26 de abril de 2012

Após a Guerra Fria

Eric J. Hobsbawm sobre Tony Judt

Eric J. Hobsbawm


Tradução / Minhas relações com Tony Judt datam de longo tempo, mas sempre foram curiosamente contraditórias. Éramos amigos, embora não amigos íntimos e, apesar de ambos sermos historiadores politicamente comprometidos, e de os dois preferirmos usar roupa de trabalho, em vez do uniforme regimental de historiadores, sempre marchamos ao som de diferentes toques de tambor. No entanto, nossos interesses intelectuais tinham algo em comum. Ambos sabíamos que o século XX só podia ser plenamente compreendido por aqueles que se tornaram historiadores, pois viviam nele e compartilhavam sua paixão básica: a crença de que a política é a chave para as nossas verdades assim como para nossos mitos. Apesar de nossas diferenças, tanto Marxism and the French Left de Tony, como meu recente How to Change the World são dedicados ao mesmo livre pensador, o falecido George Lichtheim. Dávamos-nos bem, em termos pessoais – mas Tony era homem generoso, fácil de gostar. Tinha em boa conta o meu trabalho, como escreveu em seu último livro. Apesar disso, lançou contra mim um dos mais implacáveis ataques que recebi, numa passagem que, imediatamente, se tornou citação obrigatória, sobretudo para os ultras da extrema direita da mídia nos Estados Unidos. A crítica resumia-se ao seguinte: para a esquerda, basta declarar em confissão pública que seu deus fracassou e bater no peito; fácil assim, a esquerda já conquista o direito de ser levada a sério; não se deve dar ouvidos a ninguém que não pense e escreva que “socialismo é Gulag”. Nunca duvidei da sinceridade de Judt ao abraçar essa figura de retórica, numa polêmica em que discutia com comunistas. Por sorte, a prática, em Judt, pouco teve a ver com a teoria.

Para a maioria de nós, a imagem hoje dominante é a coragem com que enfrentou a doença degenerativa que o acometeu, e a morte. Houve uma espécie de grandeur romana em sua recusa a aceitar o inevitável da doença, que quase convoca elogios clássicos. Não só a decisão de levar o jogo até o xeque-mate, mas a atitude de provocar a morte, demonstrando até o final seu talento de grande professor, debilitado, mas nunca derrotado. É uma imagem comovente, mas temos de resistir: estimular a construção de mitos não é atitude digna em historiadores. Tony foi apresentado ao mundo como um novo George Orwell. É uma ideia errada, porque embora ambos fossem homens de dotes excepcionais e ativos polemistas, eram muito diferentes. Faltava a Tony a combinação de vários tipos de preconceitos que havia em Orwell, que tomava o Velho Testamento, simultaneamente olhado como se fosse passado e futuro, como profecia e como denúncia imaginativa. Judt jamais escreveria 1984 ou Animal Farm. E Orwell, escritor muito mais poderoso, não tinha nem uma fração da monumental gama de conhecimentos de Tony, nem seu talento, nem sua agilidade e versatilidade intelectuais. Orwell nunca teria sobrevivido como intelectual acadêmico.

Mas a comparação com Orwell também é perigosa, porque não se trata só de dois escritores, mas de uma era política que já deveria estar hoje superada por bem: a Guerra Fria. A reputação de Orwell foi erguida como poderoso lança-foguetes intelectuais contra os soviéticos; e mesmo hoje, quando o resto de Orwell já emergiu ou reemergiu, é nome que permanece congelado na década de 1950. Tony foi, é claro, tão anti-Stálin quanto qualquer outro, e crítico amargo dos que não abjuraram o Partido Comunista, mesmo que se tenham provado satisfatoriamente anti-stalinistas e, como no meu caso, já estejamos lentamente nos livrando da esperança original de outubro de 1917. Como os sionistas que se opuseram a encenações de Wagner em Israel, Tony foi dos que deixam a antipatia política atravessar-se à frente do prazer estético, descartando o poema de Brecht sobre quadros do Comintern, An die Nachgeborenen [Os Admirados por Tantos], como poema “repulsivo”, não em termos literários, mas porque inspirava pensamentos maléficos aos crentes. Mas é evidente, desde Thinking the 20th Century, que sua preocupação básica durante a fase aguda da Guerra Fria, não era a ameaça soviética contra o “mundo livre”, mas as discussões dentro da esquerda. Seu tema sempre foi Marx – não Stálin e o Gulag. É verdade que, depois de 1968, passou a ser mais um liberal de oposição militante contra a Europa Oriental, admirador dos turistas acadêmicos de direita que forneciam praticamente tudo que se publicava sobre o fim dos regimes comunistas na Europa Oriental. E isso o arrastou – e se esperaria coisa melhor dele – a criar, com outros, o conto de fadas das “revoluções de veludo” e “revoluções coloridas” de 1989 em diante. Essas revoluções jamais existiram. Foram, todas, diferentes reações à decisão dos soviéticos de sair de lá. Os verdadeiros heróis daquele período foram Gorbachev, que destruiu a URSS, e homens do velho sistema, como Suárez na Espanha de Franco e Jaruzelski na Polônia, que efetivamente conseguiram garantir uma transição pacífica e foram execrados pelos dois lados. De fato, nos anos 1980s, o liberalismo essencialmente social-democrata de Tony foi rapidamente infectado pelo neoliberalismo econômico sem regras à Hayek, de François Furet. Não creio que esse fogo-fátuo da Guerra Fria tenha sido essencial para o desenvolvimento de Tony, mas sem dúvida contribuiu para dar mais corpo e profundidade ao seu impressionante Pós-guerra.

O modo como andou pela segunda metade do século é sui generis. Até fixar-se em New York na década de 1980 e começar a escrever para a New York Review, não era historiador de grande destaque, sequer entre os especialistas anglófono sem história da França, talvez porque se tenha deixado arrastar por tempo demais pelos infindáveis debates sobre a natureza da esquerda francesa. Antes da década de 1980, Tony só era encontrado nas margens da história social, autor de um excelente estudo do socialismo na Provence entre 1871 e 1914. Sua fase francesa combinava erudição impressionante com, em minha opinião, resultados historicamente triviais: rapidamente foi convertido em assunto para torneios acadêmicos no mundo marginal e sem efeitos da Rive Gauche. Mas o que acontecia no “Les Deux Magots” e no “Flore”, embora culturalmente prestigiado, era politicamente irrelevante, comparado ao que acontecia no outro lado do boulevard St. Germain, na “Brasserie Lipp”, onde se reuniam os políticos. A política de Sartre consistia em “tomar posição”, porque nada mais havia que pudesse fazer; e De Gaulle sabia disso. Em qualquer caso, a esquerda raras vezes chegou ao poder, e provavelmente os únicos intelectuais que chegaram a primeiro-ministro foram Léon Blum em 1936 e – ou, pelo menos, foi uma boa imitação – Mitterrand. Mediante as mais fantásticas acrobacias intelectuais, cujo absurdo Tony não precisou trabalhar muito para demonstrar, intelectuais de esquerda faziam o que podiam para dar conta de uma situação nacional única, e do seu próprio isolamento, no país que inventou a palavra “obreirismo” [orig. “ouvrierisme”], quer dizer: operários que absolutamente não acreditavam em intelectuais.

Quatro coisas modelaram a história francesa nos séculos XIX e XX: a República nasceu da Grande Revolução incompleta; o estado napoleônico centralizado; o papel político crucial atribuído a uma classe trabalhadora pequena demais e desorganizada demais; e o longo declínio da França, da posição que tivera antes de 1789, como o Império do Meio da Europa, tão confiante quanto a China na própria superioridade cultural e linguística. Foi a “capital do século XIX”, sobretudo aos olhos estrangeiros, mas depois de Waterloo, deslizou lenta e não continuamente, mas sempre para baixo, em termos de força militar, poder internacional e centralidade cultural. Sem um Lênin e privada de Napoleão, a França recolheu-se como um último – e esperemos, indestrutível – reduto, o mundo de Astérix. A moda pós-guerra para pensadores parisienses mal disfarçava a retirada coletiva para uma introversão de Hexágono e para dentro da última fortaleza da intelectualidade francesa, o pensamento cartesiano e suas arrogâncias adjuntas. Não havia qualquer outro modelo na educação superior e nas ciências, no desenvolvimento econômico, nem – como se vê pela penetração tardia das ideias de Marx – na ideologia da Revolução. O problema dos intelectuais de esquerda foi como se entenderem com uma França essencialmente não revolucionária. O problema, para os de direita, muitos dos quais ex-comunistas, foi como fazer as exéquias do evento fundacional e da tradição formativa da República, a Revolução Francesa, tarefa equivalente, na dificuldade, à de escrever a Constituição Americana a partir da história dos Estados Unidos. É missão impossível. Não podia ser feito, nem por operadores muito inteligentes e poderosos como Furet; nem Tony, mesmo que sobrevivesse, poderia ter restaurado a social-democracia que sempre fora seu ideal.

Tony tinha feito seu nome como um brutamontes da acadêmica. Sua posição padrão era de legista: não de juiz, mas de advogado, cujo objetivo não é nem a verdade nem a verossimilhança, mas ganhar a causa. Não é crucialmente importante investigar as próprias possíveis fraquezas, embora seja o que deva fazer o historiador de grandes espaços, longos períodos e processos complexos. Mas nem as décadas formativas, como intelectual de acusação, impediram que Tony se transformasse em historiador maduro, atento e bem informado. Seu grande trabalho nessa condição foi, sem dúvida, o gigantesco calço, Pós-guerra: Uma História da Europa desde 1945. Era e é um livro ambicioso, embora um pouco desequilibrado. Não estou convencido de que a perspectiva do livro parecerá adequada aos que o leiam agora pela primeira vez, sete anos depois da publicação. Apesar disso, garanto, por experiência pessoal, que grandes trabalhos de síntese histórica baseados em fontes secundárias e na observação da história contemporânea só podem ser escritos na maturidade. Bem poucos historiadores têm jeito para atacar objeto tão imenso, ou para levá-lo até uma conclusão. O livro é um impressionante trabalho. Se por mais não for, porque qualquer trabalho que tome a narrativa até o momento presente já carrega em si a própria obsolescência e tem futuro incerto. Mas talvez tenha maior sobrevida como referência de trabalho de narrativa crítica, porque é escrito com verve, garra e estilo. Pós-guerra fixou Tony, pela primeira vez, como figura de destaque na profissão.

Mas ele, então, já estava parando de operar como tal. No século XXI, sua posição já era menos de historiador, que de “intelectual público”, brilhante inimigo do auto-engano enfeitado com jargão de teoria, com o pavio curto do polemista natural, comentarista independente e crítico sem medo dos assuntos mundiais. Pareceu ainda mais original e radical, por ter sido defensor muito ortodoxo do “mundo livre” contra o “totalitarismo” durante a Guerra Fria, sobretudo na década de 1980. Frente a governos e ideólogos que liam vitória e dominação mundial na queda do comunismo, Tony foi suficientemente honesto consigo mesmo para reconhecer que as velhas verdades e os velhos slogans tinham de ser detonados, depois de 1989. Provavelmente, só nos sempre nervosos Estados Unidos uma tal reputação poderia ter sido construída tão rapidamente, só à base de uns poucos artigos em publicações de circulação modesta, dirigidas exclusivamente a intelectuais de academia. As páginas dos grandes veículos da mídia estavam há muito tempo abertas a Raymond Aron na França (bem claramente, uma das inspirações de Tony), ou a Habermas na Alemanha, e o impacto que pudessem ter já estava há muito tempo neutralizado. Tony estava bem consciente dos riscos pessoais e profissionais que corria, atacando as forças combinadas da empreitada de conquista americana global, dos neoconservadores e de Israel, mas foi homem bem servido do que Bismarck chamou de “bravura civil” (Zivilcourage) – qualidade notável que faltava a Isaiah Berlin, como o próprio Tony observou, talvez com alguma ironia. Diferente de escolásticos e burocratas da Rive Gauche que, como disse Auden dos poetas, “nada faziam acontecer”, Tony entendeu que uma luta contra tais novas forças faria alguma diferença. E lançou-se, ele mesmo, contra elas, com evidente prazer e engenho. Essa foi a figura que veio a ser depois do final da Guerra Fria, alargando sua perícia de acusador de corte de justiça, para vergastar os Bushs e Netanyahus e assemelhados, mais do que algum absurdo no 5ème Arrondissement ou algum professor emérito em New Jersey. Foi performance magnífica, ato de primeira classe; foi louvado por seus leitores, não só pelo que disse, mas por dizer o que muitos deles jamais teriam a coragem de dizer. Foi ainda mais eficaz, porque foi, simultaneamente, homem “de dentro” e homem “de fora”, insider e outsider: britânico, judeu, francês, eventualmente americano, mas plurinacional, mais que cosmopolita. E, sim, conhecia bem os limites do que estava fazendo. Como ele mesmo diz, os mais bem-sucedidos na tarefa de dizer a verdade ao poder não são os colunistas, mas os repórteres e fotógrafos, na onipresente mídia.

Até o início dos anos 2000 Tony tinha presença internacional, pelo menos no mundo de língua inglesa. Duraria mais que os canônicos 15 minutos de Warhol? Afortunadamente, graças aos anos de sua doença final, é possível responder a pergunta. O trabalho de Tony sobreviverá, porque, depois que adoeceu, ele pela primeira vez deixou de ver-se como acusador num tribunal e tentou formular o que realmente sabia, sentia e pensava. Thinking the 20th Century não é um grande livro ou sequer capítulo de um grande livro – e como seria, dado o modo como foi escrito? – mas é leitura essencial para quem queira saber o que historiadores contemporâneos têm a nos dizer. Ele também é um modelo de discurso civilizado na aldeia global acadêmica. Mostra que historiadores podem questionar os próprios pressupostos, examinar as próprias certezas e ver como a própria vida é modelada e remodelada pelo seu século. E, não menos importante, é um valioso memorial de um homem notável e da vida que decidiu viver.

