7 de maio de 2013

1963: Dos Stones ao Dr. Strangelove, um ano de convulsão social e cultural

Apresentando nosso olhar sobre o ano que definiu a era moderna, o veterano escritor relembra a extraordinária colisão de política, cultura e convulsão social que testemunhou quando estudante

Tariq Ali


Imagens icônicas de 1963, incluindo Bob Dylan, Martin Luther King e Dusty Springfield. Foto: The Guardian

Tradução / Será que foi um ano profético? Acho que sim. Não que se tenha pensado nisso na altura ou mesmo alguns anos mais tarde, quando já tudo estava totalmente esquecido na turbulência que tomou conta do mundo. Vou tentar relembrar esse ano, encontrar bem fundo algumas memórias, mesmo algumas impressões com base nas quais poderei reconstruir um passado embaciado sem muitas distorções.

Quando em Outubro de 1963 cheguei a Oxford para estudar, o estilo boémio, para as mulheres, eram casacos de plástico preto ou de couro, e casacos de couro preto ou samarras azul marinho para os homens. Eu fiquei-me pelos tecidos de sarja e um casaco acolchoado, pelo menos durante alguns meses. A crise dos mísseis cubanos tinha impulsionado temporariamente a CND (Campanha para o Desarmamento Nuclear); a Conferência do Partido Trabalhista inicialmente tinha votado pelo desarmamento nuclear unilateral em 1960, mudando de ideias de novo no ano seguinte, fortemente influenciada pela recusa no leito de morte do ícone de esquerda Aneurin Bevan de “ir nu para a câmara da conferência”. Bertrand Russel achou que a CND era muito moderada e demitiu-se para criar a sua prole de ação direta, o Comité dos 100.

A conversa era sobre os Beatles. Aqueles que tinham estado nas salas da assembleia de Carfax naquele fevereiro para os ouvir, ficaram enfeitiçados. Mesmo assim, havia enormes discussões nas festas entre os simpatizantes dos Beatles e aqueles de nós que pensávamos que os Rolling Stones eram simplesmente superiores, sem dúvida mais emocionantes, mais sensuais e tinham melhor música para dançar. Numa dessas festas em que votámos com qual das músicas iríamos dançar, as mulheres, com algumas exceções, preferiram os Quatro Fabulosos. Os “homens de verdade” queriam os Stones.

Bob Dylan também estava na moda. O seu álbum “The Freewheelin’ Bob Dylan” tinha acabado de ser lançado e “Mr. Tambourine Man” serviu de cenário para uma quantidade enorme de trocas de olhares, um prelúdio para a sedução ou não, como acontecia com frequência. A pílula tinha mudado as atitudes e dado à mulher muito mais liberdade, mas a discriminação era terrível. Foi Judith Okely (Jude the Baptist), acabada de sair da Sorbonne, que defendeu a tese sobre o feminismo e apresentou a alguns de nós o trabalho de Simone de Beauvoir.

Nesse mesmo ano, Dylan mudou-se com Suze Rotolo para o Village. Os pais de Suze eram comunistas que tinham sobrevivido a McCarthy. Juntos radicalizaram Dylan. O resultado foi “The Times they are a-Changin’” (1964), que ajudou a impulsionar o movimento dos direitos civis e a radicalizar estudantes que tinham depositado grandes expectativas no Presidente Kennedy, mas em vez disso houve a invasão da Baía dos Porcos e o Vietname, e mais tarde Lyndon B. Johnson. Em agosto, o discurso de Martin Luther King “I had a dream” eletrizou uma geração completa. Quase um século após a guerra civil americana, os afro-americanos estavam a ser linchados, os direitos humanos fundamentais a serem-lhes negados, não poderem registar-se para votar na maioria dos Estados do sul, e foram discriminados no norte. A Ku Klux Klan tinha apoiantes tanto no Partido Republicano como no Democrático. Então decidiram retaliar: pacificamente se pudermos, disse o Dr. King: violentamente se for necessário, respondeu Stockely Carmichael e Malcolm X.

