31 de maio de 2019

Desemprego não parece inevitável em meio às transformações do mundo atual

Para isso, é preciso estimular consumo e investimento; Brasil elegeu a direção contrária

Laura Carvalho

Folha de S.Paulo

Equipados com vários sensores, robôs são mais precisos do que chefs humanos para julgar se hambúrguer foi devidamente cozido. BBC News Brasil/Getty Images

Em reportagem de capa de sua edição de 25 de maio, a revista britânica The Economist destacou a criação recorde de empregos observada nos países ricos nos últimos anos: a taxa de desemprego no conjunto das economias da OCDE encontra-se no nível mais baixo das últimas quatro décadas, ao contrário do que previam análises baseadas nos efeitos da chamada estagnação secular e da automação crescente no mercado de trabalho.

É verdade que os diferentes membros do clube não se beneficiaram igualmente desse fenômeno. Em países da periferia europeia, como Itália, Espanha e Grécia, que sofreram mais os efeitos da crise de 2008-9 e da austeridade que se seguiu, o desemprego ainda não voltou aos patamares pré-crise.

Já no Reino Unido, no Canadá, na Alemanha, na Austrália e em outros 22 países da OCDE, o nível de emprego entre pessoas em idade de trabalhar foi o mais alto da história em 2018.

Nos EUA, a taxa de desemprego caiu para apenas 3,6%, a mais baixa em meio século.

Tais evidências levantam novos questionamentos, sobretudo se considerarmos que boa parte dos analistas sugeriu mais cautela com a realização de estímulos fiscais e monetários nessas economias desde a crise financeira global, por considerarem que havia um limite para a redução do desemprego sem gerar inflação.

Na prática, o envelhecimento populacional não impediu a continuidade do processo de crescimento econômico com geração de empregos e inflação sob controle, entre outras razões, porque aumentou também a taxa de participação na força de trabalho nesses países —das mulheres, em particular.

Além disso, o crescimento da produtividade do trabalho foi maior do que o esperado, pois respondeu ao próprio crescimento econômico pós-crise: quanto maior a demanda, mais se aproveitam as chamadas economias de escala e de aprendizado e maiores são os investimentos na compra de máquinas, softwares e equipamentos mais modernos. Isso sem falar nos novos setores e nas atividades criadas pelo desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação.

Nesse contexto, o que o processo de desindustrialização contribui para criar, em meio à automação cada vez maior de atividades realizadas por trabalhadores com níveis intermediários de escolaridade, não é necessariamente uma elevação do desemprego, e sim um vácuo crescente entre, de um lado, assalariados de menor qualificação, empregados majoritariamente nos setores de serviços com salários bem mais baixos, e, de outro, os de mais alta qualificação, vinculados a atividades de alta remuneração.

O problema é que a falta de empregos de níveis salariais intermediários também vem contribuindo para o fenômeno de “missing middle” na pirâmide distributiva, com consequências nefastas para as desigualdades e o próprio sistema democrático.

Felizmente, como apontou a reportagem da revista The Economist, o que as evidências mais recentes vêm mostrando é que tanto a valorização do salário mínimo quanto o próprio desemprego baixo, que aumenta o poder de barganha de trabalhadores menos escolarizados, vêm levando a um crescimento mais acelerado dos salários na base da pirâmide nos últimos anos.

Nem o desemprego, nem a estagnação tampouco o aumento da desigualdade parecem, portanto, inevitáveis em meio às transformações do mundo atual.

Livrar-se dessa armadilha depende da realização de políticas pelo lado da demanda, que estimulem o consumo de bens e serviços, o investimento e a criação de empregos, e pelo lado da oferta, visando o desenvolvimento tecnológico, a criação de empregos de maior qualidade e a qualificação da mão de obra requerida para tal.

No Brasil, elegemos a direção contrária.

Sobre a autora

Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

25 de maio de 2019

Projeto de reforma tributária enfrentará enormes resistências

Criação do Imposto sobre Bens e Serviços vai na direção correta de tentativas anteriores de reforma

Nelson Barbosa
Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

Folha de S.Paulo

Plenário da Câmara dos Deputados durante a finalização da votação da Medida Provisória 870, que define a organização administrativa do governo Bolsonaro - Pedro Ladeira/Folhapress.

A agenda legislativa de 2019 inclui reforma da Previdência, autonomia do Banco Central e reforma da tributação indireta. Três medidas estruturais, sendo a última uma iniciativa dos parlamentares, liderados pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), baseada em sugestões do economista Bernard Appy.

A reforma Rossi-Appy tem vários pontos positivos, mas enfrentará enormes resistências, como acontece com qualquer proposta tributária. Vejamos algumas.

​​Rossi e Appy propõem juntar cinco tributos cobrados pela União (IPI, PIS e Cofins), pelos estados (ICMS) e pelos municípios (ISS) em um único imposto nacional, o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). Trata-se, portanto, de grande simplificação para o contribuinte.

A alíquota do IBS terá três componentes -federal, estadual e municipal-, mas sua arrecadação e fiscalização ficará a cargo de um conselho nacional, não de cada ente federativo. O modelo reproduz o conselho do Supersimples, mas em escala maior do que acontece hoje, pois a nova instituição centralizará a tributação indireta de todas as empresas, não só de micro e pequenos negócios.

A centralização é tecnicamente correta, mas ela pode acabar delegando o ônus da tributação a um grupo de burocratas em Brasília, que fixará "alíquotas de referência", caso estados e prefeituras não o façam.
Como político não gosta de cobrar imposto, a tentação de deixar o abacaxi para Brasília será grande. Prefiro manter os tributos federais, que financiam a seguridade social, separados como "contribuição sobre bens e serviços" (CBS).

Na proposta Rossi-Appy, cada ente federativo será livre para fixar sua alíquota de IBS, que deverá ser única para todos produtos e contribuintes em seu território. Assim, não haverá mais desoneração ou regime especial para o produto X ou Y (ou contribuinte A ou B). Todos pagarão a mesma taxa, pobres e ricos, siderúrgicas e jornais.

Trata-se de outra simplificação louvável, mas que enfrentará grande resistência dos lobbies que criaram os regimes tributários especiais existentes.

Para não punir os mais pobres, a proposta Rossi-Appy inclui compensação para famílias de baixa renda, após comprovação do gasto tributário com produtos básicos. Por exemplo, a pessoa primeiro pagará o imposto sobre a cesta básica, depois receberá o dinheiro de volta. Outra medida correta, quase escandinava, mas com sistema operacional que demora para ser construído.

O IBS também será arrecadado no destino, no ponto de venda do produto, de modo que cada prefeito ou governador decidirá somente quanto cobrar dos seus contribuintes, não quanto exportar de desoneração para seus vizinhos. Trata-se de mudança crucial e necessária, mas que enfrentará oposição de empresas e regiões (exemplo: Manaus) que se beneficiam de incentivos fiscais.

Por fim, a proposta Rossi-Appy segue o princípio do crédito financeiro, isto é, qualquer compra de insumo gerará crédito tributário para pagar o imposto devido nas vendas. Como o IBS não incidirá sobre investimento e exportação, o tributo recairá apenas sobre o consumo final de bens e serviços. A medida está corretíssima, mas ainda assim enfrentará forte lobby do setor de serviços, hoje subtributado.

Juntando os pontos, a criação do IBS vai na direção correta de tentativas anteriores de reforma. A novidade é a amplitude da proposta, pois ela concentra problemas federais, estaduais e municipais em uma mesma batalha.

Seria menos difícil e arriscado reformar PIS, Cofins e IPI, de um lado, e ICMS e ISS, do outro, pois tributação nunca é uma questão somente técnica.

23 de maio de 2019

Onze teses sobre a Venezuela

A política dos EUA em relação à Venezuela não é motivada por uma preocupação com a democracia ou os direitos humanos. E sua intervenção arrogante está agravando ainda mais a crise humanitária do país.

Gabriel Hetland

Jacobin

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, fala durante uma manifestação do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) no Palacio de Miraflores em 20 de maio de 2019 em Caracas, Venezuela. Eva Marie Uzcategui / Getty

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A Venezuela está passando por uma profunda crise humanitária. Qualquer tentativa de negar isso é abominável, pois ignora o enorme sofrimento do povo venezuelano.

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A crise praticamente obliterou os ganhos sociais inegáveis ​​e impressionantes alcançados entre 2003 e 2013, quando a Venezuela viu reduções maciças na pobreza e na desigualdade e melhorou dramaticamente os padrões de vida. A crise também corroeu severamente os ganhos políticos igualmente impressionantes e inegáveis ​​do chavismo, como o empoderamento significativo (embora desigual) de setores da sociedade anteriormente excluídos da política. Devemos reconhecer essas perdas sem nos render à narrativa que proclama que o chavismo estava fadado ao fracasso desde o começo. Essa narrativa deve ser rejeitada não apenas porque é falsa, mas também porque faz parte de um projeto reacionário mais amplo de demonização do chavismo e do projeto da esquerda de construir um mundo melhor. Devemos também rejeitar a narrativa de que o chavismo está “morto”. Apesar de severamente maltratados, os movimentos populares que são o coração pulsante do chavismo não desapareceram: esses movimentos continuam a lutar e serão de vital importância para determinar o futuro da Venezuela.

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As origens da crise são complexas e envolvem uma mistura de fatores de longo, médio e curto prazo, incluindo: a secular dependência do petróleo, que por sua vez é um legado da ordem mundial capitalista e da posição periférica da Venezuela dentro desta ordem; medidas governamentais falhas, particularmente relacionadas à política monetária, que fomentou corrupção estimada em mais de centenas de bilhões de dólares; a repressão governamental de protestos e dissidências pacíficas em meio a um afastamento mais amplo da democracia política e em direção ao governo autoritário; ações de oposição, como açambarcamento especulativo de bens, morte de civis e funcionários do governo e danos intencionais à infraestrutura e recursos públicos, incluindo instalações médicas e alimentos armazenados; ações do governo dos EUA, incluindo apoio manifesto e encoberto para os setores mais violentos da oposição, e os efeitos diretos e indiretos das sanções, que desde pelo menos 2015 privaram o governo de fundos significativos, principalmente ao negar acesso a mercados internacionais de crédito.

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As recentes ações dos EUA - particularmente as sanções impostas em agosto de 2017 e janeiro de 2019 - exacerbaram severamente a crise e devem ser vistas como uma das principais causas imediatas da terrível situação enfrentada por milhões de venezuelanos. Um relatório recente estima que as sanções de agosto de 2017 causaram um adicional de 40 mil mortes na Venezuela até o fim de 2018. Embora seja impossível confirmar esse número, que pode ser muito alto ou muito baixo, é ilógico e repugnante negar que as sanções dos EUA produziram um aumento maciço do sofrimento na Venezuela.