22 de abril de 2012

Instituições que levaram à crise estão vivas

Um sistema bancário paralelo surgiu para que bancos não seguissem a regulação. Seu passivo segue grande, criando risco de novas turbulências

Daniela Magalhães Prates e Maryse Farhi

Folha de S.Paulo

A crise financeira de 2008 revelou uma nova configuração do sistema financeiro internacional que estava envolta em sombra.

Ela foi a responsável pela transformação de uma crise de crédito clássica (na qual a somatória dos prejuízos potenciais é conhecida) em uma crise sistêmica global.

A principal característica dessa configuração é a interpenetração entre os balanços do sistema bancário e do chamado sistema bancário "na sombra" ("shadow banking system").

Esse termo se refere a instituições financeiras não bancárias como:

  • Investidores institucionais, como seguradoras, fundos de pensão e fundos de investimento;
  • Bancos de investimentos;
  • Veículos especiais de investimento, que são companhias financeiras vinculadas aos bancos que captam recursos de curto prazo e aplicam em ativos de longo prazo;
  • Empresas patrocinadas pelo governo que dão suporte ao crédito hipotecário -no caso americano, Fannie Mae e Freddie Mac.

Essas instituições adotaram um modelo de negócios semelhante ao dos bancos, com carteira comercial (captando depósitos à vista), mas sem dispor de acesso às operações de redesconto e aos empréstimos de última instância dos bancos centrais.

Elas também não estavam sujeitas às normas dos Acordos de Basiléia, que estabelecem exigências mínimas de capital para os bancos comerciais com atuação internacional, para reduzir o risco de falências.

Essa interpenetração entre sistema bancário e sistema bancário "na sombra" emergiu no limiar do século 21, num ambiente de taxas de juros baixas nos países desenvolvidos.

Nesse contexto, os bancos com carteira comercial optaram por promover forte expansão do crédito para aumentar sua rentabilidade.

Para viabilizar tal expansão em volumes superiores ao permitido pelo quadro regulatório, eles passaram a negociar em grandes volumes nos opacos e desregulados mercados de balcão. Negociavam inovações financeiras vinculadas, sobretudo, às hipotecas subprimes (mais rentáveis porque mais arriscadas).

Essas inovações financeiras possibilitaram aos bancos retirar boa parte dos riscos de crédito de seus balanços sem reservar as exigências de capital requeridas pelas autoridades reguladoras.

Isso só foi possível porque, no lugar dos bancos, as instituições "na sombra" assumiram o risco das operações de crédito. Recebiam um retorno que, à época, parecia elevado.

A complexidade das relações entre os dois sistemas replicou, multiplicou e redistribuiu globalmente os riscos presentes no sistema bem como os prejuízos deles decorrentes para as instituições "na sombra", transformando-as nas principais protagonistas da crise.

Isso pode ser constatado pelo impacto da falência do banco de investimento Lehman Brothers e pelas inúmeras intervenções públicas necessárias para evitar uma depressão econômica.

Passado o momento mais crítico da crise, o sistema bancário "na sombra" voltou a mergulhar na opacidade, dificultando novamente que observadores externos avaliem as suas posições, a sua alavancagem e o seu volume de riscos.

Segundo cálculos dos economistas do Fed (o banco central dos EUA), os passivos dessas instituições, que totalizavam US$ 20 trilhões em meados de 2007, reduziram-se para US$ 16 trilhões em 2010.

Esse valor, ainda superior ao passivo do sistema bancário tradicional (US$ 14 trilhões), indica a resiliência do sistema bancário na sombra e a continuidade do risco de novos episódios de turbulência, algo que só poderá ser atenuado por uma ampla reforma da supervisão e da regulação financeira.

Sobre as autoras

Daniela Magalhães Prates, 41, e Maryse Farhi, 65, doutoras em economia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), são professoras dessa mesma instituição

16 de abril de 2012

O que o capitalismo proporciona

Richard D. Wolff

MR Online

A maior parte dos presidentes atravessam um ou mais períodos econômicos maus (recessões, depressões, crises, etc). Todo presidente desde pelo menos Franklin Dellano Roosevelt (FDR) gerou um "programa" para responder ao período mau - tal como era pedido pelos cidadãos e os negócios. FDR e todo presidente posterior prometiam que o seu programa iria "não só livrar os EUA das perturbações econômicas atuais como também garantiria que nem nós nem os nossos filhos precisarão enfrentar tais períodos maus no futuro". Obama foi apenas o mais recente a dizer isso.

Nenhum presidente foi capaz de manter tal promessa. A atual crise capitalista, agora a meio caminho no seu quinto ano sem fim à vista, prova que o impedir de futuros períodos de baixa capitalista iludiu todo presidente do passado e todos os seus prestigiados e bem pagos conselheiros econômicos. Uma vez que o programa do presidente Obama não é basicamente diferente aos anteriores programas presidenciais, não há razão para esperar que ele tenha êxito.

O fracasso em impedir crises capitalistas condenou milhões dos nossos companheiros cidadãos a repetidas devastações de perdas de empregos, benefícios e segurança além de lares arrestados e perspectivas negras para os nossos filhos. Os custos familiares e econômicos do fracasso em lidar com crises capitalistas são estarrecedores. Hoje dezenas de milhões de americanos ou não têm trabalho ou devem aceitar empregos em tempo parcial quando precisam e querem trabalho a tempo inteiro. De acordo com o governo dos EUA, aproximadamente 30 por cento das ferramentas, equipamentos, fábricas, escritórios, espaço comercial e matérias-primas permanecem ociosos. Este sistema capitalista priva-nos da produção e riqueza que podia ser produzida se os empregos negados ao povo fossem combinados com os meios de produção ociosos.

Essa produção poderia reconstruir nossas indústrias e cidades, poderia convertê-las em instituições ambientalmente respeitáveis e poderia aliviar a pobreza nos EUA e mais além. Se empregados, aqueles agora sem empregos podiam ter vidas melhores, manterem seus lares e serem produtivos. Todos nós poderíamos beneficiar-nos enormemente se não fosse o fracasso abjecto do capitalismo para combinar as pessoas que querem trabalhar com meios de produção não utilizados para o que precisamos.

O problema básico tão pouco tem a ver com políticas e programas governamentais. Afinal de contas, os principais partidos políticos, os políticos, lobistas e seus aliados na mída e na academia cantam todos em uníssono para celebrar o capitalismo. Eles têm insistido ao longo dos últimos cinquenta anos em que a crítica ao capitalismo, não importa quão fraco seja o seu desempenho, era tola, sem fundamento, absurda, desleal ou pior. A sua lenga lenga tem sido "o capitalismo cumpre as promessas" ("capitalism delivers the goods"). 

Por trás da cobertura protetora de uma proibição da crítica quase total, o sistema capitalista estado-unidense deteriorou-se (o resultado habitual quando é proscrita a crítica pública de uma instituição social). Desde o desencadeamento desta crise em 2007, o capitalismo tem estado a "proporcionar dificuldades" à maior parte de nós. Ele ameaça de modo crescente proporcionar dificuldades ainda piores nos anos pela frente. Promotores acríticos do capitalismo estão agora a pressionar o governo a reduzir serviços públicos exatamente quando a massa de americanos os necessita mais do que nunca. O seu slogan e programa básico insistem: "recuperação" econômica para poucos e austeridade para muitos.

Nas décadas de 1950 e 1960, o escalão de rendimento individual que tributava os americanos mais ricos era de 91%, ao passo que hoje é de 35%. Em 1977, o imposto que as pessoas pagavam sobre "ganhos de capital" (ao venderem ativos como ações e títulos a preços superiores aos pagos por eles) era de 40%. Hoje aquela taxa é de 15%. A massa do povo nunca desfrutou de cortes fiscais tão maciços. Estes cortes fizeram os ricos ainda mais ricos enquanto forçavam o governo a tomar dinheiro emprestado para substituir o que já não podia ser obtido através dos impostos sobre os ricos. Como é grotesco que os ricos agora utilizem dívidas do governo como desculpa para eliminar serviços públicos para a massa dos americanos!

A solução para crises capitalistas como aquela que hoje nos aflige não é que o presidente promova outro programa de reformas, regulamentações, estímulos econômicos e orçamentos deficitários. Já passamos por isso e já o fizemos. Isso nunca funcionou para impedir este sistema econômico de condenar o povo a "tempos difíceis" infindavelmente repetidos. Há muito que se deve sujeitar o capitalismo à crítica séria, aberta e pública e debater o que nunca deveria ter sido reprimido. Precisamos examinar se e como os EUA podem fazer algo melhor do que o capitalismo.

Os sistemas econômicos nascem, evoluem no tempo e morrem - como todas as instituições humanas. Em resultado do fim da escravidão e do feudalismo, nasceu o capitalismo. Ele prometia, nas palavras dos revolucionários franceses, "liberdade, igualdade e fraternidade". Fez alguns progressos genuínos rumo àqueles objetivos. Contudo, também ergueu alguns graves obstáculos para alguma vez alcançá-los. O principal deles foi a organização da produção no interior das empresas capitalistas.

Nas empresas corporativas capitalistas que hoje dominam a economia, os seus grandes acionistas e os conselhos de administração que eles selecionam estão na não democrática posição exclusiva de tomarem todas as decisões chave. Os grandes acionistas e conselhos de administração constituem uma pequena minoria daqueles diretamente ligados a empresas capitalistas. A maioria são os trabalhadores das empresas e as populações de comunidades dependentes das mesmas. Mas as decisões da minoria (acerca do que, como e onde produzir e o que fazer com os lucros) impactam a maioria - incluindo provocar crises - sem permitir à maioria qualquer papel direto na tomada de tais decisões. É então dificilmente surpreendente que a minoria exija e esteja em posição de tomar para si própria a riqueza e a fatia de rendimento do leão. Ela igualmente compra o controle da política a fim de impedir a maioria de utilizar o governo para retificar as suas desvantagens e privações econômicas. Eis porque agora temos salvamentos governamentais para os ricos e austeridade para o resto de nós.

A menos que a sociedade se movimente para além da organização capitalista da produção, as crises econômicas continuarão a acontecer e a gerar falsas promessas de políticos de que as impedirão. É ingênuo esperar que a minoria responsável por um sistema que para ela ainda funciona bem democratize a economia e a política. Esta é a tarefa central dos 99%.

Sobre o autor

Richard D. Wolff é professor emérito da Universidade de Massachusetts-Amherst e professor visitante no Programa de Graduação em Assuntos Internacionais da New School University, Nova Yok. Autor de New Departures in Marxian Theory (Routledge, 2006) e do filme documentário Capitalism Hits the Fan.

12 de abril de 2012

Educação e trabalho

Marcio Pochmann


A partir do último quartel do século XX, com alterações significativas no conteúdo e nas condições de produção e gestão em rede das empresas, novos requisitos à formação para o trabalho foram introduzidos, cada vez mais distantes do tradicional sistema de educação e formação profissional herdado da sociedade urbano-industrial. O avanço da economia de serviços, assentada na disseminação do trabalho imaterial, exige uma profunda transformação no atual sistema de formação para que o ensino superior seja universalizado e a educação se torne um ativo para a vida toda.

Ao contrário do problema do analfabetismo rudimentar reinante nos séculos XIX e XX, tem destaque atual o analfabetismo funcional, imposto pela mudança técnica e informacional. Nesse sentido, expandem-se as ocupações que utilizam maior informação e exigem o exercício de atividades multifuncionais, geralmente aquelas sustentadas pelas exigências de maior escolaridade e qualificação profissional ao longo da vida laboral.

Isso, por si só, não corresponde, necessariamente, à garantia da elevação do nível geral de emprego, nem mesmo à melhor qualidade das condições de trabalho. A inserção nacional na Divisão Internacional do Trabalho determina cada vez mais a estrutura do sistema produtivo que exerce, por sua vez, pressão interna sobre o nível quantitativo e qualitativo das ocupações.

No caso da distribuição ocupacional nas economias capitalistas percebe-se a trajetória de longa duração iniciada com a transição das ocupações no setor primário (agropecuário) para os empregos na manufatura até atingir, mais recentemente, o trabalho generalizado no setor terciário. Com o movimento de redução relativa do emprego no setor industrial, ganha cada vez maior destaque as ocupações nos serviços.

Mesmo o intenso crescimento do setor terciário não tem sido suficiente para compensar a queda na participação relativa das ocupações nos setores industrial e agropecuário, o que faz presente o excedente da força de trabalho expresso pelo desemprego. Neste contexto, a reorganização em curso do trabalho material para o imaterial pressupõe uma profunda reflexão a respeito da formação profissional ao longo do século XXI. Com os avanços da nova economia da tecnologia, os sistemas de formação educacional e formativos para o exercício do trabalho heterônomo herdados da sociedade urbano-industrial tornam-se cada vez mais antiquados.

Por força do avanço do trabalho imaterial, a condição de trabalho pressupõe cada vez mais a alteração profunda do ciclo de vida e de estudo. Isso porque as condições tradicionais de coesão social encontram-se fraturadas, com padrão familiar fortemente superado por arranjos monoparentais e a extensão do individualismo sobrepondo a sociabilidade mecânica.

Na sociedade pós-industrial, o conhecimento torna-se estratégico na inserção e configuração das novas trajetórias ocupacionais portadoras de maior articulação da vida com o estudo e trabalho. Sobre o resgate da formação profissional não cabe partir da mera reprodução do passado, mas de sua reinvenção nos termos necessários à reorganização da vida e trabalho em plano superior ao atualmente existente.

Com isso, a educação deixa de ser algo centrado nas fases precoces da vida (crianças, adolescente, jovens e alguns poucos adultos), como no passado, para ser algo necessário ao longo da vida. Ao invés da separação do tempo de inatividade com o tempo de trabalho presente na sociedade urbano-industrial, chega-se cada vez mais à transição do tempo da inatividade com a atividade pelo trabalho imanente do conhecimento.

Para haver educação comprometida com o ciclo completo da vida (infância, adulto e velhice), cuja expectativa aproxima-se dos 100 anos de idade, os sistemas de formação profissional precisam incorporar cada vez mais os pressupostos do diálogo desenvolvidos pelo conjunto dos atores sociais. Novas formas de produção e de reorganização do trabalho não existem sustentavelmente sem uma base recorrente de educação e formação profissional.

