13 de maio de 2019

Para salvar a democracia, precisamos de luta de classes

O registro histórico é claro: a democracia só foi conquistada quando os pobres travaram uma luta de classes disruptiva contra os ricos. Vamos precisar de mais do que isso para salvar a democracia hoje.

Adaner Usmani

Jacobin

Trabalhadores dos correios de Nova Iorque entrando em um ônibos para ir à Marcha de Washington por Empregos e Liberdade em 1963. Tamiment Library and Robert F. Wagner Labor Archives / New York University

Tradução / Dizem que a democracia está em crise. O Washington Post publicou um anúncio no Super Bowl nos alertando que a “Democracia Morre na Escuridão”. Os cientistas políticos Daniel Ziblatt e Steven Levitsky publicaram um livro intitulado Como as Democracias Morrem. E Larry Diamond, eminência parda dos estudos sobre democracia, diagnosticou uma recessão democrática global.

Não é meu objetivo jogar um balde de água fria nesses tipos de preocupações. Na história recente há muita coisa com o que se preocupar. No entanto, um foco restrito a eventos contemporâneos pode induzir ao erro. Ao estudar apenas o retrocesso de hoje, nos arriscamos a confundir a árvore com a floresta.

Para entender a democracia — para defendê-la e aprofundá-la — devemos examinar sua longa história, em vez de ficarmos obcecados com intempéries recentes. Em um artigo recente publicado no American Journal of Sociology, tento fazer exatamente isso. Minha pesquisa sugere que o progresso democrático nos últimos 150 anos é fruto do caráter mutável da luta de classes pelo o Estado. A democracia tem suas origens na capacidade dos pobres de romper as rotinas dos ricos.

Não é errado se preocupar, como muitos fazem, com novas ideias, instituições e ideólogos. Mas a história nos ensina que a tarefa de salvar a democracia é, em grande parte, a tarefa de reviver as capacidades disruptivas das pessoas comuns.

A transição democrática

Não é preciso ser Pangloss (ou Steven Pinker) para notar que a ascensão da democracia transformou o mundo. No coração dessa ascensão há um paradoxo. A democracia, sobretudo, introduz a igualdade nas sociedades divididas pelas classes e pela hierarquia de status. Para nossos ancestrais, não haveria nada mais estranho do que descobrir que reis e senhores em breve cederiam seu poder a seus servos. No entanto, com constância, nosso mundo desigual se democratizou. Nossos melhores indicadores registram extraordinários progressos, em grande parte constantes, desde a Revolução Francesa.

Por que aconteceu isso? O que mudou? Uma resposta é que a política mudou porque nossas ideias sobre política mudaram. Steven Pinker argumenta algo assim em sua recente história do progresso humano. A democracia, sugere ele, surgiu assim que a Razão assumiu o controle dos assuntos humanos.

Um problema óbvio com esse argumento é que ele responde a uma questão apenas para levantar outra. Se a democracia emergiu porque nossas ideias sobre liberdade e igualdade mudaram, por que nossas ideias mudaram?

Durante muito tempo, a resposta mais comum ao enigma da democratização era que a democracia era o resultado do crescimento econômico. Houve sempre alguma discordância sobre o porquê — alguns argumentaram que o desenvolvimento econômico gerou uma classe média tolerante, outros acreditavam que uma economia complexa exigia uma política complexa —mas a visão geral era de que a modernização trouxe a democracia em seu rastro.

Trabalhos recentes desafiam essa visão. Embora os países mais ricos sejam de fato mais democráticos, não está claro se os países se democratizam à medida que se desenvolvem. A expansão econômica pode consolidar as elites tanto quanto as derrubar. O ponto de vista da modernização deu apenas uma atenção passageira aos protagonistas e vilões da transição democrática. Quem exige democracia de quem? E em que condições são mais propensos a ter sucesso?

A luta de classes pelo Estado

Ao buscar responder a essas questões, economistas e cientistas políticos conceberam a batalha pela democracia como uma luta entre os ricos e os pobres pelo Estado. Os ricos, que são uma minoria, temem a igualdade política. Os pobres, que são numerosos, anseiam por ela.

Esses autores estão certos ao supor que a democratização é uma disputa entre classes em conflito pelo estado. No entanto, eles entenderam mal o caráter deste conflito. Especificamente, eles entenderam mal as condições sob as quais os pobres conquistam a democracia dos ricos. A influência dos pobres não vem da riqueza crescente (como argumentam Ben Ansell e David Samuels ) ou da ameaça de uma rebelião inesperada (como afirmam Damon Acemoglu e James Robinson ou Carles Boix ). Em vez disso, sua influência é o resultado de desenvolvimentos econômicos que dão aos pobres a capacidade de desafiar os processos dos quais as elites dependem para sua riqueza.