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A política dos EUA em relação à Venezuela não é motivada por uma preocupação com a democracia, os direitos humanos ou o humanitarismo. Washington há muito tempo apóia regimes com históricos políticos e de direitos humanos que são frequentemente muito piores do que o governo de Maduro, incluindo a Arábia Saudita, a Colômbia (onde ser um organizador muitas vezes é uma sentença de morte), Brasil, Honduras e Haiti. Vários desses países realizaram recentemente eleições profundamente fraudulentas ou abertamente fraudulentas que são, no entanto, reconhecidas pelos EUA. A falta de preocupação real de Washington sobre o sofrimento dos venezuelanos também é patentemente óbvia: de que outra forma interpretar a disposição dos funcionários de Trump de brincar sobre o impacto debilitante das sanções, por exemplo, comparando-o com o aperto mortal de Darth Vader? Ou considere a recente decisão dos EUA de encerrar todos os vôos para a Venezuela, que até mesmo o New York Times observa que pode aprofundar significativamente o nível já catastrófico de sofrimento humano.

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Além de ser imoral, ilegal e hipócrita, o apoio aberto dos EUA à mudança de regime tem sido extremamente ineficaz. Apesar de quase quatro meses de agressão aos EUA, Maduro continua no cargo, aparentemente com sólido apoio dos escalões superiores dos militares e do Estado. As ações dos EUA também parecem ter solidificado o apoio de Maduro entre os setores populares da Venezuela: segundo os organizadores chavistas de base, havia crescente mobilização do setor popular contra Maduro no início de janeiro de 2019, mas desde a auto-proclamação de Juan Guaidó como presidente em 23 de janeiro, líderes chavistas se uniram em torno de Maduro, apesar de suas ferozes críticas (e até repugnância) à sua liderança.

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Os EUA têm repetidamente solapado tentativas de resolver a crise da Venezuela de maneira pacífica, por meio de negociações com a oposição do governo. Ao fazê-lo, Washington aumentou as chances de que a crise seja resolvida por meio da violência.

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As ações de Juan Guaidó tornaram a situação na Venezuela mais perigosa sob vários aspectos: aumentando a probabilidade de ação militar dos EUA, que ele solicitou abertamente; enfraquecendo os setores moderados da oposição mais abertos a negociações e ao diálogo; casando a oposição com os EUA, o que reduz a possibilidade de que a oposição delineie medidas positivas para reverter a crise da Venezuela e possa apelar mais diretamente aos setores populares críticos a Maduro, mas cautelosos com a oposição e os EUA; não condenando a perigosa vingança de seus simpatizantes mais próximos, como seu "embaixador nos EUA" Carlos Vecchio, que proclamou que estava cortando a eletricidade da embaixada venezuelana em Washington DC para dar aos ativistas do "Colectivo de Protección de la Embajada" um pouco da experiência de morar na Venezuela ”; e não condenando a violência recente da oposição, como o saque e incêndio criminoso da "sede da Comuna Indio Caricuao, no sudoeste de Caracas", que aconteceu após a tentativa desesperada e cômica de 30 de abril.

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A popularidade de Juan Guaidó na Venezuela parece ter caído, mas evidências disponíveis sugerem que ele continua popular e desfruta de algum apoio do setor popular. Para alguns, e particularmente para os setores populares, o apoio a Guaidó provavelmente está relacionado mais à sua estatura de opositor mais proeminente de Maduro do que ao apoio às políticas pró-mercado de extrema-direita de Guaidó.

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Pessoas razoáveis podem discordar sobre a adequação e a eficácia tática de criticar abertamente (ou apoiar) Maduro, mas não deve haver debate sobre a necessidade urgente de que os estadunidenses se oponham a sanções e ameaças de guerra sob todas as formas, incluindo: pressionar representantes e senadores a apoiar ou co-patrocinar a HR 1004 e a SJ Res. 11, Prohibiting Unauthorized Military Action in Venezuela Act; pressionar os democratas progressistas a tomar uma posição mais firme contra o intervencionismo dos EUA; opor-se aos esforços de Guaidó e seus associados para anular as esperanças de negociações, assumindo ilegalmente postos diplomáticos venezuelanos; e marchar e se engajar em outras ações de protesto para se opor à guerra e às sanções dos EUA.

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Tentativas de encerrar o debate sobre a Venezuela ou de apoiar (ou se opor) a Maduro, como uma prova de fogo para se opor ao intervencionismo dos EUA, devem ser combatidas por três razões. Primeiro, por princípio. A esquerda deve defender o debate aberto e o respeito pelas diferenças de opinião. Em segundo lugar, por razões substantivas. A Revolução Bolivariana inclui um rico conjunto de lições positivas e negativas do que a esquerda deveria e não deveria fazer. Algumas dessas lições são óbvias: políticas que reduzem a pobreza e a desigualdade e empoderam a maioria podem ser politicamente muito populares e devem ser apoiadas; interesses nacionais e estrangeiros poderosos se oporão a tais políticas, e a esquerda deve pensar sobre como lidar com isso. Outras lições são menos óbvias: como podemos evitar os erros que assombraram revoluções passadas, incluindo políticas econômicas disfuncionais, um afastamento das bases, do poder popular e a burocracia e a corrupção dentro do Estado? E como fazemos isso ao mesmo tempo em que nos defendemos das agressões externas e domésticas? Descobrir as respostas para essas e outras questões urgentes é crucial. A única maneira de fazer isso é através do debate honesto e aberto. Finalmente, há a questão da estratégia. Gostemos ou não, o movimento de solidariedade venezuelana e antiimperialista mais amplo inclui pessoas e grupos com uma série de pontos de vista sobre Maduro e a Venezuela. Insistir que todos compartilhem da mesma perspectiva é uma receita para manter o movimento pequeno e irrelevante. Fazer isso também é uma má política: podemos e devemos evitar o sectarismo sem renunciar a princípios fundamentais como o igualitarismo, o antiimperialismo, o anti-racismo, o feminismo e um compromisso compartilhado para construir um mundo inclusivo, profundamente democrático, não-capitalista e ecologicamente sustentável.

Sobre o autor

Gabriel Hetland ensina na Universidade de Albany e escreveu sobre política venezuelana para a Nation, NACLA, Qualitative Sociology, e Latin American Perspectives.

A economia espera sentada

Não adianta achar que o empresário vai investir com base em elemento místico de confiança

Laura Carvalho

Folha de S.Paulo

Diego Padgurschi/Folhapress

A queda brutal das projeções de crescimento e as evidências de uma nova recessão no primeiro trimestre de 2019 trouxeram à tona o círculo vicioso causado pela insuficiência de demanda na economia brasileira.

As vendas fracas geram capacidade ociosa nas empresas e desestimulam, assim, investimentos em novas máquinas e unidades, o que, por sua vez, impede a expansão do produto e da renda das famílias e trava a retomada do consumo e das próprias vendas...

Para agravar o quadro, empresas e famílias endividaram-se ao longo dos anos de crescimento que precederam a crise, gerando o fenômeno que o economista Richard Koo convencionou chamar de "recessão de balanço".

Nesse tipo de crise, prevalece uma falácia da composição: consumidores e firmas cortam seus gastos visando reduzir suas dívidas passadas e tornar seus balanços mais saudáveis, mas acabam com isso causando um efeito agregado de redução do produto, da renda e do emprego, o que contribui para fragilizar ainda mais a sua situação financeira inicial.

Reativar uma economia que se encontra em tal cenário não é nada fácil. De pouco adianta, por exemplo, tentar estimular o crédito, pois empresários e famílias não estão interessados em tomar mais empréstimos: ao contrário, estão buscando saldar as dívidas existentes.

Já a queda da taxa de juros pode até contribuir para reduzir as despesas financeiras com as dívidas acumuladas, diminuindo um pouco a necessidade de cortar gastos com consumo e investimento, mas não é capaz por si só de estimular uma retomada.

Na realidade, os juros têm conhecido efeito assimétrico: embora o aumento do custo do crédito possa atuar para desaquecer uma economia em expansão, reduzindo os incentivos ao consumo e ao investimento, sua queda não é capaz de convencer famílias e empresas a gastar mais em um cenário de crise.

Tal assimetria tornou-se conhecida pela metáfora utilizada por um diretor do banco central americano durante a Grande Depressão dos anos 1930: não se pode empurrar uma corda ("you cannot push a string").

A única forma de quebrar o atual círculo vicioso é a expansão de algum componente autônomo da demanda. E, ao contrário do que se imagina, a recuperação dos investimentos das empresas nunca vem primeiro, pois não é autônoma, é induzida pelo grau de utilização da capacidade existente e pelas próprias expectativas de crescimento das vendas.

Ou seja, não adianta achar que os empresários vão investir em novos equipamentos com base em algum elemento místico de confiança enquanto houver capacidade ociosa: só vai haver estímulo ao investimento se as empresas se depararem com uma evidência concreta de aceleração das vendas de seus produtos.

As exportações poderiam ser esse motor, mas a desaceleração global em meio à escalada da guerra comercial entre EUA e China não ajuda. Já o caminho das concessões para o investimento privado em infraestrutura foi tentado, com pouquíssimo sucesso, pelos governos Dilma e Temer: parece haver pouco interesse dos investidores estrangeiros em investimentos de longo prazo com retorno incerto em meio à estagnação.

Só resta, portanto, a política fiscal. O retorno do investimento público direto em infraestrutura ao patamar pré-crise teria alto poder de estímulo, mesmo que fosse inteiramente coberto pela eliminação de desonerações, subsídios e outras despesas com multiplicador mais baixo sobre a geração de empregos e renda e/ou pela alta de impostos sobre a renda dos mais ricos. Ou seja, a economia brasileira, pelo visto, vai continuar esperando sentada.

Sobre a autora

Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

22 de maio de 2019

Um ano de férias para cada seis anos de trabalho

Que tal essa proposta? Você trabalha por seis anos e daí recebe por um ano inteiro “de férias” para fazer o que bem entender.

Meagan Day


Veranistas em motocicletas em 1974. Boyd Norton / Arquivos Nacionais dos EUA

Tradução / O nosso mundo é uma maravilha. Há um lugar em Alhambra, chamado Tribunal das Murtas, onde a lua reflete em um lago repleto de peixes dourados que incandesce uma incrível fachada ornamentada acima de grandes arcos. Com conhecimento, materiais e tempo, uma pessoa pode criar seu próprio armário ou modelar seus próprios vasos.

A maioria das pessoas não passa muito de seu tempo envolvendo-se com as maravilhas do mundo. Ao invés disso, a maioria das pessoas trabalha e, quando terminam de trabalhar, realizam tarefas de manutenção de vida desnecessariamente árduas e, se por acaso sobrar algum tempo, muitas vezes ficam tão cansadas que são incapazes de fazer algo além de assistir televisão ou dormir.

Isso é uma farsa. O mundo pertence aos vivos e nossas vidas são frágeis e passageiras. Mais pessoas deveriam visitar o Tribunal das Murtas ou, pelo menos, finalmente aprender a tocar banjo… Ou ainda ir pesquisar em arquivos para poder entender a sua árvore genealógica.