O resgate da educação e da formação profissional deve compreender o saber como elemento central do rearranjo básico entre os atores sociais, como a postergação do ingresso no mercado de trabalho e a conexão alongada da qualificação educacional para os segmentos populacionais envelhecidos. Sem isso, o processo de metamorfose no trabalho tende a obstaculizar as possibilidades de universalização das oportunidades da sociedade fundadas no conhecimento.

Na atual transição do sistema de formação para o trabalho da sociedade urbano-industrial para pós-industrial, o entendimento entre os atores sociais relevantes torna-se a condição necessária para maior eficiência alocativa dos meios de produção regulados pelo Estado. Da mesma forma, reveste-se de extrema importância a possibilidade de compartilhar os novos ganhos de produtividade com patamar de civilidade superior ao do século XX.

Sobre o autor

Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Escreve mensalmente às quintas-feiras.

11 de abril de 2012

A política de ter uma vida

O trabalho em uma sociedade capitalista é um fenômeno conflituoso e contraditório.

Peter Frase

Jacobin


Tradução / O trabalho em uma sociedade capitalista é um fenômeno conflituoso e contraditório, especialmente em tempos difíceis. Nós simultaneamente não trabalhamos o bastante e trabalhamos demais; uma profunda fome de trabalho para alguns significa um banquete para outros. Os Estados Unidos alegadamente têm estado em “recuperação econômica” por mais de dois anos, e ainda assim 15 milhões de pessoas não podem encontrar trabalho, ou não podem encontrar tanto trabalho quanto elas dizem que gostariam. Ao mesmo tempo, até dois terços dos trabalhadores relatam em pesquisas que gostariam de trabalhar menos horas do que trabalham hoje, mesmo se isso exigisse uma perda de renda. A dor do desemprego está bem documentada, mas a dor do empregado apenas ocasionalmente vê a luz, sejam funcionários dos depósitos da Amazon trabalhando em um ritmo alucinado num calor sufocante, ou trabalhadores da Foxconn arriscando ferimentos e morte para construir eletrônicos descolados para a Apple.

Quando o trabalho está escasso, os horizontes políticos tendem a se estreitar, enquanto a crítica à qualidade do trabalho dá lugar à busca desesperada por qualquer tipo de trabalho. E trabalho, de qualquer tipo, parece ser tudo o que os políticos podem oferecer; direita e esquerda diferem apenas sobre quem devemos culpar pela escassez. Vá para o site da campanha do Barack Obama, e você será informado no topo da página sobre “Problemas” que “O presidente está adotando medidas agressivas para colocar os estadunidenses de volta ao trabalho e criar uma economia onde o trabalho duro e a responsabilidade sejam recompensados.” Do mesmo modo no site da federação trabalhista AFLCIO, onde um homem de macacão sorri por trás das palavras “o trabalho conecta a todos nós.” É assim que a virtuosa classe trabalhadora aparece na imaginação progressista: esforçada, responsável, definida e redimida pelo trabalho, mas vítima de uma economia que não pode criar o trabalho assalariado necessário na qual esta responsabilidade possa ser investida.

Quando a direita rejeita esta romantização dos trabalhadores como esforçados ascetas, é apenas para mudar melhor o foco da culpa por uma economia fraca, do capital para o trabalho. O economista da Universidade de Chicago e às vezes colaborador do New York Times, Casey Mulligan, tentou redefinir a recessão como inexistente ao insistir que o colapso de emprego refletia apenas um reduzido desejo de trabalhar, ao invés de uma escassez de demanda. Enquanto isso, os reacionários mais cultos choram sobre a minguante ética do trabalho como um arauto do declínio da civilização. Charles Murray, que fez seu nome promovendo considerações pseudo-científicas sobre a indolência e inferioridade mental de afro-estadunidenses, retornou recentemente com avisos medonhos sobre a decadência da classe trabalhadora branca. Os homens brancos, ele diz, perderam “industriosidade”, como demonstrado por taxas declinantes de participação na força de trabalho e semanas de trabalho mais curtas entre os empregados.

A resposta pronta progressista é que tais estatísticas refletem uma ausência de oportunidade ao invés de uma falta de iniciativa. Mas isto leva apenas a gritos pela criação de empregos, enfatizando o valor do “trabalho duro” sem refletir sobre a natureza daquele trabalho. A labuta esgotante do depósito da Amazon é com certeza difícil; também são, de certa maneira, as semanas de 80-horas e o stress intenso de um operador do Goldman Sachs. E ainda assim do primeiro dificilmente pode ser dito que está saudável ou aperfeiçoando o espírito humano, enquanto o segundo apenas cria riqueza para poucos e caos econômico para o resto de nós. A “industriosidade” de Murray é a atitude ridicularizada pelo marxista desobediente Paul Lafargue em seu panfleto de 1883, “O Direito à Preguiça”, “uma estranha ilusão” que aflige o proletariado com “uma paixão furiosa por trabalho.”

Lafargue é parte de uma tradição socialista dissidente, que insiste que uma política para a classe trabalhadora tem de ser contra o trabalho. Esta é a tradição selecionada pela teórica política Kathi Weeks em seu livro recente, “O Problema com o Trabalho: Feminismo, Marxismo, Políticas Anti-Trabalho e Imaginário Pós-Trabalho.”  Weeks identifica defensores de mais trabalho e aqueles que querem trabalhos melhores, e vê faltas em ambos. Como uma alternativa, ela sustenta a demanda direta e sem remorso por menos trabalho. No processo, ela articula poderosamente a defesa de uma política que apele para o prazer e o desejo, ao invés de sacrifício e ascetismo. Afinal de contas, é o ideal de auto-restrição e auto-negação que em última análise legitima a glorificação do trabalho, especialmente a ideologia da ética do trabalho.

Permutações da ética do trabalho

A paixão furiosa por trabalho não é uma constante da natureza humana, mas alguma coisa que precisa ser constantemente reforçada, e sucessivas versões da “ética do trabalho” têm sido usadas para alimentar a fornalha dessa paixão. Na aurora do capitalismo, o chamado ao trabalho era um chamado à salvação, como Weeks explica em sua leitura de “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” de Max Weber. Ela reconhece que, longe de fornecer uma alternativa idealista à descrição de Marx sobre a ascensão do capitalismo, Weber complementa o Materialismo histórico descrevendo a construção de uma ideologia da classe-trabalhadora. A palavra é usada no sentido de Althusser: “a relação imaginária de indivíduos para com as suas condições reais de existência.” A ética protestante permitiu aos trabalhadores imaginar que quando trabalhavam pelos lucros do patrão, eles estavam na verdade trabalhando por sua salvação e pela glória de Deus.

Lá pelo século XX, entretanto, o chamado havia se tornado material: o trabalho duro garantiria uma prosperidade de base ampla. Cada um dos projetos gêmeos de modernidade industrial desse século desenvolveram esse chamado à sua própria maneira. Autoridades soviéticas promoviam o movimento estacanovita, que glorificava contribuições excepcionais à produtividade da economia socialista. Em Detroit, enquanto isso, o líder sindical social-democrata Walter Reuther denunciava defensores de menos horas de trabalho por minarem a economia estadunidense na luta contra o comunismo. Em nenhum dos casos a qualidade do trabalho industrial era posta em questão; era apenas uma questão de quem estava no controle e quem colhia os espólios.

A ética do trabalho industrial encalhou na natureza alienante do labor industrial. Trabalhadores que ainda se lembravam da Grande Depressão podiam estar dispostos a se subordinar à linha de montagem em troca de um pagamento garantido, mas seus filhos foram encorajados a exigir mais. Como Jefferson Cowie relembra em sua história “Stayin' Alive: The 1970s and the Last Days of the Working Class”, os anos 70 foram caracterizados por uma agitação trabalhista amplamente difundida, e pelo que era popularmente chamado de “a tristeza de colarinho azul”, enquanto “trabalhadores estavam sendo aparelhados para o imposto sindical, mas almejavam se libertar da natureza amortecedora do trabalho em si.” No reino da teoria de esquerda, este desenvolvimento se refletiu na voga por críticas “humanistas” do trabalho, baseadas na Teoria da Alienação do jovem Marx. Weeks destaca o marxista-freudiano Erich Fromm, que defendia que “a auto-realização do homem... está inextricavelmente ligada à atividade de trabalho,” que se tornará autêntica e auto-realizadora uma vez que esteja liberta do controle capitalista. Ao reconhecer as limitações na demanda por mais trabalho, os humanistas ao invés disso pediam por um “trabalho melhor.”

Mas esta crítica se provou duplamente insatisfatória: ou ela aponta para trás, na direção de um primitivismo austero, ou para frente, rumo outra iteração do capitalismo. Nas mãos de feministas como Maria Mies, a crítica do trabalho alienado se torna um chamado para produzir apenas para uso imediato, ao invés de para troca; isto, Weeks nota, é “uma prescrição para um ascetismo mundial da primeira ordem.” Se a forma produtivista do marxismo traficou a ilusão de que as forças de produção do capitalismo poderiam ser acolhidas e preservadas independente das relações de produção baseadas em classe, então o chamado romântico para um retorno ao trabalho de pequena escala ou de manufatura artesanal tenta dividir outra relação dialética de Marx, aquela entre valor de troca e valor de uso. Mas o valor de uso, como a produtividade, é em última análise uma categoria interna para o capitalismo; a exigência de que o que nós produzimos seja “útil” é inseparável da ética do trabalho em si.

A linha de argumento mais influente contra o trabalho industrial, porém, não tem sido a asceta, mas ao invés, o que os sociólogos Luc Boltanski and Eve Chiapello chamam de “crítica artística.” Sob essa crítica, o trabalho industrial está condenado não por que separa troca e uso, mas por que restringe a autonomia, liberdade e criatividade do trabalhador. A solução não seria reconectar o trabalho a um labor artesanal humilde, mas elevar os trabalhadores a indivíduos autônomos, auto-moldáveis e flexíveis, realmente capazes de se realizar em seus trabalhos.

Mas esta posição rapidamente coalhou em uma apologia do mundo precário do Capitalismo pós-anos 70, em que indivíduos eram encorajados a celebrar empregos instáveis e rendas incertas como formas de liberdade ao invés de insegurança. Benefícios intangíveis eram oferecidos como uma alternativa a uma parcela na produtividade crescente, que se dissociou de salários. Assim nós chegamos a uma terceira iteração da ética do trabalho na era pós-industrial, onde o trabalho é agora representado não como um caminho para a salvação e nem como uma estrada para riquezas, mas como uma fonte de identidade e realização pessoal. Esta ética está exemplificada por empresas da moda no Vale do Silício como a Apple, que teria dito aos seus empregados, em resposta às suas demandas salariais, que “dinheiro não deveria ser uma questão quando você estiver empregado na Apple. Trabalhar na Apple deveria ser visto como uma experiência.”

Nestas circunstâncias, Weeks argumenta, clamores por “trabalho melhor” não são apenas inadequados, eles tendem a reproduzir e estender uma forma de Capitalismo que tenta colonizar as vidas e personalidades de seus trabalhadores. Daí que “empoderamento do trabalhador pode impulsionar eficiência, flexibilidade pode servir como um jeito de cortar custos, e participação pode produzir compromisso com a organização... qualidade se torna quantidade enquanto o chamado por um trabalho melhor é traduzido em uma demanda por mais trabalho.” Qualquer tentativa de reconstruir o sentido do trabalho em uma forma não alienante precisa começar, então, rejeitando o trabalho por completo.

Ainda assim, a invocação manipuladora da autonomia do trabalho só é possível por que a crítica artística tocou em desejos reais. Dadas as deficiências do velho paradigma de trabalho industrial, dificilmente parece possível ou desejável retornar a um ideal proletário mais velho de emprego de longo prazo e protegido em uma única empresa. E ainda assim, há alguns ainda tentando ressuscitar a ideia de um trabalho melhor. Em “O Precariado: A Nova Classe Perigosa”, o economista Guy Standing identifica a nova massa de trabalhadores inseguros como um “precariado” ao invés de um proletariado, um que deseja “controle sobre a vida, um renascimento da solidariedade social e uma autonomia sustentável, enquanto rejeita velhas formas trabalhistas de proteção e paternalismo estatal.”

Como Weeks, Standing é um proponente de uma Renda Básica incondicional – um pagamento regular fornecido para cada indivíduo independente deles trabalharem ou não e do quanto trabalhem – como uma forma de fornecer segurança de renda sem trancar as pessoas em empregos. Ainda assim, ele baseia seu apelo no conceito de trabalho, agora expandido além dos limites do trabalho assalariado. “O fato de que há uma aversão aos empregos sendo oferecidos não significa que... as pessoas não queiram trabalhar,” ele argumenta, por que de fato “quase todo mundo quer trabalhar.” Subsequentemente, porém, ele fala de “resgatar” o trabalho de sua associação com o trabalho assalariado: “Todas as formas de trabalho deveriam ser tratadas com igual respeito, e não deveria haver a presunção de que alguém que não está empregada não está trabalhando ou que alguém que não está trabalhando hoje seria um aproveitador ocioso.” Isso evoca a noção de uma fábrica social em que nós contribuímos com vários tipos de atividade produtiva que não são diretamente remuneradas, desde educar os filhos até codificar programas de software aberto.

Mas nenhuma quantia de redefinições pode escapar da associação do trabalho com a ética capitalista do produtivismo e da eficiência. O contraste entre trabalhador e “aproveitador ocioso” implica que nós podemos medir se qualquer atividade dada é produtiva ou útil, ao traduzi-la em uma medida comum. O capitalismo tem tal medida, o valor monetário: o que tiver valor no mercado é, por definição, produtivo. Se a crítica do capitalismo pretende ir além disto, ela deve ultrapassar a ideia de que nossas atividades possam ser subordinadas a uma medida de valor única. De fato, exigir que o tempo fora do trabalho seja realmente livre é rejeitar o chamado para justificar a sua utilidade. Esta é uma sacada central do anti-ascetismo consistente de Weeks, que resiste a qualquer esforço para substituir a ética do trabalho com algum código igualmente homogeneizador que valide externamente a organização do nosso tempo. O tempo para além do trabalho não deve ser para troca ou para uso, mas sim para si mesmo. O ponto, como Weeks coloca, é “ter uma vida”, enquanto nós encontramos caminhos para “sustentar os mundos sociais necessários para, entre outras coisas, a produção.”

