22 de junho de 1995

Ur-Fascismo

Liberdade e libertação são uma tarefa sem fim.

Umberto Eco


June 22, 1995 issue

Tradução / Em 1942, quando tinha dez anos, recebi o Primeiro Prêmio Provincial do Ludi Juveniles (uma competição voluntário-compulsória para jovens fascistas italianos, isto é, para todos os jovens italianos). Eu discorrera com destreza retórica sobre o tema: "Deveríamos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália? Minha resposta foi afirmativa. Eu era uma criança esperta.

Depois, em 1943, descobri o significado da palavra “liberdade”. Contarei esta história no fim do meu discurso. Naquele momento, “liberdade” ainda não significava “liberação”.

Passei dois dos meus primeiros anos entre SS, fascistas e resistentes, que disparavam uns nos outros, e aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal exercício.

Em abril de 1945, a Resistência tomou Milão. Dois dias depois os resistentes chegaram à pequena cidade em que eu vivia. Foi um momento de alegria. A praça principal estava cheia de gente que cantava e desfraldava bandeirolas, invocando Mimo, o líder a resistência na área, em alto brado. Mimo, ex-suboficial dos carabinieri, envolveu-se com os partidários do marechal Badoglio e perdeu uma perna nos primeiros confrontos. Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em muletas, pálido; tentou acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali esperando seu discurso, já que toda a minha infância tinha sido marcada pelos grandes discursos históricos de Mussolini, cujos passos mais significativos aprendíamos de cor na escola. Silêncio. Mimo falo com voz rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos, amigos. Depois de tantos sacrifícios dolorosos... aqui estamos. Glória aos que caíram pela liberdade...”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão gritava, os membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto, festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos, preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que liberdade de palavra significa também liberdade da retórica.

Alguns dias depois vi os primeiros soldados americanos. Eram afro-americanos. O primeiro ianque que encontrei era um negro, Joseph, que me apresentou às maravilhas de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram coloridos e tinham um cheiro bom.

Um dos oficiais (o major ou capitão Muddy) era hóspede na casa da família de dois dos meus companheiros de escola. Sentia-me em casa naquele jardim em que alguns senhores amontoavam-se em torno ao capitão Muddy, falando um francês aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa educação superior e conhecia um pouco de francês. Assim, minha primeira imagem dos libertadores americanos, depois de tantos caras-pálidas de camisa negra, era a de um negro culto em uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j'aime le champagne...” Infelizmente, faltava o champagne, mas ganhei do capitão Muddy o meu primeiro chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De noite colocava o chiclete em um copo d'água para que ficasse fresco para o dia seguinte.

Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz deu-me uma sensação curiosa. Haviam me dito que a guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano. Nos meses seguintes descobri que a Resistência não era apenas um fenômeno local, mas Europeu. Aprendi novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”, “armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”. Vi as primeiras fotografias do Holocausto e assim compreendi seu significado antes mesmo de conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido liberados.


Hoje na Itália existem algumas pessoas que se perguntam se a Resistência teve algum impacto militar real no curso da guerra. Para a minha geração a questão é irrelevante: compreendo imediatamente o significado moral e psicológico da Resistência. Era motivo de orgulho saber que nós, europeus, não tínhamos esperado passivamente pela liberação. Penso que, também para os jovens americanos que derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era irrelevante saber que atrás das linhas havia europeus que já estavam pagando seu débito.

Hoje na Itália tem gente que diz que a Resistência é um mito comunista. É verdade que os comunistas exploraram a Resistência como uma propriedade pessoal, pois realmente tiveram um papel primordial no movimento; mas lembro-me dos resistentes com bandeiras de diversas cores.

Grudado ao rádio, passava as noites – as janelas fechadas e a escuridão geral faziam do pequeno espaço em torno ao aparelho o único halo luminoso – escutando as mensagens que a Rádio Londres transmitia para a Resistência. Eram, ao mesmo tempo, obscuras e poéticas (“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de florir”), mas a maior parte eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu ouvido que Franchi era o líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da Itália do Norte, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu herói. Franchi (cujo verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um monarquista tão anticomunista que, depois da guerra, se uniu a um grupo de extrema direita e foi até acusado de ter participado de um golpe de Estado reacionário. Mas que importa? Sogno ainda é o sonho da minha infância. A liberação foi um empreendimento comum de gente das mais diversas cores.

