31 de agosto de 2020

Shinzo Abe, do Japão, foi um líder nada inspirador, que prosperou por omissão

Shinzō Abe tornou-se o primeiro-ministro mais longevo do Japão graças à fraqueza de seus rivais políticos. Mas Abe nunca realizou seu sonho de reescrever a constituição japonesa para legitimar o militarismo nacionalista que era central para sua visão de mundo.

Uma entrevista com
Kristin Surak

Jacobin

O primeiro-ministro japonês Shinzō Abe, que recentemente anunciou sua renúncia, na cerimônia de abertura do Festival Internacional de Cinema de Tóquio em 2016. Dick Thomas Johnson / Wikimedia Commons.


Tradução / Shinzō Abe deixou o cargo, por motivos de saúde, após exercer a função de Primeiro-Ministro do Japão desde 2012. Abe foi uma figura polarizadora, que enfureceu os vizinhos do Leste Asiático (e muitos dos próprios cidadãos compatriotas), com seu revisionismo histórico sobre a memória do país do período de guerra. Abe tentou alterar a Constituição japonesa para enfraquecer o empuxo pacifista do texto e quis fortalecer os laços entre as forças militares do Japão e dos EUA. Nos anos recentes, foi um aliado próximo de Donald Trump.

Abe também empreendeu uma tentativa ambiciosa de alavancar a economia japonesa, conhecida como "Abenomics".

Kristin Surak é Professora na SOAS, da Universidade de Londres e especialista em política japonesa.

Ela conversou com Daniel Finn da Jacobin sobre o contexto de origem de Abe, seu tempo recorde em exercício e seu legado como Primeiro-Ministro.

Daniel Finn

Abe comprovou-se como o mais longevo Primeiro-Ministro em exercício. Qual foi o segredo - e a relevância - de sua longevidade?

Kristin Surak

Por trás da longevidade de Abe, mais do que tudo, estava a ausência de uma oposição significativa, tanto de fora quanto de dentro do próprio partido. O Partido Liberal Democrático (PLD) gozou de domínio político quase ininterrupto desde que assumiu o comando, em 1955.

Desde então, foi retirado do poder por meio de eleições populares apenas uma vez, em 2009, quando o partido líder da oposição, o Partido Democrático do Japão (PDJ), obteve um mandato dos eleitores que estavam cansados dos escândalos do PLD, dos fracassos das políticas e da dança das cadeiras das falhas dos Primeiros-Ministros.

O PDJ manteve-se no poder por três anos, durante os quais primeiro lutou contra interesses enraizados - sobretudo no poderoso aparato burocrático - para promover quaisquer transformações mais sérias; em seguida, cedeu à pressão e terminou conquistando muito pouco. O PDJ, marcado como incompetente, perdeu mais de 80 por cento de seus assentos nas eleições de 2012, nas quais o PLD adentrou com tudo no poder com sua vitória eleitoral mais ampla em dezembro do mesmo ano.

Abe fora eleito como líder do partido apenas três meses antes, e contrariando todas as possibilidades. Nenhum analista político previu que Abe, uma figura nada inspiradora que havia servido como Primeiro Ministro por apenas onze meses em 2006-7, venceria novamente em um tabuleiro com mais de uma dúzia de candidatos. Em um raro rumo para a liderança do PLD, Abe subiu para o topo como um candidato de compromisso, e então liderou a oposição contra o PDJ, para tornar-se primeiro-ministro antes do final do ano.

Ainda assim, ninguém esperava vê-lo ainda no poder pelos quase oito anos seguintes. Desde 1990, a média do exercício do cargo de primeiro-ministro era de um ano e meio, e Abe tinha feito pouco para se diferenciar em seu primeiro mandato no comando. Seu poder duradouro advém de dois fatores.

Em primeiro lugar, Abe fez um uso excelente das prévias eleitorais - e pressionou por uma controversa situação de "não há outro caminho" - contra uma oposição confusa. O slogan de sua campanha das prévias eleitorais de 2014 capturava uma cena de estampada na camiseta: "Kono Michi Shikanai". De fato, "Não Há Nenhum Outro Caminho".

Em segundo lugar, essa situação de "não há outra saída" também perdurou em seu partido. Tradicionalmente, mudanças no governo não ocorrem pela alternância de partidos no poder, mas pelas mudanças no próprio PDL, à medida que as maiores figuras de proa buscam o controle. Mas Abe foi eficiente em neutralizar a oposição contra ele. Seu chefe de equipe, com um estilo de cão de guarda, Yoshihide Suga, ricocheteou muito do partido em linha, e então capitaneou uma reforma no gabinete do PM para centralizar o poder. Isso incluiu, com relevância, uma mudança que possibilitou ao PM indicar 600 posições-chave na burocracia.

O resultado foi que figuras de liderança dentro do serviço público tradicionalmente todo poderoso fossem tributários ao PM, o que teve como efeito o controle pleno das rédeas. Abe também neutralizou seu oponente mais forte dentro do PLD, Shigeru Ishiba, ao lhe entregar as pastas ministeriais mais difíceis de lidar. Não foi exatamente a popularidade de Abe que o manteve no poder - nas pesquisas de opinião, suas notas oscilaram muitíssimo -, mas foi a falta de alternativa. Isso está muito bem evidenciado pela proporção cada vez mais descendente do eleitorado que de fato comparecia às urnas e votava nelas.

Daniel Finn

Qual foi a importância do contexto familiar de Abe, para formar sua posição política?

Kristin Surak

Frequentemente se diz que Abe tem grande apreço por seu avô materno, Nobusuke Kishi. O mesmo provavelmente não pode ser dito dos moradores da Manchúria durante os anos em que Kishi liderou o desenvolvimento econômico da região como uma colônia japonesa. Um ultranacionalista que elogiava os nazistas, Kishi foi responsável por uma guinada veloz, e brutalmente forçada, na industrialização, incentivou o tráfico de ópio, em que operários chineses, a quem ele comparava a cachorros, trabalhavam sob condições hediondas. Algumas fábricas tiveram de substituir mais da metade dos trabalhadores anualmente por conta do altíssimo incide de óbitos.

Posteriormente, como Ministro das Armas, Kishi supervisionou a emigração forçada de milhares de coreanos e de chineses para trabalhar em fábricas localizadas no próprio Japão. A maioria desses trabalhadores forçados não sobreviveu. Depois da guerra, até que se aventou processar Kishi por crimes de guerra de primeira grandeza, mas os estadunidenses, por achá-lo útil, o libertaram antes que ele fosse a julgamento, possibilitando que ele novamente fizesse parte da política. Até 1957, ele foi o Primeiro-Ministro do Japão.

Apesar de responsável por arquitetar muito da abordagem XXX que consolidaria as bases do poder do PDL por décadas, Kishi talvez seja mais bem lembrado por costurar um Acordo de Cooperação e de Segurança Mútua com os EUA – uma versão fortalecida do Tratado Japão-EUA, que ligou Tóquio a Washington. Em vista dos protestos que levou mais de um terço da população às ruas, Kishi forçou o novo tratado pela Dieta Nacional. A decisão foi tão impopular que Kishi teve de toma-la depois da meia-noite, com a polícia cercando o prédio para evitar que a posição entrasse e votasse contra.

Abe, é claro, apresenta uma personalidade diferente, mas podem-se observar ecos de seu avô em dois elementos autorais em seu estilo de liderança.

Primeiro, Abe é um nacionalista aguerrido. Uma medida disso pode ser encontrada nos ditirambos de seu best-seller Rumo a um Lindo País, escrito durante seu primeiro mandato como PM, que orgulharia qualquer neo-orientalista.

Mais indicativa é sua adesão a um grupo nacionalista extremo, o Nippon Kaigi. É uma associação secreta que tem por objetivo revisar a Constituição e colocar o imperador no centro da nação. O desejo é de construir o orgulho e a prosperidade japoneses, sem que inconvenientes, como as liberdades civis, atrapalhem o caminho.

As publicações do grupo promovem valores familiares (leia-se: "mulheres na cozinha"), reavivar noções imperialistas de superioridade racial e negar o Massacre de Nanquim, de 1937-8, perpetrado na China. Por anos, Abe esteve envolvido em um escândalo de financiamento para uma escola particular de jardim da infância de cunho nacionalista, dirigida por um colega-membro do Nippon Kaigi, com alunos visitando bases militares, curvando-se à imagem do imperador e recitando um hino de lealdade associada ao sistema educacional do Império Japonês.

Segundo, Abe desenvolveu um estilo de fazer política que promoveu um curto-circuito em muitos mecanismos democráticos. Com leis controversas - como uma Lei de Segredos de Estados, amplamente tida como uma "lei antidelação" -, Abe achou mais fácil impor pelo Parlamento por meio do sufocamento do debate.

Talvez mais notória tenha sido a legalização da "autodefesa coletiva". O artigo 9 da Constituição do Japão notavelmente repudia a guerra como um direito soberano. Ainda assim - em uma tentativa de expandir o alcance militar do país -, Abe insistiu que o Japão deveria poder auxiliar seus aliados. Ele insistiu com o cenário - bastante implausível - de que o Japão poderia vir a precisar resgatar os EUA, o país mais militarizado do mundo, em diversos fatores.

Praticamente todo advogado de direito constitucional no país - incluindo os fantoches encontrados pelo PDL - denunciou como ilegítima a leitura de Abe da Constituição. Abe insistiu nela, do mesmo jeito. Igualmente notável, essa mudança interpretativa da lei fundamental não adveio dos tribunais, como normalmente acontece em democracia, mas do gabinete do Executivo, movimentação, de longe, mais comum em regimes autoritários. Mas a interpretação veio pra ficar.

Nesse contexto, o maior fracasso de Abe foi em assegurar uma revisão da Constituição. Era algo que seu avô Kishi havia procurando, e tem integrado a plataforma do PDL desde que o partido se estabeleceu. Mas ninguém teve êxito, até o momento. De fato, a Constituição do Japão é a mais duradoura de sua espécie para ter sobrevivido sem revisões. Há diversas razões para isso, mas um fator importante é o de que a Constituição é muito breve e vaga. Não se aprofunda, com detalhes, em instituições, tampouco proíbe muito, o que permite certa flexibilidade de reinterpretação sem emendas.

Contudo, Abe muito desejava ter sucesso onde outros falharam. Não queria somente revisar o artigo 9, para permitir que as forças de autodefesa do Japão fossem reconhecidas como um exército, mas, ainda, revisar praticamente todos os 103 artigos do texto constitucional. Algumas das propostas eram de menor monta, mas outras, muito mais significativas, incluindo uma série de restrições em direitos e em liberdades individuais, em nome da “ordem pública”, a elevação da posição do imperador e a inclusão de cláusulas para proteger manifestações de sentimentos nacionalistas.

O artigo 9 goza de enorme apoio popular; contudo, com muitos japoneses vendo a renúncia a guerra como um elemento definitivo da identidade nacional. Isso está mudando, em certa medida, à medida que a geração que viveu a Segunda Guerra Mundial faleça, com cada vez menos indivíduos esposando esses ideais. Mas ainda não continuava claro se Abe conseguiria obter ao menos 50% do eleitorado para concordar que o documento – incluindo o famigerado artigo 9 – deveria ser revisado.

Como resultado, Abe adotou uma abordagem gradual, permitindo que indivíduos de 18 anos de idade votasse e enfatizando a necessidade de alterar a Constituição para atualizar-se com os novos tempos. Isso chegou a envolver, o ordenamento de uma postura anti-homofóbica e pró-meio ambiente para a causa, ao sugerir que a especificação da Constituição de que o casamento é entre um homem e uma mulher está ultrapassada (embora Abe tenha-se insurgido contra esposas e maridos mantendo sobrenomes diferentes) e que o documento fundacional do país também deveria prestar homenagens à importância de proteger o meio ambiente.

Abe estava com a esperança de ver seu plano concretizado na imediata posteridade das bem-sucedidas Olimpíadas de 2020, antes que seu mandato terminasse em setembro de 2021. Vimos o primeiro elemento desse plano naufragar em abril, com o cancelamento das Olimpíadas, e o segundo em agosto, com o anúncio de sua renúncia.

Daniel Finn

Podemos traçar uma linha de continuidade entre os diversos mandatos de Abe como PM?