Questões políticas da demanda

O que seriam políticas para se ter uma vida? É mais fácil rejeitar a ideologia do trabalho em teoria do que criar uma estratégia política que avance uma agenda anti-trabalho na prática. Nenhum dos lados da relação dialética de reforma-ou-revolução do socialismo do Século XX é particularmente útil a respeito disso. A Social-Democracia conseguiu liberar parcialmente os trabalhadores do trabalho, ao fornecer serviços públicos e suportes de renda que diminuem a dependência do trabalho assalariado. Ainda assim, esta desmercantilização do trabalho tem sido hesitante e receosa, graças a uma preocupação com manter o pleno-emprego e conservar trabalhos. A tomada insurrecional do poder do estado, enquanto isso, se deixa a estrutura de relações capitalistas de trabalho intactas, meramente coloca os trabalhadores a cargo de sua própria exploração – conheça o novo chefe, assim como o antigo.

Weeks tenta transcender estas limitações elaborando um conceito de demanda política que mistura impulsos reformistas e revolucionários. A demanda é vista aqui como um chamado por uma reforma específica, mas também como algo mais. A demanda, e a forma com que ela é articulada, pode ser uma ferramenta de desmistificação ideológica e para o que Fredric Jameson chama de “mapeamento cognitivo,” traçando um gráfico das relações entre várias esferas de produção e reprodução. Uma demanda pode ser algo em torno do que se organizar, uma forma de construir capacidade coletiva. Finalmente, uma demanda pode preparar o palco para lutas e transformações radicais no futuro, mesmo se ela não desafia as fundações do sistema de imediato.

Este conceito de demanda evoca a ideia de André Gorz de “reforma não-reformista,” apesar de Weeks fugir da implicação de que uma demanda poderia ter implicações radicais enquanto ainda co-participando no terreno reformista de propostas políticas e compromissos táticos. Em um movimento que é reminiscente da ansiedade sobre “demandas” no ambiente do Occupy Wall Street, parece às vezes que Weeks quer preservar suas credenciais radicais ao negar que o sistema pudesse jamais acomodar as demandas que ela leva em frente.

Ainda assim, as duas demandas específicas que ela discute, apesar de serem ambíguas, estão dentro do horizonte do reformismo: uma renda básica incondicional e uma diminuição do tamanho da semana de trabalho. Estas são propostas comuns o bastante entre Esquerdistas de convicção anti-trabalho, mas o tratamento dado a elas por Weeks é distintivo por que ela baseia ambas as exigências nas políticas do Feminismo. A renda básica é oferecida como um sucessor para “salários para o serviço doméstico,” uma demanda clássica de Feministas Marxistas que emergiram da cena trabalhista Italiana. O objetivo, diz Weeks, é sublinhar “a arbitrariedade com que contribuições à produção social são e não são recompensadas com salários,” tornando assim visível a enorme soma de trabalho reprodutivo não-assalariado realizado por mulheres. Contra aqueles que rejeitam a renda básica como uma doação imerecida, podemos responder que é o Capitalismo que arbitrariamente se recusa a pagar por uma proporção enorme do trabalho que o sustenta.

Horas de trabalho mais curtas são, também, uma demanda inerentemente feminista. O proletário da imaginação romântica da Esquerda tem sempre sido implicitamente uma figura masculina, o trabalhador de turno-cheio dependendo do trabalho reprodutivo de uma mulher no lar. Contudo, Weeks é cuidadosa ao rejeitar gritos pela redução do tempo de trabalho sobre a premissa de arrumar mais tempo para a família. Tais argumentos podem contestar a ética do trabalho, mas eles fazem isso apenas reforçando uma ética familiar igualmente perniciosa. O tempo em casa acaba retratado como inerentemente melhor ou menos alienante do que o tempo no espaço de trabalho, e a necessidade por tal tempo se torna naturalizada. Isso ignora as caracteríticas alienantes e opressivas da família, que levaram uma geração anterior de feministas a buscar a liberdade e autonomia relativas no trabalho assalariado. E mais, o ascetismo de auto-negação da ética do trabalho não foi superado mas meramente deslocado, do local de trabalho para o lar. Horas de trabalho mais curtas, afirma Weeks, deveriam ser oferecidas não como um suporte para a família tradicional, mas como “um meio de assegurar o tempo e o espaço para forjar alternativas aos ideais, condições de trabalho e vida familiar vigentes.”

Trabalhadores contra o trabalho

A rejeição do trabalho tem uma história rica na teoria de Esquerda, mas uma presença mais intermitente na política de massa. Ela brota esporadicamente, do movimento pelo dia de trabalho de 10 horas no Século XIX ao Agosto Quente italiano de 1969. Uma grande dificuldade é que ao abandonar a ética do trabalho, a política anti-trabalho simultaneamente abraça a causa dos trabalhadores assalariados enquanto mina sua identidade como trabalhadores assalariados. Ela insiste que a sua libertação deve ocasionar a abolição simultânea de sua auto-concepção como trabalhadores. Isso contrasta com a visão Marxista mais tradicional, em que a classe trabalhadora primeiro se realiza na metafórica “ditadura do proletariado” antes de enfim se dissolver em uma sociedade totalmente sem classes. Mas mesmo um marxista tão ortodoxo como Georg Lukács observou em “História e Consciência de Classe” que “o proletariado apenas aperfeiçoa a si mesmo aniquilando e transcendendo a si mesmo.” Seu destino derradeiro é ser não apenas uma classe para-si mas “contra-si.”

Este não é um problema único da luta contra o Capitalismo, e é talvez inerente a qualquer política realmente radical. É sempre mais fácil apresentar demandas nos termos do inimigo do que rejeitar aqueles termos por completo, independente se isso significa minorias raciais demandando assimilação para sociedades brancas ou gays e lésbicas demandando admissão na instituição do casamento burguês. Ao pedir que os trabalhadores abandonem não só seus grilhões mas suas identidades como trabalhadores, teóricos anti-trabalho renunciam a formas de orgulho e solidariedade da classe trabalhadora que têm sido a cola para muitos movimentos de Esquerda. Eles sonham com um movimento de trabalhadores contra o trabalho. Mas isto requer algumas novas concepções de quem nós somos e quem nos tornaremos, se estivermos para jogar fora o rótulo “trabalhador.”

Escritores na tradição anti-trabalho têm frequentemente buscado estas novas identidades nas perspectivas e práticas de figuras que são marginais ao processo de produção e exteriores à classe-trabalhadora. Lafargue decaiu em uma nobre selvageria, comparando o proletariado iludido a “os Espanhóis, em quem o animal primitivo não foi atrofiado,” os quais por esse motivo reconheciam que “o trabalho é o pior tipo de escravidão.” Para Oscar Wilde, o artista mostrava a nós o futuro da vida depois da nossa libertação do trabalho e da propriedade, quando todos poderiam finalmente desenvolver um “verdadeiro, belo e saudável Individualismo.” O trabalho era, para ele, não a fonte de uma vida cheia de sentido mas sua antítese, e a promessa da modernidade era que ele poderia ser superado para os muitos como já foi superado para poucos:

“O fato é que a civilização precisa de escravos. Os gregos estavam absolutamente certos neste ponto. A menos que haja escravos para fazer o trabalho feio, horrível e desinteressante, a cultura e a contemplação se tornarão quase impossíveis. A escravidão humana é incorreta, desmoralizadora e não é segura. O futuro do mundo depende da escravidão mecânica, da escravidão da máquina. E quando os homens da ciência não forem mais convocados a partirem para o deprimente East End para distribuir a gente faminta chocolate de má qualidade e cobertores de qualidade ainda pior, terão um delicioso tempo disponível para planejar coisas maravilhosas e estupendas para satisfação própria e dos demais.”

Os argumentos de Lafargue e de Wilde tem sobretons Nietzchnianos, com a defesa do trabalho retratada como uma forma de ressentimento e a ética do trabalho como uma detestável moralidade escrava. Weeks também faz esta conexão em seu capítulo final, juntando Nietzche e o Marxista iconoclasta Ernst Bloch como um teórico de Política utópica. Desistir do ressentimento, Week sugere, significa perguntar, “Nós podemos desejar, e estamos dispostos a criar, um novo mundo que não seria mais ‘nosso mundo’, uma forma social que não produziria sujeitos como nós?” Isso traz de volta a dificuldade levantada acima, como diz respeito à política da rejeição do trabalho: “seu mandato para abraçar o presente e afirmar o seu eu e, ao mesmo tempo, desejar a sua superação; sua prescrição por auto-afirmação mas não por auto-preservação ou auto-engrandecimento.”

Em outro lugar, Weeks observa que nós não devemos subestimar o quanto da hesitação sobre posições anti-trabalho tem suas raízes no medo. Medo da ociosidade, medo do hedonismo – ou emprestando uma frase de Erich Fromm, medo da liberdade. É relativamente fácil dizer que no futuro serei o que sou agora – um trabalhador, talvez apenas com mais dinheiro ou mais segurança no emprego ou mais controle sobre meu trabalho. É outra coisa nos imaginar como tipos diferentes de pessoas por completo. Esse, talvez, seja o valor pouco apreciado dos acampamentos do Occupy Wall Street e tentativas similares de esculpir formas alternativas de viver dentro dos interstícios da sociedade capitalista. Pode ser, como críticos muitas vezes apontam, que eles não possam realmente construir uma sociedade alternativa enquanto os impedimentos institucionais do Capitalismo a uma tal sociedade permanecerem no lugar. Mas talvez eles possam ajudar a remover o medo do que nós poderíamos nos tornar se esses impedimentos fossem suspensos, e nós fossemos capazes de fazer o nosso êxodo do mundo do trabalho para o mundo da liberdade.

Sobre o autor

Peter Frase is on the editorial board of Jacobin and the author of Four Futures: Life After Capitalism.

3 de abril de 2012

Marx aos 193

John Lanchester

London Review of Books


Ao tentar pensar o que Marx teria feito do mundo de hoje, devemos começar ressaltando que ele não era um empirista. Ele não achava possível obter acesso à verdade ao juntar frações de dados da experiência, “pontos de dados” como chamados pelos cientistas, e então formar um retrato da realidade a partir dos fragmentos acumulados. Dado que é isto o que a maior parte de nós pensa fazer a maior parte do tempo, marca-se um rompimento fundamental entre Marx e o que chamamos senso comum, uma noção detestada por Marx, que a via como a forma de uma ordem política e/ou uma classe específica transformar sua construção da realidade em um conjunto de ideias aparentemente neutro, tomado então como dado da ordem natural. O empirismo, por retirar suas provas da ordem das coisas existentes, está intrinsecamente disposto a aceitar como realidade coisas que são apenas comprovação de vieses subjacentes e pressões ideológicas. O empirismo, para Marx, sempre confirmará o status quo. Ele teria desgostado em particular da tendência moderna de argumentar a partir de “fatos”, como se estes fossem pedaços neutros da realidade, livres das marcas históricas, de viés ideológico e interpretativo e das circunstâncias de sua própria produção.

Por outro lado, eu sou um empirista. Isso não é tanto por achar que Marx estava errado sobre o efeito de distorção das pressões ideológicas subjacentes; é por não achar possível alcançar um ponto privilegiado livre dessas pressões. Logo, tem-se o dever de fazer o melhor com o que é possível ver, especialmente não se furtar a observar dados desagradáveis e/ou contraditórios. Mas essa é uma diferença profunda entre Marx e meu modo de falar sobre Marx, o qual ele teria considerado como filosófica e politicamente inválido por completo.

Considerem estas passagens do Manifesto Comunista, escrito por Marx com Engels em 1848, após ser expulso da França e da Alemanha devido a seus escritos políticos:

O capitalismo submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos. (…) Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos.

O capitalismo rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a meras relações monetárias.

O capitalismo foi o primeiro a provar o que a atividade humana pode realizar: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas; conduziu expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as Cruzadas. (…) O capitalismo (…) criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto.

O capitalismo não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. (…) Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época capitalista de todas as precedentes. (…) As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente.

Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais diversos.

Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade capitalista. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas.


É difícil não concluir desta seleção de frases que Marx foi extraordinariamente profético. Ele de fato teve o mais espetacular insight sobre a natureza, a trajetória e a direção do capitalismo. Três aspectos que se destacam em especial aqui são o tributo pago por ele à capacidade produtiva do capitalismo, que excede em muito qualquer outro sistema político-econômico já visto; a reconstrução da ordem social vinda com isso; e a inerente tendência do capitalismo para a crise, para ciclos de expansão e contração.

Entretanto, devo admitir que não citei essas frases exatamente como Marx as escreveu: onde escrevi “capitalismo”, Marx havia escrito “a burguesia”. Ele falava sobre uma classe e o sistema que servia seus interesses, e fiz parecer que falava apenas sobre o sistema. Marx não usa a palavra “capitalismo”. O termo nunca aparece na primeira parte finalizada de Das Kapital. (Conferi fazendo uma busca pela palavra e a encontrei três vezes, todas aparentemente más traduções ou maus usos do plural alemão Kapitals – em alemão ele nunca fala de Kapitalismus.) Dado que ele é ampla e corretamente visto como o maior crítico do capitalismo, trata-se de uma singular omissão. Os termos preferidos por ele foram “economia política” e “economia política burguesa”, vistos como abrangendo tudo, desde direitos de propriedade, nossa ideia contemporânea de direitos humanos, até a própria concepção do indivíduo autônomo e independente. Acho que ele não usava a palavra “capitalismo” porque isso implicaria que o capitalismo seria um dentre inúmeros sistemas concorrentes possíveis – e Marx não acreditava nisso. Ele não pensava ser possível remover o capitalismo sem uma viravolta fundamental da ordem social, política e filosófica existente.