O socialismo tem como objetivo a liberdade máxima para humanos, sob o argumento de que a vida é curta e as pessoas deveriam ser capazes de vivê-la um pouco. O capitalismo é contra este objetivo. Sob o capitalismo, o trabalho que deve ser feito, a quantidade de trabalho que as pessoas têm que realizar e quanto esse trabalho é remunerado são decisões tomadas quase que inteiramente com base em quanto lucro privado irão gerar para um punhado de pessoas que detêm as empresas.

O socialismo visa reverter este cenário: devemos decidir juntos em que sociedade queremos viver e, daí, alocar o trabalho de acordo com isso. Todo trabalho deveria conter algum uso justificável para a sociedade, haveria menos e tudo seria compensado de forma justa – com necessidades básicas como moradia, saúde e educação garantidas e não dependentes do emprego de cada um. Isso significaria mais tempo livre e mais capacidade para aproveitar esse tempo livre. Significaria a capacidade de perguntar e responder à questão existencial do que vale a pena fazer em nossas vidas.

O capitalismo não será deposto pelo socialismo da noite para o dia, mas podemos acelerar o fim do capitalismo lutando por reformas que colocam essas idéias e os valores socialistas em movimento. Essas reformas têm o potencial de convencer as pessoas de como a vida pode ser muito melhor se nos recusarmos a seguir as regras do capitalismo. Estas reformas, se imbuídas no espírito de acabar com o capitalismo por completo, também podem libertar materialmente as pessoas para enfrentarem lutas ainda maiores pelo caminho.

Na década de 90, sindicalistas e socialistas nos Estados Unidos formaram um Partido Trabalhista. As circunstâncias políticas desta experiência foram desfavoráveis ​​e não ganhou muito impulso, mas o programa do Partido Trabalhista estava cheio de demandas que elevavam o valor do tempo livre e do direito dos trabalhadores e trabalhadoras levarem suas vidas. Toda uma página do programa, intitulada “Mais tempo para a família e a comunidade”, foi dedicada a evitar que o precioso tempo dos trabalhadores fosse engolido pelo trabalho. Isso incluía uma semana de trabalho mais curta, vinte dias de férias obrigatórias remuneradas para todos e um ano de licença remunerada para cada seis anos de trabalho.

Sendo esta última demanda a mais emocionante de todas. Imagine: você trabalha por seis anos e tem a promessa de um ano inteiro de folga paga para fazer o que quiser, com seu emprego ainda esperando por você depois. O que as pessoas fariam com esse tempo?

Provavelmente alguns iriam sentar e comer Doritos enquanto jogam videogame – e tudo bem, porque jogar é uma parte prazerosa da experiência humana e as pessoas têm direito ao lazer. Mas a maioria das pessoas não faria isso o tempo todo, porque a maioria do tempo que mistura Doritos e jogos que ocorrem sob o capitalismo são pessoas procurando desesperadamente um momento para relaxar e descontrair em meio às constantes pressões de trabalho e da tediosa administração da vida – tais como refinanciar seus créditos estudantis e ligar para ver quais médicos estão no seu plano de saúde (se você tiver a sorte de ter um).

Algumas pessoas provavelmente começariam o ano com Doritos e jogos e depois se cansariam dessa rotina. O que eles podem sonhar a seguir? Talvez jogar sua parte favorita do jogo Assassin’s Creed: Brotherhood seja aquela em que se trava um combate nos telhados da Alhambra. Talvez eles decidam comprar uma passagem de avião para visitar pela primeira vez na vida e acabem no Tribunal das Murtas, observando o lago de peixes dourados ondular suavemente sob a lua cheia.

Não há limite para o que as pessoas decidiriam fazer com seu ano sabático, e esse é o ponto. Os humanos são capazes de tanto, e poucos realmente conseguem explorar suas próprias capacidades.

Uma pessoa pode aprender a andar de caiaque e, a partir daí, ter a opção de andar de caiaque nos fins de semana, melhorando sua qualidade de vida nas próximas décadas. Outra pessoa pode satisfazer uma curiosidade de longa data que sempre nutriu ao ler alguns livros sobre, digamos, o desenvolvimento da primeira infância – e então descobrir que estava realmente mais interessada em ser professora do que secretária, o que a leva a mudar de carreira para uma mais gratificante.

Uma pessoa que nunca fez faculdade, muito menos estudou no exterior, pode passar um ano inteiro em Nagasaki aprendendo japonês. Enquanto estiver lá, também pode aprender sobre o legado da bomba atômica, aprofundando sua compreensão dos riscos da proliferação nuclear. Quando retornar à sua cidade de origem, pode voltar à vida como de costume – exceto que agora eles podem assistir animes sem legendas, e talvez se recusem a votar em políticos que apóiam armas nucleares. Talvez esta pessoa até se torne ativista do desarmamento nuclear!

Uma sociedade capaz de promover com sucesso uma demanda como essa precisaria ter um movimento socialista mais forte, ou pelo menos social-democrata, do que a nossa sociedade hoje. Quando chegarmos a hora de tornar o ano sabático uma realidade, idealmente também teríamos uma garantia de emprego em vigor, o que significa que todas as pessoas que podem trabalhar podem fazê-lo e, portanto, se qualificam para um ano de folga remunerado a cada seis anos de trabalho. Um ano sabático regularmente pago não seria apenas para os sortudos o suficiente para evitar o desemprego – seria para todos que trabalhem.

Essa sociedade também já seria capaz de garantir licença parental remunerada, o que diminuiria a probabilidade de as pessoas tentarem alinhar a constituição de uma família com o seu ano sabático. Não queremos que as pessoas usem o ano sabático para fazer coisas que já deveriam ter o direito de fazer, como passar um tempo com seus filhos recém-nascidos. O mesmo vale para o treinamento para o trabalho – as pessoas devem ser capazes de deixar o trabalho para obter um treinamento melhor sempre que quiserem, sem nenhum custo para eles, e então reingressar na força de trabalho em uma capacidade mais especializada assim que o treinamento for concluído. Isso é benéfico para a sociedade, uma vez que trabalhadores mais qualificados significam uma sociedade mais funcional e mais prosperidade para todos.

O ano sabático deve ser para lazer, prazer e curiosidade. Deveria ser para viagens, aulas de cerâmica e adaptações de histórias em quadrinhos de sagas islandesas do século XI que ninguém conhece direito. Deve ser um momento em que, após seis anos dedicando horas para fazer nosso mundo funcionar sem problemas, cada pessoa poderia explorar e desfrutar desse mundo para si mesma.

Os capitalistas não vão gostar, mas também não gostaram quando criamos o fim de semana. O fim de semana foi ganho por um poderoso movimento de trabalhadores afirmando que o tempo de suas vidas deveria pertencer a eles, não aqueles que os trucidariam para obter lucro.

A demanda por um ano sabático teria que ser conquistada da mesma forma. E no processo de lutar e vencer essa demanda, muitos trabalhadores perceberiam que há algo fundamentalmente errado com a forma como atribuímos valor e alocamos nosso tempo para o trabalho. Se guiados e influenciados por aqueles que já compreenderam que o capitalismo não conduz ao florescimento e a elevação humana, mais do que apenas uns poucos militantes focariam seus horizontes no socialismo.

Sobre o autor

Meagan Day faz parte da equipe de articulistas da Jacobin.

20 de maio de 2019

Ressuscitando Thomas Sankara

Trinta e dois anos após seu assassinato, o revolucionário africano Thomas Sankara, conhecido como o "Che Guevara africano", segue inspirando a luta revolucionária até os dias de hoje.

Ernest Harsch

Jacobin

Foto por Patrick Durand / Sygma via Getty Images

Tradução / Fadel Barro, um líder central do movimento de juventude do Senegal Y’en a Marre (algo como “Basta” ou “Cansados”) está ganhando reputação entre os ativistas ao longo da África. Em 2011, Barro e Y’en Marre iniciaram uma massiva tentativa para impedir o então presidente Abdoulaye Wade de emendar a Constituição em favor sua reeleição. Mais recentemente, Barro e várias dúzias de outros ativistas foram detidos por diversos dias na República Democrática do Congo por criticar os esforços inconstitucionais do presidente de tal país para manter-se no poder.

Em suas aparições publicas, Barro frequentemente usa sua camiseta favorita: na frente há uma imagem de Thomas Sankara, o falecido líder revolucionário de Burkina Faso, com as palavras “Eu ainda estou aqui”.

Barro não está sozinho em sua veneração. Embora Sankara seja popular entre a juventude africana há tempos, nos anos recentes o interesse em seu exemplo e suas ideias tem ressurgido, em particular no próprio Burkina Faso.

Sankara foi assassinado em 1987 em um golpe militar que interrompeu o nascente movimento por mudanças progressistas e justiça em Burkina Faso. Sua crescente popularidade se conecta com o profundo descontentamento entre os burquinabês, que depuseram o presidente Blaise Compaoré – o capitão responsável pela morte de Sankara – durante uma insurreição popular em outubro de 2014.

Che Guevara africano

Durante os meses das manifestações que levaram à deposição de Compaoré, símbolos de Sankara estava quase em todos lugares. Manifestantes carregavam seu retrato, e sua voz gravada ressoava nos equipamentos de som. Citações de suas falas eram apresentadas em cânticos populares. Mesmo os líderes da oposição política moderada frequentemente concluíam seus discursos com a emblemática palavra de ordem do governo revolucionário de Sankara: La patrie ou la mort, nous vaincrons! (“Pátria ou morte, venceremos!”)

Os líderes dos principais partidos de oposição – alguns deles “Sankaristas”, mas a maioria com outras perspectivas – desempenharam um importante papel convocando inicialmente as demonstrações. No entanto, foram os círculos de ativistas e as redes da juventude que se ergueram e se confrontaram com as forças de segurança do regime, com muitas dúzias de manifestantes sacrificando suas vidas no processo.

Muitos desses grupos, como o Balaï Citoyen (“Vassoura dos Cidadãos”), abertamente conta Sankara entre seus heróis. Enquanto os manifestantes marchavam em direção ao prédio da Assembléia Nacional em 30 de outubro (antes de incendiá-lo), eles entoavam conhecidas palavras de ordem de Sankara como “Quando o povo se levanta, o imperialismo treme”. Al Jazeerareportou que muitos jovens nos protestos eram inspirados pelo espíritos do “Che Guevara africano”, enquanto o diário parisiense Le Monde declarou a derrubada de Compaoré como “a vingança dos filhos de Thomas Sankara”.

Duas semanas após a fuga de Compaoré do país, um governo de transição foi formado para organizar novas eleições em outubro de 2015. O governo é diversificado – tecnocratas, intelectuais, oficiais do exército, figuras da sociedade civil, alguns ativistas radicais – e inclui alguns pró-Sankaristas.

Michel Kafando, o diplomata aposentado que serve como presidente de transição, elogiou o “modelo de desenvolvimento igualitário” da revolução. Seu primeiro ministro, Tenente Coronel Yacouba Isaac Zida, exaltou a “identidade de integridade que carregamos orgulhosamente desde a revolução de agosto de 1983”. Um novo parlamento transitório foi também estabelecido, encabeçado por Chériff Sy, editor de um jornal independente conhecido por sua admiração por Sankara.

