28 de julho de 2016

A arte da política

O debate durante a ascensão de Margaret Thatcher pode nos dizer muito sobre como responder ao nosso momento político.

Asad Haider

Jacobin

A polícia espera para esvaziar um acampamento anti-guerra em Washington, DC, em 1970. Washington Area Spark.

Tradução / O espetáculo de um Partido Democrata em crise em sua Convenção Nacional de 2016 levou Donald Trump a tweetar, em um exemplo habilidoso de apropriação da retórica de esquerda pela direita: “Enquanto Bernie [Sanders] abandonou completamente a luta pelo povo, nós damos boas vindas a todos os eleitores que desejam um futuro melhor para nossos trabalhadores”.

A responsabilidade por este cenário despenca sobre os ombros dos liberais americanos que, escandalizados pelas investidas de Trump, consolidaram a profecia autorrealizável de que um populismo de esquerda nunca seria capaz de derrota-lo. A última areia sob o caixão foi jogada pelo próprio Sanders durante a convenção democrata, quando desafiou seus apoiadores a pavimentar o caminho para um candidato cuja percepção pública é caracterizada pela corrupção, pelo segredo e pelo oportunismo.

Na semana anterior, enquanto aceitava sua nomeação na Convenção Nacional Republicana, Trump declarou a si mesmo como “o candidato da lei e da ordem” e prometeu que “a segurança será restaurada” por sua presidência. No dia seguinte, um angustiado editorial do Washington Post declarou Trump “uma ameaça única à democracia”.

Mas as memórias oficiais são muitas curtas – todo momento na representação da política americana parece como a exceção à regra. Não faz muito tempo que a esquerda liberal dos Estados Unidos declarou George W. Bush como uma inflexão sistêmica no sentido de uma monarquia satânica, inaugurando uma era de vigilância, desigualdade e guerra. Barack Obama, em contraste, ofereceu um momento excepcional de esperança: um líder charmoso, erudito e cosmopolita que tranquilamente nos orienta para esferas ainda mais baixas de vigilância, desigualdade e guerra.

Neste momento a temporada eleitoral confronta a raivosa supervisão militar estratégica de Obama com um bilionário sociopata, desequilibrado e com uma mente perspicaz para o marketing. Nesta eleição às avessas, passou a ser tolice prever qualquer coisa, mas pode ser razoável perguntar algo até aqui ignorado: se oito anos de Bill Clinton nos legou George W. Bush e oito anos de Obama nos deixou Trump, o que oito anos de Hillary Clinton pode oferecer?

Felizmente Trump nos dá uma sugestão. Ao reviver os slogans de Reagan e Nixon, e apresentar sua candidatura como uma reação ao conflito social ao redor da violência policial racista, ele deixou sua linhagem evidente. Enquanto a esquerda americana ainda precisa compreender a sequência que parte de Nixon para Reagan, Bush e Trump, o intelectual britânico nascido na Jamaica, Stuart Hall devotou boa parte de sua carreira lutando para entender a emergência inquietante de Margaret Thatcher no contexto do debate no interior da esquerda britânica, de maneira que antecipa o que agora se passa no contexto dos Estados Unidos.

“O que o país precisa” – falou Thatcher em sua campanha de 1979 – “é menos taxas e mais lei e ordem”. Para Hall, o sucesso deste slogan não era surpreendente. Um ano antes de Thatcher assumir como Primeira Ministra, ele havia se engajado em pesquisar o clima social no qual esta retórica poderia se conectar à mentalidade pública e se concentrara no “pânico moral” ao redor dos crimes de assalto à mão armada.

Primeiro editor da revista New Left Review, Hall foi designado como diretor do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham no final dos anos 1960 por seu fundador, Richard Hoggart. Ao lado de colegas no Centro ele publicou, em 1978, Policing the Crisis: Mugging, the State, and Law and Order.

O estudo estava, inicialmente, centrado nas representações midiáticas do crime, mas este era na verdade um componente de uma análise mais ampla do declínio da socialdemocracia britânica e a queda da fábula do “consenso do pós-guerra”, que prevalecia desde 1945 quando o Partido Trabalhista formou um governo de maioria.

No período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, o Estado assumiu indústrias falidas, empregou uma grande proporção do trabalho, regulou a demanda e o emprego, assumiu a responsabilidade pelo bem-estar social, expandiu a educação para alcançar os requisitos de um desenvolvimento tecnológico, aumentou seu envolvimento na comunicação midiática e trabalhou para harmonizar o comércio internacional.

Apesar do compromisso declarado do Partido Trabalhista com o socialismo, a estabilização da economia no pós-guerra não alterou fundamentalmente o sistema econômico subjacente. Ela foi, ao contrário, capaz de construir um Estado de bem-estar tendo como base um “período de crescimento produtivo sem precedentes” e, como Policing the Crisis explica, a democracia representativa do pós-guerra se desenvolveu na base do “papel protuberante do Estado nos assuntos econômicos”.

Mas a participação britânica no boom econômico do pós-guerra foi feita de fraquezas importantes, causadas pelos efeitos debilitantes do legado imperial e por uma estrutura industrial ruidosa e resistente à inovação. Ela não conseguia se equiparar à afiada competição internacional, às flutuações na taxa de lucro e ao aumento da inflação. Ainda assim, o Partido Trabalhista pintou uma imagem de si no beco, afirmando a “ausência de estratégia alternativa para administrar a crise econômica”.

As condições econômicas desfavoráveis não eram apenas obstáculo ao desafio da preservação da ordem existente. O Estado precisaria confrontar, ainda, “uma forte, ainda que frequentemente corporativa, classe trabalhadora com expectativas materiais crescentes, tradições fortes de barganha, resistência e luta”. Consequentemente, “cada crise do sistema adquiriu a forma aberta de uma crise de administração estatal”. Seguindo as pistas de Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas, Hall e seus colegas chamaram esta situação por “crise de hegemonia”.

O Estado passou a cumprir mais e mais o papel de atacar as “barganhas” da classe trabalhadora, engana-la por meio da mediação do movimento de trabalhadores organizados e cujas instituições haviam “sido progressivamente incorporadas na administração da economia”. Neste contexto, no qual a classe trabalhadora parecia se confrontar com o Estado diretamente, preservar o consenso como meio primordial da regra democrática ao invés da coerção, tornou-se um problema central.

A sociedade de consumo havia apresentado fontes potenciais para uma solução: o uso crescente das mídias de massa pelo Estado dirigido para moldar e transformar um “consenso em valores”. Mas durante a crise de hegemonia, o consenso não pode mais ser garantido; a crise se constitui “um momento de ruptura profunda na vida política e econômica de uma sociedade, um acúmulo de contradições (...) quando toda a base da liderança política e autoridade cultural se expõe e é contestada”.

E esta era a crise que se desdobrava. Ao final dos anos 1960, uma variedade de pânicos morais sobre a cultura jovem e a imigração estouravam na superfície da educada sociedade britânica. Um conjunto amplo de fenômenos, do protesto e contracultura à permissividade e crime, passou a se apresentar como parte de uma única e surpreendente ameaça às fundações da ordem social. Ao mesmo tempo, a economia presenciou “o retorno ao estágio histórico da luta de classes, de maneira visível, aberta e em escalada”:

“Uma sociedade que sai dos trilhos por meio da ‘permissividade’, ‘participação’ e ‘protesto’ no sentido ‘da sociedade alternativa’ e ‘anarquia’ é uma coisa. Outra, completamente diferente, é o momento em que a classe trabalhadora mais uma vez assume a ofensiva em um clima de militância ativa (...). A tentativa de um governo socialdemocrata administrar o Estado por meio de uma versão organizada do consenso finalmente se exauriu e entrou em colapso entre 1964 e 1970, então gradualmente a luta de classes se tornou mais e mais aberta, assumindo uma presença manifesta. Este desenvolvimento é eletrizante”.

As políticas de renda nos anos 1970, que tentaram administrar a inflação ao trocar pequenos aumentos salariais por um constrangimento no aumento dos preços, representaram uma tentativa de “exercer e reforçar as restrições sobre os salários e sobre a classe trabalhadora por meio do consenso”, ao “ganhar os sindicatos para uma colaboração plena com o Estado no processo de disciplina da classe trabalhadora”.

Mas este projeto falhou, em parte pela rebelião contínua das bases e “a mudança massiva do lugar do conflito de classe na indústria das disputas administração-sindicato para aquelas administração-chão de fábrica”. A militância de base e as organizações de chão de fábrica deslocaram a mesa de negociação: “condições locais puderam ser exploradas e vantagens locais aproveitadas em larga escala no ambiente industrial, especialmente na engenharia onde, como consequência das complexas divisões do trabalho, a paralização de dez trabalhadores em uma seção era capaz de travar toda a linha de montagem”.

A ideologia conservadora cumpriu um papel importante na resposta do Estado para esta ameaça. Uma “transição do controle apertado ao final dos anos 1960 para um fechamento plenamente repressivo nos anos 1970” abriu o caminho para “a sociedade da lei-e-ordem”. O pânico moral e a instabilidade econômica legitimaram o esforço do Estado em usar a repressão como forma de administrar a crise, uma “rotina do controle” que fez o policiamento parecer “normal, natural, além de correto e inevitável”.

Esta campanha possuía uma vantagem não evidente: ela ofereceu legitimidade para a iniciativa estatal “em disciplinar, restringir e coagir, para trazer – no enquadramento da lei e ordem – não apenas ativistas, criminosos, viciados em drogas e posseiros, mas mesmo as sólidas fileiras da classe trabalhadora. Esta classe recalcitrante – ou ao menos suas minorias mais desordeiras – também precisava ser conduzida à ordem”.

Em 1971, descompromissados com relação ao trabalho organizado, os conservadores foram capazes de atacar o poder dos sindicatos com o Ato de Relações Industriais. Eles apelaram para a “unidade nacional” e evocaram a “restauração da autoridade do governo”. Mesmo quando o Ato era repelido sob o governo do Partido Trabalhista que se seguiu, com seus “Contratos Sociais” centristas, seu efeito já era evidente no horizonte da classe trabalhadora. A crise representara uma mudança estrutural profunda no caráter do Estado capitalista do pós-guerra.

