12 de maio de 2019

Constituição colocou Poderes em conflito, diz Fernando Limongi

Modelo brasileiro tornou presidente o maior legislador do país, escreve cientista político

Fernando Limongi


[RESUMO] O texto apresenta o tema da mesa 2 ("Instituições políticas brasileiras") do seminário dos 50 anos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Varanda do Alvorada, com suas notáveis colunas. (Mauro Restiffe/Folhapress)

Escrita por congressistas, a Constituição de 1988 reforçou os poderes do Executivo e do Judiciário em detrimento do Legislativo. Prevaleceu, como sintetizou o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, a falta de confiança no legislador ordinário.

Os efeitos dessa desconfiança para as relações Executivo-Legislativo são conhecidos. O temor da possível inoperância do Legislativo levou à reorganização do processo decisório e à concentração dos poderes de agenda nas mãos do presidente da República. O resultado prático desse modelo foi tornar o chefe do Executivo o principal legislador do país.

O redesenho do Poder Judiciário e as novas atribuições que recebeu foram produtos do mesmo espírito. Para além de seu papel de árbitro, o Judiciário foi dotado de uma gama de prerrogativas para ir muito além de mero intérprete do texto constitucional.

Juristas sem conta saíram a campo para defender suas versões particulares do alcance do novo modelo. Principal referência desta geração, escrevendo em 2010, Luís Roberto Barroso deu a sustentação teórica à nova postura: “O ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva”.

A desconfiança nos demais Poderes é inversamente proporcional a que se deposita no Judiciário.

Na lida diária do STF, os primeiros salvos vieram com censuras ao recurso à edição de medidas provisórias, tido como abusivo.

Contudo, até o final do mandato de Fernando Henrique Cardoso, a despeito dos inúmeros apelos da oposição, o STF optou por não se imiscuir nas relações entre o Executivo e o Legislativo e, muito menos, nas questões internas ao próprio Legislativo, como o questionamento à interpretação do regimento interno e abertura de CPIs.

A jurisprudência foi quebrada em junho de 2005, quando o STF determinou a abertura da CPI dos Bingos. Em seu voto, o ministro Celso de Mello sustentou que “a maioria legislativa, mediante deliberada inércia de seus líderes na indicação de membros para compor determinada Comissão Parlamentar, não pode frustrar o exercício pelos grupos minoritários do direito que lhes é assegurado.”

O STF, portanto, muda seu entendimento sobre o ponto e se arvora a defensor da minoria. Entenda-se: da minoria legislativa, resultado da expressão da vontade popular.

A segunda investida viria no ano seguinte, quando, em decisão tomada com visível atropelo e improviso, a corte resolveu derrubar a cláusula de barreira aprovada em 1995. O relator da matéria, ministro Marco Aurélio Mello, atrelou seu voto à decisão relativa à CPI dos Bingos, citando o voto de Celso de Mello e proclamando em alto e bom som que o Supremo garantira “a criação de CPI pela vontade de um terço —e não da maioria— dos parlamentares”. Conclui em um crescendo: “É de se repetir até a exaustão, se preciso for: democracia não é ditadura da maioria!”.

A veemência e a retórica não substituem a lógica. Difícil entender como a imposição da cláusula de barreira pode ser interpretada como a manifestação de uma ditadura da maioria. O próprio STF não enxergara esta conexão em suas manifestações anteriores, nos 11 anos que se passaram entre a aprovação da leie sua aplicação.

Em seu parecer, Marco Aurélio faz alusão à coluna de Fernando Rodrigues. O jornalista informara que o governo se pusera em campo para tirar proveito do rearranjo partidário provocado pela entrada em vigor da medida. A defesa das minorias, portanto, não passava da condenação à maioria.

Em seu voto, Marco Aurélio não se deu conta da conexão explícita entre o texto declarado inconstitucional e a regulação da distribuição do fundo partidário. Alertado por colegas, improvisou solução provisória acompanhada de admoestações à ação futura do Congresso: regulação que ameaçasse o financiamento dos pequenos partidos não seria admitida. Criava-se ali a anomalia com a qual convivemos até hoje: partidos que não precisam obter votos para receber recursos estatais.

O fato é que, de uma penada, o STF enterrou a reforma política arduamente negociada por um acordo que envolvera as principais forças políticas do país à época: PFL, PMDB, PSDB e PT. A lei que o Supremo derrubou enfrentava e propunha soluções conexas para as principais críticas feitas ao sistema político brasileiro: a fragmentação partidária e os altos custos das campanhas.

Ao desmontar a reforma aprovada com o voto de 80% dos congressistas, o STF deixou claro que não confiava nas decisões da maioria e que estava disposto a disciplinar as relações entre os Poderes Executivo e Legislativo. Em última análise, a desconfiança alcançou os eleitores e suas escolhas.

Em resumo: a Carta de 1988 traz embutida a possibilidade de um conflito entre os dois Poderes que reforçou. Na ausência de um alinhamento político entre Executivo e Judiciário, o conflito é inevitável.

Sobre o autor

Fernando Limongi é cientista político, professor da USP e pesquisador do Cebrap.

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