar a história. Com os deputados da oposição exigindo explicações do governo na Assembleia Nacional, o primeiro-ministro Edouard Philippe passou a sexta-feira seguindo as bicicletas que disputavam o Tour de France no sudoeste do país. Na presença de repórteres, comentou rapidamente as investigações em andamento; e criticou os opositores por dar uso político ao acontecimento. Seja como for, o primeiro-ministro não poderá escapar de comparecer diante da Assembleia para declarações, e não há dúvidas de que enfrentará fogo cerrado de perguntas sobre Benalla.

O presidente, por sua vez, ainda nem reconheceu a gravidade do escândalo, contando, parece, com o tempo, para diluir os comentários. Partindo de alguém que tanto confia na comunicação – conhecido pelo prazer com que tuíta em vários idiomas e pela atenção que dedica a cada uma de suas aparições públicas, com destaque para sua visita "privada" ao Taj Mahal com a Primeira Dama Brigitte —, não há dúvidas de que o silêncio é deliberado. E não foi bem recebido pelo público. É comportamento que se esperaria de líderes autoritários, mas não de uma democracia europeia parlamentar civilizada.

Macron tem criticado com frequência o que ele vê como obstáculos na sua pressa para modernizar a França: instituições retrógradas, como sindicatos e fundações associadas, como diz ele, à velha ordem cada vez mais irrelevante. Pelo que já se viu do caso Benalla, a frustração do presidente estende-se também ao respeito a leis vigentes que o atrapalhem. Como outros analistas lembraram, o Eliseu mantém força especial de segurança, o Grupo de Segurança do Presidente da República, semelhante ao Serviço Secreto dos EUA. Benalla jamais fez parte desse grupo de elite, e trabalha para o presidente num cargo que recebe a denominação vaga de "assistente do chefe de gabinete". Nessa condição escapou das consequências de ações que em qualquer circunstância seriam inaceitáveis, porque goza, em outras palavras, de status especial, como membro leal do círculo de relações mais íntimas do presidente.

Esse tipo de tratamento especial é, naturalmente, profundamente antidemocrático. Muitas vezes descartada como retórica esquerdista, essa é, de fato, uma das críticas centrais feitas por oponentes à Macron no último ano - evidenciadas, segundo eles, pela disposição do presidente de aprovar leis controversas por meio de um processo legislativo acelerado para suas propostas de reformas constitucionais, o que reduziria o número de deputados na Assembleia Nacional. Claramente, essas críticas devem ser levadas mais a sério.

Ofuscada por desenvolvimentos ainda mais sombrios nos Estados Unidos e entre os vizinhos europeus, a democracia francesa está enfrentando uma perigosa tempestade própria. Agora, mais do que nunca, é a hora de perguntar: em que ponto a motivação pela eficiência simplesmente se desdobra nas tendências de um homem político forte? Se esmagar o poder dos sindicatos não fosse evidência suficiente de que há algo muito sinistro no projeto político de Emmanuel Macron, então o caso de Benalla deveria ser um alerta.

Colaborador

Cole Stangler é um jornalista baseado em Paris que escreve sobre trabalho e política. Ex-redator do International Business Times e In These Times, ele também publicou trabalhos na VICE, na Nation e no Village Voice.

22 de julho de 2018

O retorno da super elite

Novas pesquisas revelam níveis de desigualdade nunca vistos em um século - e, também, mostram onde essas novas superelites vivem.

Meagan Day

Miami Beach, FL. Jimmy Smith / Flickr.

A desigualdade econômica norte-americana atingiu um pico histórico em 1928, quando 1% dos mais ricos do país capturou quase um quarto da renda total do país. Mas agora, em trinta áreas metropolitanas dos EUA e cinco Estados inteiros, o 1% quebrou o recorde anterior – e, em alguns casos, dobrou.

Os economistas Estelle Sommeiller e Mark Price lançaram um artigo na semana passada através do Economic Policy Institute intitulado “The new gilded age: Income inequality in the U.S. by state, metropolitan area, and county”. Sua pesquisa conclui que, em média, a renda de 1% dos norte-americanos é 26 vezes maior que a média dos 99% inferiores.

Quando consideramos que os 99% inferiores incluem algumas pessoas que fazem um imenso montante de dinheiro – Sommeiller e Price descobrem que um salário anual de US$700.000 em Connecticut coloca você nos 99%, por exemplo – uma imagem emerge de uma categoria separatista da super elite, cujas fortunas pessoais superam as dos milionários médios.