Todos estes elementos estavam sob consideração no Centro em Birmingham, assim como a ascensão de sentimentos racistas anti-imigrantes anunciados por parlamentares como Enoch Powell e os neofascistas do Fronte Nacional, em resposta às redefinições da identidade britânicas por rastafáris e os “rude boys” jamaicanos. Hall e seus colegas abordaram estas discordâncias culturais por meio do estudo do aumento percebido do crime violento.

A representação midiática do assalto à mão armada nos anos 1970 possuía uma característica particular, que persiste ainda hoje: uma associação deliberada e rígida do crime com a juventude negra. A polícia tem se engajado em “controlar e conter” a população negra desde o início dos anos 1970, mas depois da turbulência política e do colapso econômico da metade desta década, que resultou em cortes nas políticas bem estar, educação e suporte social, o impacto sobre a população negra concentrada nas cidades foi o mais grave.

Além disso, parte do efeito das revoltas dos anos 1960 tem sido introduzir uma nova sensibilidade de resistência no interior das cidades, e o que agora emergia era uma situação explosiva: “um setor da população, já mobilizado em termos de consciência negra, era agora também o setor mais exposto ao processo de aceleração da recessão econômica”.

A consequência foi “nada menos do que a sincronização dos aspectos de raça e classe da crise”, escreveram os acadêmicos de Birmingham. “Policiar os negros ameaçou o problema do policiamento dos pobres e dos desempregados: todos os três estavam concentrados precisamente nas mesmas áreas urbanas”. “Policiar os negros” tornou-se “sinônimo de policiar a crise”.

Aqui Policing the Crisis apresentou um slogan bastante citado: “raça é a modalidade na qual a classe é vivida”. Para membros negros da classe trabalhadora, é primeiramente por meio da experiência da “raça” que eles podem “chegar a uma consciência de sua subordinação estruturada”: “É por meio da modalidade da raça que negros compreendem, lidam e começam a resistir à exploração que é uma característica objetiva de sua situação de classe”. O poeta de dub raggae, Linton Kwesi Johnson cantou esta chegada à consciência, E a classe trabalhadora?:

“E a classe trabalhadora?
Nada de culpar a classe trabalhadora negra, Sr. Racista
A culpa é da classe dominante
A culpa é do patrão capitalista
A gente paga o custo, a gente perde”

As forças da reação foram rápidas e decisivas. A eleição de Margaret Thatcher como líder da oposição, em 1975, representou o movimento de uma direita radical saída das margens para o centro, erigida na ideologia da lei e da ordem para avançar uma estratégia de fuga em relação ao consenso do pós-guerra.

Esta estratégia assumiria lugar central à medida em que a administração da crise da socialdemocracia chegou a um inevitável impasse: “a Grã-Bretanha nos anos 1970 é um país para cuja crise não existe uma solução capitalista viável restante e, ainda, não existe uma base política para uma estratégia socialista alternativa. É uma nação presa em um dilema mortal: uma condição de declínio capitalista incontrolável”.

A dominação de classe assumiria novas formas, registradas principalmente “na inclinação da operação do Estado em se afastar do consenso e se aproximar do polo da coerção”. O pânico moral sobre o assalto violento, então, era “uma das formas aparentes de uma crise histórica profundamente enraizada”; ele cumpriu um papel importante na estabilização do Estado.

A percepção do aumento do crime era “uma das principais formas de consciência ideológica por meio da qual uma ‘maioria silenciosa’ é vencida para dar seu apoio às medidas crescentemente coercitivas por parte do Estado, e emprestar legitimidade para um uso do exercício do controle ‘mais do que o usual’”. Em 1977, a banda The Clash gravou em seu álbum de estreia um cover do músico jamaicano Junior Murvin, Police and Thieves, em que a descrição da polícia jamaicana se assemelhava muito à descrição de Londres.

O consenso do pós-guerra de um Estado de bem-estar benevolente abria caminho para um consenso autoritário, um desenvolvimento que o sociólogo britânico Ralph Miliband havia sugerido em 1969. Ele concluíra seu livro O Estado na sociedade capitalista com uma descrição de uma certa dialética entre reforma e repressão.

O Estado enfrenta a pressão social por meio da reforma, mas não pode nunca fazer isso de maneira plena: “na medida em que a reforma se revela incapaz de subjugar pressão e protesto, então se dá a mudança de ênfase no sentido da repressão, coerção, poder policial, lei e ordem”. Mas a repressão também engendra oposição, e “ao longo deste caminho está a transição de uma ‘democracia burguesa’ para um ‘autoritarismo conservador’”. Isto não necessariamente significa fascismo. Na verdade, o exemplo de Miliband vinha da esquerda:

“Sempre que lhes foi dado oportunidade, os líderes socialdemocratas rapidamente se projetaram na administração do Estado capitalista: mas esta administração requer sempre e mais o fortalecimento do Estado capitalista, objetivo com o qual – de um ponto de vista conservador – estes líderes deram valorosa contribuição”.

Este fortalecimento do Estado, no entanto, deixara a socialdemocracia em uma situação de “vulnerabilidade crescente aos ataques da direita (...) o caminho se tornou mais suave para os candidatos a salvadores populares cujo conservantismo extremo esta cuidadosamente localizando sob uma retórica demagógica de renovação nacional e redenção social, alimentado de maneira sutil por um apelo a preconceitos raciais e outros tipos de preconceitos vantajosos”. Miliband concluiu que “o movimento socialista alcançou uma posição de comando de tal forma” que “pode ser tarde demais para as forças do conservadorismo assumir uma opção autoritária com alguma chance real de sucesso”.

Apesar disso, para Hall o governo Thatcher foi um exemplo de extraordinário sucesso do autoritarismo. Policing the Crisis mostrava como a administração socialdemocrata da crise capitalista havia criado contradições que abriam espaço para novas estratégias de direita, e como o consenso popular com a autoridade começava a se tornar assegurando por novas formas de luta ideológica.

O que agora emergia era uma estratégia antiestatal de direita – ou melhor, uma que se representava como antiestatal para ganhar o consenso do populacho descontente, ao mesmo tempo em que detinha uma abordagem altamente centralista em relação ao governo.

Esta estratégia funcionou ao se aproveitar o descontentamento popular e neutralizar a oposição, fazendo uso de certos elementos da opinião popular para modular uma nova forma de consenso. Em 1979, Hall elaborou sobre esta nova estratégia em um artigo chamado “O show do grande movimento à direita”. O texto foi publicado na revista Marxism Today, uma revista teórica experimental do Partido Comunista da Grã-Bretanha, meses antes da eleição de Thatcher como primeira ministra.

As raízes de sua ascensão, insistia Hall, estavam “na contradição no interior da socialdemocracia”, que havia “efetivamente desorganizado a esquerda e a resposta da classe trabalhadora para a crise”. Sintetizando a dinâmica que revisara historicamente em Policing the Crisis, Hall explicou que a contradição começava com os esforços da socialdemocracia em ganhar poder eleitoral, o que exigia a “maximização de suas exigências como a representação politica dos interesses da classe trabalhadora e do trabalho organizado” capaz de “administrar a crise” e “defender – dentro dos constrangimentos impostos pela recessão – os interesses da classe trabalhadora”.

Esta não era uma “entidade política homogênea, mas uma formação política complexa”, não uma expressão da classe trabalhadora no governo, mas “os meios principais de representação da classe”. “Representação”, como uma função política na democracia parlamentar, “precisa ser entendida como uma relação ativa e formativa”, que “organiza a classe e a constitui como uma força política” – uma força política socialdemocrata – ao mesmo momento em que se constitui.”

Uma vez que a social democracia entra no governo, no entanto, “se compromete em encontrar soluções para a crise que são capazes de alcançar apoio de setores-chave do capital, desde que estas soluções sejam enquadradas em seus limites”. Isto exige o uso da “conexão indissolúvel” com as lideranças sindicais, “não para avançar, mas para disciplinar a classe e organizações que representa”.

Esta função gira ao redor do Estado, e a socialdemocracia deve se apoiar “em uma interpretação neutra e benevolente do papel do Estado como encarnação do interesse nacional acima da luta de classes”. Ela toma por sinônimos a expansão do Estado e o socialismo, “sem referencia alguma à mobilização de poderes democráticos efetivos em níveis populares” e usa o intervencionismo alargado do aparelho do Estado para “administrar a crise capitalista de maneira favorável ao capital”.

O Estado termina “inscrito em todo aspecto e característica da vida social”: “a socialdemocracia não tem alternativa estratégica viável, especialmente para o grande capital (e o grande capital não possui uma estratégia alternativa viável para si mesmo) que não envolva o apoio massivo do Estado”.

Este é o pano de fundo para a direita radical, que opera no mesmo espaço da socialdemocracia e explora suas contradições. Ela “toma os elementos que já existiam construídos no espaço, os desmantela, reconstitui em nova lógica e articula o espaço de uma nova maneira, polarizando-o à direita”.

É possível apelar para a desconfiança no estatismo, para frustração com a administração socialdemocrata da crise capitalista e avançar uma agenda aparentemente antiestatal neoliberal. O thatcherismo visou valores coletivistas, mas também o estatismo real que havia contaminado o Partido Trabalhista desde o início – ele tirou vantagem da distancia que a liderança reformista havia tomado em relação as suas bases, e demonstrou o caráter irreconciliável entre valores coletivistas e o desafio de administrar a crise capitalista.

A realização mais admirável do thatcherismo foi sua habilidade de ligar as filosofias econômicas abstratas do liberalismo austríaco, desenvolvidas por heróis libertários como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, aos sentimentos populares no que diz respeito a “nação, família, dever, autoridade, padrões, autoconfiança”, motores ideológicos poderosos no contexto de mobilização política por lei e ordem.

Esta “mistura rica” Hall apelidou por “populismo autoritário” e seus operadores ideológicos não poderiam ser reduzidos à mera farsa – em fato, eles haviam operado sobre “contradições genuínas”, com “conteúdo racional e material”: “Seu sucesso e efetividade não está na capacidade de enganar algum popular desavisado, mas em endereçar problemas reais, experiências reais e vividas, contradições reais – e ainda ser capaz de representa-las por meio de um discurso lógico que as impulsiona sistematicamente na direção de políticas e estratégias de classe da direita”.