Kristin Surak

Os objetivos principais que ele estabeleceu durante o primeiro mandato como PM em 2006-7 diferiu pouco daqueles adotados na segunda vez de seu exercício. Quinze anos atrás, Abe quis revisar a Constituição; quis criar um exército independente; quis uma reforma educacional em uma direção nacionalista (e trouxe isso à tona com sucesso); quis forjar um “arco de liberdade e de prosperidade”, conforme as diretrizes da Parceria Transpacífica (TPP, Trans-Pacific Partenership), pela qual Abe lutou longa e arduamente para reviver em seu segundo mandato.

A maior diferença entre seus dois mandatos – e bem significativa – foi o conjunto de políticas conhecidas por “Abenomics”. Ainda assim, ela trouxe, na melhor das hipóteses, resultados bem contraditórios. A combinação de relaxamento monetário, estímulo fiscal e reforma estrutural estava destinada a induzir uma inflação de saudáveis 2%. Isso, assim esperava o governo de Abe, injetaria uma descarga de adrenalina no “espírito animal” capitalista do Japão, propulsionando uma economia que havia visto pouco crescimento desde 1990.

No final das contas, a economia japonesa nunca atingiu a meta dos 2% de inflação. Enquanto isso, as somas enormes alocadas no relaxamento monetário elevaram a dívida do PIB, já bem alta, para estratosféricos 250%. Os resultados finais foram bons para as grandes empresas e para o índice de mercado TOPIX da bolsa, mas não tão bons para empresas familiares e para os lares. Os últimos foram atingidas por um aumento de 5% nos impostos de venda, levando a uma queda na renda disponível e nos gastos de consumo.

Os efeitos de longo termo de emissão de moeda em uma escala maciça – uma técnica em que o Japão foi pioneiro, após sua quebra financeira de 1989, que foi copiada por países do Ocidente – ainda permanecem visíveis. Mas, no caso do Japão, a maioria das dívidas é retida internamente, já que os lares e os negócios japoneses são os compradores-chave dos títulos do governo. Como resultado, é menos arriscada do que políticas similares que foram implementadas por governos ocidentais. Se observarmos os objetivos de política externa de Abe, parece haver uma tensão entre o desejo dele em ver o Japão conquista uma “independência plena” como uma “nação normal” – ou seja, com um exército reconhecido – e a estreita relação que ele cultivou com os Estados Unidos. Essa é uma aliança na qual as funções do Japão como um Estado clientes dos EUA – nas palavras de Gavan McCormack, como o “cachorrinho no Pacífico” de Washington. Não obstante, as duas tendências não são reciprocamente exclusivas. As tentativas do Japão de aumentar sua gama de atividades militares também se alinham com os interesses dos EUA.

Embora o artigo 9 da Constituição renuncie à guerra como um direito soberano, a interpretação desse dispositivo tem sido flexibilizada ao longo dos anos, deixando o Japão com uma “força de autodefesa” que é a nona maior força militar do mundo. Os Estados Unidos têm buscado a “inter-operacionalidade” com essa força – o que significa que os sistemas militares são tão similares com os estadunidenses, a ponto de ser efetivamente comandados e controlados, com os EUA considerando isso como adequado –, ao passo que os japoneses arcam com sua manutenção.

Daniel Finn

Como Abe abordou as relações com os vizinhos do Leste Asiático do Japão?

Kristin Surak

Embora seja um nacionalista aguerrido, Abe também é pragmático. A importância disso para a política externa japonesa com frequência passou despercebida. Abe manteve a agenda de viagens internacionais mais intensa de qualquer PM japonês até o momento. Por conta disso, foi o primeiro chefe de Estado a reunir-se com Donald Trump após sua eleição – Abe estava indo para a América do Sul e parou em Nova Iorque no caminho.

Seu périplo global esteve a serviço de assegurar tantos tratados bilaterais e acordos comerciais possíveis, diversificando as relações japonesas com uma gama imensa de países. Entre esses países, claro, está a China, que é o parceiro comercial mais importante do Japão, como Abe sabe muito bem. Então, apesar de todas as posturas nacionalistas, ele também foi cuidadoso ao manter laços econômicos entre os dois países. A relação do Japão com a Coreia do Sul tornou-se mais pedregosa durante seu mandato. Aqui, a questão das “mulheres de conforto” – mulheres coagidas ao trabalho sexual a serviço do expansionismo imperial nipônico – tem sido o tema mais espinhoso. Tem sido levantado pelo governo, pelos tribunais e pela própria população da Coreia como um assunto fundamental, em alguns casos testando os ajustes de tratados entre os dois países.

Nesse contexto, Abe relutou em reconhecer a hediondez da experiência das “mulheres de conforto” e a responsabilidade do Japão por ela, o que elevou as tensões.

Daniel Finn

Que medidas foram tomadas pelo governo de Abe para combater a pandemia de COVID-19? É possível esboçar um balanço disso até4 o momento?

Kristin Surak

O Japão tem tido sorte de apresentar muito menos casos do que seus pares do G-7. O governo, entretanto, ainda sofreu bastante crítica popular pelo manejo insuficiente com a pandemia. Abe viu seus índices de aprovação caírem da casa dos 60, no começo do ano, para a dos 30 agora.

Inicialmente, a preocupação do governo era de assegurar que as Olimpíadas poderiam acontecer. Nesse contexto, a retenção do navio de cruzeiro Diamond Princess na Costa e a não permissão do ingresso de passageiros em hospitais pareceram uma boa ideia: mantiveram os números oficiais baixos.

O programa de Abe de distribuir máscaras para a população inteira – os japoneses usam máscaras regularmente, de todo modo, quando doentes ou durante os períodos de gripe – foi um fracasso. Tantas máscaras apresentavam defeitos ou não foram distribuídas que foram apelidadas de “Abenomasks” e se tornaram sátiras de imprensa.

Ainda assim, os lockdowns foram curtos, e o trabalho duro dos profissionais de saúde de rastrear os contatos de infecção parecem ter compensado. Apesar da densa população de 125 milhões, o Japão computou menos de 70.000 infecções e cerca de 1.220 mortes. Por um tempo, a taxa média de óbitos foi até inferior à média anual, já que as pessoas permaneceram em casa, com segurança. Para colocar os números japoneses em perspectiva, a Califórnia, com uma população de 40 milhões, apresentou 700.000 infecções e 13.000 mortes.

O resultado, no Japão, é que a maior baixa possa ser as Olimpíadas de Verão de 2020 – agora 2021. Os burocratas japoneses esperavam usar o evento para um relançamento global da “Marca Japão”, com as empresas principais contribuindo com somas elevadíssimas – na casa das centenas de milhões de dólares norte-americanos – para apoiar o evento. Mesmo se as Olimpíadas acontecerem no próximo verão, o evento provavelmente está fadado a ser mais moderado do que o previsto e provavelmente não trará o mesmo impulso econômico que era esperado.

Daniel Finn

Qual o estado atual dos fragmentos do Partido Democrático e de outras forças de oposição à esquerda? Estão em alguma posição de oferecer uma alternativa de governo no futuro próximo?

Kristin Surak

No momento, o cenário é bastante sombrio. O “desafio” mais dinâmico para Abe tem vindo de outros membros de tendência mais à direita do PDL. Yuriko Koise, governadora de Tóquio e uma nacionalista aguerrida, desertou do PDL para concorrer com Abe nas eleições nacionais de 2017, convencendo um naco da ala à direita do Partido em segui-la, mas a estratégia acabou falhando.

As facções remanescentes do antigo PDJ – o Partido Constitucional Democrático do Japão e o Partido Democrático para o Povo – concordaram em se fundir no mês que vem, para formar uma nova oposição, mas isso ainda os deixaria com menos de um quarto dos assentos congressuais. Infelizmente, neste momento, parece que o velho slogan de Abe, “Kono Michi Shikanai” parece continuar verdadeiro: “Não Há Outro Caminho”.

Colaboradores

Daniel Finn é editor adjunto da New Left Review. Ele é autor de "One Man’s Terrorist: A Political History of the IRA".

Kristin Surak leciona política japonesa na SOAS, da Universidade de Londres. É autora de "Making Tea, Making Japan: CulturalNationalism in Practice".

A história oculta da classe trabalhadora polonesa por Andrzej Wajda

O diretor polonês Andrzej Wajda criou uma forma estimulante de cinema político que ajudou a moldar os eventos, além de representá-los na tela. Seus filmes são um poderoso documento da história da classe trabalhadora na Polônia e um vislumbre de uma democracia socialista que poderia ter existido.

Jakub Majmurek
Uma foto do filme Homem de Ferro de Andrzej Wajda, de 1981.

Há quarenta anos, nesta semana, o movimento sindical independente da Polônia, Solidarność, irrompeu em cena após uma onda de greves selvagens. O movimento representou um desafio direto ao regime comunista polonês, que concedeu temporariamente ao Solidarność a liberdade de se organizar, mas depois o levou à clandestinidade após impor a lei marcial em dezembro de 1981.

O espetáculo de um poderoso movimento operário desafiando um autoproclamado Estado operário teve um enorme impacto em todo o Bloco Oriental; em muitos aspectos, foi o começo do fim para o comunismo de estilo soviético. Jacobin está comemorando o aniversário do Solidarność com vários artigos que exploram aspectos da história e da política polonesa, desde as origens do socialismo na Polônia até a reação conservadora no país hoje.

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Quando o movimento de oposição Solidarność (“Solidariedade”) estourou na cena política polonesa em agosto de 1980, Andrzej Wajda já era um dos maiores diretores de cinema do país por mais de duas décadas. Filmes como Ashes and Diamonds e The Promised Land deram para Wajda uma reputação internacional e colocaram o cinema polonês na vanguarda do cinema europeu ao passar por uma época de ouro.

Mas nada pode ser comparado ao impacto de Man of Marble (1977) de Wajda e sua sequência de 1981, Man of Iron. O primeiro filme antecipou - e contribuiu para - a ascensão do Solidariedade, enquanto o segundo documentou o surgimento triunfal do movimento, antes do golpe de dezembro de 1981 que o levou à clandestinidade.

Três décadas depois, após retornar do exílio na França, Wajda revisitou o assunto da oposição da classe trabalhadora ao comunismo polonês com Wałęsa de 2013: Homem de Esperança, completando uma trilogia que lança uma grande luz sobre a história polonesa moderna. Os filmes são até hoje um marco do cinema europeu, cujo impacto político nunca será superado.

Herói esquecido

Man of Marble segue um jovem cineasta, Agnieszka, que luta para produzir um documentário sobre um ícone esquecido (e fictício) chamado Mateusz Birkut. No início dos anos 1950, Birkut era uma estrela do movimento stakhanovista polonês, idolatrado pela propaganda oficial.

O partido no poder citava figuras como Birkut como exemplo para seus colegas de trabalho por sua capacidade de ultrapassar as cotas de produção por meio de feitos extraordinários de esforço físico. Os oficiais do partido o levaram ao redor do país para demonstrar seus feitos de pedreiro; os artistas o usaram como modelo para suas esculturas; cineastas fizeram filmes de propaganda sobre ele.

Narrativamente, Wajda construiu Man of Marble de uma forma semelhante a Citizen Kane de Orson Welles, revelando a verdade sobre Birkut através de uma série de flashbacks, narrados por diferentes personagens de sua vida, com quem Agnieszka se encontra em sua investigação sobre o passado de Birkut. Quando todas as peças do quebra-cabeça se juntam, vemos a história do trabalhador que foi cruelmente manipulado e explorado pelo estado stalinista da Polônia.

Wajda ambientou o filme em Nowa Huta, perto de Cracóvia. Nowa Huta era considerada uma cidade socialista perfeita, construída a partir da sucata em torno das enormes siderúrgicas. Os construtores da nova cidade vieram das regiões rurais do sudeste da Polônia, conhecidas por sua pobreza.

Birkut é um deles. Com entusiasmo ingênuo, ele se envolve na "competição socialista de trabalho". Ele não vê como o partido o está manipulando, como seus feitos estão sendo usados ​​para elevar as normas de trabalho para seus colegas. Então, um acidente abre seus olhos.