Para apreciar isso, precisamos apenas observar alguns fatos básicos sobre a economia e o estado.

Primeiro, em qualquer sociedade desigual, o estado mostrará preferência pelos ricos em detrimento dos pobres — mesmo que o estado não seja composto por representantes dos ricos. A razão é simples: o estado depende de uma economia saudável para gerar as receitas necessárias para seus próprios objetivos. E já que a saúde dos investimentos é a causa da saúde da economia, aqueles que estão nos altos postos de comando da economia têm uma influência desproporcional sobre o estado.

É claro que os pobres também podem atrapalhar a vida econômica. Mas, como seu único ativo é sua capacidade de trabalhar, eles não podem exercer o poder como indivíduos, ao contrário dos ricos. Para perturbar a vida econômica, eles devem se coordenar uns com os outros. Como a ação coletiva é muito mais difícil do que a ação individual, os ricos sempre terão mais poder sobre o Estado do que os pobres.

Em segundo lugar, esse equilíbrio de capacidades disruptivas, embora sempre desigual, não é estável. A capacidade de qualquer pessoa pobre é originada do trabalho que ela faz. Algumas pessoas pobres têm maior influência sobre a vida econômica, seja porque trabalham em setores-chave ou porque têm habilidades relativamente escassas. Outros acham mais fácil coordenar a ação coletiva porque trabalham em locais de trabalho grandes e densamente ocupados.

Criticamente, o desenvolvimento econômico cria novas funções para os pobres preencherem (e, assim, diferentes formas de dependência dos ricos em relação aos pobres). Também altera a distribuição dos pobres entre as funções existentes. Ao fazê-lo, transforma o equilíbrio das capacidades disruptivas entre ricos e pobres. Às vezes, essas transformações diminuem a lacuna nas capacidades agregadas entre ricos e pobres. Quando isso acontece, os pobres adquirem influência sobre o estado.

O que isso implica para o destino da democracia? Muito simplesmente, onde as pessoas comuns acumulam a capacidade de perturbar a economia, devemos esperar ver o progresso em direção à democracia.

Em meu artigo, eu testei essa hipótese quantitativamente, usando a parcela da população em idade ativa empregada nos redutos históricos do movimento trabalhista (manufatura, mineração, construção e transporte) como uma medida para o poder disruptivo das pessoas comuns. Obtive dados sobre dezenas de países durante grande parte do período moderno.

Minhas estimativas sugerem que a capacidade das pessoas comuns de interromper o funcionamento normal da economia é um indicador significativo e poderoso dos padrões de democratização ao longo do tempo. Da mesma forma, à medida que a população em idade de trabalho de um país se acumula nessas indústrias, a qualidade da democracia naquele país melhora.

Separadamente, descobri que, como outros também demonstraram, um dos principais obstáculos à democratização é a existência de uma classe de latifundiários forte. Os senhorios são particularmente ameaçados pela democratização, porque eles frequentemente dependem de instituições antidemocráticas para manter sua força de trabalho (como acordos de trabalho coercitivos) e porque seus ativos são fixos. Historicamente, grandes classes de latifundiários têm sido hostis até a arranjos democráticos formais.

Observar que a luta de classes pelo Estado impulsiona a democratização não é argumentar que nada mais importa. Encontrei algumas evidências de que a democracia é mais provável em um país cujos vizinhos também são democráticos, que países mais desiguais têm maior probabilidade de democratizar-se e que a educação auxilia a democracia. Mas as explicações mais consistentes e poderosas para o surgimento da democracia são estas duas: o crescimento das capacidades disruptivas das pessoas comuns e a morte da classe proprietária.

Defendendo melhor a democracia

Para as grandes questões que preocupam os estudiosos e os cidadãos de hoje, essa história tem algumas lições importantes e permanentes.

Mais importante ainda, nunca devemos esquecer que a democracia é a incrível tarefa de dobrar os poderosos ao interesse público. Como a desigualdade econômica oferece aos seus beneficiários as ferramentas para minar a igualdade política, sempre haverá algo inevitavelmente difícil na defesa da democracia em uma ordem desigual. Alguma fração dos problemas atuais da democracia pode ser o resultado do surgimento de novas mídias ou de demagogos particularmente capazes. Mas no fundo, nosso problema é antigo. E assim, com o objetivo de defender e aprofundar a democracia, devemos nos ater à história de suas origens. A história da democracia é a história da luta entre ricos e pobres pelo estado. Para defendê-la, devemos defender a capacidade dos pobres de desafiar os ricos.

Sobre o autor

Adaner Usmani é pós-doutorando em assuntos internacionais e públicos no Instituto Watson, na Brown University.

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