A revista Marxism Today era, acima de tudo, um projeto inusitado e de longo alcance, com o estilo visual de uma revista comercial e uma carapuça de cultura popular que procurou intervir na consciência da sociedade de consumo – provocando o repúdio do companheiro de Miliband, John Saville, que cuidadosamente e desdenhosamente documentou as páginas do periódico dedicadas ao mundo da moda.

No entanto, talvez a critica mais influente tenha sido realizado pelo próprio Miliband em O grande revisionismo na Grã-Bretanha, publicado na New Left Review em 1985. Este “novo revisionismo”, argumentou Miliband, era uma repetição da primeira onda representada por Hugh Gaitskell – que havia usado o termo na revista Parliamentary Socialism.

No centro estava o debate das questões estratégicas que o Partido Trabalhista enfrentava e que Miliband não achava que poderiam ser adequadamente capturadas pelas teorias do populismo autoritário. Ele relembrava que o declínio do apoio eleitoral da classe trabalhadora ao Partido Trabalhista já existia desde 1951, resultando de suas próprias contradições.

Como documentamos acima, Hall havia cuidadosamente analisado este fenômeno e, na verdade, feito dele a base para sua teoria sobre o thatcherismo. Mas, para Miliband, Hall ainda sobrevoava questão, condenando a suspeita da direção diante da “autoativação da classe trabalhadora”, apontando sua análise constantemente em termos das possibilidades de “renovação” do partido, mesmo que fosse cético quanto às suas possibilidades.

A principal preocupação de Miliband, por sua vez, era a de refutar a nova tendência revisionista que rejeitava a “política de classe”, entendida como “insistência no ‘primado’ do trabalho organizado em desafiar o poder capitalista, e o desafio de criar uma ordem radicalmente diferente”. Miliband defendia este primado: “nenhum outro grupo, movimento ou força na sociedade capitalista é remotamente capaz de se impor como desafiante efetivo e formidável às estruturas atuais de poder e privilégio como o poder do trabalho organizado”.

Existiam dois ângulos nos quais este primado poderia ser defendido, o primeiro relacionado às mudanças no processo de produção e horizonte social nos países de capitalismo avançado; André Gorz e seu Farewell to the Working Class Adeus à classe do trabalho foi nomeado um influente precursor do “revisionismo”.

Miliband aceitava que “a classe trabalhadora experimentou nos anos recentes um processo acelerado de recomposição, com o declínio de setores industriais tradicionais e um crescimento considerável dos trabalhadores de colarinho branco, de distribuição, serviços e setores técnicos”. Mas ele não aceitava que isto significasse que as coordenadas clássicas da política socialista deveriam mudar. Afinal, os assalariados continuavam a compor a maior parte da população dos países capitalistas avançados, e continuavam capazes de desenvolver uma consciência socialista.

O segundo desafio era aquele relativo aos novos movimentos sociais. Miliband começou com uma lembrança razoável de que “a classe trabalhadora incluía um grande número de pessoas que são membros dos ‘novos movimentos sociais’, ou que são parte do público que estes movimentos querem alcançar”. Mas ele também argumentou que seria uma erro para estas pessoas entender suas experiências de opressão pode meio das identidades.

De fato, a categoria de “política de classe” dera o compasso dos novos movimentos sociais na medida em que o trabalho organizando não lutou por seus fins economicistas e corporativos, “mas por toda a classe trabalhadora muito além dela”. Ainda que esta luta “requeira um sistema de alianças populares”, Miliband sustentou que “é apenas a classe trabalhadora organizada que pode formar a base deste sistema”.

A pergunta sobre “como” a classe trabalhadora pode se organizar, porém, ficou sem resposta. Como Robin Blackburn afirmou recentemente, “1985 marcou o começo de praticamente três décadas de desmobilização e desmoralização de classe” e Miliband “subestimou os efeitos da recomposição de alcance global do capital e trabalho no fim do século”. Sua discussão sobre os novos movimentos sociais se manteve especulativa, sem investigação séria das questões levantas sobre o caráter da política da classe trabalhadora.

Em contraste, a análise de Hall da raça como “modalidade” por meio da qual os trabalhadores negros se tornam conscientes de sua posição de classe estava baseada em uma análise da composição da classe trabalhadora negra, a história da cultura migrante, e a organização política das lutas negras – por meio da qual ele foi capaz de construir e identificar formas potenciais de atividade política que possuíam relevância geral para a classe, na medida em que o racismo era parte da maneira como as populações trabalhadoras eram estruturas pelo capital.

Este impasse estratégico afetou diretamente a conjuntura política com a experiência da greve dos mineiros em 1984-1985. A ferocidade desta luta tornou qualquer discussão carregada emocionalmente. Hall havia sido bastante crítico da greve – do sofrimento intenso e do risco implicado em fazer a greve em um período de austeridade e declínio industrial, e da decisão não democrática de fazer a greve sem uma votação.

Ele seguiu criticando o aspecto “familial e masculinista” da mobilização dos mineiros, “como homens que possuem um dever de se levantar e lutar”. O enquadramento como política de classe do momento, fixo em uma identidade de classe específica, havia impedido os mineiros de “generalizar sua luta em uma dimensão social mais ampla”.

Aspectos desta análise estavam provavelmente corretos. Mas ela provocou um afastamento compreensível de Miliband. Chegou um momento em que muitos, especialmente aqueles afiliados ao Marxism Today, passaram a associar a greve com uma prática teimosa e antiquada de uma “esquerda dura”.

O termo não está totalmente deslocado; qualquer um que tenha participado de um movimento social já se encontrou aqueles que se intitulam “guardiões das consciências de esquerda, como garantidas políticas, o teste limite da ortodoxia”. Mas em retrospecto, usado contra os que defendiam os sindicatos no contexto de um ataque capitalista implacável, este apelido era inadequado.

Por outro lado, o argumento de Miliband perdia as questões substanciais que estas críticas de fato levantavam. De acordo com a biografia de Michael Newman, ele foi criticado por sua esposa Marion Kozaks, que considerava que o artigo sobre o novo revisionismo “superestima o primado da classe e falha ao não dar peso suficiente aos movimentos sociais, os quais vê como divisores ao invés de potenciais aliados para os movimentos classistas – como, por exemplo, os grupos de mulheres que apoiam os mineiros”.

Estas linhas de aliança inesperadas foram recentemente dramatizadas no filme Pride, que mostra os esforços de arrecadação de recursos do Apoio de Lésbicas e Gays aos Mineiros, um gesto de solidariedade que foi devolvida pela participação de grupos de mineiros galeses na Marcha do Orgulho Gay de Londres, em 1985 e pelo apoio decisivo da União Nacional dos Mineiros para uma resolução interna do Partido Trabalhista em favor dos direitos LGBTs.

Conforme escreveram Doreen Massey e Hilary Wainwright em comentário sobre os grupos feministas de apoio à greve, “não é uma questão de ação industrial ou novos movimentos sociais, tampouco é uma questão de soma-los (...) Novas instituições podem ser construída para que ‘a política de classe’ possa ser vista como algo mais que simples militância industrial mais representação parlamentar”. Era justamente a urgência por estas novas instituições, e a dificuldade de construí-las, que estava por baixo do pessimismo de Hall:

“A greve foi então condenada a ser travada e perdida como algo velho e não como uma nova forma de política. Para aqueles de nós que sentimos isto desde o início, foi duplamente insuportável porque – na solidariedade que ela alcançou, nos níveis gigantescos de apoio que engendrou, com o envolvimento sem paralelos de mulheres nas comunidades mineiras, presença feminista na greve, a quebra de barreiras entre diferentes interesses sociais que ela pressagiou – a greve dos mineiros carregava instintivamente a política da novidade, ela foi um grande enfrentamento com o thatcherismo que deveria marcar a transição para a política do presente e do futuro, mas foi travada e perdida, aprisionada nas categorias e estratégias do passado.”

Se cada lado do debate tinha um ponto, não está claro que todos os participantes entendessem o que a derrota catastrófica dos mineiros representava verdadeiramente. Apesar da clareza de Hall a respeito dos efeitos poderosos do populismo autoritário, sua teoria não parecia antecipar o quão drasticamente esta derrota mudaria o campo e o quão completa ela seria.

Este momento não foi adequadamente apreciado como uma derrota também para os novos movimentos sociais. Ao longo da vida das coalizões “arco-íris”, multiculturalismo, e políticas de identidade, sua sobrevivência indicaria a separação crescente em relação às formas organizacionais de base e aos movimentos militantes com os quais poderiam forma alianças antissistema permanentes. E apesar de sua oposição anterior sobre o novo revisionismo, não está claro que a abordagem de Miliband o teria conduzido a uma alternativa política.

Apesar das desventuras que envolvem o nome Miliband, é Hall que é frequentemente acusado de ter pavimentado o caminho para o Novo Trabalhismo. Isto de alguma forma confunde o funcionamento da dinâmica: foi o thatcherismo que pavimentou o caminho para o Novo Trabalhismo, e Hall foi uma das pessoas que descreveu com grande clareza o thatcherismo como um modo de operação. Não há razão para duvidar que Miliband teria criticado o giro dramático à direita engendrado por Tony Blair se estivesse vivo.

Hall, por sua vez, execrou Blair em uma edição única de “retomada” da Marxism Today em 1997 (não circulava desde 1991), em um artigo chamado “O grande show da movimentação para o nada”. Enquanto documentou as capitulações do Novo Trabalhismo ao neoliberalismo, e os novos sujeitos sociais que delas se manifestavam (“homem econômico ou como ela/ele gosta de ser chamado, O Sujeito Empreendedor e o Consumidor Soberano”), ele não apresentou uma análise política do fenômeno comparável ao que havia feito com o thatcherismo.

Obviamente Blair estava seguindo os passos de Bill Clinton, cujo mandato presidencial não apenas trouxe o Tratado de Livre Comércio das Américas (NAFTA), a lei do crime e a reforma da lei do bem-estar, mas também estava empenhado em um estilo cultural, direcionado por grupos focais e imagens de consultoria, que jogavam com a diversidade dos novos tempos, levando Toni Morrison ao famoso comentário de que Clinton era o “primeiro presidente negro”.