Hoje na Itália tem gente que diz que a guerra de liberação foi um trágico período de divisão, e que precisamos agora de uma reconciliação nacional. A recordação daqueles anos terríveis deveria ser reprimida. Mas a repressão provoca neuroses. Se a reconciliação significa compaixão e respeito por todos aqueles que lutaram sua guerra de boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso até admitir que Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não posso dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que fizeram.

Mas quem são “eles”?

Se pensamos ainda nos governos totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial, podemos dizer com tranquilidade que seria muito difícil que eles retornassem sob a mesma forma, em circunstâncias históricas diversas. Se o fascismo de Mussolini baseava-se na ideia de um líder carismático, no corporativismo, na utopia do “destino fatal de Roma”, em uma vontade imperialista de conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na recusa da democracia parlamentar, no anti-semitismo, então não tenho dificuldade para admitir que a Aliança Nacional, nascida do Movimento Social e Italiano (MSI), é certamente um partido de direita, mas tem muito pouco a ver com o velho fascismo. Pelas mesmas razões, mesmo preocupado com os vários movimentos neonazistas ativos aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o nazismo, e sua forma original, esteja ressurgindo como movimento capaz de mobilizar uma nação inteira.

Todavia, embora os regimes políticos possam ser derrubados e as ideologias criticadas e destituídas de sua legitimidade, por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. Há, então, um outro fantasma que ronda a Europa (para não falar de outras partes do mundo)?


Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos.

Portanto, permitam-me perguntar por que não somente a Resistência mas toda a Segunda Guerra Mundial foram definidas em todo o mundo com uma luta contra o fascismo. Se relerem "Por quem os sinos dobram", de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos com os fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis.

Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).

Durante os anos de McCarthy, os americanos que tinham participado da guerra civil espanhola eram chamados de “fascistas prematuros” - entendendo com isso que combater Hitler nos anos 40 era um dever moral de todo bom americano, mas combater Franco cedo demais, nos anos 30, era suspeito. Por que uma expressão como “fascist pig” era usada pelos radicais americanos até para indicar um policial que não aprovava os que fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”, “Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?

Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que o Diamat (versão oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente materialista e ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que subordina qualquer ato individual ao Estado e sua ideologia, então nazismo e estalinismo eram regimes totalitários.

O fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente totalitário, nem tanto por sua brandura quanto pela debilidade filosófica de sua ideologia. Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. O artigo sobre o fascismo assinado por Mussolini para a Enciclopédia Treccani foi escrito ou inspirou-se fundamentalmente em Giovanni Gentile, mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético absoluto”, que Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não tinha qualquer filosofia: tinha apenas uma retórica.

Começou como ateu militante, para depois firmar a concordata com a Igreja e confraternizar com os bispos que benziam os galhardetes fascistas. Em seus primeiros anos anticlericais, segundo uma lenda plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali mesmo para provar sua existência. Deus estava, evidentemente, distraído. Nos anos seguintes, em seus discursos, Mussolini citava sempre o nome de Deus e não desdenhava o epíteto: “homem da Providência”. Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos os movimentos análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no regime de Mussolini.


O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir-se – conseguindo mais sucesso no exterior que Armani, Benetton ou Versace. Foi somente nos anos 30 que surgiram movimentos fascistas na Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista.

Todavia, a prioridade histórica não me parece ser uma razão suficiente para explicar por que a palavra “fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma denominação pars pro toto para movimentos totalitários diversos. Não adianta dizer que o fascismo continha em si todos os elementos dos totalitarismos sucessivos, por assim dizer, em “estado quintessencial”. Ao contrário, o fascismo não possuía nenhuma quintessência e sequer uma só essência. O fascismo era um totalitarismo fuzzy. O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideias políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições. É possível conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o livre mercado?

O partido fascista nasceu proclamando sua nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores, que esperavam uma contra-revolução. O fascismo do começo era republicano e sobreviveu durante vinte anos proclamando sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” puxasse as cordinhas de um “rei”, a quem ofereceu até o título de “imperador”. Mas quando, em 1943, o rei despediu Mussolini, o partido reapareceu dois meses depois, com a ajuda dos alemães, sob a bandeira de uma república “social”, reciclando sua velha partitura revolucionária, enriquecida de acentuações quase jacobinas.

Existiu apenas uma arquitetura nazista, apenas uma arte nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, não havia lugar para Mies van der Rohe. Da mesma maneira, sob Stalin, se Lamarck tinha razão, não havia lugar para Darwin. Ao contrário, existiram certamente arquitetos fascistas, mas ao lado de seus pseudocoliseus surgiram também os novos edifícios inspirados no moderno racionalismo de Gropius.