Como oponentes de longa data de Compaoré, aqueles abertamente identificados com o legado de Sankara agora dispõe de considerável autoridade moral, reforçada pela viva memória de Sankara entre muitos burquinabês. Eles e outros ativistas estão pressionando por reformas fundamentais nos sistemas políticos e sociais e por justiça no que diz respeito aos mais sérios casos de violações de direitos humanos e corrupção sob Compaoré.

Investigações foram reabertas acerca do assassinato do jornalista investigativo Norbert Zongo, em 1998 (presumidamente por membros da guarda presidencial de Compaoré), e pela primeira vez, um inquérito judicial foi iniciado acerca da morte do próprio Sankara.

Apesar das circunstâncias da morte de Sankara, são suas ações e ideias em vida que atraem os maiores interesses hoje. A duração de seu legado é tanto mais notável considerando a curta duração em que seu governo revolucionário esteve no poder – de agosto de 1983 e outubro de 1987.

Em retrospecto, muitos burquinabês – quer gostem de tal governo ou não – concordam que isso trouxe mais mudanças positivas para o país do que havia ocorrido nos 25 anos precedentes desde a independência nacional.

“Terra das pessoas íntegras”

Quando o Conselho Nacional da Revolução (CNR) de Sankara alçou-se ao poder em agosto de 1983, a mídia estrangeira em geral descreveu a tomada do poder como um golpe militar – apenas outro entre diversos ao longo da África.

Sankara era um capitão do exército, e uma quantidade de colegas que ocupavam posições chave (inclusive Compaoré no momento) eram oficiais. Mas eles derrubaram a junta militar anterior como parte de uma ampla coalizão política que incluía diversos grupos políticos de esquerda, alguns sindicatos, o movimento estudantil e outros ativistas civis. O CNR e seu governo eram instituições híbridas que aproximaram participantes de vários setores de sociedade e atraíram forte e ativo apoio dos jovens, dos pobres e de outros marginalizados pela antiga ordem.

Os jovens líderes do CNR (Sankara tinha apenas 33 anos então) deixaram claro desde o início que não estavam interessados em fazer algumas poucas modificações superficiais. Eles queriam transformar fundamentalmente o país – um dos mais pobres e pouco desenvolvidos do mundo. Para sublinhar essa ruptura, mudaram o nome da nação de Alto Volta, a antiga designação colonial francesa, para um que afirmasse uma identidade africana: Burkina Faso, ou “Terra das Pessoas Íntegras”.

A política externa do país também passou por uma reviravolta: fim do alinhamento com a França e outras potencias ocidentais, em direção a movimentos e governos anti-imperialistas, revolucionários e radicalmente nacionalistas em meio ao “Terceiro Mundo”. O CNR de Sankara aberta e ativamente apoiou os lutadores pela liberdade no sul da África – o primeiro novo passaporte de Burkina Faso foi simbolicamente emitido para Nelson Madela, à época ainda preso na África do Sul do apartheid.

O governo Sankara também respaldou vários movimentos que se opunham diretamente à dominação francesa. Durante viagens à América Latina, Sankara abraçou Fidel Castro, bem como os revolucionários nicaraguenses resistindo à intervenção dos EUA. No interior da África, Sankara e seus camaradas defenderam um modelo de unidade pan-africana baseada em populações mobilizadas – não só palavreado, como era o caso da maior parte dos governantes do continente, que geralmente mantinham fortes ligações com seus aliados ocidentais.

Sem surpresa, o CNR atraiu a inimizade da França, dos EUA e de outras nações poderosas. Seus clientes estatais africanos, especialmente a vizinha Costa do Marfim, Mali e Togo tentaram desestabilizar o governo de Sankara. Ajudaram oficiais militares dissidentes levar a cabo bombardeios, e em 1986 o Mali travou mesmo uma breve guerra contra Burkina Faso.

Estado revisto, povo mobilizado

O radicalismo de Burkina Faso não era apenas para consumo externo. O conselho governamental de Sankara não escondeu que enquanto algumas mudanças levariam necessariamente anos, isso não o limitaria a reformas marginais. A “suprema tarefa” da revolução, Sankara se comprometia, “será a total conversão de todo o maquinário estatal, com suas leis, administração, cortes, polícia e exército”.

Para além de reestruturar o judiciário, as forças militares e outras instituições estatais, o conselho governamental de Sankara atacou a corrupção e o consumo ostensivo pela elite nacional. Frugalidade e integridade se tornaram novas palavras de ordem, e julgamentos públicos enviaram dezenas de dignitários para a cadeia por apropriação indevida e fraude. Os ministros de governo tiveram seus salários e bônus cortados e suas limusines tomadas. Sankara declarava publicamente todos seus bens, manteve seus próprios filhos na escola pública e rejeitou parente que lhe procuraram em busca de cargos públicos.

Mais fundamentalmente, o CNR visou desenvolver uma nova política promovendo laços robustos entre o estado reformado e uma população recém-mobilizada. Em sua primeira transmissão como presidente, Sankara apelou a todos, “homem ou mulher, jovem ou velho” a formar organizações populares conhecidas como Comitês para a Defesa da Revolução (CDRs). Eleitos diretamente por assembleias gerais abertas a todos residentes de algum bairro ou vila em particular, os CDRs logo se espalharam por Burkina Faso. Os comitês locais eram genuinamente populares, preenchidos com pessoas de origem social humilde, não apenas os poucos educados.

Mobilizações de trabalho coletivo generalizadas começaram dentro de semanas após a posse de Sankara. Os primeiros chamados vieram das autoridades centrais, mas no nível local eles eram usualmente iniciados e organizados pelos CDRs.

Durante os primeiros anos, comunidades mobilizadas assumiram uma série de projetos: limpar escolas e pátios de hospitais, cobrir estradas, construir pequenas barragens para capturar ou canalizar a água escassas para irrigação do campo, e, quando materiais de construção podiam ser assegurados, construir escolas, centros comunitários, teatros e várias outras instalações. O esforço dos residentes às vezes excedia a capacidade governamental para dar-lhes suporte – por exemplos, construir mais escolas do que as autoridades poderiam suprir com professores ou mantimentos.

As mobilizações, ademais, não eram monopólio dos CDR. Embora as relações com a maioria dos sindicados estabelecidos fosse complicada e às vezes se tornasse tensa, dezenas de novas organizações de autoajuda emergiram através do país, muitas sem qualquer conexão direta com o governo central.

Sankara era aberto quanto à suas crenças ideológicas: marxista, não-dogmático. Uma vez que Burkina Faso era extremamente pobre, com pouca indústria e com uma pequena classe de assalariados, ele tomou o cuidado de não colar o rótulo de “socialismo” ou “comunismo” no processo revolucionários. Em vez disso, ele o enquadrava como “uma revolução anti-imperialista” focada em combater a dominação externa, construindo uma nação unificada, elevando as capacidades produtivas da economia e respondendo os problemas sociais mais urgentes da população, como a fome generalizada, a doença e o analfabetismo.

Embora a pobreza permanecesse uma realidade dolorosa para a maior parte das pessoas, os quatro curtos anos do CNR de Sankara começaram a trazer uma ligeira melhora nas condições de vida – novos postos de saúde pelo país, centenas de novas escolas, uma campanha de alfabetização de adultos e maior apoio aos pequenos produtores rurais. Ao lado de uma rigorosa austeridade para cargos do estado (especialmente a burocracia de alto nível), os gastos públicos em educação aumentaram 26,5% por pessoa entre 1983 e 1987, e em saúde aumentaram 42,3%.

Alguns países ocidentais continuaram a auxiliar os esforços de desenvolvimento de Burkina Faso, mas muitos – receosos da política do governo – reduziram o financiamento. Nesse clima, Sankara e seus colegas enfatizaram a necessidade de ser tão autossuficiente economicamente quanto fosse possível. Evitaram aceitar auxílios para o desenvolvimento que viessem atados à submissão política. “Nós sabemos que temos de depender de nós mesmo”, dizia Sankara.

Especialmente em uma país tão árido, isso inclusive significava ser ambientalmente sustentáveis. Centenas de novos poços foram cavados e reservatórios construídos para melhor conservar a pouca água que tinha o país. Agricultores foram ensinados sobre como combater a erosão do solo e produzir fertilizantes orgânicos. Milhões de árvores foram plantadas pelas zonas rurais do país. Nessa preocupação ambiental, Sankara estava notavelmente na dianteira da maioria dos outros líderes africanos.

Sankara também estava à frente de seu tempo em salientar os direitos das mulheres. Muitos dos programas sociais e econômicos incluíam medidas específicas como aulas de alfabetização para mulheres, orientação sobre maternidade em vilas rurais, e apoio a cooperativas e associações comerciais de mulheres. Um novo código da família estabeleceu uma idade mínima para o casamento, estabeleceu o divórcio por consenso mútuo, reconheceu o direito das viúvas a herdar e suprimiu o pagamento do preço pelo noivado. Campanhas públicas buscaram combater a mutilação genital feminina, o casamento forçado e a poligamia.

Em uma época em que poucas mulheres haviam atingido altas posições políticas e administrativas na África, o governo Sankara indicou mulheres como juízas, altas comissionarias regionais e diretoras de empreendimentos estatais. Em cada um de seus governos, em 1986 e 1987, haviam cinco mulheres ministras, cerca de um quinto do total. (Uma delas foi Joséphine Ouédraogo — agora ministra da justiça no governo de transição do presidente Kafando).

Como em outras experiências revolucionárias na África e noutros lugares, diferenças emergiram no interior das lideranças. Alguns dos camaradas de Sankara eram seguidores ideológicos de Stalin, Maio e do albanês Enver Hoxha. Eles eram menos preocupados que Sankara sobre os abusos de alguns CDRs, eram intolerantes com dissidentes e tendiam à favor da coerção, inclusive prendendo alguns sindicalista veementes demais.

Gradualmente, esses linha-duras gravitaram em direção a Compaoré – o ministro da defesa, que estava ligado ao presidente da vizinha Costa do Marfim, politicamente conservador e pró-França.

A relevância duradoura de Sankara

Em 15 de outubro de 1987, os seguidores de Compaoré levaram a cabo um golpe, assassinando Sankara e dezenas de colaboradores seus. O povo burquinabê ficou chocado e aterrorizado, e mobilizações populares eclodiram de um dia para o outro. O regime de Compaoré eventualmente destruiu a maior parte das políticas progressistas e programas dos dias de Sankara.

Alguns oponentes de Sankara tentam minimizar seu legado, argumentando que durante seu época ocorreram abusos de poder e repressão. Eles acusam seus seguidores de perpetuar um “mito” estilizado. O projeto revolucionário de Sankara não era perfeito e não deve ser idolatrado. Os militares continuaram a exercer um peso excessivo, e os CDRs são lembrados mais por seus abusos que por seu papel positivo na mobilização comunitária e suas autoridades tinham pouca tolerância pelo dissenso político.