Um termo além do “populismo autoritário” seria necessário para descrever este fenômeno, que mostrou, por um lado, que a estratégia hegemônica da direita era bem sucedida a ponto de absorver a esquerda conhecida e facilitar a consolidação da desigualdade econômica e a reversão seguinte das reformas condensadas no Estado; e, por outro lado, que o pluralismo, a celebração da mídia popular e olhar para a cultura jovem não necessariamente constituem, na ausência de mobilizações revolucionárias viáveis, uma força de oposição, como as campanhas de base para o verdadeiro primeiro presidente americano negro mostraram desde então.

É precisamente no frustrante desenvolvimento de um agente antagonista que a discussão sobre a cultura e a ideologia deve ser situada – não como uma explicação de mecanismos complexos e viradas da política eleitoral. Muito tempo depois de Thatcher e Reagan uma indústria de comentadores pergunta por que a classe trabalhadora americana vota contra “seus interesses”, nos convidando a opor Kansas e Connecticut, estado vermelho e estado azul. Mas na verdade é na decomposição e desorganização da classe trabalhadora que devemos procurar a explicação para a emergência da direita – não na consciência, falsa ou o que seja.

As evidencias empíricas mostram que a classe trabalhadora nos Estados Unidos, medida por renda, possui uma preferencia de voto consistente no Partido Democrata, e isso é verdadeiro mesmo se restringimos os dados para a classe trabalhadora branca. Mas ao contrário da lógica mercadológica “dos interesses”, esta prática de voto nunca aumentou o poder da classe trabalhadora, e portanto o éter indeterminado da opinião pública americana termina subordinado ao poder de vanguardas de direita. Se o populismo autoritário mudou as ideias das pessoas, ou não, é uma questão inútil.

O seu papel na transformação neoliberal foi atacar a possibilidade de alianças estratégicas entre os novos movimentos sociais e a organização no lugar de produção. Ideologias tradicionalistas de família, igreja e nação foram ataques preventivos contra uma potencial barreira política de acumulação que estas linhas de aliança poderiam impor a partir de baixo.

“Nossa convenção ocorre no momento de crise de nossa nação” disse Donald Trump na convenção republicana. Ele está certo; e a crise é também da esquerda. Nosso discurso muitas vezes se reduz a disputas mesquinhas, por uma lado uma absorção a-histórica em posturas espetaculares de rebelião sem direção e narcisismo identitário, por outro a ortodoxia indigesta e pouco atraente. Neste contexto, a arte da política não pode ser encontrada – com exceção talvez do delírio de direita, uma realidade que Hall também descreveu:

“Eu me lembro do momento na eleições de 1979 em que o Sr. Callaghan, em sua última corrida política por assim dizer, disse com verdadeira surpresa sobre a ofensiva da Srª. Thatcher: ‘Ela parece arrancar a sociedade pelas raízes’. Esta era uma ideia impensável para o vocabulário socialdemocrata: um ataque radical no status quo.” 
A verdade é que ideias tradicionalistas, as ideias de respeitabilidade social e moral, tem penetrado tão profundamente na consciência socialista que é comum encontrar pessoas comprometidas com um programa político radical e sustentadas por sentimentos e sensações totalmente tradicionais.” 

Nossa crise nos impediu de levar adiante uma tarefa urgente que Hall colocou com precisão: “como forças diferentes podem, juntas, conjunturalmente, criar um novo terreno no qual uma política diferente possa se formar”. Está colocado para nós inventar uma política diferente – ou Trump será o único a fazê-lo.

24 de julho de 2016

Austeridade não pode ignorar políticas inclusivas

Desafio é fechar as contas mantendo rota de redução das desigualdades

Marta Arretche

Naercio Menezes

Folha de S.Paulo


Um dos grandes desafios da conjuntura em que vivemos envolve escolhas estratégicas que permitam dar continuidade à bem sucedida trajetória recente de redução das desigualdades sociais no Brasil sem gerar crises fiscais que impeçam a sustentabilidade das políticas. Essas escolhas, por sua vez, estão estreitamente associadas a concepções normativas sobre o tipo de sociedade que desejamos.

Estamos entre os que acreditam que as políticas sociais devem produzir igualdade de oportunidades, de modo que as condições econômicas da família ao nascimento, a cor ou a região de origem não sejam uma barreira intransponível para os indivíduos poderem ter uma vida decente, preferencialmente com seu próprio trabalho. Deste ponto de vista, é importante que se diga com toda a clareza que, a despeito dos inegáveis avanços das últimas décadas, ainda temos um longo caminho pela frente para nos aproximarmos desse ideal.

Duas questões são incontornáveis nesse debate. A primeira diz respeito às políticas desejáveis, que deveriam ser preservadas em uma estratégia de enfrentamento da crise fiscal (o desequilíbrio financeiro do Estado). Responder a essa questão requer identificar os fatores que mais contribuíram para a redução das desigualdades no passado recente.

A segunda, não menos relevante, diz respeito à viabilidade política dessas políticas desejáveis, sem a qual tais preferências não passam de "wishful thinking".

Quando a democracia foi reinstaurada no Brasil, em 1985, além da elevada concentração da renda entre os mais ricos, a dívida social brasileira também resultava de uma grande divisão entre "insiders" (os incluídos) e "outsiders" (os excluídos).

Desde Getúlio Vargas, a legislação trabalhista protegia apenas os trabalhadores do mercado formal que compunham o setor industrial urbano. O vínculo trabalhista era requisito para aposentadorias e serviços de saúde. Estima-se que apenas 40% dos trabalhadores estavam nessa condição.

Viam-se excluídos, portanto, da proteção trabalhista e do direito à aposentadoria e a cuidados de saúde cerca de 60% dos trabalhadores, que acumulavam a desvantagem da baixa escolaridade e de ocupações precárias. Um elemento central do modelo adotado por Vargas, mantido até 1988, é que eram principalmente esses "outsiders" que contribuíam para financiar os benefícios dos "insiders".

Sob o modelo de substituição de importações, em uma economia fechada, os custos da proteção social dos "insiders" eram transferidos para os preços dos produtos, e, portanto, pagos por todos os consumidores.​


Educação

Além disso, a despeito de iniciativas reformistas que datam do Império, o fato é que o Estado brasileiro nunca deu prioridade à educação. Em 1980, apenas metade dos jovens com 12 a 15 anos de idade tinha completado o ensino primário. Entre os jovens de 16 a 18 anos, apenas 20% tinha o ensino fundamental completo. Essa oferta abundante de trabalhadores pouco qualificados gerou fortes incentivos para um modelo de industrialização de baixa intensidade tecnológica. A indústria acomodou-se com essa estratégia e apostou que os cursos de qualificação profissional seriam suficientes para gerar mão de obra capacitada. Grave erro.

A combinação de limitados esforços para a universalização do acesso à educação, mantendo-se forte associação entre origem familiar e avanço no sistema escolar, com direitos previdenciários e de saúde vinculados a empregos formais para uma pequena parcela implicou uma fusão de vantagens para os "insiders" que não representavam nem metade da população brasileira.

Desde meados dos anos 1980, o Brasil vem experimentando um processo incremental de inclusão dos "outsiders". Essa trajetória não é explicada por um único fator isolado. Ela resulta de uma combinação de mudanças demográficas, forças de mercado e políticas deliberadas.

Na dimensão demográfica, a mudança no comportamento reprodutivo das mulheres mais pobres, a partir dos anos 1980, com consequente queda nas taxas de fertilidade, estancou a fonte da abundante oferta de jovens pobres no mercado de trabalho. Essa trajetória demográfica dificilmente será revertida.

Por outro lado, o boom das commodities e as baixas taxas internacionais de juros, que também afetaram outros países da América Latina, foram uma forte alavanca do crescimento econômico –o que favoreceu a expansão das receitas governamentais, sem que políticas impopulares de expansão da taxação fossem necessárias. Essas condições não estão mais presentes, o que eleva a temperatura dos conflitos redistributivos, como já estamos tendo oportunidade de observar.

O comportamento desses fatores –a demografia e o boom internacional das commodities– está fora do alcance das escolhas institucionais. Por essa razão, nossa avaliação deve se concentrar sobre as políticas deliberadas que favoreceram a inclusão.

A constitucionalização dos sistemas universais de educação e saúde, bem como a vinculação do piso das aposentadorias (contributivas e não-contributivas) ao salário mínimo, estão entre as principais políticas de inclusão dos "outsiders" que afetaram as historicamente elevadas taxas de desigualdade no Brasil.

A vinculação do piso das aposentadorias ao valor do salário mínimo produziu um colchão de proteção para os mais pobres, mesmo em contextos recessivos, como em 1992 e 2003. Além disso, a valorização do mínimo em termos reais reduziu a desigualdade no mercado de trabalho, contribuindo para a inclusão de milhares de brasileiros no universo de consumo. A conjunção de fatores externos e demográficos favoráveis fez com que o impacto do salário mínimo fosse sancionado pelo mercado de trabalho, não resultando em maior desemprego ou informalidade. Ao contrário, tanto um quanto outro diminuíram na primeira década do século 21.

Transferência
 
A expansão da escolaridade, por sua vez, reduziu (não eliminou) a influência da origem social sobre a educação e a oferta abundante de jovens não qualificados que chegavam todos os anos ao mercado de trabalho.

Vale notar que tal inclusão favoreceu muito mais as mulheres do que os negros e pardos. Mas, o fato é que essa expansão decorreu da vinculação de recursos estabelecida pela Constituição de 1988 e que foi aprofundada com a adoção do Fundef e do Fundeb.

Continuar na trajetória de redução das desigualdades de acesso à educação, estancando a oferta abundante de mão de obra não qualificada, é, portanto, uma condição essencial para dar continuidade à queda das desigualdades no mercado de trabalho brasileiro.

Por fim, o SUS garantiu o acesso aos cuidados de saúde para os trabalhadores menos qualificados e com precária inserção no mercado, garantindo uma queda notável nas taxas de mortalidade –com consequente expansão da expectativa de vida e redução substancial das diferenças regionais nas condições de saúde.

Nesse sentido, os programas de transferência condicionais de renda, como o Bolsa Família, e de visitação domiciliar, como o Programa Saúde da Família, também tiveram papel fundamental.