Não houve um Zdanov fascista. Na Itália existiam dois importantes prêmios artísticos: o Prêmio Cremona era controlado por um fascista inculto e fanático como Farinacci, que encorajava uma arte propagandista (recordo-me de quadros intitulados Ascoltando all radio un discorso del Duce ou Stati mentali creati dal Fascismo); e o Prêmio Bergamo, patrocinado por um fascista culto e razoavelmente tolerante como Bottai, que protegia a arte pela arte e as novas experiências da arte de vanguarda que, na Alemanha, haviam sido banidas como corruptas, criptocomunistas, contrárias ao Kitsch nibelúngico, o único aceito.

O poeta nacional era D'Annunzio, um dândi que na Alemanha ou na Rússia teria sido colocado diante de um pelotão de fuzilamento. Foi alçado à categoria de vate do regime pro seu nacionalismo e seu culto do heroísmo –com o acréscimo de grandes doses de decadentismo francês.

Tomemos o futurismo. Deveria ter sido considerado um exemplo de entartete Kunst, assim como o expressionismo, o cubismo, o surrealismo. Mas os primeiros futuristas italianos eram nacionalistas, favoreciam por motivos estéticos a participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, celebravam a velocidade, a violência, o risco e, de certa maneira, estes aspectos pareciam próximos ao culto fascista da juventude. Quando o fascismo identificou-se com o império romano e redescobriu as tradições rurais, Marinetti (que proclamava que um automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia e queria inclusive matar o luar) foi nomeado membro da Accademia d'Italia, que tratava o luar com grande respeito.

Muitos dos futuros membros da Resistência, e dos futuros intelectuais do futuro Partido Comunista, foram educados no GUF, a associação fascista dos estudantes universitários, que deveria ser o berço da nova cultura fascista. Esses clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão intelectual em que circulavam novas idéias sem nenhum controle ideológico real, não tanto porque os homens de partido fossem tolerantes, mas porque poucos entre eles possuíam os instrumentos intelectuais para controlá-los.

No curso daqueles vinte anos, a poesia dos herméticos representou uma reação ao estilo pomposo do regime: a estes poetas era permitido elaborar seus protestos literários dentro da torre de marfim. O sentimento dos herméticos era exatamente o contrário do culto fascista do otimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta distensão evidente, embora socialmente imperceptível, porque não prestava atenção suficiente ao um jargão tão obscuro.

O que não significa que o fascismo italiano fosse tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até a morte, Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a liberdade de imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos confinados em ilhas remotas, o poder legislativo tornou-se pura ficção e o executivo (que controlava o judiciário, assim como a mídia) emanava diretamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio formal italiano ao Holocausto).


A imagem incoerente que descrevi não era devida à tolerância: era um exemplo de desconjuntamento político e ideológico. Mas era um “desconjuntamento ordenado”, uma confusão estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos.

Chegamos agora ao segundo ponto de minha tese. Existiu apenas um nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” o falangismo hipercatólico de Franco, pois o nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Ao contrário, pode-se jogar com o fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo não muda. Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein, acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo, pode envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma série de atividades diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”:

1 2 3 4

abc bcd cde def

Suponhamos que exista uam série de grupos políticos. O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos abc, o grupo 2, pelos aspectos bcd e assim por diante. 2 é semelhante a 1 na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 é semelhante a 2 e 4 é semelhante a 1 (têm em comum o aspecto c). O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a 2, mas sem nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.

O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal (completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas, Julios Evola.


A despeito dessa confusão, considero possível indicar uma lista de características típicas daquilo que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais características não podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista.

1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do pensamento contra-reformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico.

Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.

Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente, como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva.

Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.

Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas como os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas em geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden). A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de 1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”.

3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais.

4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição.

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição.

6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu auditório.

7. Para os que se vêem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson.

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão condenados a perder suas guerras, pois são constitutivamente incapazes de avaliar com objetividade a força do inimigo.

9. Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica uma sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa contradição.

10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os elitismos aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem existir sem plebeus. O líder, que sabem muito em que seu poder não foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua força baseia-se na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um “dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente (segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza seus subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa.

11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte!” À gente normal diz-se que a morte é desagradável, mas é preciso enfrentá-la com dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso de atingir a felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida heróica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar os outros à morte. 


12. Como tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma invidia penis permanente.

13. O Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder apresenta-se como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de Nuremberg. Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo da TV ou da Internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “Voz do Povo”. 

Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini no parlamento italiano foi: “Eu poderia ter transformado esta assembléia surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”. De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e pouco depois liquidou o parlamento. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do parlamento por não representar mais a “Voz do Povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo.