Mas muitos burquinabês recordam os grandes avanços da era de Sankara em promover a saúde e a educação popular, suas inovadoras iniciativas pelo desenvolvimento, suas vigorosas medidas anticorrupção, sua política externa progressista e sua ênfase na justiça social, direitos das mulheres e empoderamento da juventude. Como resultado, as ideias de Sankara estão ganhando reconsideração generalizada, e merecidamente.

Sankara não é apenas uma figura colorida do passado ou um lutador da liberdade para os livros de história. Ele é um “mito vivo”, como um dos jornais diários de Burkina Faso recentemente colocou. “Suas ideias continuam a mobilizar multidões inimagináveis”.

Sobre o autor

Ernest Harsch trabalhou em questões africanas por mais de duas décadas nas Nações Unidas e atualmente é professor adjunto da Columbia University. Seu livro mais recente é Thomas Sankara: An African Revolutionary (Ohio University Press, 2014).

19 de maio de 2019

A China não é o problema, o capitalismo é

Tom Friedman e Steve Bannon estão, como sempre, errados. As dificuldades nos Estados Unidos não podem ser atribuídas à "guerra econômica" da China à democracia. É culpa das corporações e elites americanas.

Nicole M. Aschoff

Jacobin


Tradução / C. S. Lewis disse que as pessoas se tornam amigas porque “vêem a mesma verdade”. Em um episódio recente da Squawk Box, da CNBC, Tom Friedman e Steve Bannon pareciam francos ao defender a recente decisão do presidente Trump de aumentar em 200 bilhões de dólares as as tarifas das importações da China. Talvez este seja o começo de uma linda amizade entre eles.

Friedman pode até mesmo ser convidado para a nova academia da direita instalada por Bannon em um antigo mosteiro italiano. Os dois podiam usar roupas combinando e ensinar num seminário sobre Como Trump Salvou a Civilização Ocidental. Os dois parecem pensar que o destino do mundo livre, ou pelo menos do "capitalismo democrático de livre mercado", está em jogo na guerra comercial EUA-China.

A história de Friedman/Bannon é mais ou menos assim: durante décadas a China violou as regras do comércio internacional, praticou subsídios ilegais, roubou propriedade intelectual, fez espionagem industrial, com transferências forçadas de tecnologia, praticou, trabalho escravo, etc. Mas por um longo tempo, ninguém realmente se importou porque a China lidava principalmente com brinquedos e camisetas.

Hoje, no entanto, Friedman e Bannon dizem que o campo do jogo mudou. As empresas chinesas competem frente a frente com as dos EUA em setores avançados e sua visão para o futuro - China 2025 - é na verdade um plano para dominar o mundo.

Para eles, o plano comercial de Bob Lighthizer vai além de equilibrar soja e televisões - trata-se de impedir que a China domine o campo da inteligência artificial, supercomputação e aeroespacial, e ganhe o controle militar do Mar do Sul da China. Trump, nos é dito, é o único com coragem para tomar uma posição contra a ascensão da China, o único político disposto a "peitar o jogo".

O diagnóstico de Friedman/Bannon inclui uma solução: nossa relação comercial “desalinhada” com a China pode ser consertada forçando-a a cumprir as regras já acordadas há vinte anos, quando se juntou à OMC. Os EUA podem usar a alavancagem do acesso contínuo aos mercados e capitais estadunidenses como incentivo e forçar o fim da espionagem industrial, transferência forçada de tecnologia e subsídios ilegais.

No momento, “o modelo de negócios da China é uma ameaça existencial para as democracias industriais”, diz Bannon. Mas forçar a China a cumprir as regras será um "ganha-ganha", especialmente para os trabalhadores dos EUA: com Trump eles "finalmente tem uma voz na sala que olha por eles e para seus filhos e netos”. Agricultores e trabalhadores industriais podem ter que suportar uma “dor de curto prazo”, mas entendem o que está em jogo.

Nós já ouvimos essa história antes. No final dos anos 1980 e início dos 1990, o Japão era a ameaça global ao capitalismo.

Romances como "Sol Nascente", de Michael Crichton, e "Dívida de Honra", de Tom Clancy, capturaram o sentimento de raiva nos EUA pelo “comércio injusto” e um profundo temor de que as empresas japonesas representassem uma ameaça “existencial” às manufaturas e ao domínio tecnológico dos EUA, particularmente no setor de alta tecnologia. Empresas dos EUA reclamaram que o capitalismo global estava contra elas, que sem um rebalanceamento entrariam em colapso.

Ao mesmo tempo, foi prometido aos trabalhadores, especialmente aos sindicalizados, que se ficassem do lado de seus patrões (e por extensão, de seu país) e estivessem dispostos a suportar uma dor de curto prazo - colocando os interesses nacionais acima dos interesses pessoais - todos se beneficiariam a longo prazo. Enfrentando ameaças constantes de fechamento de fábricas e declínio do poder de barganha, muitos trabalhadores optaram por se alinhar a seus patrões. Um adesivo popular dos anos 80 dizia: “Toyota, Datsun, Honda - Pearl Harbor!”

Sem dúvida, muitas empresas, especialmente em setores como o automobilístico, lutaram legitimamente durante esse período. Mas em retrospectiva, é claro que o "perigo amarelo" foi usado como uma cortina de fumaça para facilitar uma reorganização muito mais ampla em favor do capital. A retórica nacionalista e o pânico geopolítico permitiram que as empresas e as elites reescrevessem as regras do comércio global em benefício próprio, facilitando o caminho para a terceirização e o offshoring, a reestruturação, a financeirização e a redução dos custos trabalhistas.

A nova arquitetura do comércio global, cristalizada na fundação da OMC em 1995, foi extremamente lucrativa para as empresas e as elites dos EUA. E os trabalhadores que colocaram “o interesse nacional” acima dos seus tiveram cortes salariais e de benefícios, desemprego e deterioração permanente de seu padrão de vida.

Assim como o problema para os trabalhadores nos anos 80 não era o Japão, o problema agora não é o Partido Comunista Chinês. Desigualdade vertiginosa, ausência de caminhos para uma vida decente para pessoas comuns e a alienação e desconfiança generalizadas não podem ser atribuídas à “guerra econômica à democracia industrial” feita pela China. A guerra contra as famílias trabalhadoras está sendo travada pelas empresas e as elites dos EUA.

Com o projeto da Terceira Via deslegitimado e as eleições que ocorrem no mundo, jogam a carta da China, contando aos eleitores fábulas sobre como forçar a China a "seguir as regras" do capitalismo global; esta é a chave para a criação decente de meios de subsistência para os estadunidenses comuns. Chuck Schumer twittou: “Aguente firme a China, Presidente @realDonaldTrump. Não recue. A força é a única maneira de vencer a China. ”

Apesar da recém-descoberta camaradagem entre Friedman e Bannon, Trump e Schumer, os apelos de elite para fazer a China seguir as regras não são para tornar o capitalismo global justo ou para criar bons empregos nos Estados Unidos. Trata-se de ressuscitar a hegemonia política e militar dos EUA e ajudar suas empresas a capturar novos setores e mercados.

Uma alternativa é a chamada Green New Deal (New Deal Verde): uma política industrial verde - que desfaça o complexo industrial militar - atenderia às necessidades dos trabalhadores, tanto dentro quanto fora dos EUA, desenvolvendo modelos de produção e consumo ecologicamente sustentáveis.

A China não é o problema. O capitalismo é.

Sobre a autora

Nicole M. Aschoff faz parte do conselho editorial de Jacobin e é autora de "The New Prophets of Capital" ("Os novos profetas do capital").

18 de maio de 2019

Lançando as sementes do Bolsonaro

O presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro foi levado ao poder pela mobilização de massa da classe média brasileira. Mas isso não teria sido possível sem anos de fracassadas políticas de austeridade.

Uma entrevista com
Ana Luíza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi

Jacobin

O recém-empossado Presidente do Brasil Jair Bolsonaro na cerimônia de posse presidencial no Congresso Nacional em 1º de janeiro de 2019 em Brasília, Brasil. (Bruna Prado / Getty)

Entrevistados por
Giacomo Gabbuti e David Broder

O Brasil está hoje sob o domínio de um regime de extrema-direita aterrorizante, com o governo de Jair Bolsonaro dando início à reversão de décadas de avanços para trabalhadores, mulheres e pessoas LGBT. Sua campanha eleitoral foi notável pela mobilização muitas vezes violenta das forças paramilitares e da direita organizada. No entanto, seu sucesso não surgiu do nada. A ascensão de Bolsonaro ao poder foi apenas o mais recente ponto baixo em uma crise política, incluindo o golpe judicial contra o governo de Dilma Rousseff e a imposição prejudicial da austeridade na economia brasileira pela própria Dilma e pelo presidente interino Michel Temer.

De fato, a turbulência econômica dos últimos anos já marcou a destruição de muitos dos avanços feitos pelo PT no poder, ao mesmo tempo em que ressaltou as contradições desse partido. Isso é destacado em um novo livro, Economia para poucos: Impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Aqui, os economistas Esther Dweck, Ana Luiza Matos de Oliveira e Pedro Rossi mostram que a austeridade, apresentada no Brasil como "necessidade técnica representando a única opção", era de fato uma "escolha política deliberada". Suas consequências foram desastrosas.

Giacomo Gabbuti e David Broder, da Jacobin, conversaram com os autores sobre as condições econômicas para a ascensão de Bolsanaro, os avanços feitos pelo PT (e seus limites) e as lições para a esquerda latino-americana.

Giacomo Gabbuti e David Broder

Primeiro, um prólogo. Uma recente edição da Jacobin "comemorou" uma década desde o colapso financeiro; aqui na Itália, falamos de uma "crise de trinta anos". Mas seu trabalho mostra que outra crise que começou em 2014 foi a pior da história brasileira. Como o Brasil não foi afetado pela crise global de 2008? Isso deve-se às políticas econômicas do presidente Lula entre 2003-2010, que você chama de "desenvolvimentismo social"? A presidência de sua sucessora Dilma já marcava uma mudança de rumo?

Ana Luiza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi

Durante o governo Lula (2003-2010), o Brasil combinou crescimento econômico, distribuição de renda e redução da pobreza. Um cenário internacional favorável e o aumento dos preços das commodities influenciaram esse processo distributivo, mas, fundamentalmente, foi um crescimento econômico impulsionado principalmente pelo aumento da demanda interna, por meio de uma combinação de políticas sociais e investimentos públicos.

As políticas sociais, aumentando tanto as transferências sociais quanto os salários, impulsionadas pelo aumento do salário mínimo (que registrou crescimento real de 63% de 2002 a 2011), impulsionaram a demanda à medida que os brasileiros de baixa renda foram incluídos no mercado consumidor. Além disso, a partir de 2007, o governo petista implementou um programa para aumentar os investimentos públicos em infra-estrutura social e econômica e, em 2009, iniciou um programa de construção de moradia para os mais pobres. O investimento público passou de menos de 3% do PIB para mais de 5%.