A citada constitucionalização dos sistemas universais de saúde e de educação, bem como do piso dos pagamentos previdenciários, foi resultado de um grande consenso, ainda na transição para a democracia, em torno da ideia de que a democracia não seria sustentável sem políticas de inclusão. A politização da extrema pobreza e da desigualdade, vocalizada por grupos progressistas e de esquerda, inscreveu o tema na agenda política da transição democrática. Tal como Ulysses Guimarães, aquela geração parlamentar amarrou essas políticas ao mastro da Constituição para protegê-las contra maiorias ocasionais no futuro.

É possível que aquele consenso esteja em processo de erosão, dada a crescente mobilização política dos grupos conversadores no Brasil. Mas nossa avaliação é de que a vinculação constitucional dos gastos em saúde e educação para os três níveis de governo ainda é a melhor proteção contra o canto das sereias.

Além disso, o fato é que as taxas de participação eleitoral no Brasil variam em torno de 80%, o que quer dizer que os (antigos) "outsiders" votam. Uma vez incluídos na arena eleitoral, os beneficiários das pensões e benefícios indexados ao salário mínimo e dos sistemas universais de saúde e educação representam um grande número de eleitores, que pode ser decisivo em um pleito majoritário. Eles podem influenciar sobremaneira os cálculos eleitorais dos parlamentares na tramitação de propostas orientadas a impor perdas a categorias concentradas de beneficiários. A recente aprovação de aumentos salariais para o funcionalismo público é um exemplo nessa direção.

Assim, propostas de imposição de perdas que tenham alta visibilidade política terão muita dificuldade para formar coalizões de apoio no Congresso, tendo em vista as eleições municipais deste ano e as majoritárias em 2018

Há razões para crer, com base no comportamento parlamentar na tramitação dessas matérias, que mesmo partidos conservadores terão dificuldade para apoiar medidas de imposição de perdas, dada a necessidade de expandir sua base eleitoral para além dos setores de classe média e alta.

Custo eleitoral

Os custos eleitorais de aprovar medidas que afetem negativamente uma parcela substancial da população brasileira, como os que ganham um salário mínimo no mercado de trabalho, ou via Previdência, por exemplo, são extremamente altos para os políticos. O mesmo ocorre com o fim das vinculações de gastos com educação e saúde.

Em suma, estamos passando por um período turbulento em termos econômicos e políticos. O nosso problema fiscal precisa ser enfrentado ao mesmo tempo em que passamos por uma recessão sem precedentes em nossa história. Novas denúncias envolvendo a credibilidade dos partidos aparecem todos os dias.

Não sabemos se o sistema partidário atual e sua estrutura de competição política sobreviverão ao tsunami. Mas, é certo que os eleitores do piso da pirâmide social e suas preferências não desaparecerão –e terão que ser levados em conta na tramitação das medidas de ajuste fiscal. Combinar equilíbrio fiscal e a popularidade das políticas de inclusão é, e continuará sendo, um grande desafio a ser enfrentado pela elite política brasileira.

Marta Arretche, 58, professora de ciência política da USP, é diretora do Centro de Estudos da Metrópole.

Naercio Menezes Filho, 51, professor de economia da USP e do Insper, é coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper.

Marcia Xaviaer, 40, é artista plástica

23 de julho de 2016

O neoliberalismo é um projeto político

David Harvey sobre o que o neoliberalismo realmente é - e por que o conceito é importante.

Bjarke Skærlund Risager

Jacobin

David H. Petraeus, da Agência Central de Inteligência, toca o sino de abertura na Bolsa de Nova York em 18 de setembro de 2012, em cumprimento ao 65º aniversário da CIA. CIA / Wikimedia

Tradução / Onze anos atrás, David Harvey publicou Breve história do neoliberalismo, agora um dos livros mais citados sobre o assunto. Desde então temos visto novas crises econômicas e financeiras, mas também de novas ondas de resistência, que muitas vezes visam o "neoliberalismo" em sua crítica da sociedade contemporânea.

Cornel West fala do movimento Black Lives Matter como "uma acusação do poder neoliberal"; o falecido Hugo Chávez chamou o neoliberalismo de um "caminho para o inferno"; e líderes trabalhistas estão cada vez mais usando o termo para descrever o ambiente maior, na qual ocorrem as lutas no local de trabalho. A imprensa mainstream também recorreu ao termo, ainda que apenas para argumentar que o neoliberalismo na verdade não existe.

Mas, exatamente, estamos falando sobre o quê quando falamos sobre o neoliberalismo? É um alvo útil para os socialistas? E como mudou desde a sua gênese no final do século XX?

Bjarke Skærlund Risager, doutor pelo Departamento de Filosofia e História das Idéias da Universidade de Aarhus, sentou-se com David Harvey para discutir a natureza política do neoliberalismo, como transformou modos de resistência e por que a esquerda ainda precisa ser séria sobre o fim do capitalismo.

O neoliberalismo é hoje um termo amplamente utilizado. No entanto, muitas vezes não está claro o que as pessoas se referem quando o usam. Em seu uso mais sistemático, ele pode se referir a uma teoria, um conjunto de idéias, uma estratégia política ou um período histórico. Você poderia começar por explicar como você entende o neoliberalismo?

Sempre tratei o neoliberalismo como um projeto político levado a cabo pela classe capitalista corporativa, pois eles se sentiram intensamente ameaçados tanto em termos políticos quanto econômicos no final da década de 1960 até a década de 1970. Eles desejavam desesperadamente lançar um projeto político que restringisse o poder do trabalho.

Em muitos aspectos, o projeto foi um projeto contra-revolucionário. Ele deveria arrancar pela raiz o que, naquela época, eram movimentos revolucionários em grande parte do mundo em desenvolvimento - Moçambique, Angola, China, etc. -, mas também uma onda crescente de influências comunistas em países como a Itália e a França e, em menor grau, a ameaça de um ressurgimento daquela na Espanha.

Mesmo nos Estados Unidos, os sindicatos haviam produzido um Congresso Democrático que era bastante radical em sua intenção. No início da década de 1970, eles, juntamente com outros movimentos sociais, forçaram uma série de reformas e iniciativas reformistas que eram anti-corporativas: a Agência de Proteção Ambiental, a Administração de Segurança e Saúde do Trabalho, proteção ao consumidor e todo um conjunto de coisas em torno do poder do trabalho além do que tinha sido autorizado antes.

Então, nessa situação, havia, de fato, uma ameaça global ao poder da classe capitalista corporativa e, portanto, a questão era: "O que fazer?". A classe dominante não era onisciente, mas eles reconheceram que havia várias frentes sobre as quais eles tinham que lutar: a frente ideológica, a frente política e, acima de tudo, tinham que lutar para conter o poder do trabalho por qualquer meio possível. Foi daí que surgiu um projeto político que eu chamaria de neoliberalismo.

Poderia nos dizer um pouco mais a propósito dos fronts político e ideológico, assim como os ataques contra o mundo do trabalho?

No front ideológico, isso consistia em seguir o conselho de um cara chamado Lewis Powell, que havia escrito um memorando dizendo que as coisas haviam ido longe demais e que o capital precisava de um projeto coletivo. Essa nota ajudou a mobilizar a Câmara de Comércio e a Távola Redonda dos negócios.

The ideological front amounted to following the advice of a guy named Lewis Powell. He wrote a memo saying that things had gone too far, that capital needed a collective project. The memo helped mobilize the Chamber of Commerce and the Business Roundtable.

As idéias tinham então sua importância. Essa gente pensava que era impossível organizar as universidades porque elas eram muito progressistas; e o movimento estudantil, forte demais. De repente, eles montaram todos esses grupos de reflexão, think tanks como o Instituto Manhattan, as fundações Ohlin ou Heritage. Esses grupos levaram adiante as idéias de Friedrich Hayek, de Milton Friedman e da economia da oferta.

A ideia era fazer com que esses grupos de pesquisa fizessem pesquisas sérias e alguns deles - por exemplo, o Escritório Nacional de Pesquisa Econômica era uma instituição de capital privado que realizava pesquisas extremamente boas e aprofundadas. Esta pesquisa seria então publicada de forma independente e influenciaria a imprensa e, pouco a pouco, cercaria e se infiltraria nas universidades.

Esse processo tomou um tempo. Penso que eles estão agora num ponto em que não têm mais necessidade de coisas como a fundação Heritage. As universidades foram amplamente penetradas pelos projetos neoliberais que as cercam.

No que diz respeito ao trabalho, o desafio consistia em tornar competitivo o custo do trabalho local em relação ao custo do trabalho globalizado. Uma solução teria sido demandar mão de obra imigrante. Nos anos 1960, por exemplo, os alemães apelaram aos turcos, os franceses aos magrebinos e os ingleses aos trabalhadores originários de suas antigas colônias. Mas isso havia criado muito descontentamento e agitação social.

Desta vez, os capitalistas escolheram outra via: exportar o capital de onde havia uma força de trabalho mais cara. Mas para que a globalização funcionasse, era preciso reduzir as tarifas e reforçar o capital financeiro, pois esta é a forma de capital mais móvel. O capital financeiro e o fato de tornar as moedas flutuantes tornaram-se essenciais para conter a classe operária.

Ao mesmo tempo, os projetos de privatização e de desregulação criaram desemprego. Portanto, desemprego no interior do país e deslocalizações para fora, assim como um terceiro componente, as mudanças tecnológicas, a desindustrialização por meio da automação e da robotização. Esta foi a estratégia para triturar a classe operária.

Foi um ataque ideológico, mas também um assalto econômico. Para mim, sobre o que se tratava o neoliberalismo: era esse projeto político, e acho que a burguesia ou a classe capitalista corporativa colocaram-no em movimento pouco a pouco.

Eu não acho que eles começaram lendo Hayek ou qualquer coisa, eu acho que eles simplesmente disseram intuitivamente, "Nós temos que esmagar o trabalho, como nós fazemos isso?" E eles descobriram que havia uma teoria de legitimação lá fora, o que apoiaria isso.

Depois da publicação, em 2005, do livro Breve história do neoliberalismo, muito foi escrito sobre esse conceito. Parece haver principalmente dois campos: os pesquisadores que estão mais interessados na história intelectual do neoliberalismo e as pessoas que são sobretudo preocupadas com o “neoliberalismo realmente existente”. Onde você se situa?