Alguém - talvez um colega de trabalho farto do ritmo acelerado de trabalho - passa para ele um tijolo incandescente. Birkut queima as mãos e não consegue trabalhar. Ele consegue um novo emprego como inspetor do trabalho que deve cuidar do bem-estar de seus colegas. Ele logo descobre que, embora o partido possa ficar feliz em colocá-lo em estátuas e pôsteres, está muito menos disposta a ouvir o que ele realmente tem a dizer.

“Grandes Palavras Vazias”

Enquanto isso, Wincenty Witek, amigo de Birkut, está envolvido nos expurgos do final da era stalinista. Ao contrário de Birkut, Witek é um comunista veterano da geração pré-guerra, que lutou com as Brigadas Internacionais na Espanha e passou um tempo em um campo de detenção francês. É precisamente por causa desse histórico que Witek fica sob suspeita, acusado de ligações com agências de inteligência ocidentais (como muitos comunistas da vida real na Europa Oriental).

Birkut finalmente acaba na prisão depois de tentar salvar seu amigo de um julgamento político. As autoridades começaram a incriminar Witek, acusando-o de responsabilidade pelo acidente de Birkut. Apesar de seu longo histórico como militante comunista, a promotoria o descreve como um agente imperialista que foi encarregado da missão de destruir os esforços da classe trabalhadora polonesa.

Na década de 1950, a propaganda do regime polonês descreveu a construção de Nowa Huta como um empreendimento nobre e heróico. A realidade era um pouco diferente. Os trabalhadores viviam em condições terríveis e anti-higiênicas; eles estavam sobrecarregados; alcoolismo e pequenos crimes eram frequentes.

A diretora estudante Agnieszka descobre a dura realidade de Nowa Huta gravada em um arquivo que nunca foi mostrado ao público. Em um clipe, vemos os trabalhadores protestando sobre a qualidade da comida que receberam no jantar.

Adam Ważyk descreveu graficamente o caso de Nowa Huta em seu “Poema para Adultos” (1955). Ważyk escreveu sobre meninos como Birkut:

From villages, from little towns, they go in wagons,
to build a foundry, to conjure up a town,
to dig out a new Eldorado.
[...]
The great migration builds new industry,
unknown to Poland but known to history,
is fed on great empty words, lives
wildly from day to day in despite of preachers —
amid coal fumes is melted in this slow torture
into a working class.
Much is wasted. As yet only dross.

(tradução de Lucjan Blit)

Wajda segue Ważyk, mas é menos pessimista do que o poeta. No Homem de Mármore, nem tudo é “escória”. Os trabalhadores de Nowa Huta estão finalmente se cansando de uma dieta baseada em promessas vazias. Eles desafiam as autoridades comunistas levando suas promessas de “poder da classe trabalhadora” muito mais a sério do que o partido no poder jamais pretendeu.

Birkut é libertado da prisão na onda de desestalinização após outubro de 1956 e opta por viver como particular em Gdynia. No entanto, seu filho, Maciej Tomczyk - cuja mãe nunca se casou com Birkut, então ele leva o nome dela - agora é o “Homem de Ferro”, pronto para empreender a luta que seu pai abandonou.

Realismo Socialista Realmente Existente

Pesquisando seu projeto, Agnieszka encontra um antigo documentário nos arquivos chamado They’re Building Our Happiness, uma das peças de propaganda que idolatram Birkut. Ela decide entrevistar seu diretor, Jerzy Burski - um autorretrato muito irônico do próprio Wajda.

Nos anos 50, foi Burski quem convenceu um oficial do partido em Nowa Huta a organizar uma manobra publicitária, com Birkut e seus camaradas se preparando para quebrar o recorde de pedreiros. Como Burski explicou ao funcionário, isso ajudaria nas carreiras de ambos.

O próprio Wajda esteve presente em Nowa Huta em 1950 como assistente de direção de Czesław Petelski’s Cement (parte de um filme portmanteau chamado Three Stories). O Cement é um exemplo típico de filme realista-socialista - a única abordagem estética do cinema permitida nos anos 1949-1954. Esses filmes retratavam trabalhadores jovens, muitas vezes ingênuos, que ganharam “maturidade política” por meio do trabalho em um coletivo socialista. O coletivo tem que lutar contra algum tipo de sabotador - muitas vezes trabalhando para os Estados Unidos ou a Alemanha Ocidental - tentando sabotar seu trabalho.

Man of Marble é um ajuste de contas com esse tipo de cinema, subvertendo seus tropos principais. Quando vemos Birkut na tela pela primeira vez, ele é um típico herói socialista-realista ingênuo. Mais tarde, ele se torna vítima de sabotagem.

No entanto, não são as "potências imperialistas" que estão por trás da sabotagem, mas provavelmente um dos colegas de Birkut. Embora ele ganhe maturidade política, essa maturidade o leva ao completo desencanto com o estado comunista da Polônia e à rejeição de qualquer envolvimento político.

Ao desmantelar as estruturas narrativas do cinema socialista-realista, Wajda estava tentando expiar os “pecados” que os cineastas poloneses cometeram no início dos anos 1950. Agnieszka, que nasceu por volta de 1950, representa uma nova geração. Quando a produtora cética de seu filme pergunta por que ela está interessada em Birkut, ela explica que o início dos anos 50 foi o período da juventude de seu pai e ela sabe "tudo sobre aquela época".

História oculta

O objetivo do projeto de Agnieszka (e do Homem de Mármore) é tornar visíveis diferentes formas de história reprimida, oficialmente não reconhecida: as histórias registradas nos filmes que nunca foram exibidas publicamente; a história que nunca foi escrita, mas foi sussurrada pelos pais aos filhos e filhas.

Wajda vinha tentando fazer o Homem de Mármore desde o início dos anos 1960. Um primeiro rascunho do roteiro foi concluído em 1963. Mas o ministério da cultura da Polônia vetou a produção, considerando-a politicamente polêmica. A situação mudou na década de 1970, graças a um novo ministro da Cultura, Józef Tejchma.

Tejchma foi uma das figuras mais liberais da liderança comunista polonesa e acreditava que a arte socialista deveria ser desafiadora. Ele encorajou cineastas a produzir filmes que abordassem questões sociais contemporâneas. Wajda teve um bom relacionamento pessoal com Tejchma e trouxe-lhe um novo rascunho do roteiro de O Homem de Mármore, com o que Tejchma deu luz verde à produção.

Durante as filmagens, a questão dos trabalhadores que lutam contra o Estado polonês provou ser um assunto de grande controvérsia política. Em junho de 1976, depois que o governo anunciou um aumento nos preços da carne controlados pelo estado, os trabalhadores em Radom e Ursus foram às ruas. A polícia reprimiu brutalmente seus protestos, pondo fim à lua de mel entre a sociedade polonesa e Edward Gierek, que se tornara o primeiro secretário do partido no poder em dezembro de 1970. Wajda temia que as autoridades bloqueassem a distribuição do filme em um momento tão difícil .

A maioria dos dirigentes do partido odiava o Homem de Mármore, mas decidiram não interromper seu lançamento por completo, julgando que seria politicamente imprudente fazê-lo. O Homem de Mármore teve uma distribuição limitada: os censores receberam instruções para restringir informações sobre o assunto e bloquear críticas positivas na imprensa. Os linha-dura do partido usaram o filme para montar uma campanha contra Tejchma, que foi forçado a renunciar ao cargo.

Apesar dessas medidas, 2,5 milhões de pessoas viram o Homem de Mármore nos cinemas (de uma população polonesa de 34 milhões em 1977). Ele ganhou reconhecimento instantâneo como um clássico. O público encontrou no filme não apenas uma visão crítica do stalinismo, mas também uma voz de protesto contra o engano, o compromisso e a corrupção na Polônia em meados dos anos 70, que supostamente teria deixado aqueles dias para trás.

A imagem do Estaleiro Lenin na cena final revelou-se profética. Pode-se até argumentar que o Homem de Mármore contribuiu para a “revolução moral” que tornou o Solidariedade possível.

Uma revolução de dignidade

Durante a onda de greves de agosto de 1980 que deu origem ao Solidariedade, Andrzej Wajda visitou o Estaleiro Lenin em Gdańsk. Um dos trabalhadores disse a ele: “Você tem que fazer um filme sobre tudo isso. Você pode chamá-lo de Homem de Ferro. ”

Wajda levou muito a sério a “comissão” do trabalhador em greve e trabalhou extremamente rápido. Man of Iron foi exibido no Festival de Cannes em maio de 1981. Mais uma vez, foi Józef Tejchma quem tornou a produção do filme possível. Tejchma havia recuperado seu cargo no Ministério da Cultura após uma remodelação política provocada pelos eventos de agosto de 1980.

Man of Marble havia retratado os paradoxos e contradições do stalinismo. Man of Iron fez o mesmo para os eventos de 1980, embora os críticos e colegas cineastas de Wajda muitas vezes criticassem o filme por ser muito preto e branco em sua representação da política daquele momento. Tendo subvertido a estética do realismo socialista em Man of Marble, Wajda agora implantou muitos de seus tropos em Man of Iron para denunciar a política da Polônia comunista.

O que Wajda conseguiu capturar foi o caráter ambíguo do movimento de 1980-81, o que tornou difícil colocá-lo ordenadamente em qualquer caixa política. As três primeiras cenas do estaleiro impressionante em Man of Iron - todas consistindo em imagens de arquivo e documentário - são muito interessantes deste ponto de vista.

No primeiro, os trabalhadores estão orando. No segundo, vemos um grupo de trabalhadores expressando suas queixas: com sindicatos não representativos e controlados pelo Estado, com preços altos e baixos salários, com as autoridades negando-lhes voz e respeito. No terceiro, vemos um grupo de trabalhadores carregando uma enorme cruz de madeira; acima deles está pendurada uma faixa vermelha com as palavras "trabalhadores de todas as empresas, uni-vos."

A greve de 1980, conforme representada nessas cenas, é um movimento dos trabalhadores que - como a Birkut do Homem de Mármore - tomaram as promessas do sistema comunista pelo valor de face. Ao mesmo tempo, porém, pode ser visto como uma espécie de “levante nacional” contra o poder não eleito, ou como uma “revolução de dignidade” por parte de pessoas que estavam fartas de viver em um sistema corrupto baseado em mentiras. Para os participantes da greve, a ideia de autogoverno dos trabalhadores parecia tão importante quanto os símbolos religiosos e o senso de integridade moral derivado do pensamento católico.

Pai e filho

Winkiel, o personagem principal, também passa por sua própria revolução moral da dignidade. Ele era um jornalista honesto e corajoso, o que quase encerrou sua carreira. Hoje, ele é um alcoólatra desencantado, produzindo propaganda para a emissora de rádio controlada pelo Estado. Ele é enviado a Gdańsk pela linha-dura do partido para fazer um programa que comprometeria Maciej Tomczyk, um dos líderes da greve.

Tomczyk, é claro, é filho de Birkut de Man of Marble (e interpretado pelo mesmo ator). À medida que o filme se desenrola, ficamos sabendo que Birkut morreu em 1970, vítima de um massacre pelas forças de segurança do estado durante uma onda de greves anterior (um evento da vida real que desempenhou um papel crucial na gênese do Solidariedade). Quanto mais Winkiel fica sabendo sobre a greve, menos inclinado ele fica para fazer a caveira de Tomczyk - e mais ele passa a acreditar que a greve pode realmente ter sucesso.

Como sabemos, sim. Em 30 de agosto, o governo da Polônia assinou um acordo com o Inter-Enterprise Strike Committee, reconhecendo suas demandas mais importantes, incluindo o direito de criar sindicatos livres e autônomos, independentes do estado.

Após a vitória, Tomczyk visita o local da morte de seu pai. Em uma série de flashbacks, ficamos sabendo que Tomczyk protestou quando era estudante em 1968, sem o apoio de trabalhadores como seu pai, que decidiram que aquela não era sua luta. Dois anos depois, quando os trabalhadores saíram às ruas das cidades costeiras da Polônia, os alunos ficaram em seus dormitórios.

Agora, em 1980, os principais grupos sociais - incluindo a classe trabalhadora e a intelectualidade educada - foram capazes de se unir e extrair grandes concessões das autoridades comunistas. Wajda não termina o filme com uma nota triunfal, no entanto. Quando Winkiel está saindo do estaleiro, ele encontra um apparatchik local que não parece muito incomodado com o que acabou de acontecer.