Ele estava certo: nenhuma alternativa se desenvolveu. A Economia como disciplina tornou-se efetivamente o estudo do capitalismo. Os dois são considerados o mesmo assunto. Se um dia houvesse um desafio sério e sustentado teoricamente à hegemonia do capitalismo dentro da Economia – um desafio sério e sustentado subsequente ao oferecido pelos assim chamados “socialismos reais existentes” –, este poderia ter surgido a partir da quase liquefação final do sistema econômico global em 2008. No entanto, tudo que vimos foram sugestões para ajustes do sistema existente para torná-lo menos arriscado. Temos no momento este híbrido monstruoso, o capitalismo de estado – um termo que era o preferido do Partido dos Trabalhadores Socialistas [Socialist Workers Party] para descrever a União Soviética, usado há algumas semanas na capa da The Economist para descrever a condição econômica atual da maior parte do mundo. Isso é uma paródia da ordem econômica, na qual o público geral corre todos os riscos e o setor financeiro recebe todos os lucros – uma forma extraordinariamente pura do que se chamava “socialismo para os ricos”. Mas “socialismo para os ricos” deveria ser uma piada. A verdade é que este é de fato o modo como a economia global está trabalhando.

O sistema financeiro em sua condição atual apresenta uma ameaça existencial à democracia ocidental, excedendo em muito qualquer ameaça terrorista. Nenhuma democracia foi jamais desestabilizada pelos terroristas, mas se os caixas eletrônicos parassem de dar dinheiro haveria problemas em escala que colocariam os estados democráticos hoje constituídos em risco de colapso. Ainda assim, os governos agem como se houvesse muito pouco que pudessem fazer. Eles têm poder legal para nos recrutar e nos mandar para a guerra, mas não podem tratar de quaisquer fundamentos da ordem econômica. Parece bastante claro que a omissão da palavra “capitalismo” por Marx, por ele não prever nenhuma alternativa dentro da ordem social existente, era um momento especial de alta definição no funcionamento de sua bola de cristal.

Marx dá bastante ênfase à questão da origem do valor, de como mercadorias são comercializadas e o que é o dinheiro. É uma questão muito simples, mas que não havia sido feita com tal clareza antes; também é o tipo de questão não mais feita em nível profissional ou institucional, porque a ordem atual das coisas é dada como garantida. Mas é uma questão bastante básica e importante (ou duas questões): o que é o dinheiro e de onde vem seu valor?

Há várias centenas de páginas de Marx sobre esse assunto, e dezenas de milhares nos comentários e análises de sua obra, então meu resumo de sua visão será necessariamente simples e condensado de modo caricatural. O modelo marxiano funciona assim: pressões competitivas sempre forçarão para baixo o custo do trabalho, então os trabalhadores são empregados pelo preço mínimo, pagos sempre apenas o suficiente para mantê-los na ativa, e não mais. O empregador então vende a mercadoria não pelo seu custo de fabricação, mas pelo melhor preço que puder: um preço que por sua vez está sujeito às pressões competitivas, portanto, tendendo sempre a baixar com o tempo. Enquanto isso, porém, há uma lacuna entre pelo quê o trabalhador vende seu trabalho e o preço que o empregador obtém pela mercadoria; esta diferença é o dinheiro acumulado pelo empregador, que Marx chamou de mais-valia. No julgamento de Marx, a mais-valia é a própria base do capitalismo: todo valor no capitalismo é a mais-valia criado pelo trabalho. Isto é o que forma o custo das coisas: como Marx diz, “o preço é o nome em dinheiro do trabalho transformado em mercadoria”. E, ao examinar essa questão, cria um modelo que nos permite ver profundamente a estrutura do mundo, vendo o trabalho oculto nas coisas ao nosso redor. Ele torna o trabalho legível nos objetos e nas relações.

A teoria da mais-valia também explica, segundo Marx, porque o capitalismo tem uma tendência inerente à crise. O empregador, assim como o empregado, sofre pressões competitivas, e o preço das coisas que ele vende sempre tenderão a baixar devido a novos participantes no mercado. Seu modo de superar isso normalmente será introduzir máquinas para tornar os trabalhadores mais produtivos. Ele tentará obter mais deles empregando menos para fazer mais coisas. Mas ao tentar elevar a eficiência da produção, ele pode também destruir o valor, frequentemente produzindo muitos bens sem lucro suficiente, o que leva a uma mais-valia de bens concorrentes, levando a uma quebra no mercado e à destruição massiva do capital, levando ao começo de outro ciclo. É um aspecto harmônico do pensamento marxiano que a teoria da mais-valia leve direta e explicitamente à predição de que o capitalismo sempre terá ciclos de crises, expansão e contração.

Há dificuldades evidentes nos argumentos de Marx. Um deles é que muitos dos bens e mercadorias no mundo contemporâneo são agora virtuais (no sentido digital), tornando difícil ver onde está o trabalho acumulado neles. As palestras de David Harvey sobre O capital, por exemplo, o melhor começo para qualquer um estudando o mais importante livro de Marx, são de imenso valor, mas também estão disponíveis de graça na internet. Se você comprá-las em livro – é mais rápido obter informação lendo do que ouvindo – a mais-valia adicionada é praticamente apenas sua.

A ideia de o trabalho estar oculto nas coisas, e o valor destas surgir do trabalho fixado nelas, é uma ferramenta explicativa inesperadamente poderosa no mundo digital. Por exemplo, o Facebook. Parte de seu sucesso vem do fato de as pessoas sentirem que elas e seus filhos estão a salvo gastando tempo nele, por ser um lugar ao qual se vai para interagir com outras pessoas, mas fundamentalmente não arriscado ou relapso como as novas tecnologias com frequência são percebidas – como, por sua vez, o VHS era quando lançado no mercado. Mas a percepção de que o Facebook é “higiênico” (talvez seja esta a melhor palavra) sustenta-se pelas dezenas de milhares de horas de trabalho mal pago de pessoas no mundo em desenvolvimento que trabalham para empresas contratadas para rastrear imagens ofensivas, pessoas que, de acordo com um marroquino que foi à imprensa reclamar disso, recebem um dólar por hora para fazê-lo. Este é um exemplo perfeito de mais-valia: enormes somas de trabalho precário mal pago criando a imagem higiênica de uma empresa que espera valer 100 bilhões de dólares quando se lançar no mercado de ações neste ano.

Quando se começa a procurar pelo mecanismo em funcionamento no mundo contemporâneo, este é visto por toda parte, frequentemente na forma de mais-valia sendo criada por você, consumidor ou cliente de uma empresa. Check-in online e entrega de malas nos aeroportos, por exemplo. O check-in online é um processo que deveria de fato aumentar a eficiência dos procedimentos nos aeroportos, custando portanto menos tempo, que você pode gastar fazendo outras coisas, algumas economicamente úteis. Mas o que as empresas aéreas fazem é empregar tão poucas pessoas para supervisionar a entrega de malas que no final das contas não há economia de tempo para o passageiro. Quando se observa, vê-se que como as empresas aéreas precisam empregar mais pessoas para supervisionar os passageiros que não fizeram check-in online – caso contrário, os voos não sairão a tempo –, as filas desses passageiros se movem mais rápido. As empresas estão transferindo sua ineficiência para o consumidor, mas também estão transferindo para você o trabalho e acumulando a mais-valia. Isso acontece o tempo todo. Toda vez que você usa um menu via telefone ou serviços de mensagens de voz interativos vocês está doando sua mais-valia para as pessoas com as quais está lidando. O modelo marxiano constantemente insta a ver o trabalho codificado nas coisas e transações ao nosso redor.

No ano passado, a National Geographic apresentou “o ser humano mais comum do mundo” para comemorar o nascimento da sétima bilionésima pessoa. O único ponto sem controvérsia sobre esta pessoa era o fato de ser destra. (Na verdade, embora o uso de uma ou outra mão não seja controverso, isso é interessante visto que a taxa média de existência de canhotos está em mais ou menos 10 por cento, mas parece maior em sociedades com nível maior de violência. Ninguém sabe o porquê, mas sobre isso não há surpresa, pois o motivo de algumas pessoas nascerem canhotas não foi compreendido.) Que a pessoa seja um homem é um desenvolvimento relativamente recente. Nascem mais meninos do que meninas, em uma proporção de 103-106 para 100, porque meninos têm taxa mais alta de mortalidade infantil e, para equilibrar a proporção de gêneros da espécie, são precisos mais meninos. Mas a medicina moderna reduziu agudamente a mortalidade infantil na maior parte do mundo, e agora a diferença nas taxas de nascimento se alimenta de outras distribuições demográficas, as quais historicamente têm mais mulheres porque estas vivem mais, novamente por motivos não compreendidos. Além disso, de modo muito mais sombrio, a crescente prosperidade e as habilidades tecnológicas têm elevado a enormes disparidades nas taxas de nascimento, que só podem ter a ver com o aborto seletivo de meninas. A proporção de gêneros na maior parte da Ásia, em particular, elevou-se muito além dos níveis biologicamente possíveis. Na China e na Índia os dados censitários indicam que o nível nacional está em torno de 120 para 100. Em 2020, a China terá trinta a quarenta milhões de homens a mais do que mulheres abaixo dos 19 anos. Para colocar o número em perspectiva, quarenta milhões é o número total de homens americanos nessa faixa demográfica. Portanto, dentro de oito anos a China enfrentará a previsão de ter o equivalente à população de jovens americanos permanentemente constituída por solteiros. Uma das coisas sombrias sobre isso é que a “preferência por filhos”, como é chamada friamente na literatura, sobe com a renda e com a modernização – ou seja, tem subido fortemente. Isso significa dezenas de milhões de meninas perdidas.

Então “ele” é ele. Ganha menos de 8000 libras por ano. Tem um telefone celular, mas não tem conta bancária. Isso se encaixa no modelo marxiano de como o capitalismo funcionaria: ele não tem uma conta bancária porque o trabalhador típico é um proletário que nada tem para depositar em um banco; ele não tem qualquer capital; ele precisa vender seu trabalho pelo melhor preço que puder. Tem 28 anos – a idade média da população mundial, o “cara do meio”. Se você considerar que a pessoa mais comum do mundo pertence ao grupo étnico mais numeroso, segue-se que é um chinês Han. Então, este humano exemplar em 2012 é um homem chinês da etnia Han, de 28 anos, sem conta bancária, mas com um celular, ganhando em média menos de 8000 libras por ano. Sabem quantas pessoas se encaixam precisamente nestes critérios hoje? Nove milhões. Podemos até mesmo adivinhar seu nome: Lee, ou Li, o sobrenome mais comum no mundo. Há mais pessoas chamadas Lee do que há no Reino Unido e na França somados.

Não acho que Marx veria algo neste retrato que contrariasse seu modelo, para usar uma palavra da qual ele não teria gostado. Ele previu o desenvolvimento de um proletariado que realiza a maior parte do trabalho no mundo e uma burguesia que efetivamente possui o usufruto de seu trabalho. O fato de o proletariado estar no mundo em desenvolvimento, na prática varrido da vista da burguesia ocidental, em nada contraria essa imagem – um “proletariado externo”, como às vezes se chama. Peguemos como estudo de caso desse processo a empresa mais valiosa do mundo, no momento a Apple. O último trimestre da Apple foi o mais lucrativo de qualquer empresa na história: obteve rendimentos de 13 bilhões de dólares e vendas de 46 bilhões. Seus produtos mais vendidos são feitos em fábricas de propriedade da empresa chinesa Foxconn. (Foxconn faz o Kindle para a Amazon, o Xbox para a Microsoft, o PS3 para a Sony e centenas de outros produtos com os nomes de outras empresas na capa – não é um exagero tão grande dizer que ela fabrica todo aparelho eletrônico que há no mundo.) O pagamento inicial da empresa é de 2 dólares por hora, os trabalhadores vivem em dormitórios de seis ou oito camas, pelos quais têm de pagar aluguel de 16 dólares mensais. Sua fábrica em Chengdu, na qual é feito o iPad, trabalha 24 horas por dia e emprega 120.000 pessoas – pense nisso, uma fábrica do tamanho da cidade de Exeter – e nem é a maior instalação da Foxconn: esta fica em Shenzhen e emprega 230.000 pessoas, que trabalham 12 horas por dia, seis dias por semana. A resposta da empresa para escândalo recente sobre taxas de suicídio foi apontar que a taxa de suicídios entre os empregados da Foxconn é na verdade mais baixa que a média chinesa e que recusa milhares de contratações por dia; ambas as afirmações são verdade. Isso é que é chocante. Essas condições são iguais ou melhores do que a maior parte dos empregos equivalentes em fábricas na China, onde a maior parte dos bens do mundo é feita, e essa vida é amplamente vista pelos trabalhadores chineses como preferíveis às alternativas rurais remanescentes. E tudo isso, numa ironia tão grande que quase não há palavra para defini-la, no maior e mais poderoso Estado considerado comunista. Não creio que se possa descrever isso como condições de trabalho oitocentistas, mas estão bem próximas de cumprir o modelo marxiano de um proletariado alienado cujo trabalho é sugado e transformado em lucro para outras pessoas. Nosso Sr. Lee, de 28 anos, pode ser facilmente imaginado trabalhando em uma dessas fábricas.

Os desafios para a visão de Marx sobre onde estaríamos hoje aparecem quando se olha os detalhes. Se for observado o quadro geral, muito do que ele previu se tornou verdade. Temos uma burguesia opulenta que é internacional, mas que no mundo ocidental compõe a maioria da população, e uma força de trabalho proletária amplamente sediada na Ásia. Acrescente a isso a regularidade das crises econômicas, a crescente concentração de riqueza entre os já ricos e as pressões elevadas aparentes em todo lugar sobre a burguesia internacional – o “aperto” sobre a qual lemos tanto. Há um consenso geral de que não há mais refúgios, que não há fuga das mudanças econômicas, que o capitalismo se move em um ritmo mais forte do que os próprios podem se mover. Se você é um soldador, mas sua filha precisa estudar para ser uma engenheira de softwares para ter um emprego, isso é algo para o que provavelmente você e sua sociedade podem se adaptar; se você é um soldador e você precisa estudar de novo para ser engenheiro de softwares no meio de sua carreira produtiva, isso já não é tão fácil. Ainda assim, mudanças nessa escala são o que está implicado nos desenvolvimentos dos mercados de trabalho modernos. Isso é exatamente o que Marx queria dizer quando previu um mundo no qual “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Não é, portanto, tão difícil convencer-se de que as previsões de Marx estavam corretas em certo nível de impressionismo.

