30 de maio de 2013

A bomba não venceu o Japão. Stálin o fez.

70 anos de política nuclear foram baseados em uma mentira?

Ward Wilson


As ruínas do Salão de Promoção Industrial da Prefeitura após o bombardeio de Hiroshima, visto aqui em uma foto tirada em setembro de 1945. O salão foi posteriormente preservado como o Memorial da Paz de Hiroshima. IMAGENS AFP/GETTY

Tradução / O emprego de bombas atômicas pelos EUA contra o Japão na 2ª Guerra Mundial há muito tempo é objeto de discussão apaixonada. De início, alguns questionaram a decisão do presidente Truman, de despejar duas bombas atômicas sobre Hiroxima e Nagasaki. Mas em 1965, o historiador Gar Alperovitz argumentou que, por mais que as bombas tenham apressado o fim da guerra, os líderes japoneses já havia decidido render-se com bomba ou sem, e provavelmente o teriam feito antes da invasão norte-americana planejada para 1º de novembro. A bomba portanto não foi fator decisivo e pode ter sido desnecessária. Obviamente, se as bombas não fossem necessárias para vencer a guerra, não há como ‘salvar’ a ideia dos ataques atômicos contra Hiroxima e Nagasaki. Nos 48 anos seguintes, muitos outros embarcaram na discussão: alguns ecoando o argumento de Alperovitz e denunciando os bombardeios; outros a repetir apaixonadamente que os bombardeios teriam sido morais e necessários, e “salvaram vidas”.

Contudo, ambas as escolas de pensamento assumem, isso sim, que os bombardeios de Hiroxima e Nagasaki com armas novas e mais poderosas, forçaram o Japão a render-se logo dia 9 de agosto. Mas não questionam, em primeiro lugar, a utilidade ‘necessária’ das bombas, vale dizer, não perguntam, em essência, se as bombas ‘funcionaram’. A ideia ortodoxa é que, sim, claro que funcionaram. Os EUA bombardearam Hiroxima dia 6 de agosto; e Nagasaki dia 9 de agosto, quando o Japão finalmente sucumbiu à ameaça de novos bombardeios e rendeu-se. Essa narrativa tem encontrado apoio profundo.

Mas sempre subsistem três problemas graves nessa narrativa, os quais, considerados em grupo, minam consideravelmente a credibilidade dessa interpretação tradicional da rendição japonesa.

O timing

O primeiro problema quanto à interpretação oficial é o momento do bombardeio, o timing. E é problema sério. A interpretação tradicional segue um cronograma simples: a Força Aérea dos EUA bombardeou Hiroxima com uma bomba nuclear dia 6 de agosto, três dias depois bombardeou Nagasaki com outra bomba e, dia seguinte, os japoneses sinalizaram a intenção de se renderem. Nem se podem culpar os jornais norte-americanos por terem estampado manchetes como: “Paz no Pacífico: nossa bomba conseguiu!”

Sempre que a história de Hiroxima é repetida na maioria das histórias dos EUA, o dia do bombardeio – 6 de agosto – é o clímax da narrativa. Todos os elementos da história apontam aquele momento: a decisão de construir a bomba; as pesquisas secretas em Los Alamos, o primeiro e impressionante teste; e a culminação em Hiroxima. Há, em outras palavras, toda uma história da bomba. Mas não se pode analisar a decisão do Japão, de render-se, no contexto dessa história da bomba. Apresentar as coisas numa “História da Bomba” é pressupor que a bomba teria sido protagonista.

Do ponto de vista dos japoneses, o dia mais importante naquela segunda semana de agosto não foi 6 de agosto, mas 9 de agosto. Foi quando o Conselho Supremo reuniu-se – pela primeira vez naquela guerra – para discutir a rendição incondicional. O Conselho Supremo era formado dos seis mais altos membros do governo – uma espécie de gabinete interno –, que efetivamente governava o Japão em 1945. Antes daquele dia, os líderes japoneses nunca haviam considerado seriamente a possibilidade de o país render-se. A rendição incondicional (como os Aliados estavam exigindo) era remédio amargo de engolir. EUA e Grã-Bretanha já estavam organizando julgamentos de crimes de guerra na Europa. O que aconteceria se resolvessem pôr o Imperador – divino, para muitos japoneses – no banco dos réus? E se se livrassem do Imperador e mudassem completamente a forma de governo? Mesmo considerando a gravidade da situação no verão de 1945, os líderes do Japão não estavam dispostos a ceder todas as suas tradições, crenças e o próprio modo de vida. Isso, até 9 de agosto.

O que pode ter acontecido, que levou os japoneses a mudar de ideia tão repentinamente e tão completamente? O que os fez sentar e pôr-se a discutir seriamente a rendição, pela primeira vez depois de 14 anos de guerra?

Não pode ter sido Nagasaki – que só foi bombardeada no final da manhã do dia 9 de agosto, depois de o Conselho Supremo já estar reunido para discutir a rendição; e os líderes japoneses só foram informados do bombardeio no início da tarde – depois que o Conselho Supremo já se reunira e todo o gabinete já fora convocado para oficializar a decisão. Se se considera a cronologia real, Nagasaki não pode ter sido fator que motivou os japoneses.

Mas Hiroxima também não é aposta em que se possa jogar. Aconteceu 74 horas – mais de três dias antes da rendição. Que tipo de crise demora três dias para vir à tona? Crise é evento sobre o qual necessariamente pesa o risco de desastre iminente; e o desejo imperioso de agir depressa. Como os líderes japoneses poderiam ter suposto que Hiroxima seria ponto final de uma crise… mas esperar três dias para começar a discutir o problema?

O presidente John F. Kennedy estava sentado na cama lendo os jornais da manhã, mais ou menos às 8h45 do dia 16/10/1962, quando McGeorge Bundy, seu conselheiro de segurança nacional chegou para informá-lo de que a União Soviética estava instalando mísseis nucleares, secretamente, em Cuba. Em duas horas e 45 minutos já estava constituída uma comissão especial, membros escolhidos, trazidos todos para a Casa Branca e sentados à volta da mesa do gabinete para decidir o que fazer.

Dia 25/6/1950, o presidente Harry Truman descansava em Independence, Missouri, quando tropas da Coreia do Norte ultrapassaram o paralelo 38 e invadiram a Coreia do Sul. O secretário de Estado Acheson telefonou a Truman na manhã daquele sábado para informá-lo. Em 24 horas Truman já atravessara metade dos EUA e estava sentado na Blair House (Casa Branca estava em reformas), com os principais assessores militares e políticos, decidindo o que fazer. (…) Todos esses líderes tomaram decisões cruciais em curto período de tempo. Como imaginar que os governantes japoneses agiriam de outro modo? Se Hiroxima realmente enfrentava crise que eventualmente levaria o país a render-se depois de 14 anos de guerra... por que demoraria três dias para sentar-se e começar a discutir o problema?

Alguém poderia dizer que seria uma demora lógica. Talvez tenham demorado a entender a importância do bombardeio. Talvez não soubessem o que seria uma bomba atômica e, quando perceberam e compreenderam o tipo de arma que os estava atacando e os efeitos que teria, decidiram render-se, mas não antes disso. Parece lógico, mas não dá conta dos fatos que se conhecem.

Primeiro, o governador de Hiroxima informou Tóquio no mesmo dia em que Hiroxima foi bombardeada, de que cerca de 1/3 da população fora morta no ataque, e que 2/3 da cidade estava em ruínas. Essa informação não mudou ao longo de vários dias seguintes. Vale dizer que o efeito – o resultado final do bombardeio – já era conhecido desde o começo. Os líderes japoneses sabiam dos efeitos do ataque atômico desde o primeiro dia; mas mesmo assim não agiram na direção da rendição.

Segundo, o relatório preliminar preparado pela equipe do Exército que investigou o bombardeio de Hiroxima, e que deu detalhes do que acontecera lá, só veio à tona dia 10 de agosto. Também chegou a Tóquio depois que já estava tomada a decisão de render-se. Embora dia 8 de agosto já circulassem relatos verbais entre os militares, os detalhes do bombardeio só apareceram dois dias depois. É o mesmo que dizer que a decisão dos japoneses, de render-se, não foi consequência de alguma análise a fundo dos horrores em Hiroxima.

Terceiro, os militares japoneses sabiam, pelo menos em termos gerais, o que eram bombas atômicas. O Japão teve programa de bombas nucleares. Vários militares japoneses registram em diários, desde o primeiro dia, que Hiroxima fora destruída em ataque por bomba atômica. O general Anami Korechika, ministro da Guerra, chegou até a consultar o programa de armas nucleares do Japão, na noite de 7 de agosto. A ideia de que os comandantes japoneses não soubessem das bombas nucleares é absolutamente inverossímil.

Por fim, há mais um fato relacionado ao timing que gera problema grave. Dia 8 de agosto, o ministro do Exterior Togo Shigenori foi ao primeiro-ministro Suzuki Kantaro e pediu que o Conselho Supremo fosse convocado para discutir o bombardeio de Hiroxima, mas os membros não aceitaram a convocação. Assim se vê que não é verdade que a crise ter-se-ia agravado dia a dia, até eclodir dia 9 de agosto.