Ele explica a Winkiel que o partido governante vai recuperar seu controle sobre a sociedade mais cedo ou mais tarde. Wajda não se enganou: o “carnaval da solidariedade” durou apenas até dezembro de 1981, quando a junta do general Wojciech Jaruzelski o esmagou com punho de ferro.

Antes que isso acontecesse, Wajda foi capaz de exibir o filme para o público polonês, graças a uma ampla distribuição nos cinemas do país. O Homem de Ferro foi visto por 5 milhões de pessoas. Segundo a lei marcial, o estado proibiu qualquer outra exibição. Wajda fez seus dois próximos longas, Danton e Love in Germany, na França e na Alemanha Ocidental, respectivamente.

A classe trabalhadora desaparece

Em Man of Marble, Wajda ecreveu uma história vernácula da classe trabalhadora da Polônia stalinista. Em Homem de Ferro, ele retratou a classe trabalhadora do país como herdeira das tradições de libertação nacional polonesa, que datavam do início do século XIX. Na última parte da trilogia de Wajda, Wałęsa: Man of Hope, a classe trabalhadora lentamente desaparece atrás da imagem de seu líder, Lech Wałęsa, que em agosto de 1980 assumiu o comando da greve no estaleiro de Gdańsk, e mais tarde se tornou o primeiro chefe do Solidariedade.

O quadro narrativo em Wałęsa é construído em torno de uma entrevista com Wałęsa, conduzida pela jornalista italiana Oriana Fallaci. Wałęsa conta a história de sua vida ao responder às perguntas dela, e assistimos a essa história em flashbacks. Wałęsa é vaidoso, pomposo, presunçoso e sua história ignora quase completamente o movimento social por trás dele. Ele constantemente tenta se apresentar como um líder forte que pode ver melhor e mais longe do que os trabalhadores e intelectuais.

O que vemos em flashbacks muitas vezes contradiz as coisas que Wałęsa diz a Fallaci. No entanto, à medida que nos aproximamos do clímax da história - a queda do comunismo em 1989 - a classe trabalhadora cada vez mais desaparece de vista.

É compreensível, de certa forma, que Wajda tivese escolhido retratar a década de 1980 dessa maneira. A lei marcial esmagou o Solidariedade como um movimento social de massa. O solidariedade sobreviveu nesses anos como um símbolo vital e como um grupo de “dissidentes profissionais”, sendo Wałęsa o mais importante deles.

Os dissidentes ainda gozavam de alguma posição política. No entanto, eles não tinham um movimento social por trás deles, o que poderia ter sido capaz de responsabilizar a liderança. Isso se revelou muito importante em 1989, quando as elites do Partido Comunista e do Solidariedade começaram a negociar as condições de um acordo de divisão do poder. Esse acordo converteu a Polônia em uma democracia liberal com uma economia de livre mercado.

Wajda convenientemente termina sua narrativa em novembro de 1989, momento em que Wałęsa discursou em uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos. O diretor apresenta isso como um momento de triunfo final para um líder político que derrotou o sistema comunista e colocou a Polônia em seu lugar natural entre as democracias ocidentais. Teria sido mais problemático retratar a desastrosa presidência de Wałęsa na tela ou documentar o preço que a classe trabalhadora, que construiu o Solidariedade, foi obrigada a pagar na transição para o capitalismo na década de 1990.

Dois Discursos

Ao mesmo tempo que isso acontecia, o cinema polonês abandonava as classes trabalhadoras. A maioria dos filmes produzidos no início dos anos 90 retratou a economia de mercado emergente com entusiasmo, contando as histórias de pessoas que tiveram sucesso no novo ambiente social. Na medida em que os cineastas criticavam o sistema pós-comunista, geralmente era do ponto de vista da intelectualidade polonesa, cujo ethos e posição social haviam sido ameaçados pela nova civilização do dinheiro e do consumismo vulgar.

Dois discursos sobre o Solidariedade se tornaram dominantes na Polônia nas últimas décadas - um liberal e outro conservador. Para os liberais, o Solidariedade foi um passo na direção de uma economia de mercado e democracia parlamentar. Essa visão pode ser observada no filme portmanteau Solidarity, Solidarity (2005), composto por treze segmentos.

Os cineastas foram convidados a fazer um curta-metragem, mostrando o que o Solidariedade significava para eles. Um deles, Juliusz Machulski, entregou um curta chamado “Sushi”, em que um grupo de pessoas abastadas pede um sushi caro para o almoço. Na Polônia dos anos 2000, o sushi adquiriu um status simbólico para a classe média alta urbana como seu alimento preferido.

A mensagem do filme de Machulski era clara: graças ao Solidariedade, a classe média polonesa poderia abraçar os padrões globais de consumo, com um lugar nos fluxos internacionais de capital que naturalmente merecia.

Para os conservadores, por outro lado, o Solidariedade era a voz das classes populares católicas, que derrubaram o regime comunista “ateísta” e rejeitaram a ideologia marxista “estrangeira”. No cinema polonês, o melhor exemplo desse discurso rival é Popiełuszko: Freedom Is Within Us, um tratamento hagiográfico do padre Jerzy Popiełuszko, um dos capelães do Solidariedade, que foi assassinado por agentes da polícia secreta comunista.

Memória e Eperança

Depois de 1989, Wajda sempre fez parte do campo liberal em suas escolhas políticas. No entanto, sua trilogia pode nos levar muito além dos limites do discurso liberal. Na terceira sequência do Homem de Mármore, Agnieszka e sua equipe visitam o museu nacional de Varsóvia. Eles passam por salas onde estão expostas grandes pinturas polonesas do século XIX, retratando os momentos mais icônicos da história do país.

Mas Agnieszka não está interessada nessas fotos. Ela está indo em direção ao armazém empoeirado, onde as estátuas da década de 1950 estão armazenadas - na Polônia da década de 1970, esses monumentos são uma relíquia embaraçosa de um passado igualmente embaraçoso. Agnieszka pega a câmera e aponta para uma figura negligenciada de Birkut. De certa forma, a esquerda polonesa de hoje se encontra na mesma situação de Agnieszka: temos que invadir os armazéns e armários onde está armazenada a história popular de pessoas como Birkut e trazê-la à luz pública.

Nos últimos dez anos, muito trabalho foi feito no campo da história vernacular: na academia, na literatura, nas artes performáticas, no cinema. Em 2018, Jaśmina Wójcik fez um documentário, Sinfonia da Fábrica Ursus, em que buscou ressuscitar a memória da classe trabalhadora de Ursus, uma cidade perto de Varsóvia (e hoje um de seus bairros periféricos). Ursus foi construído em torno de uma fábrica de tratores. A empresa de tratores faliu depois de 1989 e seus prédios foram demolidos.

Na última sequência do filme de Wójcik, os trabalhadores aposentados de Ursus se reúnem em um campo verde onde antes ficava sua fábrica. Eles fazem os mesmos movimentos que faziam na linha de montagem. Sua “dança” consegue “despertar” os antigos tratores, que mais uma vez voltam ao local da fábrica. Esta cena poética e onírica assombra a Varsóvia contemporânea, uma cidade com uma economia baseada em serviços e uma forte identidade de classe média, lembrando-a de seu passado industrial e de classe trabalhadora repudiado.

Mas a força da trilogia “Homem de” é sua capacidade de nos inspirar para algo mais do que simplesmente desenterrar um passado submerso. Homem de Ferro mostra-nos o momento extraordinário em que as autoridades oficiais abdicaram do controle de Gdańsk, uma das maiores cidades da Polônia, deixando-a a cargo de comitês de trabalhadores.

Esse momento utópico termina quando os trabalhadores assinam um acordo com o governo. Por um breve momento, entretanto, podemos ver como uma forma completamente diferente de organizar a vida social e política foi capaz de emergir dentro de um sistema em que um partido deveria deter o monopólio completo do poder.

Claro, seria impossível repetir o que aconteceu então em Gdańsk hoje: a grande classe trabalhadora industrial daquela época desapareceu da Polônia na década de 1990, e não está voltando. Mas Wajda nos mostra que nenhum sistema nunca está totalmente fechado, o que é o ponto mais importante para o futuro. Às vezes, basta uma faísca para nos fornecer uma visão de algo totalmente diferente.

Sobre o autor

Jakub Majmurek é um analista político e crítico de cinema que vive em Varsóvia. Ele faz parte da equipe editorial de Krytyka Polityczna.

Chadwick Boseman (1976-2020)

Mais do que qualquer outro ator de sua época, Chadwick Boseman, que interpretou uma série de heróis negros, de Thurgood Marshall a T’Challa, tinha a capacidade de inspirar seu público e evocar um sentimento de orgulho pelos triunfos e lutas dos negros.

Eileen Jones

Jacobin

Chadwick Boseman comparece à estreia europeia do Pantera Negra em 8 de fevereiro de 2018 em Londres, Inglaterra. (Gareth Cattermole / Getty Images).

Tradução / Quando Chadwick Boseman morreu em 28 de agosto, aos 43 anos, após sofrer de câncer de cólon por quatro anos sem revelar isso publicamente, todos pareciam ter as mesmas reações iniciais: “Ele era tão jovem!” e “é incrível que ele pode fazer aquelas performances enquanto sofria de câncer!”

Desde 2016, Boseman encenou, entre outros papéis, a atuação exigente de Thurgood Marshall em Marshall – Igualdade e Justiça (Marshall – 2017); o papel que o levou ao estrelato internacional, T’Challa, governante da nação africana fictícia de Wakanda em Pantera Negra (Black Panther – 2018); e o protagonista masculino contracenando com Viola Davis na adaptação cinematográfica completa, mas ainda não lançada, da peça ganhadora do Prêmio Pulitzer de August Wilson, Ma Rainey’s Black Bottom. Imediatamente antes disso, ele interpretou Jackie Robinson em 42 – A História de uma lenda (42 – 2013) e James Brown em Get on Up – A história de James Brown (Get on Up – 2014). Ele parecia notavelmente atlético, mesmo para os padrões de Hollywood de definição muscular para estrelas masculinas.

A decisão de Boseman de manter sua doença completamente privada foi ao mesmo tempo corajosa e prática, em uma escalada ao estrelato baseada na interpretação de personagens fictícios heróicos, bem como figuras históricas lendárias que conquistaram coisas extraordinárias em circunstâncias sombrias. Como Spike Lee disse ao escalar Boseman como o admirado líder de esquadrão Stormin’ Norman em seu filme do Vietnã Destacamento Blood (Da 5 Bloods – 2020),

O negócio é o seguinte: Este personagem é heróico; ele é um super-herói. Quem nós escalamos? Escolhemos Jackie Robinson, James Brown, Thurgood Marshall e escalamos T’Challa!

O público nunca suspeitou que ele estava doente até alguns meses antes de sua morte, quando Boseman lançou um vídeo no Instagram e os fãs expressaram sua preocupação com o quão magro ele estava. Muitos perguntaram: “Você está bem?” e outros se perguntaram se sua extrema perda de peso fazia parte de sua preparação para um papel no cinema. Boseman estava defendendo uma causa, o que a legenda que acompanha o vídeo deixava claro:

Estou ouvindo histórias de desespero de pessoas em todo o país, e sabemos que nossas comunidades estão sofrendo mais e precisam urgentemente de ajuda. Comemorando o #JackieRobinsonDay com o lançamento da #Operation42 de Thomas Tull, com uma doação de US$ 4,2 milhões em equipamentos de proteção individual (EPI) para hospitais que atendem as comunidades afro-americanas que foram mais afetadas pela pandemia da Covid-19.

Obrigado, Jackie, por se recusar a aceitar o mundo como ele é, por nos mostrar que podemos fazer a diferença.

Desde a morte de Boseman, os tributos aumentaram. Um número recorde de pessoas recorreram às redes sociais para expressar seu choque e tristeza, incluindo pais com fotos de seus filhos realizando funerais improvisados ​​para o Pantera Negra com seus bonecos de ação da Marvel em círculos solenes ao redor do herói caído.