O erro mais evidente em sua versão do mundo é com a questão das classes. Há algo parecido com o proletariado marxiano clássico disperso pelo mundo. Entretanto, Marx previu que este proletariado se tornaria cada vez mais uma força centralizada e organizada: de fato, esse era um dos motivos pelos quais provar-se-ia tão perigoso para o capitalismo. Criando as condições nas quais o trabalho certamente se organizaria e se reuniria coletivamente, o capitalismo estava obtendo sua própria derrocada. Mas não há um conflito global organizado entre as classes; não há proletariado global organizado. Não há nada sequer próximo a isso. O proletariado está nas filas para entrar na Foxconn, não para organizar greves lá, e o maior perigo que a China encara, que em certo sentido é onde está o proletariado hoje, é a desigualdade causada pelas fraturas entre o novo proletariado urbano e a pobreza rural da qual estão saindo. A China também apresenta tensões entre a costa e o centro e problemas crescentes com corrupção e má administração, que irrompem regularmente no que conhecemos como Incidentes de Grupo em Massa, IGM – basicamente revoltas anti-autoritárias que ocorrem regularmente em toda a China e nunca são relatadas na mídia tradicional ocidental. Mas nenhum desses fenômenos tem a ver com classe, e dada a ênfase posta na obra de Marx na luta de classes organizada, é preciso relacionar isto como uma das previsões que se provaram incorretas.

Por que não? Creio que há dois motivos principais. O primeiro é que Marx não previu, assim como ninguém previu nem acho que alguém poderia, a variedade de formas distintas de capitalismo que surgiriam. Falamos do capitalismo como uma só coisa, mas ele vem em muitos sabores diferentes, envolvendo modelos diferentes. O estado de bem-estar contemporâneo – moradia, educação, alimentação e provisão de saúde para os cidadãos, do nascimento à morte – é um desenvolvimento que desafia a base da análise marxiana do que é o capitalismo: creio que ele observaria de perto o estado de bem-estar e imaginaria que este basicamente minou sua análise, apenas pelo fato de ser muito diferente do capitalismo visto por Marx em funcionamento nos seus dias, a partir do qual ele extrapolou seus dados. Talvez ele argumentasse que a sociedade britânica em sua inteireza se tornou parte de uma burguesia global e o proletariado agora está em outros países; é um argumento possível, mas difícil de sustentar face às desigualdades que existem e estão crescendo em nossa sociedade. Mas o capitalismo de bem-estar escandinavo é muito diferente do capitalismo controlado pelo Estado na China, o qual é por sua vez totalmente diferente do capitalismo de livre mercado salve-se quem puder dos Estados Unidos, que por sua vez é diferente do capitalismo nacionalista e altamente socializado da França, que novamente em nada se parece com o curioso híbrido que temos no Reino Unido, onde nossos governos são totalmente devotos do livre mercado e ainda temos áreas de bem-estar e provimento que eles não se atreveram a abordar. Singapura é considerado um dos países com maior livre mercado no mundo, ficando com frequência no topo ou próximo disso nas pesquisas sobre liberalização dos mercados, e ainda assim o governo possui a maior parte das terras no país e a maioria esmagadora da população vive em moradias socializadas. É a capital mundial do livre mercado e da moradia comunitária. Há vários capitalismos distintos e não está claro que uma simples análise que os abarque todos como se fossem um único fenômeno possa ser válida.

Uma das formas pelas quais isso se dá é a variedade e complexidade de nossos interesses nesse sistema. Em fevereiro, todos os trabalhadores na Foxconn tiveram seu salário básico aumentado em 25 por cento para o turno da noite. Isto não se deu por um ato de organização e protesto por parte da força de trabalho: foi devido a um artigo sobre as condições de trabalho publicado no New York Times. Pressões éticas vindas do Ocidente são uma das forças mais potentes pela melhoria das condições fabris em Shenzhen. Outro exemplo, bastante conhecido no mundo médico, mas não fora dele, é sobre o Mectizan, um medicamento desenvolvido para tratar cegueira dos rios da empresa americana Merck. (As amostras iniciais que continham o composto químico utilizado para fazer o medicamento vieram de um circuito de golfe no Japão.) O medicamento foi desenvolvido por um custo considerável em 1987 e então dado, de graça, perpetuamente, salvando centenas de milhares de pessoas da cegueira e muitas mais de fome por permitir que 25 milhões de hectares de terra antes incultiváveis fossem usados para agricultura. Pode-se espremer isso dentro de um modelo marxiano descrevendo o caso como um golpe publicitário, mas não creio que essa análise funcione, mesmo que apenas por praticamente ninguém no mundo ocidental ter ouvido falar disso.

Isso é algo que Marx não previu e toca em outro fator que não poderia ser previsto. Trata-se da diversidade de nossos interesses e papéis no capitalismo contemporâneo. Marx falava sobre pessoas, de fato classes, como sendo divididas entre trabalhadores e proprietários dos meios de produção, e ele abriu uma concessão ao fato de que somos “portadores” desses papéis, diferentes aspectos os quais podemos desempenhar em momentos diversos, resultando que um proletário pode se ver competindo contra outros proletários, mesmo que seus interesses de classe estejam alinhados. O fato é que no mundo moderno nosso ser é muito mais fragmentado e contraditório que isso. Muitos trabalhadores têm pensões investidas em empresas cujo caminho rumo ao lucro depende de manter em um mínimo o número de trabalhadores que empregam; uma das coisas que levaram à contração do crédito foi a busca pelos fundos de pensão por retornos estáveis maiores para pagar as demandas pensionárias das gerações futuras dos trabalhadores aposentados. Portanto, em muitos casos temos a situação na qual pessoas perdem seus empregos devido a perdas sofridas pela tentativa de oferecer segurança futura para os próprios trabalhadores. Na maioria, somos escravos de salários, beneficiários do estado de bem-estar, financiadores desse estado, ao mesmo tempo em que somos os pensionistas atuais ou futuros que, neste particular se não em outros, são exemplares proprietários burgueses dos meios de produção. É complicado, e as intensas pressões éticas que podem, de modo intermitente, surgir como fardo às empresas são um sintoma da complexidade e multiplicidade dos interesses. É impressionante como variadas empresas se defendem usando a mais simples – e sob o capitalismo clássico, a mais confiável – resposta às críticas ao seu comportamento: nosso papel ético é trazer lucro aos nossos acionistas, gerar empregos e pagar impostos. É isso. O resto fica com o governo. Mas nunca dizem isso, talvez percebendo que intuímos o fato de nossas inter-relações e interesses conflitantes tornarem o mundo mais complicado do que isso.

Por mais complicado que seja o modelo de mundo de Marx, o mundo moderno é ainda mais complicado. Isto exerce grande pressão em mais uma área, que Marx reconheceria por meio de um ditado favorito que vem de Hegel: a quantidade modifica a qualidade. Isso significa que você pode ter um sistema explicativo que abrange certos fenômenos – neste caso, o modo pelo qual o capitalismo produz coisas que vão de encontro à corrente principal de acumulação e exploração – enquanto a direção geral permanece a mesma. Mas chega um ponto em que os fenômenos se amontoam e param de parecer exemplos contraditórios isolados e se assemelham a um desafio basilar às ideias centrais. Algo parecido com isso aconteceu com as contracorrentes no interior do capitalismo.

Tomemos as mais básicas medidas estatísticas sobre a vida, mortalidade infantil e expectativa de vida. Esta era de 43 anos na Grã-Bretanha em 1850, ano em que o Manifesto Comunista foi publicado pela primeira vez em inglês; está abaixo da expectativa de vida no Afeganistão de hoje, que por sua vez é menor do que a de qualquer país não atingido pela epidemia da AIDS. A expectativa de vida no Reino Unido hoje está acima de oitenta e subindo tão agudamente que, encrustado nas estatísticas, há um fato realmente estranho: uma mulher de oitenta anos hoje tem 9,2% de chance de viver até os cem anos, enquanto uma mulher de vinte anos tem 26,6%. Parece estranho que a pessoa sessenta anos mais nova tenha três vezes mais chance de alcançar um século, mas isto mostra o quão rápido se opera o progresso. A mortalidade infantil, frequentemente considerada como indicador de todo um conjunto de coisas (nível de desenvolvimento médico e tecnológico, vigor dos laços sociais, grau de acesso dos pobres a cuidados médicos, reconhecimento social de necessidades alheias), é algo pelo que Marx teria se interessado vivamente. Na Grã-Bretanha vitoriana, a taxa era de 150 mortes a cada mil nascimentos. Hoje, a mortalidade infantil é de 4,7 por mil. Uma melhora de 3191%. (Muitos países alcançaram menores taxas do que nós; estamos na 31ª posição no mundo – o mais baixo de todos é o lugar em que todo mundo vive em moradias comunitárias, com 1,92 por mil.) A taxa de mortalidade infantil global é de 42,09 por mil, um terço da taxa britânica nos dias de Marx. A AIDS causou um efeito terrível nesse caso: a Botsuana, por exemplo, tem expectativa de vida de 31,6 anos, mas de acordo com dados da ONU, subiria a 70,7 anos se removido o impacto da AIDS.

A que ponto este tipo de dados representa um desafio às ideias de Marx? Esses dados mascaram desigualdades significativas – o exemplo notável em Londres é que se você pegar a Jubilee Line a partir de Westminster em direção ao leste, a expectativa de vida masculina decresce um ano a cada parada pelas próximas oito – mas, deixando isso de lado, o quadro mais amplo é que quase todos vivem mais e têm melhor saúde. Se isso é verdade, pode ser verdade que o capitalismo coerente e confiavelmente causa miséria? Pode ser verdade que o sistema é destrutivo se as pessoas que nele vivem simplesmente vivem mais? Tomemos os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, anunciados na virada do século, estabelecendo metas para reduzir a mortalidade infantil em dois terços e a mortalidade materna em três quartos até 2015 do ponto de partida de 1990 (os livros ficaram levemente datados ao estabelecer o ponto de partida dez anos no passado), reduzir à metade o número de pessoas vivendo em pobreza absoluta, duplicar a porcentagem de crianças obtendo pelo menos educação primária. Pode-se ignorar um feito dessa escala? Se um sistema faz isso, pode-se dizer que produz nada além de miséria? O próprio Marx dizia que houve momentos nos quais o modo de produção capitalista poderia se transcender, como na invenção da sociedade anônima. Os indícios posteriores desta possibilidade de transcendência teriam exercido grande pressão em seus modelos intelectuais.

Um desafio final ao modelo marxiano e também ao seu retrato do futuro vem de algo que ele viu bastante clara e profeticamente: o poder produtivo extraordinário do capitalismo. Ele viu como o capitalismo transformaria a superfície do planeta e causaria impacto na vida de cada pessoa viva. No entanto, há uma fissura ou falha próxima ao coração de sua análise. Marx viu os dois polos fundamentais da vida econômica, social e política como trabalho e natureza. Ele não via estas duas como estáticas; usou a metáfora do metabolismo para descrever o modo pelo qual nosso trabalho dá forma ao mundo e por nossa vez somos formados pelo mundo que fizemos. Então os dois polos de trabalho e natureza não permanecem fixos. Mas Marx não levou em consideração o fato de que os recursos naturais são finitos. Ele sabia que não havia algo como a natureza sem forma criada por nossas suposições, mas não compartilhava nossa consciência contemporânea de que a natureza pode zerar. Este é o tipo de coisa chamado às vezes de irônica, embora mais próxima do trágico, e em seu centro está o fato de que o poder produtivo, expansionista, consumidor de recursos do capitalismo é tão grande que é insustentável em nível planetário. O mundo todo deseja ter um estilo de vida de Primeiro Mundo, e todo o mundo pode ver o que é isso na televisão, mas o mundo não pode tê-lo, pois queimaremos todos os recursos antes de chegar lá. A maior crise do capitalismo está sobre nós, predicada no fato inapelável de que a natureza é finita.

Este é um ponto que marxistas em geral tem relutado em abordar, por uma boa razão: o problema dos recursos no mundo de hoje, seja comida, água ou energia em todos os sentidos, têm a ver com a distribuição desigual e não com o fornecimento total. Há mais do que suficiente dessas coisas para todos nós. Escritores e ativistas na tradição marxista tendem a ressaltar esse ponto e estão certos em fazê-lo, mas precisamos também encarar o fato de que o mundo está se encaminhando a consumo e demanda ainda maiores da parte de todos. Todos simultaneamente. Esse fato é o oponente mais mortal do capitalismo. Para dar apenas um exemplo em relação a apenas um recurso, o consumo médio de água americano é de cem galões por pessoa diariamente. Não há água potável suficiente no planeta para todos viverem assim.

A questão é, portanto, se o capitalismo pode desenvolver novas formas, do modo que tem feito até agora, e apresentar mecanismos baseados em propriedade e mercado que impeçam a crise aparentemente inevitável que virá, ou se precisamos de uma ordem social e econômica totalmente diferente. A ironia é que esta ordem pode ser em muitos aspectos como a imaginada por Marx, mesmo tendo ele visto um caminho diferente para alcançá-la. Quando Marx disse que o capitalismo continha a semente de sua própria destruição, não falava sobre mudanças climáticas ou guerras por recursos. Se sentimos tristeza e desânimo na iminência das dificuldades acima, também devemos nos confortar no fato de nossa adaptabilidade imaginativa e engenhosidade que nos levou tão longe tão rápido – tão longe e tão rápido que precisamos agora desacelerar e não sabemos bem como. Marx escreveu, perto do fim do primeiro volume de O capital: “o homem se distingue dos outros animais pela natureza sem limites e flexível de suas necessidades.” Vemos as necessidades sem limites ao nosso redor e elas nos levaram onde estamos, mas precisaremos trabalhar na parte flexível.

Sobre o autor

John Lanchester’s novel The Wall came out earlier this year. His most recent non-fiction book is How to Speak Money.

1 de abril de 2012

Sobre justiça

Concepções de justiça desenhadas de Platão a Rawls, exploradas através da análise de um poderoso romance de Kazuo Ishiguro. Quem conta como súdito e que estratégias poderiam permitir que os excluídos da esfera da justiça mudassem seu status?