Qualquer explicação das ações dos governantes e militares japoneses que dependa do “choque” ante o bombardeio de Hiroxima tem de dar conta do fato de que consideraram reunir-se dia 8 de agosto e avaliaram que não era evento importante; e depois, de repente, decidiram discutir a rendição, logo no dia seguinte. Das duas uma: ou sucumbiram todos ao mesmo tipo de esquizofrenia coletiva; ou alguma outra coisa aconteceu, que foi a causa real de os japoneses terem decidido discutir a rendição.

A escala

Historicamente, o uso da Bomba pode parecer o evento isolado mais importante de toda a guerra. Mas, do ponto de vista contemporâneo dos japoneses, não parece muito fácil distinguir o evento “Bomba”, de outros eventos da mesma guerra. Afinal é difícil distinguir uma gota de chuva no meio de um furacão.

No verão de 1945, a Força Aérea dos EUA levava a efeito uma das mais intensas campanhas de destruição de cidades habitadas de toda a história do mundo. 68 cidades japonesas estavam sendo atacadas e todas elas estavam ou parcialmente ou completamente destruídas. Estimadas 1,7 milhão de pessoas tinham ficado sem teto, 300 mil mortos e 750 mil feridos. 66 desses raidsforam executados com bombas convencionais, dois com bombas atômicas. A destruição causada pelos ataques convencionais foi tremenda. Noite após noite, durante todo o verão, cidades eram reduzidas a ruínas fumegantes. No meio dessa cascata de destruição, não é surpresa que um ou outro homem ou mulher nem tenha percebido que algum ataque fosse efeito de algum tipo novo de arma.

Qualquer bombardeiro B-29 que decolasse das Ilhas Mariana poderia transportar – dependendo da localização do alvo e da altitude do ataque – algo entre 7 toneladas e 9 toneladas de bombas.Raid típico reunia 500 bombardeiros. Significa que um raid convencional típico deixava cair 4-5 kilotoneladas de bombas sobre cada cidade. (1 kilotonelada = 1.000 toneladas e é a medida padrão do poder explosivo de uma bomba atômica. A bomba de Hiroxima media 16,5 kilotoneladas; a de Nagasaki, 20 kilotoneladas.) Dado que muitas bombas distribuem uniformemente morte e destruição (o que significa “com mais efetividade”), mas uma bomba só, mais poderosa, concentra a maior parte do próprio poder no centro da explosão – com fragmentos que se espalham –, pode-se dizer que alguns dos raids convencionais aproximaram-se muito da destruição que seria causada pelas duas bombas atômicas.

O primeiro dos raids convencionais, um ataque noturno contra Tóquio em 9-10 de março de 1945, ainda é o ataque único mais destrutivo contra uma cidade em toda a história da guerra. Algo como 41,40 quilômetros quadrados da cidade viraram cinza. Estimados 120 mil japoneses morreram – o maior número de baixas de todos os bombardeios contra cidades, em todos os tempos.

Imagina-se frequentemente, por causa do modo como a história é contada, que o bombardeio de Hiroxima tenha sido muito pior. Imaginamos que o número de mortos tenha sido descomunal. Mas se se comparam os números de mortos em todas as 68 cidades bombardeadas no verão de 1945, descobre-se que Hiroxima aparece em segundo lugar em termos de civis mortos. Se se mapeia o número de quilômetros quadrados destruídos, Hiroxima aparece em quarto lugar. Se se considera a porcentagem da cidade que foi destruída, Hiroxima foi a 17ª. Claramente Hiroxima ficou rigorosamente dentro dos parâmetros de todos os ataques convencionais levados a cabo naquele verão.

De nosso ponto de vista, Hiroxima parece singular, extraordinária. Mas se você se põe na pele dos líderes japoneses nas três semanas que levaram ao ataque contra Hiroxima, o quadro muda completamente. Se você fosse um dos membros chaves do governo japonês no final de julho, início de agosto, sua experiência do bombardeamento da cidade seria alguma coisa como a seguinte:

Na manhã de 17 de julho, você teria sido acordado por notícias de que, durante a noite, quatro cidades haviam sido atacadas: Oita, Hiratsuka, Numazu e Kuwana. Dessas, Oita e Hiratsuka tiveram destruída mais de 50% da área. Kuwana, mais de 75%; e Numazu foi atingida ainda mais severamente, com cerca de 90% da cidade reduzida a montes de escombros.

Três dias depois, você seria acordado para ser informado de que mais três cidades haviam sido atacadas. Mais de 80% de Fukui fora destruída. Uma semana adiante, e mais três cidades teriam sido atacadas durante a noite. Mais dois dias e mais seis cidades atacadas numa só noite, inclusive Ichinomiya, 75% da qual foi arrasado. Dia 2 de agosto, você chegaria ao escritório, para ler notícias de que mais quatro cidades haviam sido atacadas. E os relatórios incluiriam a informação de que Toyama (cidade do tamanho de Chattanooga, Tennessee em 1945), havia sido 99,5% destruída. Praticamente toda a cidade posta abaixo. Mais quatro dias, e mais quatro cidades destruídas. Dia 6 de agosto, só uma cidade foi atacada, Hiroxima; os relatórios falavam de grandes danos e de um novo tipo de bomba. Por que esse ataque do dia 6 de agosto ganharia excepcional destaque, no quadro de vasta destruição de cidades que já acontecia há semanas?

Nas três semanas antes de Hiroxima, 26 cidades foram atacadas pela Força Aérea dos EUA. Dessas, oito – quase 1/3 – foram destruídas tão completamente ou até mais completamente que Hiroxima (em termos de porcentagem de área da cidade destruída). O fato de que o Japão teve 68 cidades destruídas no verão de 1945 é desafio quase insuperável a quem deseje apresentar o bombardeamento de Hiroxima como causa da rendição dos japoneses. A questão é: se se renderam porque uma cidade fora destruída… por que não se renderam quando aquelas outras 66 cidades foram destruídas?

Se os líderes japoneses se fossem render por causa de Hiroxima e Nagasaki, seria de esperar que o bombardeio de outras cidades em geral, que os ataques contra tantas cidades os estivessem pressionando na direção da rendição. Nada parece ter acontecido desse modo.

Dois dias antes de Tóquio ser bombardeada, o ministro de Relações Exteriores aposentado Shidehara Kijuro expressou um sentimento que parecia ser partilhado por todos os oficiais de alta patente naquele momento. Shidehara opinou que “as pessoas gradualmente se habituarão a ser bombardeadas diariamente. Com o tempo, a união entre todos e a coragem se fortalecerão.” Numa carta para um amigo, disse que era importante para os cidadãos suportar os sofrimentos, porque “ainda que centenas de milhares de civis sejam mortos, feridos ou fiquem sem comida, ainda que milhões de prédios seja destruídos ou queimados”, ainda assim a diplomacia precisava de mais tempo. E vale lembrar que Shidehara era ministro moderado.

Nos mais altos níveis de governo – no Conselho Supremo – as atitudes eram aparentemente as mesmas. Embora o Conselho Supremo discutisse a importância de a União Soviética manter-se neutra, não tiveram discussão final sobre o impacto do bombardeio das cidades. Nos registros que foram preservados, não há sequer qualquer referência a cidades bombardeadas em discussões do Conselho Supremo, exceto em duas ocasiões: uma, em maio de 1945, referência de passagem; e outra na noite de 9 de agosto, durante discussão de temas gerais. Se se consideram as provas que há, é difícil convencer-se e acreditar que algum governante japonês entendesse que o bombardeio daquela cidade – comparado a outras questões prementes de uma guerra em andamento – tivesse qualquer significado maior ou excepcional.

O general Anami, dia 13 de agosto, observou que bombas atômicas não eram mais ameaçadoras que bombas incendiárias que o Japão suportara durante meses. Se Hiroxima e Nagasaki não eram piores que bombas incendiárias, e se governantes japoneses não as consideravam importantes a ponto de serem discutidas em profundidade, como é possível que Hiroxima e Nagasaki tivessem forçado os japoneses a se renderem?

Significação estratégica

Se os japoneses não estavam preocupados com cidades bombardeadas em geral, ou com o bombardeio de Hiroxima em particular, o que, afinal os preocupava? A resposta é simples: a União Soviética.

Os japoneses estavam em situação estratégica relativamente difícil. O fim da guerra se aproximava, e estavam perdendo a guerra. As condições eram péssimas. Mas o Exército ainda permanecia forte e bem suprido. Havia cerca de 4 milhões de japoneses em armas, e 1,2 milhão deles protgiam as ilhas japonesas.

Até os governantes mais linha dura no Japão sabiam que a guerra não podia prosseguir. A questão não era continuar ou não, mas como levar a guerra a uma conclusão sob as melhores condições possíveis. Os aliados (EUA, Grã-Bretanha e outros) – a União Soviética, lembrem, ainda estava neutra) exigiam “rendição incondicional”. Os líderes japoneses tinham esperança de que conseguiriam encontrar um modo de evitar tribunais de crimes de guerra, de manter a própria forma de governo e de preservar alguns dos territórios que haviam conquistado: Coreia, Vietnã, Burma, partes da Malásia e Indonésia, grande porção da China oriental e numerosas ilhas no Pacífico.