Há uma memória que é bem clara - 22 de novembro de 1963. Estou sentado na sala da TV do União de Oxford a ver as notícias da manhã com um grupo de amigos. De repente, fica tudo sombrio. Vemos as filmagens em silêncio. John F. Kennedy tinha sido assassinado. Nenhum de nós fala. Dirigimo-nos ao bar. A primeira pessoa que encontro é uma jovem bonita de pequena estatura, de rosto pálido e cabelos encaracolados, chamada Judith G, um braço forte do clube comunista. “Kennedy foi assassinado.” Ela olha-me sem qualquer expressão no rosto. “Ah, pois é. Também apanharam Lyndon Johnson?” Sempre foi muito boa a chamar a atenção.

O debate sobre quem ordenou o atentado começou imediatamente no dia a seguir e o problema continua por resolver. Três meses mais tarde, a brutal obra de arte de Stanley Kubrick, Dr. Strangelove chega aos ecrãs, que representa o Pentágono sob o controlo de loucos que preparam um holocausto nuclear, com Peter Sellers no papel de um presidente preocupado. No início desse ano, o economista americano James Galbraith, cujo pai, JK Galbraith, era amigo intimo de Kennedy, tinha-me dito que “em minha casa, Dr. Strangelove sempre foi visto como um documentário.” Alguns dos generais eram extremamente insolentes, alguns simples paranóicos.

Noutros lugares, outros dirigentes desmoronavam. Harold Macmillan (Inglaterra), Konrad Adenauer (Alemanha Ocidental), David Ben-Gurion (Israel) foram todos derrubados por escândalos de um ou outro tipo, geralmente envolvendo sexo e/ou segurança do estado. Neste aspeto as coisas não mudaram muito. Apesar do espírito de 1945, a Inglaterra mantinha uma sociedade de classes fortemente dividida onde a deferência para com os “superiores” dominava a cultura política. O novo dirigente Trabalhista, Harold Wilson, acabou por ser um excelente líder da oposição, ao desafiar, zombar e invalidar as pretensões dos Conservadores em todas as frentes.

No entanto, quem liderava a corrida para a modernidade eram os cineastas, os dramaturgos e os críticos. A televisão, um meio de comunicação relativamente novo, era frequentemente visto em coletividades, pois nem todas as casas possuíam um aparelho. Nos Estados Unidos, um professor de matemática de Harvard, Tom Lehrer, divertia a classe média liberal com as suas canções de zombaria (parou de cantar quando o Nobel da Paz foi atribuído a Kissinger porque “já não se podia criticar”). Foi acompanhado por Lenny Bruce, um dos mais brilhantes e loucos cómicos vistos em palco: a sua corrente de consciência delirantemente incoerente foi considerada subversiva e ele foi preso por “obscenidades” em São Francisco e ficou permanentemente impedido de entrar em Inglaterra após um bem-sucedido show no Clube de Peter Cook em 1962.

Em Inglaterra, apareceu Private Eye e a BBC (na altura ainda não totalmente neutra) passava “That Was the Week that Was” (TW3), vista por 10 milhões de espetadores semanais, com atuações de David Frost e Willie Rushton e Dennis Potter, Peter Cook, Richard Ingrams, John Cleese etc que ajudavam a escrever as piadas.

Foi no Scala em Walton Street em Oxford (mais tarde a Academia em Oxford Street, e Hampstead Everyman) onde se podia ver o mais recente do cinema Europeu. A minha primeira experiência foi educativa. Depois de uma exibição de Andrzej Wajda (Ashes and Diamonds) “Cinzas e Diamantes” no Scala, tocaram God Save the Queen. Sem pensar, levantei-me como costumava fazer em Lahore quando o hino nacional era tocado, para ser cumprimentado, de imediato, por um coro em uníssono da fila de trás: “Senta-te seu fascista!”. O erro nunca mais foi repetido. A nova vaga francesa foi uma revelação. Só os filmes de Jean Luc Goddard atingiram-nos como balas, cuja carga não era maior do que ler um romance de Stendhal – Le Mépris, Bande à part, Une Femme Mariée, Pierrot le Fou, Deux ou Trois Choses, La Chinoise. O fim de semana dominou a década. Não que a indústria cinematográfica britânica estivesse morta. Longe disso. A parceria Joseph Losey/Harold Pinter deram-nos The Servant, uma representação poderosa da repressão de classes e sexual (a homossexualidade só foi legalizada em 1967) com imagens surpreendentes que fizeram do filme um clássico. Billy Liar de John Schlesinger, Tom Jones de Tony Richardson e This Sporting Life de Lindsay Anderson foram todos percursores do que estava para vir.