Nancy Fraser


NLR 74 • MAR/APR 2012

Tradução / A justiça ocupa um lugar especial no panteão das virtudes1. Os antigos frequentemente a concebiam como a virtude mestra, aquela que ordena todas as outras. Para Platão, a justiça tinha exatamente esse estatuto abrangente. O indivíduo justo, ele nos diz n'A república, é aquele em quem as três partes d'alma - a racional, a irascível e a apetitiva - e as três virtudes correspondentes - sabedoria, coragem e temperança - relacionam-se corretamente entre si. A justiça na cidade é, precisamente, análoga à individual. Na cidade justa, cada classe efetua sua virtude específica ao realizar a tarefa apropriada à sua natureza, sem interferir nas demais. A parte racional e sábia desempenha a função do governo, a irascível e corajosa encarrega-se da defesa, e o resto, os desprovidos de inteligência, porém capazes de temperança, cultivam a terra e realizam trabalho manual. A justiça é o equilíbrio harmonioso entre esses três elementos constituintes.

A maioria dos filósofos modernos rejeita os pormenores da visão platônica. Quase ninguém crê, hoje em dia, que a cidade justa é rigidamente estratificada, com três classes permanentes - a governante, a militar e a trabalhadora -, cujas vidas diferem entre si de maneira gritante. Contudo, muitos filósofos resguardaram a ideia platônica de que a justiça, longe de ser simplesmente uma virtude dentre outras, desfruta de estatuto especial como virtude mestra. Uma versão dessa concepção está presente no célebre livro de John Rawls, Uma teoria da justiça, no qual o autor afirma que a "justiça é a virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento" (Rawls, 2008, p. 4). Com isso, Rawls não quis dizer que a justiça é a virtude mais alta, mas sim que ela é a virtude fundamental, aquela que assegura a base para o desenvolvimento de tudo o mais. Em princípio, as configurações sociais podem exibir um número qualquer de virtudes. Elas podem ser, por exemplo, eficientes, ordenadas, harmoniosas, generosas ou enobrecedoras. Mas a realização dessas possibilidades depende de uma condição anterior, qual seja, a de que as configurações sociais em questão sejam justas. É nesse sentido, pois, que a justiça é a virtude primeira: é apenas com a superação da injustiça institucionalizada que conseguimos firmar o solo a partir do qual as demais virtudes, tanto sociais quanto individuais, podem florescer.

Se, como penso, Rawls está certo nesse ponto, então, ao avaliar as configurações sociais, a primeira questão que devemos colocar é: elas são justas? Para responder-lhe, podemos recorrer à outra tese sua: "o tema primordial da justiça é a estrutura básica da sociedade." Essa afirmação conduz nossa atenção, das várias características imediatamente acessíveis da vida social, à gramática profunda que lhes subjaz, às regras básicas institucionalizadas que estabelecem os termos elementares da interação social. Somente quando elas se ordenam de modo justo é que os outros aspectos mais palpáveis da vida também podem ser justos. Certamente, os pormenores da visão que Rawls tinha da justiça - como os de Platão - são problemáticos. A ideia de que a justiça pode ser julgada exclusivamente em termos distributivos é muito restrita, do mesmo modo como o é mecanismo da "posição original". Todavia, para os propósitos deste ensaio, endossarei a ideia de Rawls de que o foco da reflexão sobre a justiça deve ser a estrutura básica da sociedade. Para explorar essa abordagem e destacar seus méritos, analisarei o romance Não me abandone jamais, de Kazuo Ishiguro.

O livro conta a estória de três amigos, Kathy, Tommy e Ruth, habitantes de uma ordem social peculiar. Quando primeiro os encontramos, eles são crianças que vivem no que parece ser um internato inglês privilegiado, denominado Hailsham. À medida que a estória se desenrola, contudo, descobrimos que as crianças são na verdade clones. Elas foram criadas para prover órgãos vitais aos não clones, que doravante chamarei de "originais". Na segunda parte do romance, a protagonista deixa Hailsham e passa a viver nas Cabanas, residência transitória abandonada, onde os clones aguardam "treinamento". Por ora adolescentes, eles se preparam para iniciar sua tarefa de vida, a "doação", que culminará, ao término de quatro cirurgias, em "conclusão". Na terceira parte, os protagonistas são jovens adultos. Tommy e Ruth tornaram-se "doadores", ao passo que Kathy se tornou uma "cuidadora", o clone que cuida dos que estão no pós-operatório da remoção de órgãos. Depois que Tommy e Ruth "concluem", Kathy sente que não pode mais desempenhar seu papel. O livro termina quando ela própria se prepara para submeter-se à "doação".

Não me abandone jamais é uma obra poderosa, que me deixou comovida em sua primeira leitura. Na verdade, essa descrição é incompleta - no momento em que terminei a leitura eu soluçava incontrolavelmente. Alguns críticos interpretaram o livro como uma ficção científica distópica, que alerta para os perigos da engenharia genética; outros o leram como um Bildungsroman, no qual jovens com esperanças desmedidas e pouco entendimento sobre o realmente importante da vida ganham sabedoria para valorizar relacionamentos e aceitar o mundo como ele é. Ao meu ver, nenhuma das interpretações está inteiramente equivocada. Cada uma capta um aspecto da obra, porém ambas ignoram o que julgo ser o núcleo vital do livro. Do modo como o leio, Não me abandone jamais é uma reflexão sobre a justiça - uma visão dilacerante de um mundo injusto e do profundo sofrimento que ele inflige em seus habitantes.

Peças de reposição

Que ideias o livro tem a oferecer? Acima de tudo, ele nos convida a pensar sobre a justiça através de sua negação. Ao contrário de Platão, Ishiguro não almeja representar uma ordem social justa e oferece, antes, um retrato deprimente de uma ordem que o leitor nota ser profundamente injusta. Isso já enfatiza um ponto importante: a justiça jamais se experimenta diretamente. A injustiça, em contraste, é experimentada diretamente, e é por meio dela que formamos uma ideia da justiça. É apenas pela ponderação do que consideramos injusto que começamos a construir um sentido do que seria uma alternativa. Somente quando imaginamos o que seria preciso para superar a injustiça é que o nosso conceito de justiça deixa de ser vago e adquire conteúdo. Portanto, a resposta para a questão socrática "O que é a justiça?" só pode ser uma: justiça é a superação da injustiça.

Como, então, reconhecemos a injustiça? Se examinarmos a ordem social descrita em Não me abandone jamais e indagarmos por que, e sob quais aspectos, ela é injusta, deparamo-nos com uma resposta óbvia: essa ordem social é injusta porque é exploradora. Os clones são criados e mantidos vivos por causa dos originais. Eles são fontes de órgãos, depósitos ambulantes de peças de reposição, que se cortarão de seus corpos e transplantar-se-ão para os corpos dos originais quando necessário. Eles vivem, sofrem e, eventualmente, morrem para que os originais possam gozar de vidas mais longas e saudáveis. Tratados meramente como meios para os fins dos originais, não se lhes atribui nenhum valor intrínseco. Seus interesses e necessidades são anulados, ou na melhor das hipóteses, subordinados aos dos originais. Dito de outra maneira, os clones não se qualificam como sujeitos de justiça. Excluídos de qualquer consideração e respeito, não são reconhecidos como seres pertencentes ao mesmo universo moral dos originais.

A esse respeito, Ishiguro formula uma observação perspicaz sobre exclusão, identidade e alteridade. Os clones podem ser excluídos de qualquer consideração moral porque são vistos como categoricamente diferentes dos originais. É essa suposta alteridade ontológica básica que justifica sua exploração e, ao longo de suas vidas, sua segregação dos originais. Seu confinamento a lugares especiais, como Hailsham, onde vivem em um mundo fechado, sem contato exterior, a interagir apenas com seus semelhantes e professores - que Ishiguro nomeia, em um gesto que acena para Platão, de "guardiões" - cumpre um propósito específico. A proibição de contato direto entre clones e originais impede a formação de experiências de similaridade ou afinidade entre ambos, o que contrariaria a suposição de diferença ontológica. Com efeito, semelhante suposição é paradoxal. De fato, os clones são réplicas genéticas exatas dos originais, e nisso mesmo reside sua utilidade para estes. Decerto, sua subjetividade difere da dos originais, visto que os clones possuem memórias e experiências próprias. No entanto, geneticamente, ambos os grupos estão em relação de absoluta identidade, uma semelhança tão extrema que chega a ser inquietante, quiçá insuportável. Podemos especular que daí se segue uma ansiedade perturbadora; isso explicaria a ânsia dos originais em enfatizar, a todo custo, o aspecto fundamentalmente diferente de seu estatuto ontológico, o que, portanto, legitimaria a exclusão dos clones do universo de consideração moral.

Não obstante, como mostra Ishiguro, clones e originais partilham do mesmo esquema de cooperação social. Os clones estão sujeitos à mesma estrutura básica da sociedade, no sentido rawlsiano do termo. Os dois grupos atuam sob um conjunto comum de regras básicas, que estabelece que a substância vital de um grupo esteja à mercê de outro, pronta para ser explorada em prol dos originais, independentemente do dano que isso acarretará aos clones. Os dois grupos compartilham, pois, de uma mesma bioeconomia, um matriz biopolítico comum de vida e morte. Os originais dependem dos clones para sobreviver; entretanto eles se recusam a conferir-lhes qualquer reconhecimento como parceiros de interação social.

Para nós, leitores, esta situação é injusta. Reconhecemos uma incompatibilidade entre o círculo restrito dos que se qualificam como sujeitos de justiça (apenas os originais) e o círculo maior dos que conjuntamente se submetem à estrutura básica da sociedade (originais e clones). Semelhante incongruência, nós julgamos, é moralmente errada. Por conseguinte, para nós, a justiça exige que todos os governados por um conjunto comum de regras básicas sejam reconhecidos como relevantes, no sentido de que pertencem ao mesmo universo moral. Nenhum participante deve ser instrumentalizado para o benefício de outrem; todos merecem igual consideração. Apenas por conta deste motivo, a ordem social descrita em Não me abandone jamais é profundamente desconcertante.

Conhecimento terrível

O que torna o mundo descrito no livro verdadeiramente revoltante, todavia, é outra coisa: os seus protagonistas não percebem seu mundo da mesma maneira como nós. Os clones não consideram sua situação injusta. Toda sua criação e socialização foram direcionadas para essa ordem altamente exploradora. Uma vez que essa é a única sociedade que conhecem, suas regras lhes parecem naturais e normais. Em verdade, há um deles, Tommy, que por vezes sente-se furioso. Quando criança, em Hailsham, sem qualquer motivo aparente, Tommy padecia de explosões de raiva. Mas os outros, inclusive sua amiga mais próxima, Kathy, tratavam sua raiva como algo pessoal. Ninguém jamais supunha, inclusive o próprio Tommy, que havia boas razões justificando sua raiva. Todos o encorajavam, de várias maneiras, todos o encorajavam a acalmar os ânimos, e foi o que ele fez. Ao encontrarmos Tommy mais tarde, como um adolescente nas Cabanas, sua raiva já está domesticada. O que sobra é um resto de tristeza - uma qualidade persistente que aponta a existência de regiões internas inacessíveis e incompreensíveis.

Mais uma vez, Ishiguro comunica outra intuição profunda. Sem dúvida alguma, a injustiça é uma questão de vitimização objetiva, uma relação estrutural em que alguns exploram outros e lhes negam qualquer reconhecimento moral como sujeitos de justiça. No entanto, o dano se agrava quando os explorados carecem de meios para interpretar sua situação como injusta. Isso pode ocorrer por meio de manipulação deliberada - quando, por exemplo, os exploradores compreendem perfeitamente a injustiça, mas a mascaram para os explorados. Entretanto, isso também pode se dar de um modo mais sutil - quando, por exemplo, a esfera pública de uma sociedade supostamente democrática é monopolizada por discursos individualizantes, que concentram a culpa nas vítimas e eclipsam as perspectivas estruturais. Ou quando termos anódinos, eufemísticos e vagamente elogiosos são rotineiramente empregados para se referir a realidades criminosas - quando, por exemplo, a remoção compulsória de órgãos corporais é chamada de "doação", e as mortes resultantes, de "conclusão". Em tais casos, os esquemas interpretativos dominantes espelham a experiência dos exploradores e convém apenas a seus interesses. Os explorados, inversamente, têm poucas ou nenhuma palavra para efetivamente articular seus interesses como classe de indivíduos. O resultado final é outro aspecto ou nível de injustiça: os meios de interpretação e comunicação da sociedade não servem todos os membros sociais de modo equânime.

Nessas condições, as vítimas carecem de uma condição essencial para reagir de modo apropriado à sua situação. A resposta apropriada à injustiça, supomos, é a indignação. Contudo, semelhante resposta é possível apenas quando os explorados dispõem de esquemas interpretativos que lhes permitem categorizar sua situação como não apenas desventurada, mas também injusta. Sem isso, os explorados tendem a se culpar. Convencidos de que seu estatuto inferior é justificado, eles oprimem qualquer raiva legítima e se enredam em problemas emocionais. Destarte, uma injustiça na organização social do discurso gera consequências psicológicas nefastas.

Não me abandone jamais desenvolve algumas dessas consequências. De início, na maior parte do tempo que passam em Hailsham, os protagonistas não sabem que são clones. Ignorantes dos termos da ordem social em que foram inseridos, eles não sabem que estão sendo criados para fornecer membros corporais para uma classe superior. Grande parte do drama da primeira seção advém de uma série de incidentes nos quais os personagens deparam-se com situações estranhas, insinuações de uma realidade outra, mais sombria, por trás de seus relativamente felizes dias escolares. Entrementes, o leitor, inicialmente ingênuo, aos poucos compreende a verdade - e, ansiosamente, torce para que os clones a percebam também. Em todo caso, nossos desejos por uma revelação catártica não se concretizam. Com uma consternação crescente, vemos os protagonistas aproximarem-se da verdade, não a descobrindo por muito pouco, para então se afastarem dela repetidamente. Incapazes ou indispostos a cogitar tamanho conhecimento terrível, eles ignoram as pistas, disfarçam as irregularidades, e inventam explicações cada vez mais mirabolantes para se protegerem de uma verdade cruel.