Os atores Phylicia Rashad, que foi mentor de Boseman na Howard University, e Denzel Washington contaram a história de Washington financiando o “brilhante” Chadwick Boseman, um dos vários alunos de Rashad que foram aceitos no programa de verão da Academia Britânica de Drama, mas não puderam se dar ao luxo de comparecer sem o apoio de Washington. Barack e Michelle Obama e o candidato democrata à presidência Joe Biden elogiaram Boseman.

Ryan Coogler, que dirigiu Boseman em Pantera Negra e não tinha ideia de que ele estava doente, falou sobre como ficou impressionado com a insistência de Boseman de que a língua nativa de T’Challa fosse o xhosa, uma das línguas oficiais da África do Sul. Até mesmo a insistência de Boseman em todos os wakandanos falando com um sotaque baseado na língua xhosa teve uma certa resistência dos executivos da Marvel, que temiam que o público pudesse não aguentar se os sotaques não fossem britânicos ou americanos.

“Eu disse que não seria bom porque, se fizéssemos isso, isso significaria que [os wakandanos] haviam sido colonizados”, disse Boseman.

Mas o tributo mais comovente vem de Kareem Abdul-Jabbar, porque ele cita, de maneira direta, o aspecto mais comovente da vida e morte de Boseman – seu impacto sobre os negros americanos:

Boseman consistentemente interpretou personagens que deram orgulho e esperança à comunidade negra. Saímos de seus filmes com espinhas mais retas e sorrisos mais largos. Olhávamos um para o outro e acenávamos com a cabeça, sentindo que fazíamos parte de algo maior do que nós, algo que remontava gerações a um continente totalmente diferente. Vimos toda uma história de lutas e triunfos de nosso povo brilhando nos olhos de um homem indomável.

Sobre a autora

Eileen Jones é crítica de cinema da Jacobin e autora no Filmsuck, nos Estados Unidos. Ela também apresenta um podcast chamado Filmsuck

30 de agosto de 2020

Lei de Segurança Nacional e a semidemocracia brasileira

Uso de entulho autoritário, que já foi pontual, agora é corriqueiro

Jorge Zaverucha


O cientista político Jorge Zaverucha, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco. Heudes Regis/Folhapress

A Lei de Segurança Nacional (LSN) é a formalização jurídica dos princípios da Doutrina de Segurança Nacional. Doutrina esta que se desenvolveu no âmbito da Guerra Fria e do regime militar (1964-1985). A última versão da LSN é de 14 de dezembro de 1983 (lei nº 7.170), aprovada nos estertores do governo do general Figueiredo. A ótica dessa doutrina era dirigida para o combate do inimigo interno. Com a transição para a democracia, tal lei foi abolida por outros países do Cone Sul —ao contrário do Brasil. E, para piorar, esse "entulho autoritário" vem sendo cada vez mais utilizado.

A LSN, durante o regime autoritário, funcionou como uma espécie de apêndice do Código Penal Militar (CPM) no sentido de que os que a violassem seriam julgados pelo Superior Tribunal Militar. A Constituição de 1988 apresentou a boa novidade de considerar crimes militares somente aqueles que estivessem contemplados pelo CPM. Isso foi um avanço, pois os crimes contra a segurança pública passaram a ser apreciados pela jurisdição ordinária em vez da jurisdição militar.

Na prática, todavia, reina a ambiguidade. O artigo 109, inciso V, da Constituição diz que compete aos juízes federais processar e julgar crimes políticos. Contudo, não há no Brasil legislação sobre crimes políticos. Diante disso, a LSN termina cobrindo os crimes políticos. Em maio de 1993, por exemplo, quatro separatistas foram indiciados pela LSN, sob a alegação de pregarem a criação de um novo país no Sul do Brasil, e deveriam ser julgados por corte militar. Em democracias sólidas, civis não são julgados por tribunais militares.

Por conta de indiciamento de membros do MST na LSN, durante o governo Fernando Henrique Cardoso foram apresentadas no Congresso Nacional quatro propostas de revogação dessa lei. Duas no Senado, por José Eduardo Dutra e Roberto Freire, e duas na Câmara, por José Genoino e Milton Temer. Em seguida, FHC nomeou uma comissão especial encarregada de transformar a LSN em Lei de Defesa do Estado Democrático. O projeto foi concluído, em dezembro de 2000, mas não se transformou em lei.

O fato é que o Estado brasileiro continuou sem possuir uma lei que regule democraticamente o uso dos instrumentos de defesa da ordem. Posteriormente, o então ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, enviou ao Palácio do Planalto anteprojeto de revogação da LSN. Esse impulso renovador foi arrefecido com a saída do mesmo do governo. Enquanto FHC decidia o que fazer com o anteprojeto, a Comissão de Constituição e Justiça, em 20 de novembro de 2002, aprovou por unanimidade projeto dos deputados José Genoino e Milton Temer que revogava a LSN. O projeto, todavia, nunca foi levado ao plenário.

Hoje há um retrocesso no uso da LSN. O que outrora era pontual passou a ser corriqueiro. A começar pelo Supremo Tribunal Federal, que prendeu, com base na LSN, uma ativista e outros cinco membros do grupo "300". Em seguida, o STF usou desse mesmo diploma legal para apurar protestos nos quais os manifestantes pediram a volta do AI-5 e o fechamento do Congresso e desta corte.

O Ministério Público Federal contribuiu para esse retrocesso, pois o esfaqueador de Jair Bolsonaro foi enquadrado na LSN. Já o ministro da Justiça, André Mendonça, solicitou que dois jornalistas, por críticas ao presidente da República, sejam investigados tendo por base a LSN. Afora a ameaça do general da ativa Eduardo Pazuello, de enquadrar na LSN quem vazar informações discutidas no âmbito interno do Ministério da Saúde. Supõe-se que o ministro interino fez uma confusão entre o que é assunto de Estado e o que é questão de segurança nacional.

A situação vigente atesta que várias instituições não estão funcionando a contento em nossa semidemocracia. Por isso mesmo, os conflitos continuam a serem dirimidos, com cada vez mais frequência, por uma lei que é resquício do regime militar. Quando este entulho autoritário será revogado?

Sobre o autor

Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago e professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco

A revolucionária vida de Sylvia Pankhurst

Um novo livro explora a incrível jornada política de Sylvia Pankhurst, desde o movimento pelo sufrágio feminino e a luta pelo socialismo em casa até a batalha contra o império na Irlanda, África e além.

Pauline Bryan



Resenha de "Sylvia Pankhurst: Natural Born Rebel" por Rachel Holmes (Bloomsbury, 2020).

Tradução / Os primeiros livros de Rachel Holme contam a vida de três notáveis mulheres: Eleanor Marx, Saartjie Baartman e o Dr. James Barry. A sua nova biografia, de Sylvia Pankhurst, tem mais de 900 páginas, afinal, uma vida tão grande merece um grande livro, especialmente quando é escrito com compreensão política e uma tremenda simpatia pelas mulheres na política.

Existe uma ligação inicial com um dos livros anteriores de Rachel Holmes quando, aos treze anos de idade, Sylvia foi levada pelo seu pai para se encontrar com Eleanor Marx. A vida de Sylvia lê-se como uma história do final do século XIX e início do século XX. Ela parecia, por vezes, estar envolvida em todos os grandes acontecimentos políticos. Como diz a autora, enquanto o nome Pankhurst estará sempre associado à luta pelo sufrágio feminino, para Sylvia “de longe a maior parte da sua vida foi dedicada à luta contra os males do racismo, do fascismo e do imperialismo”.

A história da vida de Sylvia Pankhurst atravessa o nascimento do Partido Trabalhista na Inglaterra, a criação de novos sindicatos, as lutas na Irlanda (incluindo a greve geral de 1913 e a revolta de 1916), a luta contra a pobreza e a degradação no East End de Londres, a oposição ao fascismo na Europa e na Grã-Bretanha, a fundação do Partido Comunista e a resistência no pós-guerra ao imperialismo britânico. Durante os seus últimos anos, dedicou-se à reconstrução da Etiópia, onde trabalhou até ao último dia da sua vida. Ela também fez tudo isto, claro, como sendo uma das figuras mais proeminentes do movimento do sufrágio feminino.

A casa dos seus pais estava aberta a um grande elenco de protagonistas nestas lutas, desde o nacionalista indiano Dadabhai Naoroji, o primeiro deputado asiático, HG Wells, George Bernard Shaw, Beatrice e Sydney Webb e, mais significativamente, Keir Hardie. E, assim que Sylvia teve a sua própria casa, disponibilizou-a igualmente a qualquer militante que passasse por Londres ou que desejasse planejar a próxima campanha.

O empenho de Sylvia Pankhurst na luta da classe trabalhadora foi central para a sua política. Os fundamentos foram passados pelos seus pais. Como lembra Holmes:

“Sylvia apoiou de todo o coração a causa do sufrágio feminino... Ela acreditava também na necessária combinação entre a luta econômica e política das mulheres e da classe trabalhadora. Sem uma análise de classe, o feminismo era um grupo minoritário de campanha para mulheres ricas e de classe média que queriam igualdade com os seus irmãos e maridos, mas não tinham qualquer interesse em estender os mesmos direitos aos seus choferes ou empregadas domésticas.”

Esta é a chave para compreender Sylvia Pankhurst e o que eventualmente a separou da sua mãe e irmã mais velha. Por mais que Emmeline e Christabel quisessem mais tarde reescrever a história da União Social e Política das Mulheres (WSPU), ela foi inicialmente formada como filiada do Partido Trabalhista Independente (ILP). O seu manifesto comprometia a WSPU a assegurar o direito de voto e a justiça para as mulheres no seio do movimento trabalhista.

Com o tempo, a divisão entre as duas organizações cresceu, de modo que Keir Hardie se tornou um alvo de ataque por parte da liderança da WSPU. Mesmo o compromisso de Hardie com o sufrágio feminino, que nem sempre foi popular entre os membros da ILP, não foi suficiente para o impedir. Apesar disto e da sua ligação de longa data com a família Pankhurst, Hardie foi escolhido para um ataque particular com base no fato de estar perdendo o seu tempo em campanhas para outras reformas. Emmeline disse a Hardie que ele tinha errado nas suas prioridades. “As reformas do emprego – e todas as outras reformas – se tornarão um assunto corrente assim que as mulheres tivessem vencido a votação”. Se ao menos fosse este o caso.

Em um outro lado da vida, Sylvia teria passado o seu tempo como artista. Ela dedicou o pouco tempo que pôde para capturar a beleza das mulheres, muitas vezes em péssimas condições de trabalho. A biografa enviou-me de volta para ver o livro do seu filho Richard de 1979, Sylvia Pankhurst: Artista e Cruzada, uma maravilhosa recordação dos seus gráficos, desenhos e pinturas. Como aluna premiada, ela tinha potencial para uma carreira artística. Mas havia pouco tempo para pintar, exceto quando criava cartazes e painéis. Os seus desenhos, contudo, deram ao movimento sufragistas as suas imagens mais memoráveis.

Com o tempo, as tensões entre Sylvia e a sua mãe e irmã mais velha cresceram. A autora descreve-as como um microcosmo do que estava acontecendo na WSPU. Ao tornar-se mais um exército de guerrilha do que um movimento, tornou-se inevitavelmente mais autocrático. Sylvia não se afastava da militância mas queria uma maior abertura, nunca evitou a prisão e, em determinada altura, manteve o invejável recorde pelo número de vezes em que foi alimentada à força. Mas a sua preocupação era com os militantes que recebiam duras penas quando presos e para quem, ao contrário das sufragistas mais conhecidas, “não havia quaisquer telegramas internacionais”.

Durante as celebrações das sufragistas, há três anos, uma grande parte da história foi considerada higienizada. Foi apresentada, frequentemente, como uma diferença política que acabou por ser resolvida de uma forma sensata. A violência mobilizada contra as mulheres era, por vezes, disfarçada. Keir Hardie observou uma vez que, “a resistência e o heroísmo que estas mulheres demonstram na prisão é igual, se não for superior, a qualquer coisa que tenhamos testemunhado no campo de batalha”.

Mas muitos homens do movimento provavelmente não conseguiam compreender a profundidade da degradação deliberada que se verificava entre as mulheres. A leitura dos detalhes da alimentação por força oral ou nasal é excruciante. Sylvia descreveu-a como uma violação. De fato, em algumas circunstâncias, as sufragistas experimentaram uma “alimentação” vaginal ou anal, que obviamente não tinha nada a ver com a alimentação. É quase horrível demais para ser pensado e, não surpreendentemente, a maioria das mulheres nunca falaria sobre isso.