14. O Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular.


Depois de indicar os arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943 foi-me dito que, segundo informações lidas na rádio, o fascismo havia caído e Mussolini tinha sido feito prisioneiro. Minha mãe mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais próximo e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além disso, depois de uma breve olhada nos títulos, percebi que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia Cristã, Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Ação, Partido Liberal. 

Até aquele momento pensei que só existisse um partido em todas as cidades e que na Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional Fascista. Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir diversos partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto esperto, logo me dei conta de que era impossível que tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o outro. Entendi assim que eles já existiam como organizações clandestinas.

A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” - Deus meu -, era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental.

Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está a nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas – a cada dia, em cada lugar do mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”.

E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:

Na amurada da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados 
No calçamento do mercado
As unhas dos fuzilados
Sobre a grama seca do prado
Os dentes dos fuzilados 
Morder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens
Morder o ar morder as pedras
Nosso coração não é mais de homens. 
Mas lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
A justiça que se há de fazer.

21 de junho de 1995

A arte moderna como "arma" da CIA

Revelado: como a agência de espionagem usou artistas inconscientes como Pollock e de Kooning em uma Guerra Fria cultural

Frances Stonor Saundes


Hot stuff: Jackson Pollock (Tate Modern)

Tradução / Durante décadas nos círculos de arte isso ou era um boato ou uma piada, mas agora confirma-se como um fato. A Agência Central de Inteligência usou-se da arte moderna americana, incluindo as obras de artistas como Jackson Pollock, Robert Motherwell, Willem de Kooning e Mark Rothko, como uma arma na Guerra Fria. Na forma de um príncipe da Renascença, exceto por agir secretamente, a CIA fomentou e promoveu a pintura Expressionista Abstrata Americana em todo o mundo por mais de 20 anos.

A conexão é improvável. Este foi um período, na década de 50 e 60, em que a grande maioria dos americanos não gostava ou mesmo desprezava a arte moderna, o presidente Truman resumiu o ponto de vista popular ao dizer: "Se isso é arte, então sou Hottentot". Para os próprios artistas, muitos eram ex-comunistas que mal eram aceitos na América da era mccarthista, e certamente não o tipo de pessoas que normalmente recebiam apoio do governo americano.

Por que a CIA passou a apoiá-los? Por que na guerra de propaganda contra a União Soviética, esse novo movimento artístico poderia ser apresentada como prova da criatividade, da liberdade intelectual, e o poder cultural dos EUA. A arte russa, presa na camisa de força ideológica comunista, não poderia competir.

A existência dessa política, presente em rumores e contestada por muitos anos, agora foi confirmada pela primeira vez por ex-oficiais da CIA. Desconhecida para os artistas, a nova arte americana era secretamente promovida sob uma política conhecida como "longa coleira", acordos semelhantes aos do apoio indireto da CIA ao jornal Encounter, editado por Stephen Spender.

A decisão de incluir a cultura e a arte no arsenal da Guerra Fria nos EUA foi tomada assim que a CIA foi fundada em 1947. Consternada com o apoio que o comunismo ainda tinha entre muitos intelectuais e artistas no ocidente, a nova agência organizou uma divisão, os Ainventários Ativos de Propaganda(Propaganda Assets Inventory), que em seu auge pôde influenciar mais de 800 jornais, revistas e formadores de opinião pública. Eles brincavam dizendo que era como uma caixa de música Wurlitzer: quando a CIA apertava o botão, podia-se ouvir qualquer música tocando pelo mundo inteiro.

O próximo passo decisivo veio em 1950, quando a Divisão de Organizações Internacionais(IOD) foi instituída por Tom Braden. Foi este escritório que subsidiou a versão animada de A Revolução dos Bichos de George Orwell, que patrocinou artistas americanos de jazz, recitais de ópera, a programada turnê internacional da Orquestra Sinfônica de Boston. Seus agentes foram colocados na indústria cinematográfica, em editoras, assim como escritores viajantes para os celebrados guias Fodor. E, agora sabemos, ela promoveu o movimento de vanguarda anárquico Expressionismo Abstrato.

Inicialmente, mais tentativas abertas foram feitas para apoiar a nova arte americana. Em 1947, o Departamento de Estado organizou e pagou por uma exibição internacional chamada "Avançando a Nova Arte Americana", com o escopo de refutar sugestões soviéticas de que a América era um deserto cultural. Mas o show causou indignação em casa, levando a Truman e sua observação sobre Hottentott e um congressista amargurado a declarar: "Eu sou só um americano idiota que paga impostos para este tipo de lixo". A turnê teve que ser cancelada.