Existe uma tendência nas ciências sociais, à qual eu tento resistir, que consiste em procurar uma fórmula mágica para explicar um fenômeno. Há assim uma série de pessoas dizendo que o neoliberalismo é uma ideologia e que escrevem uma história idealizada sobre ela.

Um exemplo é o conceito de Foucault de “governabilidade” que vê tendências neoliberais já presentes no século XVIII. Mas se vocês tomam o neoliberalismo unicamente como uma ideia ou um pacote de práticas limitadas de “governabilidade”, encontrarão numerosos precursores.

O que falta aqui é a forma como a classe capitalista orquestrou seus esforços durante a década de 1970 e início dos anos 80. Penso que seria justo dizer que naquele momento - pelo menos no mundo de língua inglesa - a classe capitalista corporativa tornou-se bastante unificada.

Eles concordaram em muitas coisas, como a necessidade de uma força política para realmente representá-los. Então você obtém a captura do Partido Republicano, e uma tentativa de minar, até certo ponto, o Partido Democrata.

A partir da década de 1970, a Suprema Corte tomou um monte de decisões que permitiram que a classe capitalista corporativa comprasse as eleições mais facilmente do que poderia no passado.

Há uma longa tradição nos Estados Unidos de capitalistas corporativos que compram eleições,mas agora foi legalizado em vez de estar sob a mesa como corrupção.

No geral, acho que este período foi definido por um amplo movimento em muitas frentes, ideológicas e políticas. E a única maneira que você pode explicar esse movimento amplo é reconhecendo o grau relativamente alto de solidariedade da classe capitalista corporativa. O capital reorganizou seu poder em uma tentativa desesperada de recuperar sua riqueza econômica e sua influência, que havia sido gravemente destruída desde o final da década de 1960 até a década de 1970.

Houve várias crises desde 2007. Como o conceito e a história do neoliberalismo podem nos ajudar a compreendê-las?

Houve muito poucas crises entre 1945 e 1973; houve momentos sérios, mas não houve grandes crises. A mudança para a política neoliberal ocorreu em meio a uma crise na década de 1970, e todo o sistema tem sido uma série de crises desde então. E, claro, as crises produzem as condições das futuras crises.

Em 1982-85 houve uma crise da dívida no México, no Brasil, no Equador e, basicamente, em todos os países em desenvolvimento, incluindo a Polônia. Em 1987-88 houve uma grande crise nas instituições de poupança e empréstimo dos EUA. Houve uma grande crise na Suécia em 1990, e todos os bancos tiveram que ser nacionalizados.

Então, é claro que temos a Indonésia e o Sudeste Asiático em 1997-98, então a crise se move para a Rússia, depois para o Brasil, e atinge a Argentina em 2001-2.

E houve problemas nos Estados Unidos em 2001, que eles conseguiram tirando dinheiro do mercado de ações e despejando-o no mercado imobiliário. Em 2007-8, o mercado imobiliário dos EUA implodiu, então você teve uma crise aqui.

Você pode olhar um mapa do mundo e visualizar as crises percorrendo o planeta. O conceito de neoliberalismo é útil para compreender esses fenômenos.

Um dos grandes movimentos de neoliberalização foi expulsar todos os keynesianos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional em 1982 - uma limpeza total de todos os conselheiros econômicos que possuíam pontos de vista keynesianos.

Eles foram substituídos por teóricos neoclássicos do lado da oferta e a primeira coisa que fizeram foi decidir que, a partir desse momento, o FMI deveria seguir uma política de ajuste estrutural sempre que houvesse uma crise em qualquer lugar.

Em 1982, com certeza, houve uma crise da dívida no México. O FMI disse: "Nós o salvamos". Na verdade, o que eles estavam fazendo era salvar os bancos de investimento de Nova York e implementar uma política de austeridade.

A população do México sofreu algo como uma perda de 25% de seu padrão de vida nos quatro anos após 1982, como resultado da política de ajuste estrutural do FMI.

Desde então, o México teve cerca de quatro ajustes estruturais. Muitos outros países tiveram mais de um. Isso tornou-se uma prática padrão.

O que eles estão fazendo na Grécia agora? É quase uma cópia do que fizeram ao México em 1982, apenas mais experiente. Isto também aconteceu nos Estados Unidos em 2007-8. Eles resgataram os bancos e fizeram as pessoas pagarem por uma política de austeridade.

Haverá qualquer coisa, nas crises recentes e no modo como elas foram geradas pelas classes dirigentes, que o faria hoje rever sua teoria do neoliberalismo?

Bem, não creio que a solidariedade da classe capitalista seja hoje o que era então. Em nível geopolítico, os Estados Unidos não estão mais na posição de conduzir a dança como faziam nos anos 1970.

Penso que assistimos a uma regionalização das estruturas globais de poder no seio do sistema dos Estados - com hegemonias regionais como a da Alemanha na Europa, do Brasil na América Latina ou da China no Leste da Ásia.

Evidentemente, os Estados Unidos conservam uma posição dominante, mas os tempos mudaram. Trump pode comparecer ao G20 e dizer “devemos fazer isso”, e Angela Merkel lhe responder “não o faremos”, o que era inimaginável nos anos 1970.

A situação geopolítica está, portanto, regionalizada, e há mais autonomia. Penso que é em parte um resultado do fim da guerra fria. Países como a Alemanha não dependem mais da proteção dos Estados Unidos.

Aliás, isso que chamamos “a nova classe capitalista” de Bill Gates, da Amazon e do Vale do Silício têm uma política que difere da dos gigantes tradicionais do petróleo e da energia.

O resultado é que cada um tenta seguir seu próprio caminho, o que leva a conflitos entre por exemplo a energia e as finanças, a energia e o Vale do Silício etc. Existem sérias divergências sobre temas tais como as mudanças climáticas, por exemplo.

Um outro aspecto que me parece crucial é que o impulso neoliberal dos anos 1970 não foi imposto sem fortes resistências. Houve importantes reações da classe trabalhadora, dos partidos comunistas na Europa etc.

Mas eu diria que ao final dos anos 1980 a batalha havia sido perdida. E como a classe trabalhadora não tem mais o poder de que dispunha àquela época, a solidariedade no seio da classe dirigente não é mais também necessária.

Não há mais uma séria ameaça vindo de baixo. A classe dirigente se vira muito bem e não tem muita coisa a mudar.

Se a classe capitalista se arranja bem, em contrapartida o capitalismo vai bastante mal. As taxas de lucro se recuperaram, mas as taxas de reinvestimento são extremamente baixas, razão pela qual um monte de dinheiro não retorna para a produção mas é dedicado à conquista de terras ou à compra de ativos.

Falemos um pouco mais das resistências. Em seu trabalho, você insiste no fato, aparentemente paradoxal, de que a ofensiva neoliberal se desenvolveu paralelamente a um declínio na luta de classes, pelo menos no Norte, em favor de “novos movimentos sociais” pela liberdade individual.

Você poderia explicar como o neoliberalismo gerou certas formas de resistência?


Aqui está uma questão a meditar. E se cada modo de produção dominante, com sua configuração politica particular, criar um modo de oposição que se constitui em seu reflexo?

À época da organização fordista da produção, o reflexo era um movimento sindical centralizado e partidos políticos baseados no centralismo democrático.

À época neoliberal, a organização da produção para uma acumulação flexível produziu uma esquerda que é também, na verdade, seu reflexo: trabalho em redes decentralizadas, não hierarquizados. Penso que é muito interessante.

E até certo ponto, o reflexo do espelho valida o que tentava destruir. O movimento sindical, assim, sustentou o fordismo.

Penso que neste momento muita gente à esquerda, sendo muitos autônomos e anarquistas, reforçam na verdade o neoliberalismo em seu jogo final. Muita gente de esquerda não quer saber dessa afirmação.

Mas a pergunta que se coloca é, evidentemente: haverá um meio de se organizar que não seja no espelho do neoliberalismo? Podemos quebrar esse espelho e organizar qualquer outra coisa, que não jogue o jogo do neoliberalismo?

A resistência ao neoliberalismo pode assumir diversas formas. No meu trabalho, ressalto o fato de que o lugar de realização do valor é também um ponto de tensão.

O valor é produzido no processo do trabalho, e é um aspecto muito importante da luta de classes. Mas o valor se realiza no mercado através da venda, e uma boa parte da política tem aí seu lugar.

Uma grande parte da resistência à acumulação do capital se exprime não somente no lugar de produção, mas também através do consumo, na esfera da realização do valor.

Tome a indústria de automóveis: grandes fábricas podiam antes empregar cerca de 25 mil pessoas, e hoje empregam 5 mil porque a tecnologia reduziu a necessidade de trabalhadores. O trabalho encontra-se assim cada vez mais deslocado da esfera da produção para a esfera da vida na cidade.

principal centro de insatisfação, no quadro das dinâmicas capitalistas, desloca-se para a esfera de realização do valor, para as políticas que têm impacto na vida cotidiana na cidade.

Os trabalhadores evidentemente preocupam-se com um monte de coisas. Se nos encontramos em Shenzhen, na China, as lutas no quadro do processo de trabalho são dominantes. E nos Estados Unidos teríamos apoiado a greve de Verizon, por exemplo.

Mas em vários pontos, o que domina são as lutas em torno da qualidade da vida cotidiana. Vejam as grandes lutas dos dez a quinze últimos anos. Um conflito como o do Parque Gezi, em Istambul, não foi uma luta trabalhista. O descontentamento tinha a ver com a política cotidiana, a falta de democracia e o modo de tomar decisões. Nos levantes ocorridos das cidades brasileiras, em 2013, foram também os problemas da vida cotidiana os detonadores: os transportes e as despesas suntuosas para a construção de grandes estádios em detrimento de escolas, hospitais e moradias acessíveis. Os levantes a que assistimos em Londres, em Paris ou em Estocolmo não estavam ligados ao processo de trabalho, mas à vida cotidiana.

Nesse terreno, a política é muito diferente daquela que é implementada no local de produção. Na produção, o conflito opõe claramente o capital ao trabalho. As lutas pela qualidade de vida são menos claras em termos de configuração de classe.

As políticas claramente de classe, que procedem em geral de uma compreensão do processo de produção, tornam-se teoricamente mais vagas à medida que se tornam mais concretas. Elas expressam uma disputa entre classes, mas não no sentido convencional.