O tratamento das mulheres pela polícia e pelos políticos quando protestavam era frequentemente cruel. A própria Sylvia quase teve o braço quebrado por Winston Churchill. A sexta-feira negra de 1910 viu um ataque brutal a uma militante da WSPU marchar até o parlamento para chamar a atenção para mais uma traição do governo Liberal. O nível de violência foi sem precedentes e obviamente planejado. Incluiu agressões sexuais e violações organizadas, bem como tentativas de humilhar as mulheres, rasgando as suas roupas. Não podia, mas foi sancionado ao mais alto nível.

Não é surpreendente, portanto, que muitas mulheres militantes tenham se tornado hostis com todos os homens. A sua experiência durante a luta e talvez a experiência nas suas vidas familiares teriam reforçado o seu ódio ao sistema patriarcal. Uma comunidade unida de mulheres que confiaram e se apoiaram mutuamente permitiu o desenvolvimento de amizades profundas, duradouras e apegos emocionais. As relações lésbicas floresceram onde as mulheres foram reconhecidas como parceiras.

Mas havia também um puritanismo moral dentro do movimento, particularmente encorajado por Christabel Pankhurst. Christabel estava estendendo a mão para o “movimento que buscava a pureza moral de classe média”. Sylvia escreveu que havia uma afirmação de que “as mulheres eram mais puritanas, mais nobres e mais corajosas, já os homens… um corpo inferior, com grande necessidade de purificação”. Num panfleto intitulado O Grande Flagelo, Christabel apelou a “votos para as mulheres e castidade para os homens”. Alguns na época afirmaram que Sylvia Pankhurst tinha dado provas da sua colaboração com o patriarcado pela sua relação íntima com Keir Hardie.

Tem sido especulado durante décadas sobre a relação de Sylvia e Keir Hardie. A autora não tem dúvidas sobre as provas de uma relação duradoura e íntima. Sustentou-os a ambos através de um período de pressão inflexível nas suas vidas políticas. Em Cumnock, na Escócia, e Merthyr Tydfil, no País de Gales, Hardie continua a ser um homem de família com mulher e filhos. Na sua morte na Escócia, foi cremado e depois enterrado em Cumnock e, claro, Sylvia não pôde comparecer. Ela soube da sua morte da mesma forma que a sua mãe soube da morte do seu próprio marido – vendo um anúncio no jornal. Como diz Rachel Holmes, “era necessária uma fortaleza terrível para lamentar sozinha”.

O que é menos conhecido é que ela viveu com Silvio Corio durante mais de 35 anos. Trabalharam incansavelmente juntos produzindo jornais e panfletos, organizando reuniões e oferecendo hospitalidade a um fluxo interminável de militantes de todo o mundo. A política italiana de Corio mostrou que ele foi rápido a identificar a ameaça de Mussolini e a sua determinação em expandir o império fascista, a começar pela Etiópia. Seguiram-se décadas de envolvimento com a Etiópia e uma improvável amizade com Haile Selassie, o imperador do país.

Selassie era um monarca hereditário, mas era também um combatente da liberdade. Nelson Mandela escreveu sobre a Etiópia como “o berço do nacionalismo africano” e da influência de Selassie como a força modeladora da história contemporânea etíope, explicando como o exemplo etíope inspirou e contribuiu para a formação do Congresso Nacional Africano. Sylvia tinha seguido a oposição do seu pai à monarquia e explicou a Selassie que o apoiava não porque ele era imperador, mas porque acreditava na causa da Etiópia.

Há muito mais a dizer de Sylvia Pankhurst, é claro. O seu envolvimento nos debates em torno do estabelecimento do Partido Comunista da Grã-Bretanha, o seu tempo nos EUA e as suas ligações com James Connolly e Eva Gore Booth e muitos outros na Irlanda. O seu comentário mais pungente sobre Connolly foi “para mim a morte de James Connolly foi mais dolorosa do que qualquer outra porque a sua rebelião foi mais profunda do que o mero nacionalismo”. E “Connolly era necessário para o pós-construção”. Como em tantos casos, ela provou ter razão.

A sua vida terminou na Etiópia com o seu filho e a sua nora ao seu lado, trabalhando para tornar o mundo consciente dos esforços de reconstrução do país. Foi provavelmente o momento mais confortável da sua vida. Tinha uma casa leve e arejada, com um belo jardim. Era respeitada pelos etíopes e renovou a sua amizade com muitos dos líderes dos países africanos recém-independentes.

Ela já tinha escrito o seu próprio epitáfio: “Quando chegava a vitória de qualquer causa, ela tinha pouco lazer para se regozijar, nenhum para descansar; ela tinha sempre outro objetivo em vista”.

Sobre a autora

Pauline Bryan é membro trabalhista da Câmara dos Lordes. Ela apóia a Campanha pelo Socialismo na Escócia e é membro fundador da Sociedade Keir Hardie.

29 de agosto de 2020

A Grécia está jogando os refugiados ao mar - e a Europa finge que não vê

Relatórios deste mês revelaram como as autoridades gregas lançaram pelo menos 1.072 migrantes ao mar, abandonado-os à própria sorte em jangadas e botes caindo aos pedaços. Esta política assassina é uma violação grosseira do direito internacional - diante de um clima cada vez mais anti-imigrante, os governos europeus permaneceram calados.

Rosa Vasilaki

Jacobin

Requerentes de asilo se recuperam após atravessar o Mar Egeu em um bote da Turquia até a ilha grega de Lesbos. 5 de março de 2020 em Mitilini, Grécia. Milos Bicanski / Getty.

Tradução / Em 14 de agosto, o New York Times publicou um relatório documentando as medidas ilegais tomadas pelo governo grego para afastar refugiados e migrantes de suas fronteiras. Com base em entrevistas em primeira mão com sobreviventes, três observadores independentes, dois pesquisadores acadêmicos e a guarda costeira turca, o artigo afirma que pelo menos 1.072 requerentes de asilo foram jogados de volta para a água, abandonados à própria sorte. Em pelo menos trinta e uma expulsões diferentes, os migrantes foram forçados a irem mar a dentro em jangadas salva-vidas furadas ou deixados à deriva em seus barcos, depois de as autoridades gregas terem desativado os motores.

Essas medidas são ilegais sob o direito internacional. Além do perigo imediato que representam para a vida humana, elas contradizem o princípio de “não repulsão”, que proíbe esses rechaços. Antes mesmo de sua vitória eleitoral em julho de 2019, o partido de direita Nova Democracia já havia prometido uma abordagem “dura” em relação aos migrantes. Porém, diante da cobertura jornalística das recentes expulsões, o governo grego tentou negar qualquer acusação de ilegalidade.

Primeiro foi o ministro de migração e asilo Notis Mitarakis; ele emitiu uma nota declarando que “a Grécia implementa uma política de migração dura, mas justa e que respeita plenamente suas obrigações sob o direito internacional”. Mitarakis questionou a credibilidade da guarda costeira turca como fonte para tais reivindicações, acrescentando que “entrevistas publicadas por refugiados residentes na Turquia não tem evidência de que estejam em risco naquele país, sendo assim, essas pessoas podem muito bem solicitar o status de refugiado por lá”. Nessa mesma linha, falando à CNN em 22 de agosto, o primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis retratou a Grécia como vítima de uma campanha de desinformação — que seria parte dos esforços turcos para “usar a questão da migração para nos atacar”.

Na realidade, as alegações das intercepções e expulsões de migrantes por oficiais gregos são todas muito precisas — e elas têm acontecido há anos. Mas desde os incidentes do último mês de março — quando a Turquia declarou que abriria sua fronteira terrestre com a Grécia e milhares de pessoas ficaram ilhadas entre os dois países — tais práticas ilegais têm se tornado sistemáticas em todas as fronteiras terrestres e marítimas da Grécia. O próprio fato dessas medidas serem possíveis, e na verdade toleradas por outros Estados-membros da União Europeia, é também uma grave ilustração de como a hostilidade aos migrantes foi normalizada, tanto na Grécia quanto no resto do continente.

Rechaço

No direito internacional, o princípio de “não repulsão” garante que ninguém seja devolvido a um país onde enfrentaria tortura, tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante, ou outros danos irreparáveis. Tal princípio é vinculativo para todos países signatários da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, do Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados de 1967, ou da Convenção Contra a Tortura de 1984 — tratados que inclui a Grécia. A “não repulsão” vigora de forma decisiva para todos os migrantes em todos os momentos, independentemente da situação migratória em que se encontrem.

As ações do governo grego estão rompendo com este princípio — e suscitando a condenação da comunidade internacional. Em 10 de março, o New York Times já havia advertido sobre a postura de endurecimento adotada por Atenas. O jornal revelou que o governo grego está detendo os migrantes em um local extrajudicial e secreto antes de expulsá-los para a Turquia, sem seguir o procedimento adequado. Diversos migrantes foram entrevistados: todos eles relataram ter sido capturados, privados dos seus pertences, agredidos e expulsos da Grécia, enquanto seu direito de pedir asilo ou falar com um advogado foi completamente negado.

Em 12 de junho, o ACNUR pediu que Grécia investigasse os rechaços nas fronteiras marítimas e terrestres com a Turquia, assim como a suspeita de devolução de migrantes e requerentes de asilo à Turquia após os mesmos já terem entrado no território ou nas águas territoriais gregas. O ACNUR repetiu o mesmo pedido em 21 de agosto, enfatizando o aumento das alegações de fontes confiáveis que relatam que homens, mulheres e crianças estão sendo expulsos para a Turquia sem acesso a processos relacionados à obtenção de asilo após chegarem na Grécia.

Em 16 de junho, uma investigação da revista alemã Der Spiegel revelou que a guarda costeira grega está interceptando barcos de refugiados, colocando os migrantes em botes salva-vidas, os arrastando em direção à Turquia e os abandonando em alto mar. A investigação relata que homens mascarados, certamente oficiais de controle da fronteira grega, atacam rotineiramente barcos de refugiados no Mar Egeu Oriental, que muitas vezes são rebocados de volta à superfície pela guarda costeira turca. Ainda mais mais perturbador do que as autoridades gregas estarem em clara violação de suas obrigações internacionais com relação aos direitos humanos, de acordo com a investigação da Der Spiegel, é o fato de que estarem utilizando equipamentos destinados a salvar vidas para colocar a dos migrantes em risco.

Metas de deportação

Estes não são apenas incidentes isolados nas fronteiras. Pelo contrário, eles são parte de uma estratégia mais ampla que tira proveito do clima político xenófobo desenfreado na Grécia. Foi esta mesma atmosfera que culminou em ataques violentos aos refugiados nas ilhas gregas e na fronteira greco-turca em Evros, em março deste ano. E a construção, no início de julho, de uma barreira flutuante — essencialmente uma fronteira artificial, com quase 2.700 metros de comprimento e mais de um metro de altura — a nordeste da ilha de Lesbos se enquadra na mesma lógica de intimidação. Pouca consideração é dada ao sofrimento humano, ou mesmo à própria vida.

Esta mesma lógica foi evidenciada durante a crise da COVID-19, uma vez que o governo grego se recusou a evacuar ou mesmo descongestionar os campos de refugiados superlotados. Apesar dos incontáveis apelos de organizações internacionais, grupos de direitos humanos, especialistas médicos e ativistas, da comissão de liberdades civis, justiça e assuntos internos do Parlamento Europeu e da Organização Internacional para as Migrações (OIM), Atenas se recusou a ceder à pressão. Ao invés disso, o governo se gabou dos protestos de requerentes de asilo cujos pedidos foram rejeitados — tratando essas reclamações como um sucesso. Por assim fazer, mandou uma mensagem ao seu eleitorado: as “metas de deportação” estão sendo atingidas e as promessas anti-imigração estão sendo cumpridas.