O governo dos EUA agora enfrenta um dilema. Esse filistinismo, combinado com as denúncias histéricas de Joseph McCarthy de que tudo o que era de vanguarda ou não ortodoxo era profundamente embaraçoso. Ele desacreditou a ideia de que a América era uma sofisticada e culturalmente rica democracia. Ele também impediu o governo dos EUA de consolidar uma mudança de supremacia cultural de Paris para Nova Iorque desde 1930. Para resolver esse dilema, a CIA foi chamada.

A conexão não é tão estranha quanto pode parecer. Neste momento a nova agência, composta principalmente por graduados de Yale e Harvard, muitos dos quais colecionavam arte e escreviam romances em seu tempo livre, eram um refúgio do liberalismo quando comparado com um mundo político dominado por McCarthy ou com o FBI de J. Edgar Hoover. Se havia uma instituição política estava em posição de celebrar uma coleção de leninistas, trotskistas e alcólatras que compunham a Escola de Nova Iorque, esta era a CIA.

Até agora não houve nenhuma evidência em primeira mão para provar que esta ligação foi feita, mas nela, pela primeira vez alguém antes oficial no caso quebrou o silêncio. Sim, ele diz, a agência viu o Expressionismo Abstrato como uma oportunidade e sim, ele correu com ela.

"No que diz respeito expressionismo abstrato, eu adoraria ser capaz de dizer que a CIA inventou isso apenas para ver o que acontece em Nova York e no centro SoHo amanhã!", brincou. "Mas eu acho que o que fizemos realmente foi reconhecer a diferença. Foi reconhecido que o Expressionismo Abstrato era o tipo de arte que fez realismo socialista olhar ainda mais estilizado e mais rígido e confinado do que era. E essa relação foi explorada em algumas das exposições.

"De certa forma o nosso entendimento foi ajudado porque Moscou naqueles dias era muito cruel na sua denúncia de qualquer tipo de não-conformidade com os seus próprios padrões muito rígidos. Assim, pode-se de forma adequada e precisa raciocinar que qualquer coisa que eles criticavam muito e com mão pesada valia a pena ser apoiado de uma forma ou de outra".

Para prosseguir em seu interesse clandestino na vanguarda esquerdista da América, a CIA tinha que ter certeza de que seu patrocínio não poderia ser descoberto. "Questões desse tipo só poderia ter sido feito em dois ou três removes", o Sr. Jameson explicou, "de modo que não haveria qualquer questão de ter que limpar Jackson Pollock, por exemplo, ou fazer qualquer coisa que possa envolver essas pessoas com a organização. E não poderia ter sido melhor, pois a maioria deles eram pessoas que tinham muito pouco respeito pelo governo, em particular, e, certamente, nenhum pela CIA. Se você tivesse que usar pessoas que se consideravam de uma forma ou de outra mais próximas de Moscou do que Washington, bem, tanto melhor, talvez".

Essa foi a "longa coleira". A peça central da campanha da CIA tornou-se o Congresso pela Liberdade Cultural, um grande congresso de intelectuais, escritores, historiadores, poetas e artistas, que foi criado com recursos da CIA em 1950 e dirigido por um agente da CIA. Era a cabeça de praia a partir da qual a cultura pôde ser defendida dos ataques de Moscou e seus "colegas de viagem" no Ocidente. No seu auge, ela tinha escritórios em 35 países e publicou mais de duas dezenas de revistas, incluindo a Encounter.

O Congresso para a Liberdade Cultural também deu à CIA a frente ideal para promover sua participação secreta no Expressionismo Abstrato. Seria o patrocinador oficial de exposições itinerantes, suas revistas iriam fornecer plataformas úteis para os críticos favoráveis à nova pintura americana; e ninguém, os artistas incluídos, seria mais sábio.

Esta organização reuniu várias exposições do Expressionismo Abstrato nos anos 50. Uma das mais significativas, "A nova pintura americana", visitou cada grande cidade europeia em 1958-59. Outros shows influentes incluindo a "Arte Moderna nos Estados Unidos"(1955) e "Obras-primas do século XX" (1952).

Pelo fato do Expressionismo Abstrato ser caro para se movimentar e apresentar, milionários e museus foram chamados para o jogo. Preeminente entre estes estava Nelson Rockefeller, cuja mãe foi cofundadora do Museu de Arte Moderna de Nova York. Como presidente do que ele chamou de "Museu da Mamãe", Rockefeller era um dos maiores apoiadores do Expressionismo Abstrato (que ele chamou de "pintura de livre empresa"). Seu museu foi contratado para o Congresso para a Liberdade Cultural para ser organizador e curador da maioria de suas importantes mostras de arte.