Em certos termos, esta foi uma experiência semelhante à Europa pós-Segunda Guerra Mundial: um aumento no consumo de bens duráveis, uma democratização no acesso ao crédito pessoal para o consumo e um aumento na escala de investimentos privados e públicos.

A crise de 2008-9 afetou o Brasil, assim como afetou outros países ao redor do mundo, mas os instrumentos que já estavam em vigor atuaram como políticas anticíclicas eficazes (ou seja, o aumento automático dos gastos sociais compensou a queda do investimento e consumo da era da crise), e a recuperação foi muito rápida. De fato, o PIB do Brasil caiu 0,2% em 2009, mas se recuperou no ano seguinte, crescendo 7,5%. No entanto, a mudança no cenário internacional acrescentou desafios adicionais ao mandato de Dilma. A partir de 2011, surgiram muitos fatores novos, como a desaceleração do comércio internacional, a guerra cambial e o excesso de capacidade mundial (isto é, a insuficiência da demanda global pós-crise para absorver toda a produção), as políticas de austeridade nos EUA e na Europa, e as subsequentes mudanças nos preços das commodities (algumas das quais, da cana-de-açúcar ao café, ainda representam uma parte considerável das exportações brasileiras).

Houve uma queda acentuada nas receitas do governo, impedindo o aumento dos investimentos públicos e, depois de assumir o comando de Lula, em seu primeiro mandato (2011-2014), o governo de Dilma decidiu adotar políticas do lado da oferta. Embora essas políticas não tenham sido muito bem-sucedidas em impulsionar o crescimento por meio de investimentos públicos, em 2014 a taxa de desemprego atingiu os níveis mais baixos da história recente do Brasil e as transferências ainda tiveram um forte efeito na redução da desigualdade. A principal mudança ocorreu no segundo mandato de Dilma a partir de 2015, quando seu governo adotou fortes medidas de austeridade, cortando os gastos sociais em um contexto em que o crescimento econômico já estava em desaceleração.

Giacomo Gabbuti e David Broder

Em 2016, no entanto, o Brasil entrou no que você definiu como a “era da austeridade”. Você dá uma definição de austeridade como “política de ajuste econômico baseada na redução do gasto público e do papel do Estado em suas funções de estimular o desenvolvimento econômico e promoção do bem-estar social.” O que você vê como a principal lógica por trás da austeridade? E como a austeridade se desdobrou no Brasil, com que consequências para os trabalhadores?

Ana Luiza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi

Austeridade atende a diversos grupos de interesse na sociedade brasileira, alguns dos quais sempre argumentaram que a Constituição Federal de 1988 garante muitos direitos sociais ou que houve uma intervenção excessiva do governo na economia, como o aumento do salário mínimo ou o desenvolvimento de políticas de desenvolvimento usando bancos públicos.

A Constituição Federal foi inspirada na experiência do estado de bem-estar na Europa. Seu objetivo era responder às demandas sociais que a ditadura civil-militar (1964-1985) frustrou, garantindo os direitos sociais. Por exemplo, esta Constituição estipula a educação como um direito social, pela primeira vez na história brasileira.

A crise deu força aos críticos da Constituição de 1988. Invocando a necessidade de voltar aos orçamentos equilibrados para voltar ao crescimento, na austeridade eles encontraram um instrumento fundamental para quebrar o papel social do Estado. Em 2015, o governo combinou um choque na política monetária (uma redução súbita na oferta de dinheiro pelo banco central), com aumento das taxas de juros e redução do papel dos bancos públicos; uma liberalização no mercado de câmbio que desvalorizou a moeda brasileira em mais de 50% ao ano; e um choque nos preços administrados (especialmente em relação a itens cruciais como eletricidade residencial e combustível).

O resultado foi uma inflação maciça - acima de 10% naquele ano. Isso foi complementado por cortes drásticos nos gastos do governo, que afetaram investimentos e gastos sociais. Todos esses elementos contribuíram para as piores crises econômicas da história brasileira, marcadas pelo declínio do PIB.

Austeridade e outras medidas neoliberais empurraram o Brasil para uma crise econômica, que ainda é sentida pelos trabalhadores brasileiros. Por exemplo, enquanto o desemprego atingiu seu nível mais baixo de 4,3% em 2014, esse número subiu para 6,9% em 2015 e continuou crescendo desde então. Os dados mais recentes mostram que o Brasil tem 12,7 milhões de desempregados e 27,5 milhões de desempregados. O PIB caiu 3,5% em 2015 e 3,3% novamente em 2016.

A crise econômica levou a uma queda no apoio ao governo Dilma e preparou o caminho para o golpe de Estado em 2016. O governo Temer acompanhou e constitucionalizou a austeridade com a Emenda Constitucional 95/2016, que proíbe que os gastos primários (isto é, os gastos governamentais com bens e serviços, não incluindo juros sobre dívidas ou itens semelhantes) cresçam em termos reais pelos próximos 20 anos, reduzindo assim os gastos públicos e o tamanho do estado em relação ao PIB.

Se o governo Dilma viu a austeridade em termos de “ajustes”, sob Temer tornou-se uma medida estrutural e permanente. E a austeridade também tem um efeito no aumento da desigualdade, que é um dos maiores problemas sociais do Brasil. Como mostramos em nosso livro, os gastos do governo, como transferências monetárias, o sistema geral de seguridade social e as políticas sociais, como saúde e educação, têm efeito na diminuição da desigualdade. Assim, a redução do gasto social nessas áreas agravará a desigualdade social não apenas em termos de renda, mas em vários outros aspectos da desigualdade, como gênero, raça, região e acesso a serviços sociais.

Giacomo Gabbuti e David Broder

Entrevistado pela Jacobin por Andrea Califano, o candidato do PT Mácio Pochmann falou da necessidade de olhar além das relações “atlânticas” do Brasil, enfocando, ao contrário, tanto a integração econômica “interna” latino-americana quanto a aproximação com a Ásia oriental - uma abordagem robustamente rejeitada por Jair Bolsonaro. O que a disputa entre os polos chinês e americano e, de fato, o papel regional do próprio Brasil, implica em seu modelo econômico doméstico?

Ana Luiza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi

A América Latina é uma das regiões menos integradas do mundo. Mas, mesmo assim, se considerarmos os padrões de exportação brasileiros para os países da América Latina, eles são muito mais tecnológicos do que suas exportações para outras regiões. Entre todas as exportações brasileiras, outros países da América Latina são o principal destino de produtos manufaturados.

Durante os mandatos de Lula e Dilma, houve uma tentativa de aumentar a integração regional, com iniciativas como o MERCOSUL, a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). A dimensão política da integração tornou-se cada vez mais importante e deu aos países sul-americanos a oportunidade de responder de forma coordenada aos desafios do século XXI.

Essas iniciativas, portanto, representam uma tentativa de substituir a antiga divisão internacional do trabalho. Os países latino-americanos não podem limitar seu papel ao dos fornecedores de insumos básicos (por exemplo, matérias-primas) para a produção realizada no exterior. O aumento da sofisticação e diversificação é necessário para a expansão da produtividade e, portanto, a renda e o bem-estar de sua população. No entanto, desde a crise de 2008-9, com a desaceleração do comércio internacional, houve um aumento da concorrência e muitos países adotaram políticas comerciais mais protecionistas. Na América Latina, o comércio bilateral com a China veio substituir o comércio intra-regional anterior.

Isso levou a uma tentativa de fortalecer a integração econômica latino-americana interna e outras integrações sul-sul com países africanos e do leste asiático. No entanto, o governo Bolsonaro abandonou isso e, em vez disso, quer adotar uma abertura unilateral ao comércio, a fim de aumentar a integração do Brasil na economia mundial. No contexto internacional explicado acima, isso tende a aumentar as importações brasileiras, acelerando um processo prematuro de desindustrialização e o Brasil pode até perder seu papel de exportador primário de bens, à medida que a China e os EUA estabeleçam um novo acordo comercial.

Giacomo Gabbuti e David Broder

Mesmo se considerarmos Bolsonaro, Salvini, Trump e outros líderes como parte de uma onda comum e coerente de “populismo de direita”, eles têm abordagens muito diferentes da austeridade. Alguns movimentos europeus (pelo menos retoricamente) se opuseram à austeridade imposta pela UE, e Trump demonstrou pouca preocupação com a disciplina fiscal quando reduziu os impostos para os ricos. Na América Latina, no entanto, a "nova" direita propõe políticas neoliberais bastante antigas, preocupantemente semelhantes às importadas para o continente por Pinochet. Como você explicaria essa diferença?

Ana Luiza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi

Esta é uma pergunta muito boa. A extrema direita brasileira tem particularidades. Na atual retórica de Bolsonaro, não há contradições com as políticas apoiadas pelo setor financeiro. O discurso do presidente abraça completamente o neoliberalismo. Isto está ligado ao fato de que Bolsonaro foi impulsionado por importantes grupos de interesse que só apoiariam uma agenda austera ou neoliberal e não uma keynesiana ou “desenvolvimentista”.

No discurso de Bolsonaro, quase não há menção de criação de emprego ou recuperação econômica, como Trump faz com suas promessas de medidas protecionistas para trazer de volta empregos manufatureiros dos EUA perdidos sob a pressão da globalização.

As eleições brasileiras foram absolutamente atípicas, em termos internacionais, na medida em que não houve um debate econômico sério. Entre o absurdo encarceramento de Lula - o candidato favorito da população - o colapso da direita tradicional e o ataque com faca a Bolsonaro, ele reuniu sua base por trás da “recuperação da moralidade”, dos valores tradicionais e da religião cristã. Quaisquer políticas de proteção de grupos específicos, ou mesmo políticas sociais em geral, são vistas como intervencionismo estatal e, portanto, medidas que só perturbam os mercados e a ordem tradicional.

Giacomo Gabbuti e David Broder

Depois do golpe chileno de 1973, partidos comunistas como o PCI italiano “enfatizaram a importância de ir além de uma simples aliança de esquerda capaz de assegurar uma maioria parlamentar”. A América Latina ficou excessivamente confiante em sua capacidade de manter o poder por meio da política eleitoral? Qual papel foi desempenhado pelas classes médias brasileiras na ascensão e queda do PT e de sua coalizão - e até que ponto as próprias políticas do PT foram o resultado de um ato de equilíbrio entre diferentes partidos? Como poderia uma política progressista ter construído uma coalizão com eles?

Ana Luiza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi

O Brasil é um país muito complexo e diversificado. Existem setores na elite brasileira que estão completamente alinhados com as políticas neoliberais, como o setor financeiro, mas existem outros setores ainda ligados às indústrias e setores produtivos que produzem para o mercado interno e precisam do Estado, dos bancos públicos e das políticas econômicas específicas.

A ascensão do governo petista acompanhou a crise de um governo neoliberal, que deixou insatisfeita uma parte dessa burguesia. A classe média inicialmente apoiou o PT, mas retirou o apoio mais tarde, após os escândalos de corrupção inflados pela mídia de massa, que também produziu uma campanha contra as políticas sociais e econômicas do governo.