Os japoneses tinham dois planos para conseguir melhores condições para a rendição; tinham, em outras palavras, duas opções estratégicas. A primeira era diplomática. O Japão havia assinado um pacto de neutralidade por cinco anos com os soviéticos, em abril de 1941, que expiraria em 1946. Um grupo de líderes, a maioria civis, e liderados pelo ministro de Relações Exteriores Togo Shigenori tinha esperanças de convencer Stálin a mediar um acordo entre, por um lado os EUA e seus aliados, e, por outro, o Japão. Ainda que esse plano fosse coisa de longo prazo, refletia pensamento estratégico consistente e sólido. Afinal, interessava à União Soviética garantir que os termos desse eventual acordo não fossem excessivamente favoráveis aos EUA: qualquer ampliação na influência e poder dos EUA na Ásia significaria diminuição na influência e no poder dos soviéticos.

O segundo plano era militar, e a maioria dos proponentes eram também militares, liderados pelo ministro do Exército Anami Korechika. Esses contavam com as forças terrestres do Exército Imperial para infligir baixas pesadas nas forças norte-americanas quando invadissem. Se fossem bem-sucedidas, sentiam os japoneses, talvez conseguissem que os EUA oferecessem melhores termos. Essa estratégia também era movimento de longo prazo. Os EUA pareciam profundamente empenhados em obter rendição incondicional. Mas, dado que, sim, havia preocupação nos círculos militares dos EUA, para os quais as baixas em grandes números seriam fator impeditivo de qualquer invasão, a estratégia do alto comando japonês não era completamente sem sentido.

Um modo de aferir se foi o bombardeio de Hiroxima ou a invasão e declaração de guerra pelos soviéticos, que levou o Japão a render-se, é comparar o modo como esses eventos afetaram a situação estratégica. Depois que Hiroxima foi bombardeada dia 8 de agosto, as duas possibilidades continuavam abertas. Ainda seria possível pedir que Stálin fizesse alguma mediação (e as entradas do dia 8 de agosto no diário de Takagi mostram que pelo menos alguns líderes japoneses ainda cogitavam de tentar envolver Stálin). Também permanecia possível tentar combater uma última e decisiva batalha, para infligir aos EUA número pesado de baixas. A destruição de Hiroxima em nada reduziu a prontidão dos soldados japoneses entrincheirados nas praias das ilhas japonesas. Havia, sim, uma cidade a menos na retaguarda, mas os soldados continuavam em suas trincheiras, ainda tinham munição e aquela força militar não sofrera qualquer redução relevante. O bombardeio e a destruição de Hiroxima em nada alterou as opções estratégicas com as quais o Japão trabalhava.

Muito diferente disso, contudo, foi o impacto da declaração de guerra e a invasão, pelos soviéticos, da Mandchúria e da Ilha Sakhalin. Tão logo a União Soviética declarasse guerra, Stálin deixaria de poder atuar como mediador – passava a ser força beligerante. Equivale dizer que a opção diplomática foi varrida do mapa pelo movimento dos soviéticos. O efeito sobre a situação militar foi igualmente dramático. Muitas das melhores tropas do Japão haviam sido deslocadas para a parte sul das ilhas japonesas. Os militares haviam estimado corretamente que o primeiro alvo de uma invasão norte-americana seria a ilha de Kyushu, no extremo sul. O orgulhoso exército Kwangtung na Mandchúria, por exemplo, não passava de uma sombra do que fora, porque suas melhores unidades haviam sido deslocadas para defender o próprio Japão.

Quando os russos invadiram a Mandchúria, cortaram como manteiga o que um dia fora um exército de elite e muitas unidades russas só pararam de avançar quando ficaram sem combustível. O 16º Exército Soviético – 100 mil soldados – invadiu pela metade sul da Ilha Sakhalin. Tinham ordens para destruir a resistência japonesa ali e depois – dentro de 10 a 14 dias – estar preparados para invadir Hokkaido, a mais setentrional das ilhas japonesas. A força japonesa encarregada de defender Hokkaido, o Exército da 5ª Área, fora reduzida para duas divisões e duas brigadas, e ocupava posições fortificadas no lado leste da ilha. O plano de ataque dos soviéticos mandava invadir Hokkaido pelo oeste.

Não é preciso ser gênio militar para compreender que, por mais que fosse possível combater batalha decisiva com uma grande potência que invadisse de um lado, jamais seria possível combater duas grandes potências que invadissem de duas diferentes direções. A invasão soviética invalidou a estratégia da batalha decisiva dos militares, tão completamente como invalidou também a estratégia diplomática. Num só golpe, evaporaram-se todas as opções com que o Japão vinha trabalhando.

A invasão soviética foi estrategicamente decisiva – derrubou as duas opções do Japão. O ataque a Hiroxima nem tangenciou as estratégias japonesas, que permaneceram, depois do ataque, exatamente como estavam antes dele.

A declaração de guerra pelos soviéticos também alterou o cálculo de quanto tempo ainda havia para manobrar. A inteligência japonesa previa que as forças dos EUA dificilmente invadiriam nos meses seguintes. As forças soviéticas, por sua vez, podiam estar dentro do Japão em coisa de dez dias. A invasão soviética, sim, tornou extremamente urgente a necessidade de decidir sobre o fim da guerra.

E os líderes japoneses já sabiam bem disso já alguns meses. Numa reunião do Conselho Supremo, em junho de 1945, já haviam dito que “a entrada dos soviéticos nessa guerra determinará o destino do Império”. Kawabe, vice-comandante geral do Exército, disse, naquela mesma reunião, que “para a continuação da guerra, é absolutamente imperativo manter a paz nas relações entre O Império e a União Soviética.”

Os líderes do Japão, mostraram consistentemente absoluto desinteresse pelo bombardeio que estava destruindo suas cidades. Ainda que isso possa não ter sido bem verdade quando o bombardeio começou em março de 1945, certamente já era plena verdade quando Hiroxima foi atacada: os estrategistas japoneses viam o bombardeio de cidades como um show colateral sem importância, em termos de impacto estratégico.

Quando Truman, em frase que ganhou fama, ameaçou lançar “uma chuva de ruína” sobre cidades japonesas que não se rendessem, poucos, nos EUA, deram-se conta de que, na verdade, restava praticamente nada por destruir. Dia 7 de agosto, quando Truman lançou sua ameaça, restavam ao Japão apenas 10 cidades com mais de 100 mil habitantes que ainda não haviam sido bombardeadas. Depois que Nagasaki foi atacada dia 9 de agosto, restaram só nove. Quatro delas localizavam-se na ilha de Hokkaido, no extremo norte, difícil de bombardear por causa da distância em relação à Ilha Tinian, onde estava a base dos aviões dos EUA. Kioto, a antiga capital do Japão já havia sido retirada da lista de alvos por Henry Stimson, secretário da Guerra, por sua importância religiosa e simbólica. Assim, apesar do rugir da ameaça de Truman, depois que Nagasaki foi bombardeada só restavam quatro cidades importantes que ainda poderiam servir como alvo de bombas atômicas.

A amplidão da campanha da Força Aérea dos EUA no quesito bombardear cidades pode ser aferida pelo fato de que já haviam bombardeado tantas cidades japonesas, que só restavam ‘cidades’ com 30 mil habitantes, ou menos. No mundo moderno, 30 mil habitantes é população de vilarejo.

Claro que sempre seria possível rebombardear cidades já bombardeadas com bombas incendiárias. Mas essas cidades já estavam 50% destruídas, em média. Ou os EUA poderiam ter usado armas atômicas contra cidades menores. Mas só havia seis dessas (com população entre 30 mil e 100 mil habitantes), que ainda não haviam sido bombardeadas. Dado que o Japão já sofrera danos graves causados por bombas em 68 cidades e não se deixara abater, não surpreende que os líderes japoneses tampouco se tenham deixado impressionar muito pela ameaça de mais bombardeios. E não era ameaça estrategicamente crível.

Uma história conveniente

Apesar de haver essas três objeçõe poderosas, a interpretação tradicional ainda domina o pensamento da maioria das pessoas, principalmente nos EUA. Há forte resistência contra considerar os fatos. Mas, afinal, não se pode dizer que essa resistência seja surpreendente. É preciso não esquecermos o quanto é emocionalmente conveniente a versão tradicional para o ataque a Hiroxima – e para os dois lado, para o Japão, como para os EUA. Há ideias que persistem por serem verdadeiras, mas infelizmente também há ideias que persistem porque são emocionalmente confortadoras, vale dizer, porque suprem alguma carência psicológica importante. Por exemplo, ao final da guerra a interpretação tradicional de Hiroxima ajudou os líderes japoneses a alcançar vários importantes objetivos políticos, tanto no cenário doméstico como no cenário internacional.