A primeira peça que vi neste país foi Oh What a Lovely War de Joan Littlewood, uma homenagem comovente à cultura do music hall e Brecht, “cujo trabalho bem conhecíamos desde os anos 1930”, explicou ela. Foi uma desconstrução feroz da primeira guerra mundial e deveria ser exibida outra vez no ano seguinte em alternativa à taxa centenária que vamos ter. O Royal Court era o teatro mais animado de Londres, combinando Beckett e Ionescu e comissionando novas peças sem parar. O Zelador de Pinter estreou nesse ano e Peter Brook, um grande admirador de Littlewood, estava imerso em trabalho que iria desafiar todas as convenções teatrais.

A cultura refletiu uma autoconfiança crescente nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial. Alguns dos meus amigos universitários estavam em revolta contra tudo: professores, exames, instituições, e até a própria vida. Perseguiam o mundo, procurando-o para logo o rejeitarem, largando-o. Muito em breve iriam entrar no seu próprio mundo.

Aquilo para que eu não estava preparado em 1963 era a comida. Era horrível, com a exceção do pequeno almoço. Após a minha primeira semana, aventurei-me a ir ao restaurante indiano local, imaginativamente chamado o Taj Mahal. Terrível. Chamei o gerente e perguntei-lhe porque razão a comida que não nos atrevíamos a dar aos cães estava a ser servida naquele local. Ele ficou muito aborrecido e levou-me até ao escritório. “Vocês acabam de chegar? Então por favor não voltem a pôr aqui os pés. Há uma senhora de Punjab que cozinha comida adequada todos os fins de semana no norte de Oxford. Podem até encomendar com antecedência.” Os meus amigos ingleses ficaram surpreendidos. “Então é assim que isto é?” A curto prazo, isto salvou-me, mas tive de aprender a cozinhar, o que consegui, e nunca me arrependi. Nada sugeria que 30 anos mais tarde este país viria a ser conhecido pelos seus restaurantes e boa comida. Milagres até acontecem.

E uma nota de rodapé. Em 1965, um ano depois da eleição de um governo trabalhista que não cumpriu muitas das suas promessas, Michael Foot gritou-nos em desespero quando denunciamos o seu dirigente, Wilson, por “rastejar até ao Pentágono”. “Idiotas” gritou. “Não entendem que Wilson é o primeiro-ministro mais esquerdista que este país alguma vez irá ter?” O nosso riso satírico enraiveceu-o. Agora já não nos rimos. Passados 50 anos, a globalização provinciou a política e a cultura europeias. A Inglaterra já não tem indústria cinematográfica. Até mesmo Ken Loach recebe a maior parte do seu dinheiro da Europa, que por sua vez se limita a imitar os thrillers de Hollywood e filmes de ação, o seu orgulhoso cinema está efetivamente morto; o seu olhar literário voltado para a lista dos bestsellers de NYC, os seus escritores obcecados em ser traduzidos para o inglês-americano; os seus políticos repetindo os ritmos tweedledum-tweedledee pioneiros em DC. Os filmes mais interessantes estão a ser feitos pelos cineastas do Irão, da Coreia do Sul, de Taiwan e da Tailândia, as políticas mais desafiantes estão na América do Sul, o centro do mercado mundial mudou-se para o leste, a China. Mas não se preocupem. A América do Norte e a Europa ainda dominam a indústria do armamento. Com os drones a dominarem a política e a cultura, porque não seriam também os bestsellers do mercado de armas?

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