O museu também estava ligado à CIA por várias outras pontes. William Paley, o presidente da difusora CBS e um dos fundadores da CIA, sentou-se na mesa de membros do Programa Internacional do museu. John Hay Whitney, que tinha servido em tempos de guerra antecessores da agência, a OSS, foi o seu presidente. E Tom Braden, primeiro chefe da Divisão de Organizações Internacionais da CIA, foi secretário-executivo do museu, em 1949.

Agora em seus oitenta anos, o Sr. Braden mora em Woodbridge, Virgínia, em uma casa repleta de trabalhos do Expressionismo Abstrato e guardada por enormes alsacianos. Ele explicou o objetivo do IOD.

"Queríamos unir todas as pessoas que eram escritoras, que eram músicos, que eram artistas, para demonstrar que o Ocidente e os Estados Unidos eram dedicados à liberdade de expressão e de realização intelectual, sem quaisquer barreiras rígidas sobre o que e como você deve escrever, e o que você deve dizer, e o que você deve fazer, e o que você deve pintar, que era o que estava acontecendo na União Soviética. Eu penso que foi a divisão mais importante que a agência tinha, e eu penso que ela desempenhou um papel enorme na Guerra Fria".

Ele confirmou que sua divisão agiu secretamente por causa da hostilidade do público à vanguarda: "Foi muito difícil fazer o Congresso acompanhar algumas das coisas que queríamos fazer, enviar a arte ao exterior, enviar sinfonias ao exterior, publicar revistas no exterior. Essa é uma das razões por que tinha de ser feito de forma encoberta, tinha que ser um segredo. Para incentivar a abertura tivemos que ser secretos".

Será que o Expressionismo Abstrato teria sido o movimento de arte dominante dos anos do pós-guerra sem este patrocínio? A resposta é provavelmente sim. Igualmente, seria errado sugerir que quando você olha para uma pintura expressionista abstrata você está sendo enganado pela CIA.

Mas olhe onde esta arte acabou: nos salões de mármore dos bancos, nos aeroportos, nas prefeituras, salas de reuniões e grandes galerias. Para os guerreiros frios que a promoveram, estas pinturas foram um logotipo, uma assinatura da sua cultura e sistema que eles queriam mostrar em todos os locais possíveis. Eles conseguiram.

Operação secreta

Em 1958, a exposição itinerante "The New American Painting " , incluindo obras de Pollock, De Kooning , Motherwell e outros, estava em exibição em Paris. A Tate Galery fez questão de recebê-la em seguida, mas não tinha dinheiro para trazê-la. No final do dia, um milionário americano e amante de arte, Julius Fleischmann , entrou em cena com o dinheiro e a mostra foi trazida para Londres.

O dinheiro que Fleischmann forneceu, porém , não era seu, mas da CIA. Ele veio através de um órgão chamado a Fundação Farfield, da qual Fleischmann foi presidente, mas longe de ser um milionário caridoso, a fundação era um canal secreto para os fundos da CIA.

Então , desconhecido para a Tate , o público ou os artistas , a exposição foi transferido para Londres às custas dos contribuintes americanos para servir a fins de propaganda da Guerra Fria sutis. Um ex- agente da CIA , Tom Braden, descrito como tais condutas como a Fundação Farfield foram criadas . "Gostaríamos de ir para alguém em Nova York, que era uma pessoa rica bem conhecido e que dizia: 'Queremos criar uma fundação . Gostaríamos de dizer a ele o que estávamos tentando fazer e prometer-lhe que o segredo , e ele diria: ' É claro que eu vou fazer isso ', e então você iria publicar um papel timbrado e seu nome seria nele e haveria uma fundação. foi realmente um dispositivo muito simples".

Então, desconhecida para a Tate, o público ou os artistas, a exposição foi transferida para Londres às custas dos contribuintes americanos para servir a fins de propaganda da Guerra Fria sutis. Um ex-agente da CIA , Tom Braden, descreveu como tais condutas como a Fundação Farfield foram criadas. "Nós recorreríamos a alguém em Nova York que fosse rico e bem conhecido e que diria: 'Queremos criar uma fundação'. Nós lhe contaríamos o que estávamos tentando fazer e exigir dele o segredo, e ele diria: 'É claro que eu vou fazer isso', e então você iria publicar um papel timbrado e seu nome estaria nele e haveria uma fundação. Foi um dispositivo realmente muito simples".