Ponham-se no lugar do imperador. Você acaba de conduzir o país através de guerra desastrosa. A economia está em frangalhos. 80% das cidades foram bombardeadas e incendiadas. O Exército sofreu uma cadeia de derrotas terrívies. A Marinha foi dizimada e encurralada nos próprios portos. Há fome generalizada. Em resumo, a guerra foi total catástrofe e, pior que tudo, você vem mentindo ao seu povo, já há tempos, e escondeu a real gravidade da situação. O povo ficará chocado com a notícia de que o país rendeu-se. O que você pode ainda tentar? Admitir que fracassou miseravelmente? Emitir uma declaração de que você erros espetacularmente nas suas previsões, repetiu incontáveis vezes os próprios erros e causou dano monstruoso ao país? Ou você escolhe ‘transferir’ as culpas para um terrível novidade científica, uma bomba que ninguém jamais vira e não poderia prever? Num único passo, a possibilidade de transferir a derrota para o ‘evento’ bomba atômica ‘cancelou’ todos os erros de cálculo e de comando dos japoneses durante a guerra e varreu-os todos para baixo do tapete. A Bomba foi a desculpa perfeita por ter perdido a guerra. Além do mais, cancelava todos os tribunais de guerra e correspondentes investigações. Líderes japoneses encontravam na bomba um modo de afastar deles mesmos todas as culpas e responsabilidades.

Mas atribuir à bomba a derrota do Japão também serviu a três outros específicos objetivos políticos. Primeiro, ajudou a preservar a legitimidade do Imperador. Se a guerra fora perdida, não por erros cometidos, mas por ação de uma arma inimiga milagrosa invencível inesperada, nesse caso o povo japonês poderia continuar a apoiar o imperador-instituição.

Segundo, a tragédia gerada pela bomba atômica mobilizou a simpatia internacional. O Japão fizera guerra de agressão, com brutalidade terrível contra povos conquistados – comportamento que as nações com certeza condenariam. Mas poder apresentar o Japão como nação vítima – nação injustamente bombardeada por aquele terrível, horrível, jamais antes visto instrumento de guerra – ajudaria a apagar alguns dos feitos moralmente repugnantes dos militares japoneses. Desviar todas as atenções para as bombas atômicas ajudou a apresentar o Japão sob luz mais simpática e a esvaziar movimentos que pregassem outras punições por crimes de guerra.

E por fim, a versão de que a Bomba vencera a guerra também servia bem a interesses dos vencedores. A ocupação norte-americana só terminou oficialmente em 1952; nesse período, os EUA puderam mudar, ou reconstruir a sociedade japonesa, na direção que mais lhes interessava. Durante os primeiros dias da ocupação, muitos funcionários japoneses preocupavam-se com a ideia de que os norte-americanos estivessem decididos a abolir a instituição do imperador. E preocupavam-se também com o alto risco de serem acusados de terem cometido crimes de guerra e julgados em tribunais especiais (os tribunais para crimes de guerra que julgavam os governantes alemães já estavam em curso na Europa, quando o Japão rendeu-se). Asada Sadao, historiador japonês disse exatamente isso em várias entrevistas que deu depois da guerra, que “os oficiais japoneses (...) estavam obviamente ansiosos, querendo agradar os interrogadores norte-americanos.” Se os norte-americanos tanto queriam crer que a Bomba venceu a guerra, por que desapontá-los?

Atribuir o fim da guerra à bomba atômica serviu em vários sentidos a interesses do Japão. Mas também serviu a interesses dos EUA. Se a Bomba vencesse a guerra, a percepção do poderio militar dos EUA só aumentaria, a influência diplomática dos EUA na Ásia e em todo o mundo também cresceria, e a segurança dos EUA também sairia fortalecida.

Mas se os japoneses só se tivessem rendido quando os soviéticos declararam guerra e invadiram o país, nesse caso os soviéticos diriam que fizeram em quatro dias o que os EUA não conseguiram fazer em quatro anos; e cresceria a percepção do poder militar soviético; e cresceria a influência militar e a influência diplomática dos soviéticos. Com a Guerra Fria já em curso, declarar que o exército soviético fora o fator decisivo seria garantir ajuda e condições de avançar, ao inimigo.

É estranho, dada a discussão que desenvolvemos aqui, perceber o quanto os ‘fatos’ de Hiroxima e Nagasaki estão no cerne de tudo que pensamos sobre armas nucleares. Os eventos de que aquelas duas cidades foram palco são as pedras basilares de tudo que dizemos sobre a importância de armas nucleares. É crucial, para que as bombas atômicas preservem o status especialíssimo que ainda têm, que não se apliquem a elas as regras normais da guerra e das ameaças de guerra: a ameaça feita por Truman, de que faria chover “uma chuva de ruína” sobre o Japão, foi a primeira ameaça nuclear explícita que a história registrou. E é chave para a aura de ‘poder invencível’ que cerca as bombas atômicas e as torna tão importantes nas relações internacionais.

Mas o que fazer dessas conclusões, se a história oficial de Hiroxima está posta em dúvida? Hiroxima sempre foi o centro, o ponto a partir do qual irradiam todos os demais argumentos e conclusões. A história que nos contamos a nós mesmos, contudo, parece muito apartada dos fatos. O que pensar das armas atômicas, se esse descomunal primeiro ‘feito’ – o milagre da repentina rendição do Japão – é desmascarado e exposto como mito?

29 de maio de 2013

O que se disputa em território sírio neste momento?

Salem Nasser

Folha de S.Paulo

Que a União Europeia tenha levantado o embargo às armas para a Síria é apenas um dos tantos lances que agitaram nos últimos dias um cenário já difícil de entender.

A justificativa, o reconhecimento de uma necessidade de armar os rebeldes, está montada na premissa de que ainda o que acontece na Síria seria a revolta de um povo contra seu governo.

É verdade que grande parcela da população ainda quer a mudança do regime em quem enxerga o grande responsável por seus males, históricos e presentes. Mas também é verdade que há muito o embate na Síria é outro.

Com milhares de estrangeiros financiados, armados e treinados por tantas partes interessadas, travando uma guerra feroz contra o Exército sírio, muitos em nome de um sectarismo perigoso, o fim do embargo talvez não passe de oficialização daquilo que até aqui era oficioso.

Mais importante é outro fato recente: o reconhecimento oficial pelo Hizbullah libanês de sua participação, ao lado do Exército sírio, nas intensas batalhas pelo controle da região de Quseir.

A intensidade da luta, com os dois lados empenhando o que têm de melhor em suas forças, é indicativo da importância da região, entre outras coisas, por servir de principal caminho de passagem de armamento para o Hizbullah ­­que justifica sua participação como necessidade vital, uma luta em que está em jogo sua existência como movimento de resistência a Israel.

E essa percepção, verdadeira, é parte de um cenário em que muitos estão enxergando a oportunidade de, derrubando o regime sírio, ou neutralizando­o, enfraquecer mortalmente o inimigo militar mais imediato de Israel e de colocar em xeque a influência iraniana na região.

As vitórias militares da aliança Síria/Hizbullah, obtidas nos últimos dias, parecem ter afastado deles esses riscos, por enquanto. Elas se deram num momento em que, enquanto se prepara o encontro de Genebra orquestrado por EUA e Rússia, muitos relatos apontam para a existência de um acordo entre as duas potências, do qual apenas a implementação resta a acertar. E esse acordo abarcaria a permanência do presidente Bashar al­Assad, também por enquanto.

Como quer que seja, ainda que equivocados os relatos, parece evidente que os esforços militares e as decisões políticas, tais como a do embargo, são gestos de fortalecimento das posições respectivas às vésperas de uma negociação determinante. Resta saber se se pode apagar o fogo sectário que o fim do embargo ameaça alimentar.

SALEM H. NASSER é professor de direito internacional da Direito GV

19 de maio de 2013

Os motivos do fascínio de Michel Foucault pela doutrina neoliberal

Geoffroy de Lagasnerie
tradução André Telles

Folha de São Paulo

RESUMO A série em que a "Ilustríssima" adianta os principais lançamentos do ano traz capítulo de "A Última Lição de Michel Foucault", em que o sociólogo Geoffroy de Lagasnerie explica o interesse do filósofo francês (1926-84) pela corrente, considerada conservadora. O livro sai em junho pela Três Estrelas.

*

Só é possível compreender o interesse, que às vezes beira o fascínio, de Foucault pelo neoliberalismo com uma condição: romper com o hábito que consiste em vê-lo como uma ideologia conservadora ou reacionária. Com efeito, existe uma tendência mais do que notória na literatura midiática, política ou intelectual a descrever o neoliberalismo sob os traços de uma doutrina que tem como uma de suas características essenciais estar associada à perpetuação da ordem. Tratar-se-ia de uma concepção que se oporia permanentemente à mudança. Que trabalharia, fundamentalmente, para preservar a situação vigente.

Essa posição conservadora do neoliberalismo estaria presente em sua crítica às utopias que clamam pela criação de organizações alternativas à economia de mercado. Ao denunciar o socialismo, o comunismo etc., os adeptos do neoliberalismo anulariam a possibilidade de imaginar outros modelos de sociedade. Eles não incitariam à rebelião, e sim à resignação, à aceitação da situação vigente.