As áreas metropolitanas com os maiores índices estão dizendo isso. Uma delas é a região de Bridgeport-Stamford-Norwalk em Connecticut, também conhecida como Fairfield County, a qual, como o coautor do estudo Mark Price contou à Jacobin, é “o lar de muitos fundos de pensão, então este é um efeito de Wall Street de Nova York”. Price também apontou várias áreas metropolitanas nas praias da Flórida e três em Wyoming, Utah e Colorado, todas próximas a resorts de esqui de alto padrão.

“Estes são os lugares onde objetivamente gostaria de viver se você não tivesse outra preocupação no mundo e você não precisasse estar perto de mercados financeiros”, disse Price. São enclaves para bilionários tão ricos que não precisam morar perto de centros econômicos poderosos, como Wall Street, Vale do Silício ou Hollywood. Esta é a classe dominante ociosa e ausente, tomando banho de sol e mergulhando nas encostas enquanto seus investimentos trabalham para eles.

Sommeiller e Price procuraram nos dados econômicos entre 1917 até 2015, e descobriram que ”crescimento foi amplamente compartilhado de 1945 a 1973 e altamente desigual de 1973 a 2007″. Após a grande Recessão, que causou um pequeno soluço nos rumos, o padrão de crescente desigualdade foi retomado com força ainda maior. Sommeiller e Price descobriram que até então, durante a recuperação devido a Grande Recessão, o 1% mais rico dos norte-americanos capturou quase 42% de todo o crescimento da renda.

Vale a pena examinar as características que definem cada era distinta da distribuição de crescimento. No início do século vinte, os EUA eram dominados por magnatas industriais mega ricos, enquanto os trabalhadores tinham escassa proteção trabalhista, alto desemprego e programas sociais insignificantes. Dos anos 1940 até os anos 1970, as coisas pareciam bem diferentes. Pesquisadores chamaram isso de a Grande Compressão, durante o qual os rendimentos dos estratos superior e inferior da sociedade foram espremidos pela metade.

“As altas taxas marginais de impostos cobradas para financiar a Segunda Guerra Mundial foram mantidas mesmo após o término da guerra, o que comprimiu a renda no topo”, afirmou Price. Ao mesmo tempo, você tinha “uma expansão da densidade sindical, que teve o papel de garantir que, à medida que a economia crescesse, a receita que os empregadores obtivessem não se transformasse em lucro – ela também fosse entregue aos trabalhadores na forma do aumento dos salários”.

Nos anos 1970, uma série de crises apresentou uma oportunidade para os conservadores pró-capitalistas para se reafirmar na esfera política. Ao longo das duas décadas seguintes, com o consentimento dos maiores partidos políticos ao mesmo tempo, os capitalistas conquistaram reformas neoliberais favoráveis a desregulamentar negócios, redução dos impostos no topo da elite, enquanto enfraquecia os sindicatos e impunha austeridade econômica nos orçamentos estatais, e então – quando serviços sociais ficaram inevitavelmente precários – privatizaram as funções públicas para criar um novas oportunidades de mercado para corporações.

Atualmente vemos os frutos dessa reversão extrema da orientação política. A proporção da renda de 1% em relação à de todos os outros está aumentando em todos os Estados dos EUA. “As escolhas políticas e as forças culturais se combinaram para rebaixar os salários e rendas da maioria do povo, mesmo com o aumento de sua produtividade”, escrevem Sommeiller e Price, acrescentando que o salário de um CEO era 20 vezes maior do que o salário médio dos trabalhadores em 1965 e se tornou 271 vezes maior em 2016.

“Reinventar os EUA como uma terra de oportunidades generalizadas requer uma política econômica que visa garantir que todas as crianças tenham acesso a comida, abrigo, assistência médica e educação adequadas”, exortam os autores do relatório, “independente se essa criança é filha de um zelador ou filho de um magnata imobiliário”. Ecoando a retórica política de Jeremy Corbyn no Reino Unido e Bernie Sanders nos EUA, eles concluem com um apelo para que “a economia sirva a vida de muitos, não os interesses estreitos de poucos”.

Sobre a autora

Meagan Day faz parte da equipe de articulistas da Jacobin.

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