Não resta dúvida de que os funcionários de Hailsham defendem a ignorância das crianças. Em certo momento, uma professora responsável pelas crianças - que, ela percebe, não diferem dela - sucumbe à compaixão e deixa escapar a verdade, para então ser prontamente demitida. Ela violou a política da escola, segundo a qual a verdade deve emergir gradualmente, em pequenas doses, a fim de que os clones descubram apenas aquilo que estão aptos a suportar. Essa técnica evoca uma famosa anedota sobre sapos, que, se jogados em uma panela de água fervente, imediatamente pulam para fora. Se, contudo, os colocamos em uma panela de água fria que gradualmente se aquece, os sapos permanecem dentro tranquilamente e fervem até morrer. A política de Hailsham de revelar o conhecimento da verdade em doses mastigadas retém os clones infantis dentro da panela.

Pessoalidade e poder

Os clones descobrem, eventualmente, a verdade. Mas a essa altura são incapazes de sentir indignação. Reagindo com pesar em vez de com raiva, os clones adolescentes consideram-se desventurados, mas não olham sua situação ou a estrutura básica que lhe subjaz como injustas. Tampouco conjecturam uma revolução ou protesto coletivo. Muito pelo contrário, eles se agarram à promessa de salvação garantida a um pequeno grupo de sortudos e ficam obcecados com a possibilidade de "dispensa" - outra escolha interessante de vocabulário, que alude às dispensas do serviço militar obrigatório, concedidas a estudantes universitários, nos Estados Unidos, durante a Guerra do Vietnã. Em Não me abandone jamais, boatos se espalham entre os clones de que é possível, em circunstâncias excepcionais, adiar por três anos o início da remoção cirúrgica de órgãos. Para obter uma dispensa, reza a lenda, um casal de clones deve demonstrar que está verdadeira e profundamente apaixonado.

A ideia de que estar apaixonado possa constituir a base para o adiamento da remoção forçada de membros é significativa da parte de Ishiguro. Essa lenda urbana peculiar estabelece um vínculo entre individualidade afetiva e valor intrínseco. A suposição é a de que o clone, até então tratado como detentor de valor unicamente extrínseco e manipulado como mero meio para fins de outrem, pode galgar, não obstante, um estatuto social mais elevado, ao menos temporariamente, e ser considerado valioso e digno de consideração por si próprio. A suposição adicional é a de que o que permite semelhante transmutação é a interioridade e individualidade do ser em questão, que se concretiza na experiência do amor romântico. O que confere valor é, pois, a subjetividade pessoal.

Os clones adultos depositam todas suas esperanças nessa ideia. Ela oferece algo consideravelmente mais importante que a promessa de três anos de integridade corporal: ela lhes permite se reconhecerem como algo mais do que depósitos ambulantes de peças de reposição. Ela lhes sugere, antes, que eles são indivíduos únicos, insubstituíveis, cada qual com uma vida interior sui generis. E de onde os clones tiraram essa ideia? De Hailsham, que, aprendemos com o livro, foi fundada como uma alternativa progressista para os cortiços miseráveis onde antigamente se confinavam os clones. Enojados com as condições nas quais suas réplicas biológicas viviam, reformadores liberais sensibilizaram-se e conceberam uma instituição especial, onde os clones seriam educados e mostrariam ter alma. A escola enfatizava a autoexpressão criativa, estimulando os clones a produzirem obras de arte. As melhores, eles lhes diziam, seriam expostas em uma galeria fora da escola. Posteriormente, quando Tommy busca uma "dispensa", ele decide garantir sua reivindicação por meio da produção artística. Ele provará a imensidão do seu amor através de suas pinturas.

Novamente, Ishiguro destaca a (in)justiça de modo pungente e denuncia que a individualidade é uma faca de dois gumes. Por um lado, ela é a característica distintiva da pessoalidade e do valor intrínseco, o bilhete de entrada para o universo de consideração moral. Todavia, ela facilmente se converte em meio de captura do poder, em instrumento de dominação. Apartada de uma compreensão estrutural de uma ordem social exploradora, a individualidade pode degenerar em objeto de culto, em substituto do pensamento crítico, que impede a superação da injustiça. Nas sociedades de consumo de massa "democráticas", a individualidade é a forma de ideologia dominante, o principal conceito pelo qual se interpelam os sujeitos. É como "indivíduos" que somos exaltados a assumir responsabilidade por nossas próprias vidas, encorajados a atender nossos anseios mais profundos por meio da compra e posse das mercadorias e afastados da ação coletiva rumo às "soluções pessoais", que nos instiga a obter dispensas para as nossas preciosas e insubstituíveis personalidades.

Ishiguro esboça uma descrição magistral do paradoxo da individualidade. O que há de mais cruel e perverso no mundo que ele cria é que os protagonistas são vendidos como bens de consumo. Socializados para enxergar a si mesmos como indivíduos, eles não suportam largar mão dessa ideia, mesmo quando a verdade é escancarada: eles são na verdade sacos de peças de reposição, criados para serem consumidos. O que me fez soluçar foram as linhas finais do livro, narradas por Kathy, no início de seus trinta anos. Como "cuidadora", ela passou os últimos dez anos auxiliando seus clones amigos, incluindo Tommy e Ruth. Ela cuidou de seus corpos frágeis, exauridos, sucessivamente destituídos de órgãos vitais. Manteve-os vivos e disponíveis para "doações" ulteriores, proporcionando o consolo que podia, como que para rebater a afirmação deprimente de Ruth de que os clones tinham sido modelados a partir de "lixo" humano. A essa altura da estória, seus dois amigos morreram, e Kathy não consegue mais continuar com o seu trabalho. Após decidir começar suas próprias "doações", ela antecipa sua "conclusão" e faz um balanço de sua vida: "As memórias que mais valorizo, jamais as abandonarei. Perdi Ruth, depois Tommy, mas não perderei minhas memórias deles." Embora não procure reminiscências do passado, Kathy recorda:

O único ato gratuito que já fiz, só uma vez, foi algumas semanas depois de ficar sabendo que Tommy concluíra. Dirigi até Norfolk, mesmo sem precisar. Não procurava nada em especial (...) Talvez tenha apenas sentido vontade de ver aquelas baixadas todas de novo e os imensos céus cor de chumbo. A certa altura, me vi numa estrada onde eu nunca estivera antes e, durante uma meia hora, fiquei sem a menor ideia de onde estava e não me incomodei (...) Eu estava diante de uma imensidão de terras preparadas para o plantio. Entre mim e elas havia uma cerca com duas fileiras de arame farpado, e reparei que essa cerca e mais umas três ou quatro árvores eram as únicas coisas capazes de barrar o vento por vários quilômetros. Ao longo da cerca, sobretudo junto ao arame de baixo, todo tipo de lixo havia se acumulado e enroscado. Era como os detritos que você vê na beira-mar; o vento devia ter transportado parte daquilo tudo por quilômetros e quilômetros até finalmente topar com o pequeno arvoredo e aquelas duas fileiras de arame. Lá no alto, nos galhos da árvore, também pude ver balançando lâminas de plástico rasgadas e pedaços de sacola velha. Foi a única vez, enquanto estava ali parada, olhando para aquele lixo todo, sentindo o vento atravessar aquelas terras desertas, que alimentei uma pequena fantasia (...) Pensava no lixo, no plástico balançando nos galhos, na fila de coisas estranhas presas ao longo da cerca, e, com os olhos semicerrados, imaginei que esse era o lugar para onde tinha sido arrastado tudo o que eu perdera desde a minha infância. Estava, agora, na frente de tudo isso, e se esperasse o bastante, uma figura minúscula apareceria, lá longe, e aumentaria aos poucos, até que eu visse que essa figura era Tommy, e ele então me acenaria, talvez até me chamasse. A fantasia não passou disso - não permiti - e, muito embora as lágrimas estivessem rolando, não solucei nem perdi o controle. Apenas esperei um pouco, depois voltei para o carro, e dirigi para onde quer que devesse ir (Ishiguro, 2005, p. 342-3).

Kathy fala aqui por todos aqueles que nossa ordem social interpela como indivíduos, ao mesmo tempo que os trata como peças de reposição - como trabalhadores sujeitos a condições insalubres; funcionários descartáveis; provedores de órgãos, bebês e sexo; detentores de trabalhos servis; catadores e sacos de lixo; como matéria-prima a ser usada, degradada e despejada, uma vez que o sistema tenha extraído dela tudo o que queria. Outrora, esses grupos eram batizados de "os condenados da Terra". Hoje em dia, são por demais onipresentes e próximos para receberem essa designação. Podemos vê-los, antes, como uma fração considerável dos "noventa e nove por cento"2. Kathy fala em nome de todas essas pessoas, sem, contudo, expedir um chamado às armas. Em vez disso, ela dá voz a toda dor, confusão, autonegação, esperanças e anseios frustrados que compuseram sua breve e trágica vida. Sobretudo, ela apresenta uma reivindicação inflexível por seu quinhão de dignidade, em face de uma ordem social que a desrespeita sem cessar. Ela também se mantém firme no esforço por fabricar algum sentido para a sua vida, mesmo quando a estrutura básica de sua sociedade não a muniu de nada senão destroços para semelhante construção. A conjunção de sentimentos demasiado humanos e emoções abaladoras é o que torna as palavras dessa pobre clone tão comoventes.

Da ficção à prática

Permita-nos, agora, deixar o mundo de Não me abandone jamais e o pathos que ele nos propicia, e pensemos pragmaticamente sobre o que o livro nos ensinou. De que maneira as várias ideias de Ishiguro podem aplicar-se ao nosso mundo social? Em primeiro lugar, a estratégia de abordar a justiça negativamente, por meio da injustiça, é poderosa e profícua. Pace Platão, não precisamos saber o que é a justiça para reconhecer que algo está errado. Antes, o que precisamos é afiar nosso senso de injustiça e cortar os véus da ideologia. Ao atentarmos para o que está errado, precisamos determinar porque isso se deu e como semelhante situação pode tornar-se justa. Somente por meio desse exercício negativo do pensamento é que poderíamos formular um conceito de justiça para além do domínio da abstração e concretizá-lo, enriquecê-lo, tornando-o frutífero para este mundo.

Em segundo lugar, e de novo contra Platão, devemos nos precaver contra a edificação de diferenças essenciais e suspeitar as tentativas de demarcação de linhas divisórias entre guardiões e trabalhadores, insiders e outsiders, cidadãos e estrangeiros, europeus e outrem. Devemos, igualmente, desconfiar das diferenças ontológicas pregadas com vistas a legitimar uma ordem social dupla, que postula um conjunto de direitos para "nós" e outro para "eles". Tais tentativas mascaram ansiedades identitárias e perpetuam um enquadramento inadequado para a abordagem da justiça. Elas autorizam a exclusão daqueles que não se qualificam de sujeitos de justiça. Em terceiro lugar, em vez de nos focarmos na alteridade, devemos seguir Rawls (e Marx!) e atentar para "a estrutura básica da sociedade". Para averiguar quem é passível de consideração moral, devemos estabelecer quem está submetido a um conjunto de regras básicas compartilhado, que define os termos da cooperação social. Se as regras básicas instauram uma dependência exploratória de um grupo a outro - a fim de suprir necessidades tão vitais quanto sexo, reprodução de bebês, cuidados infantis, trabalho doméstico, assistência a idosos, trabalho laboral, limpeza e recolhimento de resíduos, fornecimento de órgãos corporais - então isso significa que eles estão submetidos à mesma estrutura básica da sociedade. Membros de ambos os grupos habitam o mesmo universo moral e merecem igual consideração em questões de justiça.

Em quarto lugar, devemos nos precaver contra abordagens que enquadram a justiça erroneamente, que injustamente nega reconhecimento equânime a todos. Mais ainda, devemos ficar alerta para os casos em que o âmbito de sujeitos de justiça não engloba todos os que se submetem à mesma estrutura básica. Contra Rawls, devemos, pois, contestar os que fazem da cidadania formal o critério último para delimitar quem se classifica ou não como sujeito de justiça, visto que semelhante abordagem necessariamente perpetua um enquadramento equivocado para examinar a justiça em uma ordem social que é transnacional, quiçá global. Em quinto lugar, devemos questionar a tendência de redefinir inequidades estruturais como problemas pessoais, esmiuçando as interpretações que atribuem as condições desfavoráveis da vida das pessoas a suas falhas pessoais e resistindo aos esforços de desconsiderar emoções denunciatórias, como a raiva, que possuem valor de diagnóstico social. Assim sendo, devemos olhar para além das explicações que se restringem às características individuais, analisando parâmetros mais amplos de estratificação, tais quais os mecanismos causais que produzem hierarquias, além dos estratagemas ideológicos que os obscurecem, como a individualização de falhas sociais estruturais.

Em sexto lugar, não devemos supor que a ausência de crítica explícita ou protesto ostensivo comprove a inexistência de injustiça. Devemos, antes, compreender que a resistência organizada contra a injustiça depende da disponibilidade de mecanismos discursivos e esquemas interpretativos que permitem a articulação e manifestação aberta da injustiça. Devemos examinar a esfera pública com o intuito de identificar preconceitos que impedem o acesso equânime à voz política e arranjar mecanismos que, por meio da ampliação dos termos disponíveis para a nomeação e contestação dos problemas sociais, os superem. Em sétimo lugar, devemos suspeitar de exaltações deslumbradas da individualidade e acautelar-nos contra sociedades que fetichizam o amor e a interioridade da vida psíquica, ao mesmo tempo que sistematicamente negam à esmagadora maioria as condições materiais para a realização de ambos. Devemos religar a subjetividade e a objetividade. Finalmente, devemos apreciar a criatividade dos oprimidos, validar seu desejo por uma vida melhor e seu impulso para a construção de sentido, ainda que nas circunstâncias mais desfavoráveis, cultivando a indignação social e a imaginação política. Façamos da justiça a virtude mestra - não apenas na teoria, mas também na prática.

Referências:

ISHIGURO, Kazuo (2005). Não me abandone jamais. Tradução de Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras.

RAWLS, John (2008). Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes.

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