Mais grave, os dogmas neoliberais constituiriam um obstáculo a tudo que pudesse subverter o funcionamento estabelecido da economia de mercado; colocariam em xeque a validade de qualquer medida suscetível de ir, por exemplo, no sentido de uma maior redistribuição.

Em outros termos, o neoliberalismo se colocaria resolutamente do lado do status quo. Encarnaria uma das principais forças de resistência à mudança. Representaria a ideologia da classe dominante, isto é, da classe dos indivíduos que têm interesse na perpetuação da situação tal como vigora.

Essa percepção do neoliberalismo como conservadorismo encontra-se fortemente enraizada nos cérebros. Ela estrutura boa parte da retórica utilizada para desqualificá-lo. E, no entanto, funda-se num desconhecimento profundo dessa tradição. Além disso, mascara amplamente uma compreensão real desta última, neutralizando-a, reduzindo-a ao já conhecido, ao nível da evidência, ao que é fácil combater e denunciar, em vez de enfrentar sua especificidade.

Com efeito, a partir da Segunda Guerra Mundial, e manifestamente ao longo dos anos 1960, uma das preocupações básicas dos neoliberais foi distinguir-se do conservadorismo. Decerto liberais e conservadores armaram alianças no passado, podendo eventualmente defender posições idênticas. Mas seria unicamente porque compartilham inimigos comuns (os socialistas, os adeptos do Estado social). Como escreve Friedrich Hayek, em célebre artigo intitulado "Por que não sou conservador":

"Em uma época em que quase todos os movimentos reputados 'progressistas' recomendam coerções suplementares à liberdade individual, os que prezam a liberdade consagram logicamente suas energias à oposição. Dessa forma, veem-se a maior parte do tempo no mesmo lado daqueles que costumam resistir às mudanças. Hoje, no que se refere à política cotidiana, eles não têm outra escolha senão apoiar os partidos conservadores."

Porém, segundo Hayek (e muitos outros autores defenderão a mesma ideia), a proximidade entre liberais e conservadores para aí. Ela é puramente política --ou melhor, estratégica, conjuntural. Ela se enraíza numa intenção compartilhada de obstruir os movimentos que se definem como progressistas. Trata-se de uma aliança negativa, a qual não deve mascarar as oposições profundas que separam neoliberalismo e conservadorismo.

Essa tomada de posição é de grande importância na história das ideias, pois talvez constitua o elemento essencial da ruptura entre o neoliberalismo e o liberalismo clássico. Ela é a certidão de nascimento do neoliberalismo como doutrina autônoma, singular, irredutível ao que a precedeu.

RADICAL

De fato, os neoliberais não se cansarão de afirmar e denunciar: seus predecessores deixaram-se corromper pelo conservadorismo, aproximando-se demais da direita conservadora, até mesmo da direita reacionária, a ponto de só marginalmente diferenciar-se dela. Satisfeitos porque alguns de seus ideais triunfaram a partir de meados do século 19, eles retraíram-se pouco a pouco. E, por conseguinte, limitaram-se a defender a ordem vigente.

Dessa forma, o liberalismo deixou progressivamente de ser um movimento radical. Transformou-se numa máquina de preservar o status quo. Colocou-se do lado da ordem, do poder estabelecido. Em oposição às doutrinas revolucionárias, às aspirações à mudança, posicionou-se como avalista do realismo, do "racional em política".

Contudo, ao adotar tal postura, os liberais traíram a si próprios. E, sobretudo, enfraqueceram consideravelmente sua posição, deixando escancaradas as portas para o sucesso de seus inimigos socialistas: ao abandonar o terreno da especulação intelectual e da imaginação política, o liberalismo clássico deixou de suscitar entusiasmo, de atuar como proponente dos ideais pelos quais valia a pena lutar.

Justamente por isso, os socialistas tiveram a oportunidade de figurar como os únicos rebeldes, os únicos contestadores autênticos: "Durante aproximadamente meio século, apenas os socialistas propuseram um programa explícito de evolução social, uma certa imagem da sociedade futura pela qual eles trabalhavam e um conjunto de princípios gerais para guiar a reflexão sobre pontos precisos".

Os pensadores neoliberais, portanto, pretendem desfazer essa divisão, esse abismo aberto entre o liberalismo conservador de um lado e o socialismo renovador do outro, o partido do imobilismo e o partido do movimento.

Ao contrário dos liberais clássicos, eles contestam ao socialismo o seu monopólio sobre a produção das utopias políticas e filosóficas. Querem fazer de sua doutrina uma doutrina radical --revolucionária. Nesse sentido, não é fortuito um dos livros mais importantes da tradição neoliberal em sua versão mais extrema, publicado por Robert Nozick em 1974 e que pretendia restituir ao liberalismo seu poder de desestabilização original, intitular-se "Anarquia, Estado e Utopia".

Analogamente, já em 1949 Hayek evocava a necessidade de construir o que ele denominava uma "utopia liberal", ou seja, "um programa que não fosse nem uma simples defesa da ordem estabelecida, nem uma espécie de socialismo diluído, mas um verdadeiro radicalismo liberal que não poupasse as suscetibilidades dos poderosos (inclusive sindicatos), não fosse demasiadamente prático e não se confinasse no que parecesse politicamente possível hoje".

Compreender o neoliberalismo, portanto, não é compreender uma realidade econômica e social que seria dotada de uma materialidade e uma objetividade. É apreender um projeto, uma ambição jamais consumada e que exige ser perpetuamente reativada. É apreender algo da ordem da "aspiração".

Foucault vai inclusive mais longe, definindo o liberalismo como uma espécie de ética, de "reivindicação global, multiforme, ambígua, com enraizamentos à direita e à esquerda". Não é alguma coisa de constituído, que funcionaria como uma alternativa política à qual poderíamos pespegar um programa bem definido ou determinado plano. É algo mais difuso: é um humor, um "lar utópico", um "estilo geral de pensamento, análise e imaginação".

Nota
As notas bibliográficas foram suprimidas.

9 de maio de 2013

Sapo na garganta?

Terry Eagleton


The Devil Within: Possession and Exorcism in the Christian West 
by Brian Levack.
Yale, 346 pp., £25, March 2013, 978 0 300 11472 0


Tradução / A Europa moderna dos primeiros tempos foi farta de casos de possessão demoníaca. Milhares de homens, mulheres e crianças falavam línguas que jamais tinham ouvido, fatiavam a própria carne e berravam blasfêmias e palavrões. Vomitaram vastas quantidades de pregos, parafusos, alfinetes, sangue, penas, pedras, moedas, carvão, excrementos, retalhos de pano, cabelos, e grunhiam e zurravam como animais. Alguns se dobravam em convulsões, flutuavam pela sala ou manifestavam força física sobre-humana. Os olhos arregalavam-se, pernas e braços ficavam rígidos, os rostos torcidos e gargantas e estômagos inchavam monstruosamente. Havia os que entravam em transe, adivinhavam o futuro, revelavam segredos que não se podia entender como chegaram a eles.

No final do século 17, um frade franciscano tirou um enorme sapo da boca de uma mulher endemoniada, e a cabeça de um jovem escocês virou para as costas, circuito bem menos impressionante que aquele, de Linda Blair, em O Exorcista. Uma mulher vomitou uma enguia viva, seguida de quase 11 kg de substâncias variadas, duas vezes por dia, por duas semanas. (Admiravelmente ponderado, Brian Levack, autor de The Devil Within, avisa que “a veracidade desses depoimentos pode ser questionada sob vários aspectos”.) As pernas de algumas mulheres jovens ficaram tão rígidas, que nem o esforço de vários homens fortes conseguiu dobrá-las; outras arqueavam a coluna para trás, como contorcionistas, e ocasionalmente também lambiam o chão, quando arqueadas. Alguns homens e mulheres levitaram (os católicos comprovadamente melhores levitadores que os protestantes); outros invertiam o processo, tornando-se tão pesados que nada conseguia movê-los.

Um endemoniado alemão, no final do século 17 ganhou fama por ter tossido 400 potes de sangue. Dizia-se que alguns dos possuídos passavam meses, até anos, sem comer nem beber. Outros se punham a falar latim, grego ou hebraico, e uma mulher italiana e analfabeta declamou versos da Eneida no original. Dado que eram tidos como anjos caídos, os demônios manifestavam a mais alta inteligência com que Deus adornara os espíritos angélicos e tinham, presumivelmente, boa base dos clássicos. Em países católicos, os caídos nas garras de Satã cuspiam em crucifixos, vomitavam sobre a hóstia da comunhão, perseguiam padres e insultavam a Virgem Maria. Como em A Profecia, reagiam com terror e nojo a objetos sacros. 

Freiras possuídas faziam obscenos gestos sexuais, levantavam as saias e adotavam comportamento que, segundo um comentarista, “teriam deixado atônitos até os frequentadores do mais imundo bordel do país”. Bem menos lascivamente, as endemoniadas jovens da Salem do século 17 faziam discursos tresloucados, metiam-se debaixo das cadeiras e enfiavam-se em tocas.