As “políticas de integração” também foram endurecidas, num esforço cruel para mostrar aos potenciais requerentes de asilo que sua vida na Grécia se tornaria impossível, mesmo que os seus pedidos fossem reconhecidos. A nova lei de asilo grega reduziu o tempo de permanência dos refugiados reconhecidos em campos ou alojamentos gerenciados pela ONU de seis para apenas apenas um mês, após terem garantido proteção estatal. Os auxílios emergenciais também são suspensos após um mês, uma vez que os refugiados têm nominalmente o direito de solicitar o seguro social grego — o que lhes permite, pelo menos em teoria, encontrar trabalho. Na prática, exigências burocráticas absurdas e requisitos contraditórios impostos aos refugiados são projetadas para que seja praticamente impossível que eles consigam alojamento ou trabalho.

Esta abordagem punitiva foi ainda mais bem ilustrada pelas ações do prefeito de Atenas — sobrinho do primeiro-ministro, também filiado ao partido governante Nova Democracia. Ele retirou os bancos da Praça Victoria em uma tentativa de impedir os refugiados de vagarem por lá. A praça pública havia servido como um ponto focal de solidariedade para os refugiados durante a crise de 2015-2016 e era um lugar reconhecido onde os refugiados passaram a recorrer mais uma vez na esperança de encontrar um abrigo temporário após serem expulsos dos campos de refugiados.

Influência da extrema-direita

Esta hostilidade contra migrantes e refugiados não é apenas uma questão de discurso público, ela também se manifesta na seleção do pessoal encarregado da direção dos campos de refugiados em toda a Grécia. Recentemente, foi revelado que o diretor nomeado para o campo de refugiados de Pyrgos, no Peloponeso, teve um livro publicado por uma editora afiliada aos nazistas — com obras de membros proeminentes do partido fascista Aurora Dourada em seu catálogo.

Da mesma forma, um coordenador de educação no campo de refugiados em Malakasa, em resposta aos comentários feitos pelo famoso jogador de basquete grego da NBA, Giannis Antetokounmpo, sobre sua experiência com o racismo na Grécia quando criança e jovem adulto, se referiu a ele como “macaco”, além de outros insultos raciais em um tweet posteriormente deletado (o funcionário em questão havia sido nomeado pela primeira vez em 2017 durante o governo Syriza).

O enorme alvoroço público — unânime entre os grupos ativistas anti-racistas, assim como entre os partidos de centro e de esquerda — forçou o afastamento do coordenador. No entanto, o fato de indivíduos com esse tipo de opinião serem encarregados de cuidar da população vulnerável de refugiados é mais uma indicação da xenofobia que impulsiona a atual abordagem aos migrantes e refugiados na Grécia.

Ataque

Além dos danos causados às pessoas vulneráveis e indefesas, o efeito mais devastador de tais práticas é a normalização da mentalidade de extrema-direita que desumaniza os migrantes e refugiados. A narrativa que enxerga os refugiados e migrantes como uma “arma” usada pela Turquia contra a Grécia tornou-se hegemônica, não apenas dentro do governo de direita, mas também entre a oposição de esquerda. Diante dos incidentes fronteiriços de março, Alexis Tsipras, o líder do Syriza, declarou que “o governo estava certo ao fechar as fronteiras” e que a Grécia está, de fato, “sofrendo uma ameaça geopolítica por parte da Turquia”.

Esta narrativa pode silenciar como “antipatriótica” ou “anti-Grécia” qualquer voz crítica que foque no drama dos novos “condenados da terra”, e não na efervescência nacionalista contra a “ameaça turca”. Pois se a Turquia estiver, de fato, instrumentalizando a população migrante e refugiada em prol dos seus próprios planos geopolíticos na região, o mesmo pode ser dito sobre a Grécia também. Na frente doméstica, essas pessoas se tornaram um bode expiatório conveniente para a incerteza econômica grega e a falta de perspectivas claras; na frente externa, elas são vistas como a artilharia humana da Turquia contra uma suposta integridade cultural grega.

Em meio à contínua disputa greco-turca em torno da soberania econômica no Mar Egeu nos últimos meses, com a atenção voltada para o tratamento da pandemia da COVID-19, a desumanização ideológica de refugiados e migrantes tem aumentado. Durante a crise, eles têm sido retratados como intrusos “ilegais” indignos de assistência e proteção — como se fossem um fardo para a economia grega, mesmo que a assistência aos refugiados seja essencialmente coberta por doadores e fontes externas — e, de forma ainda mais agravada, como uma ameaça à segurança nacional e à própria existência nacional da Grécia.

Resposta europeia

Ylva Johansson, que supervisiona a política de migração na Comissão Europeia, condenou o governo grego, insistindo que “não podemos proteger nossa fronteira europeia violando os valores europeus e violando os direitos das pessoas” e que “o controle das fronteiras pode e deve andar de mãos dadas com o respeito aos direitos fundamentais”. No entanto, a Grécia não está sozinha neste emaranhado — e a UE não é uma mera espectadora. Isto é particularmente claro no caso da agência de fronteira e de guarda costeira, a Frontex, que está ciente de práticas ilegais, incluindo rechaços.

Isto ficou claro na investigação da Der Spiegel sobre as suspeitas de que a Grécia estaria abandonando refugiados no mar, o que conclui que a Frontex pode arcar com parte da responsabilidade, uma vez que se absteve de intervir. A publicação acrescenta que, embora a guarda costeira alemã também opere na área e esteja ciente da situação, ela parece estar tolerando tais práticas. Não esqueçamos que após os acontecimentos na fronteira greco-turca em Evros em março deste ano, a chefe da Comissão Europeia Ursula von der Leyen não hesitou em felicitar a Grécia, chamando o país de “nosso escudo europeu“. Von der Leyen ofereceu ajuda aos gregos para patrulhar essas mesmas fronteiras — aparentemente a qualquer custo.

O que estamos vendo na Grécia é indicativo de uma mudança de atitude mais geral em relação aos refugiados e migrantes, evidente nas políticas da UE que colocam a ênfase no policiamento das fronteiras europeias, e não na integração de migrantes e refugiados. Esta é a mesma lógica que argumenta que um suposto “estilo de vida europeu” estaria sendo ameaçado por intrusos — e que, portanto, precisaria de uma defesa resistente. Com as pessoas mais necessitadas sendo desumanizadas e vistas como uma ameaça, e com as pautas da extrema-direita normalizadas, se ainda existia qualquer vestígio do humanismo europeu, ele está desaparecendo cada dia que passa.

Sobre o autor

Rosa Vasilaki é socióloga e historiadora residente de Atenas. Ela é doutora em História pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris e em Sociologia pela Universidade de Bristol.

28 de agosto de 2020

Levando o terror de Lovecraft ao segregacionismo racial

A nova série da HBO, Lovecraft Country, mescla as histórias de monstros macabros de H. P. Lovecraft com o terror da vida real dos EUA no período das leis de Jim Crow. Mais uma vez, Jordan Peele mostra que o monstro mais assustador é o policial supremacista branco.

Eileen Jones

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Os atores Courtney B. Vance, Jonathan Majors, e Jurnee Smollett em cena de Lovecraft Country. Foto: HBO

Tradução / Lovecraft Country é uma nova série de dez episódios da HBO que faz parte do projeto do diretor estadunidense Jordan Peele de transmitir a difícil experiência dos negros em seu país por meio das convenções do cinema de terror. O filme “Get Out” (“Corra!”, no Brasil), escrito e dirigido por Peele em 2017, foi sua estreia como diretor. Desde a primeira cena desse filme, ele mostrou perfeitamente e de maneira explosiva como esse novo subgênero funcionaria: um homem negro (interpretado por Lakeith Stanfield) está perdido em um bairro branco rico depois do anoitecer e tenta desesperadamente sair de lá antes que a polícia ou alguns paranoicos locais comecem a persegui-lo. Instantes depois, ele começa a ser seguido por alguém em um conversível luxuoso que, dirigindo devagar bem atrás dele, começa a cantar uma canção britânica macabra da época da 2º guerra mundial: “Corra, coelhinho, corra”. Em seguida, o negro é sequestrado pelo motorista desconhecido, envolvendo os espectadores no mistério do desaparecimento do pobre homem.

Desde o filme “Get Out”, o diretor Jordan Peele continuou seu projeto escrevendo e dirigindo o filme “Us” (“Nós”, no Brasil), cuja estreia nos cinemas ocorreu em 2019, e servindo como co-criador e produtor executivo da série da HBO “Lovecraft Country”, que também inicia com a história de um americano negro que desaparece misteriosamente.

Terror negro

Jordan Peele não é o primeiro cineasta negro a explorar a opressão racial por meio do gênero terror, mas o notável sucesso de seus filmes, tanto comercialmente quanto em críticas, rendeu-lhe uma grande notoriedade. Como descreve o documentário “Horror Noire: A History of Black Horror”, lançado em 2019 e dirigido por Xavier Burgin, há toda uma tradição de filmes B desde a era do “blaxploitation” (de “black”, ou “negro”, e “explotaition”, ou “exploração” – movimento cinematográfico norte-americano de protesto) na década de 70 e além.

Exemplos desses filmes de protesto contra o racismo incluem “Blacula, o Vampiro Negro”, de William Crain (1972), que conta a história de um príncipe africano do século XVIII que se torna um vampiro na cidade de Los Angeles contemporânea após seu apelo para abolir o comércio de escravos ser ignorado. Não esqueçamos de “Ganja & Hess”, de Bill Gunn (1973), que apresenta um antropólogo negro que se tornou um vampiro, fazendo uma releitura do desgastado clássico Drácula, fazendo uma reflexão sobre o legado da dominação branca. Ambos os filmes são de uma época em que os filmes de terror afro-americanos estilisticamente criativos e politicamente polêmicos floresciam mesmo em face das restrições dos pequenos orçamentos.

Se a categoria “horror noire” (terror negro) for expandida para incluir filmes de terror dirigidos por diretores brancos, mas compostos por atores negros nos papéis principais, devemos fazer menção ao ator afro-americano Duane Jones, que interpretou o personagem “Doutor Hess Green” no filme “Ganja & Hess”, após atuar como “Ben” no clássico de terror zumbi “A Noite dos Mortos-Vivos”, de 1968. A escolha de Duane Jones, que George A. Romero sempre disse ser daltônico (ou “cego para cores”), foi mudou completamente o impacto social causado pelo filme, tornando-o um marco para a discussão de questões raciais nos EUA. Na época, o longa foi anunciado com cartazes mostrando o personagem de Ben esmurrando um homem branco de meia-idade em uma disputa pela liderança em uma casa de sobreviventes dos zumbis, e finaliza com o assassinato de Ben por uma multidão de brancos liderada por policiais que, supostamente, confundiram-no com um zumbi.

Provavelmente, o terror negro mais conhecido é a franquia “O Mistério de Candyman”, iniciada em 1992. No filme, o ator afrodescendente Tony Todd interpreta o papel de Daniel Robitaille, conhecido como Candyman, que é o filho de um escravo de uma plantação em Nova Orleans que é morto sob tortura após se tornar um respeitado artista e se envolver com uma mulher branca. Anos depois, o fantasma de Candyman aterroriza os habitantes de um bairro pobre de Chicago, chamado Cabrini-Green, que foi construído sobre seu túmulo não identificado. Por conta do longa, o referido bairro de Chicago, que fazia parte de um projeto de construção de moradias populares, tornou-se famoso; entretanto, por conta de sua alta criminalidade, Cabrini-Green começou a ser usado como argumento daqueles que eram contra projetos de habitação pública nos EUA.

Matagal maldito

Em Lovecraft Country, o personagem principal Atticus Freeman (interpretado por Jonathan Majors), um veterano da Guerra da Coréia, retorna a Chicago sabendo que seu pai, Montrose Freeman (Michael Kenneth Williams), desapareceu misteriosamente no caminho para a fictícia cidade de Arkham, no estado de Massachusetts. Essa cidade é também o cenário de “matagal maldito” do conto de terror/ficção científica do escritor Howard Philips Lovecraft, chamada “The Color Out of Space” (“A Cor que Caiu do Céu”, no Brasil), de 1927 – e, portanto, é um lugar a ser evitado por todos. Ainda assim, Atticus sai para procurá-lo, acompanhado por seu tio George Freeman (Courtney B. Vance) e sua amiga de infância Letitia Dandridge (Jurnee Smollett). O grupo tem que dirigir por “Lovecraft Country” – um país fictício baseado nos EUA dos anos 50, quando vigoravam as leis segregacionistas Jim Crow – cheio de variados monstros (inspirados em outros contos de terror de Lovecraft) e de racistas brancos que garantem que lugar nenhum na “pátria” seja seguro para uma pessoa negra.