Durante o governo do PT, a classe média foi pressionada pela ascensão dos pobres, que passaram a disputar espaço social com a tradicional classe média em universidades, aeroportos e shoppings, enquanto o topo da pirâmide mantinha seus privilégios. A classe média, que sempre teve acesso a serviços a baixo custo - por exemplo, donas de casa - achou difícil manter os mesmos padrões de vida com o aumento dos salários.

Então a classe média é de fato um aspecto importante na queda dos governos do PT. A experiência mostra que reformas estruturais como a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma tributária e a reforma política deveriam ter sido feitas, por exemplo, durante o segundo mandato de Lula, quando ele tinha cerca de 80% de aprovação popular. Infelizmente, a falta de uma institucionalização mais profunda de muitas políticas sociais aplicadas durante este período permitiu uma rápida reversão dessas políticas sob seus sucessores.

Giacomo Gabbuti e David Broder

A retórica anticorrupção claramente ajudou a direita a construir sua política contra as políticas públicas - especialmente entre os brasileiros que dependem menos dos gastos sociais. Isso parece muito semelhante aos eventos na Itália nas últimas décadas. Enquanto Lula e o primeiro-ministro de centro-esquerda da Itália, Bettino Craxi, são dificilmente comparáveis (este último sendo muito mais pessoalmente envolvido na corrupção), é notável como no caso italiano o escândalo das “mãos limpas” do início dos anos 90, derrubando o Partido Socialista de Craxi, abriu caminho para duas décadas de austeridade. O que poderia ter sido feito pelo PT para resistir a essa agenda - e como podemos fazê-lo nos próximos anos?

Ana Luiza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi

Podemos responder ressaltando os argumentos apresentados pelos pesquisadores brasileiros no artigo "A guerra contra todos: a crise brasileira". Os autores mostram que os problemas da acumulação capitalista e o tumulto no cenário político se transformaram em uma crise estrutural sob o efeito do caso anticorrupção da Operação Lava Jato.

Eles argumentam que o aparato institucional por trás da Lava Jato, investigando práticas de corrupção na Petrobras e outras agências do governo, mudou o "centro de poder" do Estado brasileiro para suas próprias mãos. No entanto, como mostramos em nosso próprio livro, os resultados reais das políticas sociais do PT foram as principais razões do caso da direita contra eles.

No governo Dilma, à medida que o espaço fiscal estreitava devido à desaceleração do crescimento, o conflito distributivo tornou-se mais agudo e as escolhas políticas tornaram-se mais difíceis, já que não era mais possível agradar a todos o tempo todo. Havia sinais de uma reação do capital, em consonância com o que o economista polonês Michał Kalecki discutiu em seu ensaio de 1943 sobre os "Aspectos políticos do pleno emprego". Ele observou que, mesmo quando os economistas concordaram que os governos poderiam alcançar o pleno emprego, havia razões para os capitalistas se oporem a tal política (como de fato aconteceu em quase toda a década de 1930). Uma dessas razões, observou Kalecki, seriam as “mudanças políticas resultantes da manutenção do pleno emprego” - isto é, como no caso brasileiro, maior poder de barganha para os trabalhadores e uma distribuição de renda diferente e mais igualitária.

Nesse sentido, o governo Lula tentou conciliar interesses irreconciliáveis. A enorme redução da pobreza e da desigualdade, conforme registrada pelo índice de Gini, que caiu de 63,3 para 51,3, não foi acompanhada de uma redução na proporção da renda acumulada pelos brasileiros mais ricos (que votaram cada vez mais contra o PT). Isso mostra que uma transformação mais profunda só pode ocorrer através de um confronto com privilégios e interesses especiais (por exemplo, por meio de uma reforma radical do sistema tributário regressivo do Brasil, em que os impostos indiretos sobre o consumo ainda representam quase metade das receitas tributárias, enquanto os lucros e dividendos estão isentos do imposto de renda pessoal).

Depois da crise, quando as margens de lucro foram reduzidas, o governo de Dilma tomou algumas medidas contra a fração bancário-financeira do capital, que alimentou descontentamento entre os grupos poderosos.

O erro de voltar-se para a austeridade em 2015 não foi suficiente para manter o apoio das elites econômicas e também enfureceu os trabalhadores e movimentos sociais que poderiam ter dado apoio político ao governo. Depois do impeachment de Dilma, a combinação de retórica anticorrupção e oposição a "gastos desnecessários" poderia, assim, cooptar um novo bloco de poder.

A fim de combater esse tipo de retórica nos próximos anos, é importante mostrar à população as conseqüências danosas das decisões políticas tomadas após a remoção de Dilma. A ideia do nosso livro era mostrar exatamente como essas políticas estão afetando a vida cotidiana e estão impondo todo o custo da crise sobre os trabalhadores, movimentos sociais e grupos desfavorecidos.

Colaboradores

Ana Luiza Matos de Oliveira é economista e doutora em desenvolvimento econômico. Seus trabalhos recentes dizem respeito à desigualdade e políticas sociais no Brasil.

Esther Dweck é professora de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalhando em economia do crescimento e desenvolvimento; anteriormente, ela atuou como secretária do Orçamento Federal Brasileiro.

Pedro Caban é professor de estudos latino-americanos, caribenhos e latinos americanos na Universidade de Albany, na Universidade Estadual de Nova York.

Giacomo Gabbuti é estudante de doutorado na Universidade de Oxford e membro do conselho editorial da Jacobin Itália.

David Broder é um historiador do comunismo francês e italiano. Atualmente, ele está escrevendo um livro sobre a crise da democracia italiana no período pós-Guerra Fria.

16 de maio de 2019

O colapso do teto

Teto de gastos tem servido para colocar a educação contra a saúde, a ciência contra a cultura

Laura Carvalho


Rodrigo Maia (DEM-RJ) após almoço oferecido pelo Citi Bank em Nova York, nesta terça (14). Niyi Fote/Thenews2/Folhapress

Em reunião com investidores em Nova York, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, pôs o dedo na ferida ao afirmar, na terça-feira (14), que a aprovação da reforma da Previdência não resolverá o problema de falta de crescimento da economia brasileira e que o teto de gastos, se não for revisto, pode levar o país ao "colapso social".

Embora o atual contingenciamento de recursos também seja uma resposta à dificuldade de cumprimento da meta de resultado primário aprovada para este ano, o fato é que, mesmo se houver recuperação da arrecadação e as despesas previdenciárias crescerem a um ritmo menor pela aprovação da reforma, limitar o crescimento do conjunto de despesas do governo à taxa de inflação do ano anterior (como determina a emenda constitucional 95) continuará fazendo com que sobre cada vez menos espaço a cada ano para os itens não obrigatórios do Orçamento.

A primeira consequência é um acirramento de conflitos distributivos na sociedade. Diferentes áreas e categorias, por meio de campanhas públicas, mobilizações de rua e canais mais diretos de influência sobre os parlamentares e o Executivo, buscam preservar suas fatias em um bolo que vai ficando cada vez menor.

Em vez de trazer uma alocação mais eficiente ou prioritária dos recursos, como argumentavam os defensores da regra, o teto de gastos tem servido, na prática, para colocar a educação contra a saúde, a ciência contra a cultura, o Minha Casa Minha Vida contra o Bolsa Família, com a distribuição final dependendo da capacidade de organização ou do poder de influência de cada setor —além, é claro, dos objetivos de cunho político-ideológico de quem deveria nos governar.

Enquanto isso, áreas que contam com menos defensores levam boa parte do prejuízo: é o caso da infraestrutura, por exemplo, que já recebe menos investimentos do que o necessário para cobrir até mesmo a sua deterioração, ainda que tenha fortes efeitos multiplicadores sobre a geração de renda e empregos —cruciais para uma sonhada retomada.

Nesse sentido, é importante que as mobilizações legítimas de cada setor pela preservação dos recursos destinados a áreas prioritárias para a sociedade —o Censo, a educação pública ou as bolsas de pesquisa, por exemplo— venham combinadas a uma demanda coletiva por um regime fiscal que garanta o equilíbrio das contas públicas no médio prazo sem impor uma camisa de força à democracia e à própria economia.

O colapso social a que se referiu Rodrigo Maia e o caráter crônico de nosso quadro de estagnação econômica por insuficiência de demanda poderiam ser evitados com a substituição do atual regime fiscal por novas regras, mais alinhadas com as praticadas no resto do mundo. Por exemplo, a fixação de metas anuais para o crescimento real dos gastos públicos em linha com a tendência esperada de crescimento da economia.

Além disso, a redistribuição da carga tributária em discussão no Congresso Nacional poderia ser planejada de modo a gerar aumento das receitas nos primeiros anos, abrindo espaço até mesmo para uma expansão dos investimentos públicos e de outras despesas com alto potencial de estímulo à economia e à geração de empregos.

Não faltam alternativas ao modelo de ajuste fiscal em curso e seus altíssimos custos sociais e econômicos. As importantes mobilizações contra os cortes de verba em áreas prioritárias podem servir também para colocá-las na ordem do dia.

Sobre os autores

Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

14 de maio de 2019

Capitalização só favorece o setor financeiro

Elevado custo de transição cria forte pressão fiscal

Maria Lúcia Fattorelli


O ministro Paulo Guedes (Economia), responsável pela reforma da Previdência. Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Substituir a Previdência solidária, universal e sustentável, vigente desde a Constituição de 1988, por onerosa e arriscada capitalização que só favorece o setor financeiro, é o principal foco da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) nº 6/2019.

As inúmeras modificações pretendidas por essa PEC adiam, reduzem ou até suprimem direitos previdenciários e assistenciais e irão “economizar” R$ 1 trilhão para viabilizar a capitalização, como declarou o ministro Paulo Guedes (Economia): “Precisamos de R$ 1 trilhão para ter potência fiscal suficiente para pagar uma transição em direção ao regime de capitalização (...) Por isso que a gente precisa de R$ 1 trilhão”.

Dessa forma, o R$ 1 trilhão que será cortado mormente dos mais pobres irá financiar parte da transição para a capitalização, que tem dado errado mundo afora.

No importante estudo “Reversão da Privatização de Previdência: Questões chaves”, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) revelou que, de 30 países que optaram pela capitalização, 18 já se arrependeram e voltaram atrás, sobretudo devido ao elevadíssimo custo de transição, que criou forte pressão fiscal, inviável aos cofres públicos.

O estudo acrescenta que a capitalização apresentou alto custo administrativo; reduzidas taxas de retorno aos participantes condenados à miséria na velhice; destinação das contribuições para especulação financeira internacional e não em projetos nacionais de desenvolvimento; e transferência de todos os riscos demográficos e do próprio mercado financeiro para os participantes. Enfim, o único e grande beneficiário tem sido o setor financeiro, que recebe as contribuições, cobra taxas de administração exorbitantes e não se responsabiliza por qualquer benefício futuro, o que vai depender do mercado.