Acreditava-se que o corpo humano fosse poroso, e que os espíritos maléficos que conseguiam entrar vagavam por ali, à vontade entre as cavidades internas, atacando órgãos indiscriminadamente. O maior número de demônios que jamais invadiram corpo humano, dizia-se, foi 12.652, todos os quais tomaram posse do corpo de uma única jovem alemã de 16 anos, em 1584. Mais frequentemente, o Diabo instalava-se ele mesmo, sem admitir co-habitação com subordinados. Mas só podia fazê-lo com permissão de Deus, o que então levantava a questão, teologicamente embaraçadora, de por que o Altíssimo permitiria que a língua de mulheres jovens e puras inchasse a ponto de tocar o queixo.

Quando múltiplos demônios eram exorcizados, os endemoniados às vezes inventavam nomes para todos eles, em resposta ao questionário do exorcista. Vários endemoniados ingleses no século 16 apresentaram seus ocupantes demoníacos como Pippin, Maho, Philpot, Modu e Soforce, que bem passaria como cartão de visita de empresa de advocacia. Muitos casos de possessão eram fraudes flagrantes. As pessoas fingiam estar tomadas pelo Diabo, para atrair atenção, violar impunemente normas sociais ou morais, receber esmolas de vizinhos solidários ou (porque se acreditava que as bruxas podiam ordenar a possessão de outros) incriminar um inimigo. Mas a fraude não explica todos os casos.

Até o final do século 19, epilepsia, histeria e melancolia (ou depressão clínica) também eram consideradas causas primárias. De fato, a histeria ainda era usada para explicar acordos com Belzebu, no início do século 17. Nossos ancestrais não eram, de modo algum, tão crédulos quanto às vezes imaginamos: inúmeros cristãos devotos duvidavam de tudo aquilo. Thomas Hobbes foi um dos muitos que viram a possessão demoníaca como metáfora de doença mental. E esse parece ter sido também o pensamento de Spinoza. Desde os primeiros anos do Renascimento, inúmeros médicos diziam que havia causas naturais para a possessão demoníaca. Como também alguns de seus predecessores gregos e helênicos.

A crença no poder de espíritos maléficos para infestar o corpo humano nunca foi questão de fé para os católicos, e nenhum católico foi processado por heresia por negar esse poder. Houve os que acreditavam que todas as doenças, físicas ou mentais, eram trabalho do Demo, convicção da qual Jesus pode ter partilhado. Chama a atenção que Jesus jamais tenha instado os doentes a reconciliarem-se com as próprias doenças. Ao contrário: Jesus parece considerar as doenças dos doentes como frutos do mal; e curar os doentes, como parte de sua missão contra os poderes das trevas.

Nas décadas recentes, os (ex-)endemoniados têm sido diagnosticados como portadores de desordem bipolar, esquizofrenia catatônica, epilepsia, atonias musculares, síndrome de Tourette, envenenamento por fungos diversos, anorexia, desordens de personalidade e inúmeras outras moléstias. Levack não se deixa convencer por essas especulações. Em parte, porque nenhuma dessas síndromes dão conta dos sintomas padrão da possessão demoníaca. Epiléticos normalmente não vomitam sapos, e os tomados pela melancolia nem sempre se põem a falar línguas estrangeiras. Mas Levack não se deixa persuadir, também, porque suspeita que os diagnósticos psiquiátricos sejam a-históricos. No seu modo de ver, tornar-se presa do Demônio sempre tem especificidades culturais. Não se pode, diz ele, usar modelos da psicologia contemporânea, para explicar a mentalidade de gente que viveu há vários séculos. Não há dúvidas de que é implausível. Os sofrimentos psicológicos, como os físicos, manifestam um grau de continuidade ao longo das eras. Sadismo, ansiedade e paranoia assumem formas diferentes em diferentes tempos, mas há semelhanças de família suficientes que nos permitem falar de, em linhas gerais, uma mesma condição psicológica.

Todas as doenças, escreve Levack, “são socialmente construídas e não podem ser compreendidas se não são estudadas no contexto cultural em que emergem”. O câncer não é constructo social, no sentido em que o é a melancolia; e um médico alemão pode tratar de um camponês peruano com artrite, mesmo sem saber grande coisa sobre o seu contexto cultural.

Porque capitula ante um culturalismo “de moda”, Levack não esclarece que papel, se houver algum, ele entende que a doença mental desempenhe no comportamento demoníaco. Por outro lado, desconfia muito profundamente das respostas universalistas; considera a definição moderna de histeria jurássica demais para ser útil; e descarta rapidamente demais a noção de histeria de massa – que seria explicação razoável para as várias epidemias de invasão e ocupação diabólica que irrompem de tempos em tempos. Por outro lado, concede que o distúrbio psicológico possa dar conta do negócio em tela.

Seu livro, pois, combina o ceticismo contra as explicações médicas, com a concessão de que a histeria e a possessão demoníaca possam estar intimamente relacionadas.

Mesmo assim, a atenção que Levack dá às diferenças culturais abre caminho para alguns insights fascinantes. Mostra que no Novo Testamento os escravizados pelos demônios só manifestam alguns dos sintomas de seus primeiros sucessores modernos: ali, não alucinam, não falam línguas estrangeiras, nem têm comportamento obsceno. Sitiados pelos espíritos perversos, os católicos tendem a ter comportamento diferente dos protestantes.

Para o protestantismo, credo menos materialista, o Diabo traz ameaça menos física que espiritual. Católicos apanhados nas garras de Satã mostravam horror ante relíquias sagradas e crucifixos; protestantes, podiam ser contidos e controlados com uma única Bíblia. A possessão coletiva era fenômeno predominantemente católico – porque o catolicismo era negócio menos individualista que o protestantismo. O aspecto sexual da possessão – contorcimentos e gemidos durante a penetração – era muito mais pronunciado entre católicos, que entre protestantes. Católicos cuspiam objetos estranhos com muito mais alta frequência. Judeus endemoniados, nos primeiros tempos da Europa moderna, tendiam a ser tomados, mas não por demônios: pelos espíritos dos ancestrais desencarnados.

O tipo de força que assaltava os corpos dependia muito do sistema de crenças: muçulmanos que tivessem experiências de quase-morte dificilmente veriam uma imagem de Cristo caminhando em direção a eles. Os calvinistas, esses, eram quase impenetráveis à penetração demoníaca: apenas 11 miseráveis casos foram registrados na Escócia moderna, e só 25 em círculos britânicos puritanos ou Dissidentes [orig. Dissenting]. Se, como Levack acredita, as bruxas de Salem não foram caso de possessão demoníaca, e nem elas, nem nenhum observador jamais disse que tivessem sido, ficamos só com sete endemoniados na Inglaterra no final do século 17.

Na opinião de Levack, os endemoniados têm de ser compreendidos como atores que atuavam conforme um roteiro codificado em suas culturas religiosas, numa performance teatral que envolvia eles mesmos, o exorcista e, como público, a comunidade. Embora a performance fosse predeterminada, admitia-se o improviso ocasional. As pessoas inflavam seus personagens lendo relatos de possessões alheias – o que implica que a disseminação de textos impressos teve papel vital no negócio todo. Atores e especialistas em treinar atores várias vezes apareceram envolvidos em casos de falsa possessão. Os exorcismos podiam acontecer em plataformas, ante vários milhares de espectadores. Eram exercícios de propaganda, para disseminar a fé, demonstrando o poder da Igreja Católica. (O protestantismo, credo muito menos teatral, rejeitava esses rituais, que considerava supersticiosos.) Os exorcistas seguiam o papel que lhes era prescrito, estimulando o desempenho teatral dos possuídos mediante insistente implantação de sugestões, que acrescentavam, pela repetição, novas linhas no roteiro dos infelizes. Ao fazê-lo, o exorcismo sempre agravava os sintomas que deveria aliviar – o que bem se pode entender como uma espécie de homeopatia espiritual. Só levando a aflição a ponto de crise, espancando a cabeça dos endemoniados indefesos, cuspindo-lhes na cara, apertando os seios da endemoniada ou prendendo-a ao chão, pelo pescoço, com o pé, o exorcista conseguia expelir as potências ocupantes. As quais emergiam do corpo endemoniado sob a forma de sapos ou ouriços, que às vezes conseguiam escapar pelo Portal do Diabo, os genitais femininos. São Martinho de Tours, certa vez, para conseguir exorcizar um homem, passou-lhe o braço pelo pescoço e apertou, obrigando o demônio, assim, a sair pelo ânus. Os exorcismos católicos eram questão de oferta e demanda: o sucesso aumentava a popularidade, o que ajuda a explicar por que havia tantos casos de possessão católica. A cura, em resumo, ajudava a propagar a doença. Houve muitos exorcistas viajantes que cobravam por seus serviços, como, hoje, há espiritualistas itinerantes.