Ressalte-se que os membros do elenco principal são tão talentosos, carismáticos e bonitos, que conseguem atrair a atenção do espectador em face das fraquezas do primeiro episódio da série.

O tio do personagem principal, George Freeman, escreve green books (ou “livros de capa verde”), que são guias de viagem específicos para viajantes negros, com indicação de hospedarias, estabelecimentos e restaurantes que aceitavam receber amigavelmente cidadãos de pele negra. Assim, através do guia, o grupo viajante vai a uma lanchonete chamada “Libby’s”, considerada um paraíso para clientes afrodescendentes. Porém, para a surpresa deles, o local está sob nova administração e um novo nome, com uma atmosfera nem um pouco convidativa para negros. Letitia, enquanto caminhava para o banheiro, ouve a garçonete dizer ao telefone: “É claro que não os servi, não depois do que você fez com Libby!”

Letitia, Atticus e George são perseguidos por uma horda de yahoos (monstros com forma humanoide), mas conseguem fugir da lanchonete e da cidade, por um triz. Essa cena é até “tranquila” em comparação com a cena posterior, que retrata uma perseguição na “Sundown Town”, que é uma cidade onde negros eram proibidos por lei de serem encontrados após o pôr do sol. Enquanto trafegavam pela cidade sob a luz do sol, um sádico policial branco ordenou que o grupo dirigissem em baixa velocidade, com intuito de fazer com que eles não conseguissem sair da cidade antes do pôr-do-sol, para prendê-los sob o pretexto da lei.

A base da série da HBO é um livro lançado em 2016 também chamado “Lovecraft Country”, de Matt Ruff, que revela o escritor H. P. Lovecraft como um fervoroso supremacista branco, conhecido por seu racismo virulento e seus mundos de terror brilhantemente imaginados. Na realidade, o autor H. P. Lovecraft expressava seu racismo diretamente em muitas de suas próprias histórias. Em um de seus contos mais famosos, “O Chamado de Cthulhu”, de 1928, um investigador busca a origem de uma “estátua grotesca, repulsiva e aparentemente muito antiga” de “um monstro de formato vagamente humano, (…) com a cabeça em forma de polvo, cheia de tentáculos, um corpo escamoso e de aparência elástica, grandes garras nas patas traseiras e dianteiras, e longas asas estreitas nas costas, (…) de cócoras em um pedestal retangular cheio de caracteres indecifráveis”. Em seguida, o investigador localiza um culto de adoração à estátua celebrado por mestiços em um pântano perto de Nova Orleans: “Sem roupas, essas criaturas híbridas zurravam, berravam e se contorciam em torno de uma monstruosa fogueira em forma de anel em cujo centro, incongruente em sua pequenez, jazia a mal talhada estátua”.

Na sequência, a polícia interrompe a cerimônia orgástica, espancando e matando muitos dos “celebrantes mestiços”. Os sobreviventes, levados mais tarde à delegacia para serem interrogados, são descritos assim:

“Todos os prisioneiros mostravam ser homens de um tipo muito baixo, de sangue mestiço e mentalmente aberrantes. Na sua maioria marinheiros, com alguns negros e mulatos, provenientes em grande parte das Índias Ocidentais ou de Cabo Verde, davam um ar de vodu ao culto heterogêneo. Mas antes que muitas perguntas fossem feitas, tornou-se evidente que estavam envolvidos com algo muito mais profundo e mais antigo do que o fetichismo negro (...)”.

Com H. P. Lovecraft, sempre vai ter algo envolvido muito mais profundo e mais antigo que “humanidade”. Depois de assistir apenas o episódio de estreia da série Lovecraft Country, não ficou claro o grau de interesse dos produtores e roteiristas nas entidades ancestrais anteriores à humanidade que sempre são “invocadas” para reaparecer nos dias presentes na ficção do falecido escritor. Mas há um grande interesse em pegar a tendência de Lovecraft de descrever as pessoas não-brancas como aberrações quase tão monstruosas quanto as próprias Abominações de Eldritch e torcê-la, de modo que as monstruosas criaturas humanas sejam agora predadores racistas brancos.

O que pode dar errado?

Esta representação “cartunesca” de monstruosos personagens brancos tem sido uma fonte de algumas reclamações sobre a série Lovecraft Country – que, em geral, está sendo muito bem recebida e elogiada pelo público.

Em um artigo da revista estadunidense The Atlantic, intitulado “What Lovecraft Country Gets Wrong About Racial Horror” (“onde Lovecraft Country peca a respeito do horror do racismo”), Hannah Giorgis argumenta:

“A série passa tanto tempo se concentrando na monstruosidade quase cômica de seus personagens brancos que acaba prejudicando o desenvolvimento de seus protagonistas negros. É explícito que a série considera que o racismo é ruim, até pior do que os shoggoths [monstros] criados por Lovecraft. (...) Entretanto, no meio da série, fico me perguntando quem realmente são Atticus, George e especialmente Letitia (um arquétipo clássico da mulher durona). O que anima os personagens negros de Lovecraft Country quando eles não estão lutando contra racistas, sejam homens ou monstros? (...) Do jeito que está, a série indevidamente simplifica a realidade da supremacia branca na sua alegoria com monstros, enquanto trata o próprio elenco negro menos como personagens humanos e mais como veículos criados somente para uma crítica ao racismo americano”.

Provavelmente é o meu amor pelas convenções dos filmes deste gênero que fazem com que eu não me importe se os personagens racistas brancos são humanamente complexos ou não. Se um xerife está ameaçando enforcar três negros por estarem em sua cidade após o pôr do sol, quem se importa se em outras circunstâncias ele é um homem charmoso, um pai dedicado ou um guitarrista de habilidade incomum? Também não vejo a falta de desenvolvimento dos 3 protagonistas negros alegada no artigo de Giorgis. Na verdade, fiquei fascinada pela insistência da série em mostrar o quanto eles são retraídos, o quanto guardam intensamente seus pensamentos privados e seus segredos – o que parece exprimir bem a realidade daqueles que viveram sob o jugo da supremacismo branca.

No início do primeiro episódio, há uma cena emblemática, quando o ônibus em que Atticus se encontra dá problemas e para de funcionar. Ele e a outra passageira negra com quem ele conversou no fundo do ônibus, uma magra mulher de meia idade, permanecem sentados, enquanto um caminhão chega para levar todos os passageiros de volta à cidade para pegar outro ônibus. Atticus, um rato de biblioteca, retorna à leitura de sua ficção científica – que inclui todo tipo de heroísmo possível na ficção mas que parecia tão improvável para ele até aquele momento, apesar dele ter sempre de vencer níveis extraordinários de perigos em seu dia a dia. Parece evidente que nenhum passageiro negro esperaria ter permissão para viajar tão perto dos passageiros brancos no caminhão que veio ao seu resgate, e que eles teriam de caminhar o resto do caminho, carregando a sua bagagem – que é exatamente o que acontece. A tensão da cena, quando Atticus se depara com o olhar do motorista do caminhão, é a dúvida sobre se haverá mais manifestações de maldade – se Atticus a mulher de meia idade serão agredidos verbalmente apenas por serem negros e olharem para o caminhão que também poderia tê-los transportado para a cidade.

Isso porque, em geral, insulto é somente um das tantas outras injúrias cotidianas que os negros sofrem sob o vigor das leis segregacionistas de Jim Crow. Parar para abastecer o carro é o suficiente para que o trio sofra assédio, enquanto um adolescente branco os insulta em voz alta, imitando um macaco. E enquanto o grupo dirige, passam por um outdoor que apresenta as panquecas da “Aunt Jemima” (“Tia Jemima”), uma marca de alimentos que estampa em seu logotipo a estereotipada imagem da “mammy”, um legado da escravidão representando a mulher escravizada para o trabalho doméstico, servido deliciosos pratos e amamentando as crianças de seus senhores (a Quaker Oats Company, dona da marca Tia Jemima, anunciou que vai substituir o nome e a imagem em um esforço “para avançar em direção à igualdade racial” – apenas em 17 de junho de 2020).

Lovecraft Country não é sutil sobre isso, e de fato enfatiza demasiadamente esses elementos, fazendo com que eles pareçam menos onipresentes na sociedade sob análise, graças à apresentação deles em closes fechados e às explicações, às vezes fatigantes, em meio aos diálogos dos personagens. Portanto, é estranho e desanimador ler artigos sugerindo que essa ênfase seria necessária para explicar artefatos racistas antigos para o público contemporâneo, como a recente publicação da revista Insider. A premissa é que as pessoas não teriam notado o close prolongado no outdoor da Tia Jemima ou entendido seu significado, e o mesmo valeria para os “greens books” e as “Sundown Towns”. A aparição heroica no 1º episódio do jogador de beisebol Jackie Robinson – o lendário nº 42 – também é explicada pela publicação da Insider, assim como também a voz do romancista James Baldwin, extraída de um famoso debate quando este devastou os argumentos em defesa da igualdade e das oportunidades nos EUA que foram apresentados pelo ultra-conservador William Franck Buckley Júnior.

Se os editores da revista Insider quisessem ser realmente educativos, poderiam apontar muitos outros detalhes sobre a série. Por exemplo, a cópia de “O Conde de Monte Cristo”, de Alexander Dumas, encontrada por Atticus no apartamento de seu pai desaparecido, não importante apenas por representar “um homem que foi injustamente preso e que depois foge”. A herança racial de Alexander Dumas também está sendo referenciada: seu pai, um general, nasceu no Haiti, filho de um nobre francês e uma mulher negra escravizada. E o sobrenome de Letitia, “Dandridge”, refere-se às lindas e extremamente talentosas irmãs Dandridge, Vivian e Dorothy, que chegaram à fama se apresentando no “Cotton Club”, no Harlem (NY), e, mais especificamente, a Dorothy Dandridge, que foi a primeira estrela negra no cinema estadunidense, cuja carreira passou por um trágico declínio que pode ser atribuído aos papéis de estereótipos racistas que ela era convidada a desempenhar e ao tormento de seu envolvimento profissional e pessoal com homens brancos abusivos.

Será que precisamos entrar nos antecedentes do nome de Atticus? A série se passa antes de 1960 e, portanto, antes da existência do famoso best-seller lançado em 1960, chamado “To Kill a Mockingbird” (O Sol é para Todos, no Brasil), de Harper Lee, onde seu protagonista, Atticus Finch, é um advogado branco que defende um homem negro injustamente acusado de estupro. Podemos supor que seu nome seria uma homenagem ao poeta romano Atticus, que significa “ateniense” ou “oriundo da Ática”. O nome provavelmente carrega consigo a sugestão de um pouco das tendências estéticas e filosóficas mais cultivadas entre os gregos, que foram admiradas e cooptadas em grande parte pelos conquistadores romanos. Ressalte-se que alguns gregos altamente educados muitas vezes serviam aos romanos como escravos.

Mas, sem dúvidas, sabemos que o nome de Atticus se destina a evocar o livro “To Kill a Mockingbird”, de Harper Lee. Atticus Finch já foi um personagem muito celebrado, baseado no pai do autor, Amasa Lee, que também era advogado, e foi interpretado pelo ator Gregory Peck na adaptação do livro para o cinema em 1962, mas hoje ele é desdenhado como uma fantasia liberal. O personagem de Atticus Finch (assim como o pai de Harper Lee, Amasa Lee) foi revelado como sendo um segregacionista pela próprio Lee em seu segundo romance lançado em 2015, “Go Set a Watchman” (Vai e Põe uma Sentinela, no Brasil), chocando gerações mais velhas de fãs do livro.

É um emaranhado de conotações que parece muito mais rico, complexo e promissor do que sugere a publicação da Insider – e pode ser um bom presságio no sentido de que o resto da série se abstenha de suas piores tendências de transformar o terror empolgante e inteligente em lições sobre a época das leis de Jim Crow para amadores.

Sobre o autor

Eileen Jones é crítica de cinema na Jacobin e autora de Filmsuck, EUA. Ela também hospeda um podcast chamado Filmsuck.

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