Julius Fleischmann estava bem colocado para esse papel. Ele sentou-se na mesa do Programa Internacional do Museu de Arte Moderna de Nova York - como fizeram várias figuras poderosas perto da CIA.

5 de junho de 1995

Inconsciência de classe

Emir Sader

Folha de S.Paulo

O MEDO DA QUEDA - ASCENSÃO E CRISE DA CLASSE MÉDIA
Bárbara Ehrenreich Tradução: Lucy Petroucic, Ademar da Silva e Maria das Graças G. V. da Silva Scritta, 353 páginas R$ 26,00

A história dos EUA frustrou as expectativas tanto de Marx, quanto de Tocqueville. Em sua história do movimento operário norte-americano, Mike Davis -autor da obra mais relevante sobre Los Angeles como paradigma da pós-modernidade, "Cidade do Quartzo" (Scritta) -mostra ("Prisoners of the American Dream", Ed. Verso, Londres, 1986) como as condições concretas colocaram obstáculos, em lugar de facilitar o surgimento da classe operária desse país como sujeito político autônomo.

Entre as causas desse bloqueio, Davis cita a natureza de sociedade de fronteiras livres, que permitiu ao trabalhador, no período de formação do proletariado norte-americano, se aventurar a ser pequeno proprietário, valendo-se da mobilidade individual que essa situação propiciava. A esse fator se somavam as divisões impostas pela chegada dos milhões de imigrantes pobres da Irlanda e da Alemanha e a questão racial. Tudo isso possibilitou o fortalecimento da imagem do "self made man" como modelo do homem norte-americano. O que, por si só, significa dizer que o homem de classe média foi elevado à categoria de padrão nacional, representativo do "ser norte-americano".

"O Medo da Queda", da ensaísta, feminista e marxista Barbara Ehrenreich -cujo título original, "The Fear of Falling" representa também uma contrapartida de um dos maiores sucessos do auge feminista dos anos 60, "The Fear of Flying", de Erica Jong- se propõe a ser uma história da trajetória da classe média assalariada nos EUA dos anos 60 aos 80. Uma história que, segundo ela, começa sob a égide da generosidade e do otimismo e termina no cinismo e no egoísmo, correlatos às transformações ideológicas operadas na sociedade norte-americana entre as duas décadas -do liberalismo democrata ao neoliberalismo republicano. Mais do que a radiografia de uma classe, trata-se da própria alma norte-americana, que representa a classe média como sua classe universal, uma classe que é sempre mostrada como representativa de todos. "Todas as personalidades que dominam os programas de entrevista são, para o espectador comum, membros desse grupo relativamente privilegiado -bem-alimentados, bem-educados e empregados em ocupações tranquilas, como jornalismo ou ensino universitário". As maiores obras do pensamento social dos EUA assumem este postulado, quando falam do caráter norte-americano.

Daí o sucesso -mais além das inegáveis qualidades literárias do autor- da série de "coelhos" de John Updike. E daí também -segundo Doctorow- a dificuldade de romances protagonizados por pessoas pobres ou da classe trabalhadora obterem sucesso. A essas obras se atribui uma intenção política, buscando desqualificá-las como arte. As classes baixas, assim, sumiram da cultura comum nos anos 50, só sendo "redescobertas" nos anos 60. Considerando que, para a classe média, o grau de autoconsciência que ela consegue obter passa pelo espelho dos de baixo e dos de cima, esse esconde-esconde é fator preponderante na sua própria evolução ideológica.

Na explicação convencional, a desilusão da classe média teria se dado, primeiro, com a subida dos índices criminais protagonizados pelos negros pobres e pelos despossuídos; em seguida, com os operários supostamente revelando seu caráter conservador; finalmente, com a regressão econômica dos anos 70. O caminho desembocou na classe média se refugiando em seus próprios interesses materiais, em suas carreiras e suas vidas privadas, convencida de que "os despossuídos de qualquer modo não eram dignos de ajuda".

Para Ehrenreich, a mudança chave na percepção de si mesma da classe média se deu na passagem da idéia de que ela era a América até uma consciência crescente de que ela era somente uma classe entre as outras, isolada e privilegiada. A descoberta da pobreza, no começo da década de 60 -a partir do fenômeno catalogado como "delinquência juvenil"-, foi a de um setor considerado então como residual, produto de uma patologia social localizada, absorvível por programas como os dos democratas Kennedy e Johnson.