***

Levack estima que pelo menos ¾ dos endemoniados nos primeiros tempos da Europa moderna eram mulheres. A piedade entre as mulheres ganhava nova ênfase, além do culto à santidade da mulher; e a busca de perfeição moral poder ter alimentado a culpa e a ansiedade entre mulheres conscientes de suas fragilidades de espírito. Levack afirma que bom número de freiras no período cultivavam fantasias sexuais que envolviam seus confessores ou, então, tinham casos com eles. Assumia-se, em geral, que o Diabo assaltava com mais veemência os aspirantes à santidade, que os preferia aos moralmente medíocres; portanto, a linha a separar santidade e danação era perigosamente tênue. Pode-se chamar de Síndrome de Graham Greene. Dizia-se que Satã tinha mais poder nos monastérios, onde muitos homens santos e mulheres santas tinham desmaios e transes, visões e alucinações, jejuavam por longos períodos e demonstravam habilidades para falar línguas que não se tinha notícias de que tivessem estudado.

Que pecadores e santos são íntimos é uma venerável crença religiosa. O próprio Diabo, afinal, foi, antes, anjo. Ninguém pode ser condenado ao inferno, se não compreender alguma coisa, pouco, que seja, do divino amor ao qual está dando as costas. Por isso William Golding faz seu malfadado personagem Pincher Martin berrar: “Cago para esse seu paraíso”, enquanto os relâmpagos negros da divindade, com as pinças fechadas de lagosta, operam pacientemente para derrubar as autodefesas da vítima. Adrian Leverkühn, malfadado personagem de Thomas Mann, herói de Doctor Faustus, escolhe estudar teologia na universidade, decidido a conhecer mais de perto a oposição.

Como os santos, os endemoniados pervertidos constituem uma aristocracia espiritual, uma elite privilegiada, tão entendida e au fait, nas questões metafísicas, quanto o mais desapegado dos mártires; por isso, para os Greene e Mauriac e assemelhados, são incomparavelmente superiores às classes médias morais. O Príncipe das Trevas é um gentleman. A equipe do Diabo negocia em termos de Bem e Mal, não se envolve em negócios suburbanos de Certo e Errado.

O pico das possessões demoníacas parece ter acontecido no século 17, mas persistiu ao longo da Idade da Razão. Muita gente ainda acreditava que acontecessem, em lugares onde se acreditava que o Iluminismo já avançara consideravelmente.

Houve outra avançada das incursões diabólicas nos anos 1960s e 1970s, gerada em parte por O Exorcista. Segundo Levack, o interesse pelo fenômeno cresceu muitíssimo nas últimas duas décadas, nas costas das igrejas pentecostais e do pentecostalismo. Num exorcismo pentecostal em Kansas City, um jovem, dado a masturbação compulsiva, autossodomia e bestialismo, com registro de tentativas mal sucedidas de autofelação aceitou renovar seu compromisso com Jesus Cristo. Levack não explica como alguém suficientemente pouco alongado e fora de forma para fracassar na autofelação teria conseguido sucesso na autossodomia. Em 1973, dois padres alemães foram julgados pelo assassinato de uma mulher jovem, que tentaram exorcizar 67 vezes. Em 1999, a Igreja Católica publicou um novo ritual de exorcismo, postulando a necessidade de assistência médica e pastoral à vítima, antes de o divino maquinário ser posto em movimento. Apesar disso, há provas de que alguns raros exorcistas católicos manifestaram desejo de mandar os endemoniados para o psiquiatra. Em 2004, uma universidade romana, com íntimos laços com o Vaticano, começou a oferecer aos sacerdotes um curso de quatro meses de exorcismo; e dioceses católicas em todo o mundo foram convocadas para indicar um exorcista oficial.

Em 2010, aconteceu em Varsóvia o Congresso Nacional de Exorcistas Poloneses, em parte com o objetivo de reagir à imagem hollywoodiana de exorcistas que brandem crucifixos, em batalha contra um Satã monstruosamente priápico, pelo corpo de uma menina da qual jorram obcenidades e vômito colorido. Mas a modernização da indústria da possessão ainda parece ter de andar mais: um dos padres poloneses que participava do Congresso, identificou como endemoniados e possuídos alguns que mostraram dificuldade para entrar numa igreja, que sentiram falta de ar ou desmaiaram, quando afinal conseguiram entrar, ou que, depois de entrarem, jogaram-se dramaticamente ao chão. O fato de que há muitos católicos, hoje, que não conseguem entrar em igrejas, ou que se sentem mal lá dentro, parece ter escapado à sua atenção. Muitos dos casos de possessão nos tempos modernos, como em tempos anteriores, aconteceram em comunidades católicas.

Sabe-se que cerca de meio milhão de pessoas na Itália, hoje, visitam anualmente um exorcista, como outros visitam o dentista ou o oftalmologista. Não se sabe se essa preponderância de papistas explica-se pela superioridade espiritual dos católicos em relação a outras fés, o que seria o maior prêmio que o Diabo poderia desejar, ou se se explica pela inferioridade espiritual dos mesmos, o que os deixa ainda mais expostos ao assalto.

O estudo erudito de Levack, de leitura absorvente, se beneficiaria com um toque de teologia. Ele lembra que o nome “Satã”, em hebreu, significa “adversário” ou “acusador”; e que a Bíblia algumas vezes o vê como o instrumento de um Deus irado. Mas são pontos que exigem alguma elaboração. Satã é a imagem de Yahweh como juiz e patriarca – como um Deus dado a xiliques de prima Donna irascível, que se tem de manter sempre de bom humor. Jesus, ao contrário, é a imagem de Deus como amante, camarada e conselheiro do setor de Defesa. Dado o masoquismo crônico de que padecem, muitos tendem a preferir o Deus prima donna, ao Deus camarada.

Há algo de profundamente gratificante num Deus safado, que aliviará você, com castigos, de sua culpa; e há algo de enervante num Deus que perdoa por definição, porque ele também é carne e sangue. A possessão demoníaca é uma manifestação extrema daquela culpa e ansiedade, ponto no qual, como acontece com o sintoma neurótico, ambas são manifestas e renegadas. Se a culpa brota de dentro, ela também flui de uma força de alienação que também fez ninho ali, e de tal modo que o crime nem é, de fato, culpa sua.

A ideia de que se pode ser tomado por potências de alienação muda o conceito moderno de autonomia. A seu modo, ela reconhece que há um nível no qual homens e mulheres não se pertencem a eles mesmos. Nossa relação conosco mesmos não é nossa relação com uma propriedade. Como o conceito de inconsciente sugere, há forças destrutivas sobre as quais só temos controle precário, e que podem ganhar poder mortal, por elas mesmas. Mas há modos mais produtivos de reconhecer que, num certo nível, não pertencemos a nós mesmos. Mais produtivos que cuspir sapos.  

7 de maio de 2013

1963: Dos Stones ao Dr. Strangelove, um ano de convulsão social e cultural

Apresentando nosso olhar sobre o ano que definiu a era moderna, o veterano escritor relembra a extraordinária colisão de política, cultura e convulsão social que testemunhou quando estudante

Tariq Ali


Imagens icônicas de 1963, incluindo Bob Dylan, Martin Luther King e Dusty Springfield. Foto: The Guardian

Tradução / Será que foi um ano profético? Acho que sim. Não que se tenha pensado nisso na altura ou mesmo alguns anos mais tarde, quando já tudo estava totalmente esquecido na turbulência que tomou conta do mundo. Vou tentar relembrar esse ano, encontrar bem fundo algumas memórias, mesmo algumas impressões com base nas quais poderei reconstruir um passado embaciado sem muitas distorções.

Quando em Outubro de 1963 cheguei a Oxford para estudar, o estilo boémio, para as mulheres, eram casacos de plástico preto ou de couro, e casacos de couro preto ou samarras azul marinho para os homens. Eu fiquei-me pelos tecidos de sarja e um casaco acolchoado, pelo menos durante alguns meses. A crise dos mísseis cubanos tinha impulsionado temporariamente a CND (Campanha para o Desarmamento Nuclear); a Conferência do Partido Trabalhista inicialmente tinha votado pelo desarmamento nuclear unilateral em 1960, mudando de ideias de novo no ano seguinte, fortemente influenciada pela recusa no leito de morte do ícone de esquerda Aneurin Bevan de “ir nu para a câmara da conferência”. Bertrand Russel achou que a CND era muito moderada e demitiu-se para criar a sua prole de ação direta, o Comité dos 100.

A conversa era sobre os Beatles. Aqueles que tinham estado nas salas da assembleia de Carfax naquele fevereiro para os ouvir, ficaram enfeitiçados. Mesmo assim, havia enormes discussões nas festas entre os simpatizantes dos Beatles e aqueles de nós que pensávamos que os Rolling Stones eram simplesmente superiores, sem dúvida mais emocionantes, mais sensuais e tinham melhor música para dançar. Numa dessas festas em que votámos com qual das músicas iríamos dançar, as mulheres, com algumas exceções, preferiram os Quatro Fabulosos. Os “homens de verdade” queriam os Stones.

Bob Dylan também estava na moda. O seu álbum “The Freewheelin’ Bob Dylan” tinha acabado de ser lançado e “Mr. Tambourine Man” serviu de cenário para uma quantidade enorme de trocas de olhares, um prelúdio para a sedução ou não, como acontecia com frequência. A pílula tinha mudado as atitudes e dado à mulher muito mais liberdade, mas a discriminação era terrível. Foi Judith Okely (Jude the Baptist), acabada de sair da Sorbonne, que defendeu a tese sobre o feminismo e apresentou a alguns de nós o trabalho de Simone de Beauvoir.