No Brasil, estudos que teriam embasado a PEC nº 6/2019 foram classificados como sigilosos e até hoje não foi revelado qual seria o custo de transição para a capitalização. No Chile, de acordo com o professor Andras Uthoff, esse custo foi de 136% do PIB, o que aqui significaria cerca de R$ 10 trilhões!

A capitalização sequer pode ser considerada “previdência”, já que corresponde a aplicação de alto risco e altíssimo custo —e não garante o pagamento de benefício futuro nem oferece proteção social.

Por outro lado, a Seguridade Social solidária, que conta com o amparo do Estado e financiamento compartilhado também por empresas e pessoas (art. 195 da Constituição) é o maior programa social do Brasil: além de garantir a aposentadoria, engloba cobertura para os eventos de vulnerabilidade, como doença, invalidez, morte, idade avançada, maternidade, desemprego, reclusão, viuvez e orfandade, além de benefícios assistenciais para os mais pobres. E tudo de forma universal; ou seja, todas as pessoas têm direito.

Esse sistema de proteção social tem sido altamente sustentável. De 1988 até 2015, as contribuições vinculadas à Seguridade Social foram mais que suficientes para cobrir tudo que se gastou com Previdência, saúde e assistência. E ainda sobraram dezenas de bilhões de reais anualmente, que foram desviados por meio da DRU (Desvinculação das Receitas da União) e de outros mecanismos, principalmente para o pagamento de juros da chamada dívida pública.

De 1995 a 2014, produzimos mais de R$ 1 trilhão de superávit primário; ou seja, gastamos menos do que arrecadamos, sobra que também foi reservada para juros da chamada dívida pública.

De repente, entramos em “crise”: o PIB caiu 7% em 2015-2016; em vez do histórico superávit primário passamos ao déficit primário, e as contribuições já não foram mais suficientes para cobrir todo o gasto da Seguridade Social.

Essa inversão repentina não foi causada pelos fatores que produzem crise (quebra de bancos, como aconteceu nos Estados Unidos em 2008; quebra de safra; adoecimento da população ou guerra), mas pela insana política monetária.

Essa crise fabricada tem servido de justificativa para medidas que só favorecem o setor financeiro, a exemplo da capitalização.

Sobre a autora

Auditora fiscal aposentada da Receita Federal e coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida.

13 de maio de 2019

Por que The Clash importa

Por baixo de toda a pompa kitsch e mercadológica, o Clash ainda tem algo a nos ensinar sobre a arte como um local de luta.

Alexander Billet

Jacobin

The Clash tocando ao vivo, 1980. Hulton Archive / Getty.

Tradução / "A única banda que importa." Há uma arrogância carismática nessa frase, uma declaração de fé radical. Foda-se o passado, o futuro está aqui e tudo na música será impiedosamente renovado em seu despertar. E quando essa descrição foi aplicada ao The Clash, foi fácil de acreditar.

Hoje, porém, é fácil tirar sarro. Desde a morte do vocalista Joe Strummer, em 2002, o The Clash ascendeu aos mitos do rock and roll. Nada menos que trinta livros, sobre Joe ou a banda, foram lançados. Alguns deles são maravilhosos. Outras são hagiografias rasas e descuidadas. A música do The Clash tem sido usada para vender tudo, de botas a smartphones. Centristas vestidos de progressistas, como Beto O'Rourke, recebem elogios por citar "The Clampdown" para Ted Cruz. Separar o que é mercadoria e espetáculo da contribuição real da banda está ficando cada dia mais difícil.

O mais recente produto na crescente lista de material biográfico é "Stay Free: The History of The Clash". Produzido pelo Spotify em colaboração com a BBC e narrado por Chuck D, do Public Enemy, é o primeiro podcast dedicado à história da banda. É um excelente trabalho, tanto em termos de substância quanto de estilo. O contexto social e cultural tem um papel proeminente na narrativa da história evolutiva da banda. Greves, revoltas, movimentos, explosões políticas e implosões informam claramente sua filosofia e práticas musicais à medida que o capitalismo global se reconstitui nas décadas de 1970 e 1980.

Todos eles destacam o significado das experiências musicais do The Clash: a incorporação cada vez maior do reggae, hip-hop e funk em sua paleta punk; sua insistência em vender álbuns duplos e até triplos a preços de álbuns únicos, para o desgosto de sua gravadora. Entrevistas originais e arquivadas com os membros e amigos da banda relatam o fluxo constante e a luta para manter uma visão. Ocasionalmente, Chuck D mudará de papel - de narrador para comentarista -, refletindo sobre como o The Clash impactou o próprio trabalho dele com o Public Enemy. As dores são tomadas para montar os elementos constitutivos da "resistência cultural" de tal forma que a frase realmente carrega peso.

É uma boa hora para isso. A nova geração de socialistas de hoje tem pouca memória coletiva do The Clash. Somos mais sábios que nossos antecessores em termos de produção estética e crítica. A indústria da cultura também é. Então, nesse caso, a direita também é. Fomos bombardeados com as promessas de como a internet e a tecnologia iriam democratizar a arte e as ideias, então vimos a ilusão cair com big data e algoritmos que criam "liberdade para escolher sempre o mesmo".

Considerando tudo isso, estamos justificando francamente o nosso cinismo com relação ao tipo de adoração de herói que se segue ao The Clash. Como muitos erros cometidos ao observar a cultura e a sociedade, a falha fatal não está na resposta, mas na pergunta. A banda era excelente? É melhor perguntarmos o que constitui excelência, ou mesmo se a própria noção é útil.

John Berger certa vez descreveu o mal das celebridades como um reflexo de "uma sociedade que se moveu em direção à democracia, mas parou no meio do caminho". Refratada pelo prisma do glamour, "a arte muda o mundo" baseada na genialidade individual, obscurecendo a natureza inerentemente social da arte e da música. É uma justificativa implícita para a existência da desigualdade baseada não no nascimento em berço de ouro, mas no mito da meritocracia. A ênfase de Berger na democracia também sugere que a criação e o significado são obrigados a interagir não apenas com a sociedade que as moldou, mas com o quão livre essa sociedade é, se sua ideia de liberdade é baseada na ilusão ou na realidade. Não é simplesmente a arte feita, mas como essa arte se posiciona sob circunstâncias - como alguém certa vez disse - que não a escolha do artista. E se olharmos por estes termos, então também somos forçados a procurar onde essas circunstâncias ainda persistem.

O podcast Stay Free se destaca no traçado desses paralelos, podendo embora ser ásperos. Uma quantidade generosa de tempo é dedicada às mulheres que ajudaram a promover e moldar o The Clash e a cena punk em geral. Paloma McLardy é entrevistada não como a única namorada de Strummer, mas como "Palmolive", a baterista da banda fenomenal e criminosamente subestimada de dub-punk composta só por mulheres: as Slits. Dá-se uma atenção especial aos sets de abertura da banda na primeira turnê do The Clash, onde as performances ousadas e obscenas das Slits atraíram mais do que alguns acessos de raiva masculinos dentro e fora da cena punk.

Depois, há o Carnaval Contra os Nazistas (Carnival Against the Nazis). As imagens da performance do The Clash neste evento - realizado no Victoria Park em Londres, em abril de 1978, como um esforço conjunto entre Rock Contra o Racismo (RAR) e a Liga Anti-Nazista (ANL) - estão entre algumas das mais reconhecidas passagens políticas da história da banda. O Carnaval foi, sem dúvida, um momento divisor de águas na história cultural britânica. Muitas vezes, porém, as histórias que cercam o evento são desviadas, pintando esse evento e o Rock Contra o Racismo como assuntos de vaga "união" liberal.

Em Stay Free, fica claro que o RAR era um dos lados de uma luta que estava acontecendo tanto nas ruas quanto nas casas de show. A ascensão da Frente Nacional é recontada; assim como o discurso de Eric Clapton de "manter a Grã-Bretanha branca", e as tentativas dos nacionalistas brancos de invadir e assumir shows punk, ambos catalisadores para a fundação da RAR. Foi preciso organização, uma luta para construir espaços de oposição, um fermento com consciência de gênero e solidariedade racial, para fazer algo como o Carnaval acontecer. A identificação contundente de Strummer, em uma entrevista da época, como "antifascista" é explicitada o suficiente para fazer um apoiador de Trump ranger os dente; mas o mais importante é estar ligada a uma fuga e vazão da hegemonia política e cultural.

Em outras palavras, a importância do The Clash não está em sua "genialidade", mas em sua decisão de participar, como artistas, de um mundo caótico e sombrio, sem nunca esquecer a capacidade da arte e da música de mapear um futuro diferente. Além da interferência sonora super produzida no marketing, o The Clash estava disposto a mergulhar de cabeça em contradição e tocar na ferida até que elas estourassem.

Mais uma vez - e mesmo no caso de Stay Free - vemos a natureza desses gestos eliminados, com as principais análises do podcast elogiando o The Clash por possuírem algo que "falta" na música atual. A postura como o The Clash são raras hoje porque obstáculos são empilhados na frente deles por uma indústria cultural mais inteligente e insidiosa.

Algiers e Downtown Boys incorporam uma visão de mundo original e abertamente de extrema esquerda em seu som e letras, ganhando grande aclamação da crítica ao longo do caminho. Mas também não estão alcançando um público tão extenso como poderiam se tivessem os mesmos recursos que o lixo descartável do The Voice ou American Idol. Por outro lado, o espaço para dissidências dentro desses altos escalões do negócio da música é minúsculo, justificado e explicado com uma implicação sombria de que os mais famosos e adorados também são os mais talentosos - embora isso seja uma falácia.

E, naturalmente, nossa paisagem cultural não superou a censura ou a repressão à moda antiga. M.I.A. nos últimos 15 anos continuou a entregar repreensões provocativas e eletrizantes ao orientialismo. Ela também carregou o peso da Comissão Federal de Comunicações (FCC). Run the Jewels é uma das vozes mais importantes do hip-hop, e elas existem em um momento em que rappers estão indo para a cadeia por suas letras anti-policiais.

A questão então não se torna sobre se o The Clash era "a única banda que importava", mas se nós importamos agora. Se uma esquerda nova e realmente existente pode reconstruir uma infraestrutura de dissidência capaz, entre outras coisas, de apoiar esses artistas, fornecendo-lhes espaço para florescer criativa e socialmente, bem como nutrir novos sonhos.

Esses espaços já existiram antes, na forma do Rock Contra o Racismo, ou a união de artistas lançada com a ajuda do Partido Comunista no auge do Projeto Federal de Arte (Federal Art Project). O nosso projeto será dramaticamente diferente. Dadas as diferenças dramáticas em nossa relação com a música, dado o quão adepto o capitalismo tardio está cavando culturalmente sua rota em nossas vidas diárias, eles terão que fazê-lo. Eles também terão que servir como lembrete vívido de que não é apenas a cultura, mas o mundo inteiro que precisa ser refeito.

Colaborador

Alexander Billet é escritor, artista e crítico cultural que mora em Los Angeles. Seus escritos apareceram em Jacobin, In These Times, Chicago Review e outros meios de comunicação. Ele é editor da Locust Review e mantém o blog To Whom It May Concern.

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