Você acha que se fala demais de neoliberalismo e não o suficiente de capitalismo? Quando é mais apropriado usar um ou outro desses termos, e quais são os riscos de confundi-los?

Muitos liberais clássicos dizem que o neoliberalismo foi longe demais em termos de desigualdade de renda, que todas essas privatizações foram longe demais e que há numerosos bens comuns a proteger, como o meio ambiente.

Há também modos de falar do capitalismo, como quando falamos de uma economia de partilha, que na verdade acaba por ser extremamente capitalista e exploradora.

Há a noção de capitalismo ético, que significa apenas ser razoavelmente honesto ao invés de roubar. Algumas pessoas pensam que é possível uma reforma da ordem neoliberal em direção a uma outra forma de capitalismo.

Penso que talvez haja uma forma de capitalismo melhor que essa que existe hoje – mas não tão melhor.

Os problemas fundamentais tornaram-se agora tão profundos que, sem um vasto movimento anticapitalista, será de fato impossível chegar até eles. Gostaria então de colocar as questões atuais em termos de anticapitalismo, em vez de antineoliberalismo.

E quando ouço as pessoas falarem sobre neoliberalismo, me parece que o perigo é acreditar que não é o próprio capitalismo, de uma forma ou de outra, que está em questão.

A maioria dos anti-neoliberais não conseguem lidar com os macro-problemas do crescimento composto interminável - problemas ecológicos, políticos e econômicos - então, eu preferiria falar sobre anticapitalismo em vez de anti-neoliberalismo.

18 de julho de 2016

Althusser e o jovem Marx

Pierre Macherey



Tradução / "Sobre o Jovem Marx", datado de novembro de 1960, apareceu pela primeira vez na edição de março/abril de La Pensée, sendo em seguida publicado em For Marx. O pano de fundo de sua redação foi o lançamento de uma edição especial da Recherches Internationales sobre o tópico do Jovem Marx, que reuniu estudos de acadêmicos marxistas sobre o tema, quase todos eles oriundos da Europa oriental.(1)Trata-se do primeiro texto importante de Althusser, com a exceção do pequeno livro sobre Montesquieu publicado no ano anterior, e caiu como uma verdadeira bomba sobre o meio intelectual da época. Neste texto é possível discernir as linhas gerais de uma orientação de pensamento, formando um ponto de partida para todas as abordagens futuras de Althusser.

O subtítulo que Althusser escolheu para este artigo, “Questões de Teoria”, joga abertamente com o título da longa introdução que Sartre escreveu para seu Crítica da Razão Dialética, “Questões de Método”, lançado no mesmo ano e publicado separadamente em Les Temps Modernes.(2) Imediatamente, dirige-se a atenção do leitor aos pontos fundamentais do estudo: ele não diz respeito a uma questão particular na história da ideias, mas avança toda uma concepção de trabalho “filosófico”, rebatizado sob o nome de “teoria” – a concepção de que Althusser continuaria a praticar no que ele escreveria, sem dúvida alterando algumas modalidades de sua implementação, mas sem perder de vista os pontos ali expressos.

O artigo de Althusser, dividido em três partes, aborda os problemas colocados pelas obras do Jovem Marx em suas dimensões “política”, teórica” e “histórica”.

A dimensão política do problema é que as obras do Jovem Marx – por definição anteriores ao seus textos de maturidade – foram redescobertas depois que o filósofo alemão já havia sido amplamente disseminado e estudado, constituindo assim uma oportunidade para uma empreitada “revisionista” à la lettre: isto é, a tentativa de reavaliar o significado de todo o pensamento marxista à luz desses primeiros escritos, que em sua maioria permaneceram desconhecidos até o século XX, com a exceção das Teses sobre Feuerbach, exumadas por Engels após a morte de Marx e apresentadas como “o gérmen brilhante da visão de um novo mundo.” Althusser resume o espírito dessa empreitada revisionista: “O Capital é uma teoria ética, cuja filosofia silenciosa é abertamente discutida nos Textos da Juventude de Marx.”(3) Aqui o caminho foi iluminado por aqueles que se tornaram os ardentes defensores da figura até então ignorada do Jovem Marx, “através da qual a Verdade falava”; enquanto no Marx tardio tal figura seria destruída, ou ao menos expressa de forma muda, acompanhando seus postulados explícitos com um silêncio ensurdecedor. Aqui também, surgiu o debate sobre a questão de saber quem era o “verdadeiro” Marx: entre a ortodoxia, rigidamente encampada sobre bases doutrinárias e os “revisionistas” de várias estirpes, concordando entre si apenas sobre a necessidade de remontar essa doutrina a suas fontes, e assim contrariar sua versão oficial, a fim de recobrar sua força e autenticidade.

Com o debate posto nestes termos, Althusser se deleita em afirmar que os teóricos ortodoxos – que adotaram uma atitude puramente defensiva, vociferando contra os hereges “revisionistas” – foram pegos completamente de surpresa, respondendo de forma claramente reacionária, animados por um “medo devoto”, como diz Althusser. De todo modo, deve-se lembrar que essa ortodoxia é responsável pela longa negligência em relação ao pensamento do Jovem Marx, e que cabia a eles redescobri-lo, com o auxílio dos trabalhos pioneiros de Franz Mehring ou, mais recentemente, de Auguste Cornu, estando assim presos numa armadilha que eles mesmos criaram à sua própria revelia. As virtudes usurpadas nas quais se veste a ortodoxia têm, como seu reverso, o crime da ignorância; uma ignorância crassa peculiar a um certo marxismo francês do pós-guerra, que buscava rapidamente tapar os buracos praticando o que Althusser chama – retomando uma fórmula de Adam Schaff, que também justificava, com certo um grau de inocência, essa abordagem – de uma leitura no “futuro anterior” dessas constrangedoras obras da juventude de Marx, praticadas em nome do “tribunal do marxismo plenamente desenvolvido”, de modo a forçar sua interpretação a caber na doutrina já estabelecida e supostamente incluída na soberana autoridade do tribunal.(4) Essa abordagem revela, ademais, uma profunda dificuldade de considerar o pensamento marxista como não tendo caído do céu de forma acabada: uma dificuldade que equivale ao mais puro idealismo.

Isso leva a um exame da segunda dimensão do problema, sua dimensão teórica, uma vez que, como escreve Althusser: “Mesmo quando trata-se de defender-se, não pode haver boa política sem uma boa teoria.”(5) Não é suficiente, na verdade, adotar um linha política “correta” para saber, no sentido específico do termo, como ler os textos do Jovem Marx – textos teóricos que, como tais, pedem uma leitura teórica. No entanto, a defensiva política no interior da operação “Jovem Marx” improvisada pelos guardiões da ortodoxia não é totalmente despida de fundamentos teóricos; na verdade, deve-se dizer que ela repousa sobre bases extremamente frágeis, tanto mais contestáveis por permanecerem implícitas. O pano de fundo dessa abordagem defensiva é uma concepção imatura de teoria, reduzida a uma doutrina tornada artificialmente autônoma e apartada da realidade. Essa era a condição para assumir a posição teoricamente indefensável – apesar de politicamente correta – de um “Marx total,” isto é, um Marx cujo pensamento constitui uma totalidade homogênea, auto-suficiente e indivisível, a ser aceita ou rejeitada en bloc. Althusser explica que essa maneira de entender o pensamento marxista reflete dois pressupostos – um analítico e outro teleológico. Ambos têm, como pré-condição, seu próprio pressuposto, que “considera a história das ideias como seu próprio elemento, postulando que nada acontece que não seja um produto da própria história das ideias e que o mundo da ideologia é seu próprio princípio de inteligibilidade.”(6) No entanto, essa presunção de uma “auto-inteligibilidade da ideologia” não repousa sobre outra fundação que não a recusa de reconhecer o que poderíamos chamar de o status prático-material da teoria, marcado por uma historicidade que escapa a uma tendência interna à história das ideias.

Althusser opõe a tal abordagem uma concepção que ele viria a enfatizar cada vez mais, antes de apresentá-la finalmente como “tese”: a recusa a reduzir a teoria marxista – como parecia natural e como Engels o fez pela primeira vez, com propósitos propagandísticos – a uma “visão de mundo”, isto é, a ideias, a uma perspectiva inevitavelmente idealista sobre a realidade; uma perspectiva autônoma em relação à ordem do real, recobrindo-o à maneira do que normalmente chamamos de uma “visão”. Se a teoria de Marx é revolucionária, isto é, engajada no movimento de transformação do mundo, é precisamente porque não pode ser reduzida a uma “visão”, independentemente do quão visionária; sua teoria não pode ser reduzida a um conjunto de ideias sobre o mundo ou sobre o que mundo diz de si mesmo – trata-se simplesmente de uma parte do mundo sobre o qual reflete, não na forma de uma doutrina acabada, mas de um “work-in-progress”, o resultado de um trabalho teórico. Esse trabalho teórico é indispensável se a teoria pretende transformar o mundo imprimindo-lhe sua marca.

Ao fim e ao cabo, foi sobretudo a representação de um marxismo eterno, aderindo rigidamente a uma doutrina singular e unificada, que teve que ser desafiada pela restauração desse processo, com toda a densidade de sua complexa textura, marcado pelas contingências da história real a que desde sempre pertenceu. Ao mesmo tempo, um outro argumento passou a tomar corpo: que o que se costuma chamar de marxismo não seria, em última instância, nada mais que um campo aberto de debate, cuja “teoria” estaria aberta a uma contínua reconfiguração. O fechamento desse debate condenaria o marxismo ao desaparecimento; o que é especificamente “teórico” para o marxismo não tem a ver com a pura teoria, mas sim com o permanente trabalho de produção, reprodução e transformação da teoria – que não seria de fato teoria ou teoria real, prático material, se fosse expurgada definitiva, quase miraculosamente, de suas impurezas. De modo que Althusser não estava propondo, como se acreditava então, a construção de uma nova ortodoxia baseada em seu próprio conceito de teoria; em vez disso, ele acreditava que sua teoria poderia servir como um instrumento crítico para a destruição de todas as ortodoxias, onde quer que surgissem e quaisquer que fossem suas motivações ou argumentos de que lançassem mão como prova de sua auto-inteligibilidade.