Nesse mesmo ano, Dylan mudou-se com Suze Rotolo para o Village. Os pais de Suze eram comunistas que tinham sobrevivido a McCarthy. Juntos radicalizaram Dylan. O resultado foi “The Times they are a-Changin’” (1964), que ajudou a impulsionar o movimento dos direitos civis e a radicalizar estudantes que tinham depositado grandes expectativas no Presidente Kennedy, mas em vez disso houve a invasão da Baía dos Porcos e o Vietname, e mais tarde Lyndon B. Johnson. Em agosto, o discurso de Martin Luther King “I had a dream” eletrizou uma geração completa. Quase um século após a guerra civil americana, os afro-americanos estavam a ser linchados, os direitos humanos fundamentais a serem-lhes negados, não poderem registar-se para votar na maioria dos Estados do sul, e foram discriminados no norte. A Ku Klux Klan tinha apoiantes tanto no Partido Republicano como no Democrático. Então decidiram retaliar: pacificamente se pudermos, disse o Dr. King: violentamente se for necessário, respondeu Stockely Carmichael e Malcolm X.

Há uma memória que é bem clara - 22 de novembro de 1963. Estou sentado na sala da TV do União de Oxford a ver as notícias da manhã com um grupo de amigos. De repente, fica tudo sombrio. Vemos as filmagens em silêncio. John F. Kennedy tinha sido assassinado. Nenhum de nós fala. Dirigimo-nos ao bar. A primeira pessoa que encontro é uma jovem bonita de pequena estatura, de rosto pálido e cabelos encaracolados, chamada Judith G, um braço forte do clube comunista. “Kennedy foi assassinado.” Ela olha-me sem qualquer expressão no rosto. “Ah, pois é. Também apanharam Lyndon Johnson?” Sempre foi muito boa a chamar a atenção.

O debate sobre quem ordenou o atentado começou imediatamente no dia a seguir e o problema continua por resolver. Três meses mais tarde, a brutal obra de arte de Stanley Kubrick, Dr. Strangelove chega aos ecrãs, que representa o Pentágono sob o controlo de loucos que preparam um holocausto nuclear, com Peter Sellers no papel de um presidente preocupado. No início desse ano, o economista americano James Galbraith, cujo pai, JK Galbraith, era amigo intimo de Kennedy, tinha-me dito que “em minha casa, Dr. Strangelove sempre foi visto como um documentário.” Alguns dos generais eram extremamente insolentes, alguns simples paranóicos.

Noutros lugares, outros dirigentes desmoronavam. Harold Macmillan (Inglaterra), Konrad Adenauer (Alemanha Ocidental), David Ben-Gurion (Israel) foram todos derrubados por escândalos de um ou outro tipo, geralmente envolvendo sexo e/ou segurança do estado. Neste aspeto as coisas não mudaram muito. Apesar do espírito de 1945, a Inglaterra mantinha uma sociedade de classes fortemente dividida onde a deferência para com os “superiores” dominava a cultura política. O novo dirigente Trabalhista, Harold Wilson, acabou por ser um excelente líder da oposição, ao desafiar, zombar e invalidar as pretensões dos Conservadores em todas as frentes.

No entanto, quem liderava a corrida para a modernidade eram os cineastas, os dramaturgos e os críticos. A televisão, um meio de comunicação relativamente novo, era frequentemente visto em coletividades, pois nem todas as casas possuíam um aparelho. Nos Estados Unidos, um professor de matemática de Harvard, Tom Lehrer, divertia a classe média liberal com as suas canções de zombaria (parou de cantar quando o Nobel da Paz foi atribuído a Kissinger porque “já não se podia criticar”). Foi acompanhado por Lenny Bruce, um dos mais brilhantes e loucos cómicos vistos em palco: a sua corrente de consciência delirantemente incoerente foi considerada subversiva e ele foi preso por “obscenidades” em São Francisco e ficou permanentemente impedido de entrar em Inglaterra após um bem-sucedido show no Clube de Peter Cook em 1962.

Em Inglaterra, apareceu Private Eye e a BBC (na altura ainda não totalmente neutra) passava “That Was the Week that Was” (TW3), vista por 10 milhões de espetadores semanais, com atuações de David Frost e Willie Rushton e Dennis Potter, Peter Cook, Richard Ingrams, John Cleese etc que ajudavam a escrever as piadas.

Foi no Scala em Walton Street em Oxford (mais tarde a Academia em Oxford Street, e Hampstead Everyman) onde se podia ver o mais recente do cinema Europeu. A minha primeira experiência foi educativa. Depois de uma exibição de Andrzej Wajda (Ashes and Diamonds) “Cinzas e Diamantes” no Scala, tocaram God Save the Queen. Sem pensar, levantei-me como costumava fazer em Lahore quando o hino nacional era tocado, para ser cumprimentado, de imediato, por um coro em uníssono da fila de trás: “Senta-te seu fascista!”. O erro nunca mais foi repetido. A nova vaga francesa foi uma revelação. Só os filmes de Jean Luc Goddard atingiram-nos como balas, cuja carga não era maior do que ler um romance de Stendhal – Le Mépris, Bande à part, Une Femme Mariée, Pierrot le Fou, Deux ou Trois Choses, La Chinoise. O fim de semana dominou a década. Não que a indústria cinematográfica britânica estivesse morta. Longe disso. A parceria Joseph Losey/Harold Pinter deram-nos The Servant, uma representação poderosa da repressão de classes e sexual (a homossexualidade só foi legalizada em 1967) com imagens surpreendentes que fizeram do filme um clássico. Billy Liar de John Schlesinger, Tom Jones de Tony Richardson e This Sporting Life de Lindsay Anderson foram todos percursores do que estava para vir.

A primeira peça que vi neste país foi Oh What a Lovely War de Joan Littlewood, uma homenagem comovente à cultura do music hall e Brecht, “cujo trabalho bem conhecíamos desde os anos 1930”, explicou ela. Foi uma desconstrução feroz da primeira guerra mundial e deveria ser exibida outra vez no ano seguinte em alternativa à taxa centenária que vamos ter. O Royal Court era o teatro mais animado de Londres, combinando Beckett e Ionescu e comissionando novas peças sem parar. O Zelador de Pinter estreou nesse ano e Peter Brook, um grande admirador de Littlewood, estava imerso em trabalho que iria desafiar todas as convenções teatrais.

A cultura refletiu uma autoconfiança crescente nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial. Alguns dos meus amigos universitários estavam em revolta contra tudo: professores, exames, instituições, e até a própria vida. Perseguiam o mundo, procurando-o para logo o rejeitarem, largando-o. Muito em breve iriam entrar no seu próprio mundo.

Aquilo para que eu não estava preparado em 1963 era a comida. Era horrível, com a exceção do pequeno almoço. Após a minha primeira semana, aventurei-me a ir ao restaurante indiano local, imaginativamente chamado o Taj Mahal. Terrível. Chamei o gerente e perguntei-lhe porque razão a comida que não nos atrevíamos a dar aos cães estava a ser servida naquele local. Ele ficou muito aborrecido e levou-me até ao escritório. “Vocês acabam de chegar? Então por favor não voltem a pôr aqui os pés. Há uma senhora de Punjab que cozinha comida adequada todos os fins de semana no norte de Oxford. Podem até encomendar com antecedência.” Os meus amigos ingleses ficaram surpreendidos. “Então é assim que isto é?” A curto prazo, isto salvou-me, mas tive de aprender a cozinhar, o que consegui, e nunca me arrependi. Nada sugeria que 30 anos mais tarde este país viria a ser conhecido pelos seus restaurantes e boa comida. Milagres até acontecem.

E uma nota de rodapé. Em 1965, um ano depois da eleição de um governo trabalhista que não cumpriu muitas das suas promessas, Michael Foot gritou-nos em desespero quando denunciamos o seu dirigente, Wilson, por “rastejar até ao Pentágono”. “Idiotas” gritou. “Não entendem que Wilson é o primeiro-ministro mais esquerdista que este país alguma vez irá ter?” O nosso riso satírico enraiveceu-o. Agora já não nos rimos. Passados 50 anos, a globalização provinciou a política e a cultura europeias. A Inglaterra já não tem indústria cinematográfica. Até mesmo Ken Loach recebe a maior parte do seu dinheiro da Europa, que por sua vez se limita a imitar os thrillers de Hollywood e filmes de ação, o seu orgulhoso cinema está efetivamente morto; o seu olhar literário voltado para a lista dos bestsellers de NYC, os seus escritores obcecados em ser traduzidos para o inglês-americano; os seus políticos repetindo os ritmos tweedledum-tweedledee pioneiros em DC. Os filmes mais interessantes estão a ser feitos pelos cineastas do Irão, da Coreia do Sul, de Taiwan e da Tailândia, as políticas mais desafiantes estão na América do Sul, o centro do mercado mundial mudou-se para o leste, a China. Mas não se preocupem. A América do Norte e a Europa ainda dominam a indústria do armamento. Com os drones a dominarem a política e a cultura, porque não seriam também os bestsellers do mercado de armas?

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