24 de julho de 2005

Lula, o grande trunfo do Brasil

Se o Brasil quer escapar "de uma crise capaz de destruir o regime", defende o sociólogo francês, a melhor saída é apoiar o presidente, "força de união nacional" e "ponto de apoio sólido em uma sociedade debilitada"

Alain Touraine

Folha de S.Paulo


Comecemos pelo que parece o ponto mais distante de análise. O Brasil vive uma crise política e moral, mas não vive uma crise de regime. A imagem do presidente continua sólida, e muitos o consideram como um recurso contra as falcatruas do Congresso. Aqueles que desejam transformar as graves dificuldades atuais em um movimento pela destruição do regime, do presidente e de sua chance de reeleição causam um grave risco para o país. Como compreendeu Fernando Henrique Cardoso, estadista cujo julgamento continua a ser muito respeitado, não se pode construir uma campanha presidencial sobre uma acusação de corrupção.

O primeiro gesto que todos os que se preocupam com o futuro do Brasil deveriam fazer seria apoiar Lula e pedir a Tarso Genro que ele enfim encontre uma responsabilidade à sua altura e extermine os ramos apodrecidos do PT, refletindo ao mesmo tempo a maioria de que o presidente dispõe no Congresso. Não é hora de perder a cabeça. Por mais que a opinião pública julgue o sistema político com severidade, não é hora de remover os grilhões dos monstros populistas. Isso equivaleria a um recuo de dez anos ou muito mais para o Brasil e colocaria o país em uma trajetória na qual existe o risco de uma queda mortal.

Isso posto, é preciso acrescentar igualmente que no momento não se trata somente de um problema de financiamento ilegal a um partido, algo que muitos países europeus tiveram de enfrentar, nem apenas de atos de enriquecimento individuais. Para isso, existem os tribunais e as prisões como método de solucionar o problema. A crise atual é a segunda que o presidente atravessa.

A primeira foi a profunda decepção dos que esperavam por reformas estruturais, pela luta contra a desigualdade, o que suporia redistribuir renda -o que só se tornará possível sob pressão de uma mobilização popular. Isso ainda não ocorreu. Alguns membros do PT deixaram o partido, mas a opinião nacional e estrangeira se habituou aos pouco ao que não pode ser mais que um começo para uma profunda mudança política.

A segunda crise, que vivemos, foi deflagrada pela tentativa de elementos do PT de comprar votos de deputados pertencentes a pequenos partidos de oposição. Somadas, as duas crises demonstram que no seio das grandes escolhas feitas por FHC e, depois dele, por Lula -o respeito às instituições democráticas e a aceitação de uma ordem econômica mundial na qual o Brasil teria importante papel a desempenhar como intermediário entre os hemisférios Norte e Sul, algo que o presidente Lula faz admiravelmente-, não há lugar para uma política de mudanças sociais revolucionárias, tampouco para um partido que desempenhe o papel de aparelho do Estado, como o partido comunista em alguns países ou como o PRI mexicano.

Limites econômicos

A melhor comparação possível para o Brasil é com a Alemanha. Em um país dilacerado pela luta contra a Guerra Fria e pela reunificação, Oskar Lafontaine lançou um movimento de socialismo de esquerda que se assemelhava à política adotada por [François] Mitterrand entre 1981 e 1984. O movimento, apoiado especialmente pelos intelectuais, recuou rapidamente e terminou derrotado por Schröder. Não é possível fazer política de extrema esquerda no quadro de uma economia internacional, que talvez não seja tão restritiva quanto se diz, mas ainda assim concede prioridade à integração mundial, ou com instituições nas quais não existe maioria para tal.

O Brasil, como a França e a Alemanha, deve adotar política social equiparada à sua política econômica e ao seu respeito às normas institucionais, mantido desde o princípio. É claro que sempre haverá dirigentes que pensem que uma solução como essa não é possível a não ser que dirigida por um partido forte, como tentaram alguns países socialistas no final da Guerra Fria, quando já estavam condenados pela história. Trata-se de uma solução perigosa, irrealista e que causará revezes inevitáveis. O Brasil tem a obrigação de escolher: ou Schröder ou Lafontaine, para mencionarmos apenas o caso mais próximo à sua situação.

O grande trunfo para o sucesso de uma reorientação como essa no Brasil é o próprio Lula, e por diversos motivos. O primeiro, e mais visível, é o papel internacional conquistado pelo país, que deu ao presidente influência mundial. O segundo é a extrema fraqueza das forças de sustentação a soluções radicais, porque o MST não seria capaz de desempenhar papel central em um país fortemente urbanizado, e até mesmo metropolizado. A terceira é a personalidade de Lula -ele é a um só tempo dirigente sindical, uma figura que cada vez mais aparenta ser a principal força de união nacional e homem que suscita forte simpatia e que funciona melhor como representação da integridade nacional do que como condutor de um grande projeto.

As facções do PT e da opinião pública que desejam conceder prioridade às reformas sociais fundamentais foram vencidas. Eu mesmo defendi durante dois anos a idéia de que a vitória presidencial criaria expectativas que não deveriam ser alimentadas. E continuo a pensar que, no futuro, o governo brasileiro pode se ver enfraquecido pela perda do apoio dinâmico dos partidários mais radicais, um afastamento que criará uma resistência surda, repleta de incidentes desastrosos.

Mas a via do socialismo de esquerda se fechou há muito tempo, e o Brasil de FHC demonstrou que é possível minorar os problemas mais graves, por meio do combate eficaz ao analfabetismo e à mortalidade infantil, da construção de habitações populares e da distribuição de terras.

A grande crise que o PT enfrenta obrigará o partido a acatar as condições econômicas internacionais e as instituições internas que Lula jamais pretendeu desrespeitar. Portanto, é tarefa de Tarso Genro e dos melhores conselheiros do presidente restabelecer a coerência interna da política nacional. Não devemos esquecer que a política econômica em vigor não sofre contestações violentas e que até agora não existe risco de abalo das instituições democráticas. O importante é a passagem da primeira para uma segunda fase da presidência de Lula, sob sua direção pessoal, o qual deve apoiar a nova política com a força considerável de que dispõe, por desfrutar da confiança do povo brasileiro.

Não creio que seja nem possível lançar um grande projeto de ação social de tipo revolucionário nem viável colocar em risco as instituições democráticas a fim de apoiar uma mobilização popular que, no momento, quase não existe.

As chances de sucesso do Brasil são grandes. O mercado interno se desenvolve vigorosamente, sua dependência do comércio internacional e dos capitais estrangeiros não é mais tão grande, e, acima de tudo, o mundo precisa do Brasil para gerar aproximação entre Norte e Sul.

É essa a dimensão da crise atual: mais que um caso de corrupção que a Justiça bastaria para resolver e menos que uma crise capaz de conduzir a um recuo grave da via democrática. O que é verdadeiramente necessário é instituir reformas sociais da maneira mais ativa possível, mas sempre respeitando as condições internacionais e institucionais, cujos limites são claros. Essa mudança de etapa é algo que o presidente Lula tem mais chances do que qualquer outra pessoa de conduzir com sucesso. Aqueles que desejam acima de tudo salvar o Brasil de uma crise capaz de destruir o regime deveriam agora apoiar o presidente, ponto de apoio mais sólido em uma sociedade debilitada.

Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de "A Crítica da Modernidade" (Editora Vozes).

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...