Mas os anos 60 trouxeram também a irrupção do movimento estudantil, que apontava para o fracasso moral da classe média. Entre a acusação de responsabilidade pelas mazelas da sociedade americana feita pelos estudantes e o diagnóstico de que o desajuste daqueles jovens era responsabilidade de uma educação demasiado permissiva, tudo apontava para a classe média como ré. A abundância do pós-guerra tinha feito emergir os adolescentes -os ``teenagers"- como novo componente do mercado e sua cultura -centrada no rock e nas drogas chacoalhava a atordoada consciência de si da classe média. A luta pelos direitos civis fazia aparecer um sujeito que não se resignava à filantropia da classe média e buscava um espaço próprio de ação.

Naquele momento foi cunhado o termo ``maioria silenciosa", por Richard Nixon, para interpelar esse ``americano médio", na busca de compensação contra as ``minorias" mobilizadas e radicalizadas -os negros, os estudantes, as mulheres. Uma vez rompido o mito de que era o centro da imensa maioria do país, quando se viu sobrepujada pelas reivindicações radicalizadas dos direitos civis, ``a classe média descobriu uma imagem negativa, hediondamente desagradável de si mesma: uma elite isolada, pretenciosamente liberal e menosprezada pelos autênticos trabalhadores americanos".

Foi o momento em que o espectro ideológico passou a ser redefinido pela emergência do neoliberalismo -de uma ``nova direita". Seus inimigos também teriam que ser redefinidos: eles passaram a ser os ``improdutivos", isto é, os pobres, os indivíduos assistidos pela previdência social e os estudantes de esquerda e seus professores universitários. Em suma, os que vivem às custas do salário desemprego ou, de alguma forma, dos recursos do Estado. Os programas antipobreza, elaborados nos anos 60, eram vistos como "um enorme derramamento de generosidade mal direcionada e permissiva". Uma pobreza que, tal como os argumentos denunciados por Hirschman, em seu "A Retórica da Intransigência" (Cia. das Letras) teria sido causada pelos próprios esforços para curá-la. Ou, segundo um relatório do governo Reagan: as políticas liberais tinham "desgastado o tecido da vida familiar americana, aumentando o crime, os nascimentos ilegítimos, o uso das drogas, a gravidez na adolescência, o divórcio, as doenças sexualmente transmissíveis e a pobreza". O efeito imediato dos cortes drásticos no vale-refeição, na assistência habitacional, nos programas de nutrição para bebês e mulheres grávidas foi transferir aproximadamente onze milhões de norte-americanos para as classes pobres.

Essas mudanças se refletiram diretamente nas condições de consumo, especialmente depois que o governo Reagan conseguiu quebrar a resistência do movimento sindical, com a derrota da greve dos controladores de tráfego aéreo, em 1981. O caminho estava livre para que o "yuppismo" desse o tom dos novos estilos de consumo: os ricos, cerca de 5% dos norte-americanos, que detinham acima de 50% da riqueza da nação, se encarregavam de dar vazão ao hiperconsumismo que voltou à moda. A cisão radical da esfera do consumo -fenômeno até ali típico dos países periféricos do capitalismo- se estendeu aos EUA: o mercado de massa desapareceu e em seu lugar surgiram dois mercados -o da classe alta e o da classe baixa.

Os ricos voltavam a deixar de se esconder, a se exibir. A riqueza já não envergonhava ninguém -os impostos para eles haviam baixado e, além disso, a pobreza era culpa dos próprios pobres. Ser rico era demonstrar capacidade, competência, poder, sucesso. A classe média tinha feito sua escolha -estar do lado dos vitoriosos. Afastando-se dos espaços e dos serviços públicos, deteriorados pelas políticas neoliberais de Reagan e de Bush, ela também se distanciava da pressão por maiores gastos públicos para o benefício da comunidade, deixando essa batalha unicamente nas mãos das classes trabalhadoras. Ao contrário, passou a somar sua voz contra esses gastos, caracterizados como inúteis e injustos socialmente, além de geradores de mais impostos.

Ao traçar assim a trajetória da classe média americana, Ehrenreich esboçou um macrocosmo da evolução dos EUA, desde quando as diferenças sociais tendiam à diminuição até o momento em que, pela primeira vez na história do país, os filhos da classe média passaram a viver pior que seus pais. Desfeito o sonho americano, começou a caça às bruxas, aos responsáveis -sempre endógenos à alma americana, ao espírito do "self made man"- pela decadência da sociedade mais poderosa do mundo. Uma vez mais, incapaz de se representar, a classe média busca os super-homens que a resgatem dos diabos que ela mesma criou.

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