No artigo sobre o Jovem Marx, o primeiro alvo dessa perspectiva crítica é a teleologia; o real ponto de partida da abordagem de Althusser está localizado em sua interrogação dos pressupostos teleológicos. Ademais, isso permite um melhor entendimento do porquê Spinoza – introduzido ao final do artigo como a única verdadeira alternativa a Hegel, numa nota de rodapé sobre o processo de Aufhebung, ou “suprassunção”, onde se afirma a necessidade de a ciência romper com a ideologia – é uma referência filosófica essencial para Althusser, sempre presente em seu trabalho teórico.(7) Uma leitura dos textos de Marx no futuro anterior, buscando neles antecipações do Marx maduro – supostamente o Marx verdadeiro, a verdade de tudo o que leva a assinatura de Marx – torna esses escritos vetores ou canais de um destino: um itinerário que avança por etapas e deverá conduzir finalmente ao desvendamento de uma figura totalmente acabada, da qual aquelas seriam não mais do que esboços imaturos, como um “significado em suspensão” já presente e transparente através das formas mesmas de sua ausência. Althusser propõe uma outra concepção, em que esses escritos de juventude sejam apreendidos em seu conteúdo vivo, tais como foram escritos, sem possuir nenhum outro destino – se é que esse conceito ainda pode ser usado – que não eles mesmos. Daí a necessidade de investigar o que estava em jogo nestes textos a fim de melhor compreendê-los, em vez de impor-lhes normas interpretativas externas – o que acabamos fazendo quando sobrepomos esquemas argumentativos sobre os textos após os fatos que eles talvez tenham tornado possíveis em primeiro lugar, ou ainda “preparado, ao antecipar sua emergência.

O que estava em jogo para Marx e que riscos ele tomou ao escrever esses famosos manuscritos em 1844, sem poder saber – por razões óbvias – o que sua publicação muitas décadas depois implicaria, simplesmente porque eles não conduzem a nenhum outro lugar que não o que está literalmente neles inscrito? Ao formular tal questão, podemos ver mais claramente os problemas que advém de uma noção de visão de mundo: precisamente porque, analisados em si mesmos, em seus próprios termos, como outros escritos do Jovem Marx, eles não apontam, em absoluto, para um visão de mundo que possa ser destacada ou extraída deles, como o pressuposto teleológico que exige que tal coisa seja realizada quando o ciclo de maturação dessa visão de mundo for completado. Ademais, nada nos impede de abordar as questões com as quais Marx mais tarde lidaria ao escrever O Capital – certamente não com o objetivo de melhor definir os contornos de uma visão de mundo que já apreendeu as condições de sua própria inteligibilidade. Não vemos porque as regras de leitura aplicadas ao textos da juventude de Marx não poderiam também ser aplicadas a seus textos de maturidade.

Como entender então a gênese do pensamento de Marx? Para responder a esta questão, Althusser propõe o que chama de “princípios marxistas de uma teoria do desenvolvimento ideológico”, rompendo com o método analítico-teleológico e as pressuposições hegelianas que o assombravam. Os princípios são três:

O primeiro afirma que:

Toda ideologia deve ser considerada como uma totalidade real, unificada internamente por sua própria problemática, de modo que é impossível remover um elemento sem alterar todo o seu sentido.(8)

Esse princípio, que poderia ser chamado de princípio da totalidade, e cuja inspiração fundamental é estruturalista – embora Bergson possa ser considerado, com igual validade, como uma influência importante – afirma que o que poderíamos chamar de uma experiência de pensamento aparece na forma de uma unidade concreta e não-segmentável, sendo portanto irredutível quer a uma agência quer a um fluxo independente de ideias; é, ademais, organicamente ordenada, a começar por sua problemática básica: é ela que abre a perspectiva singular dentro da qual todos os seus elementos encontram um lugar, de acordo com a necessidade específica de sua organização, funcionando assim como um esquema vital. Ao mesmo tempo, cada uma dessas experiências de pensamento se apresenta como uma totalidade autônoma, fazendo com que seja impossível colocá-las numa mesma trajetória evolutiva, como se fossem as etapas de um caminho único. Esse princípio da totalidade, expresso em primeiro lugar e tendo um status de pré-requisito, é necessário mas não suficiente: na verdade, sua implementação coloca um problema, na medida em que reintroduz o pressuposto da auto-inteligibilidade da experiência de pensamento em questão – a última deve se referir somente a si mesma, desqualificando qualquer critério de verificação externo à sua própria ordem.

É por isso que o princípio da totalidade deve ser complementado ou suplementado – poderíamos dizer até mesmo corrigido – por um segundo princípio, de acordo com o qual:

O significado dessa totalidade, de uma ideologia particular (neste caso, o pensamento de um indivíduo) não depende de sua relação com uma verdade interna a essa experiência, mas de sua relação com o campo ideológico existente e com os problemas sociais e relações sociais que sustentam a ideologia e nela se refletem; o desenvolvimento de uma ideologia particular não depende da relação de tal desenvolvimento com suas origens e seu fim, considerados como sua verdade, mas da relação existente no interior desse desenvolvimento entre as mutações de uma ideologia particular e as mutações do campo ideológico e dos problemas e relações sociais que a sustentam. (9)

Isso lembra muito um Bourdieu avant la lettre: uma experiência orgânica de pensamento – uma que seja organizada em torno de uma problemática fundamental e singular, como demonstrado pelo princípio anterior – somente se torna possível porque se inscreve num “campo” pelo termo intermediário com o qual se relaciona: com um certo número de “problemas e relações sociais”, para utilizar os termos de Althusser. O “campo ideológico” que desempenha um papel constituinte na formação e desenvolvimento de uma experiência de pensamento, e que não pode ser tratado como um pano de fundo neutro, deve ser considerado oscilante – isto é, ele afeta a experiência de pensamento em questão bem como a totalidade orgânica que ele forma por meio de um certo coeficiente de instabilidade: sua ordem é relativa aos “problemas e situações sociais que a sustentam”, para usar novamente gramática althusseriana. “Eles a sustentam” – em outras palavras, os problemas e relações sociais constituem a base material do campo ideológico; eles o refletem e a experiência de pensamento, por sua vez, reflete esses problemas e estruturas sociais, das quais ela é um modo de expressão ou manifestação histórica. Por essa razão, esse segundo princípio deveria ser chamado princípio da historicidade.

É significativo que a expressão do primeiro princípio seja organizada em torno da questão de uma “problemática”, enquanto a referência no segundo princípio é a “problemas sociais”, com um significado distinto mas não totalmente desvinculado do primeiro. Poderíamos concluir, a partir disso, que um todo ideológico pode ser considerado uma totalidade orgânica, reduzido a uma punhado de questões que estruturam fundamentalmente seus elementos desde o início. Mas de onde surgiu esse questionamento? Ele se desenvolveu no campo das puras ideias para em seguida se estabelecer no interior dum campo inteiramente intelectual, como se se tratasse de uma disputa de ideias? Isso não expressaria o fato de que, na experiência de pensamento em questão, algo causa um problema, afetando-a por meio do que chamamos um coeficiente de instabilidade? Mas se algo causa um problema aqui, não basta fazer um esforço para encontrar uma solução adequada, como ao responder um jogo de palavras cruzadas. Ao invés de enfrentar um problema diretamente, essa experiência de pensamento deverá lidar com ele de forma imanente, comunicando suas operações numa dinâmica aberta ao invés de fechada e, assim, expondo-se às mudanças que a colocam num ciclo global de transformações. Aqui, a referência de passagem aos “problemas sociais” adquire seu sentido completo: uma estrutura ideológica, com seus problemas fundamentais, reflete as dificuldades e contradições que atravessam a realidade social definidora de seu “campo” e – sem tender a um destino pré-determinado – se desenvolve na direção de suas mudanças, mudanças essas que não são a realização de um destino mas o resultado de um processo, em que a estrutura ideológica em questão está totalmente imersa. Se uma experiência de pensamento “reflete” a realidade social, o faz na medida em que recupera os “problemas” que causam seus próprios problemas, ao invés de apresentar a realidade como uma imagem panorâmica o mais fiel possível: é isso que Althusser chama de “questões teóricas”, que podem ser formuladas apenas numa perspectiva histórica de mudança e transformação. Em termos mais abstratos, poderíamos dizer que o que é refletido não é o estado mas sim o processo das coisas.

O primeiro princípio evidencia um caráter internalista, levemente temperado pelo segundo princípio, que introduz a ideia de que uma “experiência de pensamento” não é uma totalidade ordenada, mas uma totalidade em movimento, em que as coisas se movem sob uma pressão advinda da verdadeiro ponto de ancoragem dessa experiência – qual seja, uma estrutura social específica atravessada por conflitos que a fazem mover-se. Isso nos conduz ao terceiro princípio que, contrariamente ao primeiro, possui uma dimensão externalista. Ele afirma que:

o princípio motor de uma ideologia particular não pode ser encontrado no interior dessa ideologia mas em seu exterior, no que lhe subjaz: seu autor como um indivíduo concreto e a história refletida no desenvolvimento desse indivíduo, de acordo com os complexos laços entre o indivíduo e sua história.(10)

Vale notar que Sartre escreve algo bastante parecido em seu Busca de um Método: a relação entre ressonância e conflito entre um processo singular e o contexto global em que esse processo ocorre, fornecendo-lhe dimensões objetivas e subjetivas – algo como uma relação recíproca entre o objetivo e o subjetivo – explica as trajetórias desse processo, como mapeadas, por exemplo, pelo jovem Marx na Alemanha da década de 1840.

Após estabelecer esses princípios – que poderíamos catalogar livremente sob as respectivas autoridades de Bergson, Bourdieu e Sartre – Althusser reflete sobre eles de modo mais geral e, embora o termo não seja usado explicitamente, parece aproximar-se mais da noção de ruptura [epistemológica] que ele empregará mais tarde. Na verdade, ele esclarece que esses princípios:

não são princípios ideológicos no sentido estrito, mas princípios científicos: em outras palavras, eles não são a verdade do processo a ser estudado (como são todos os princípios de uma história escrita no “futuro anterior”). Eles não são a verdade de, mas a verdade para – eles são verdadeiros como pré-condição para colocar legitimamente um problema e, por meio dele, produzir uma solução verdadeira. Assim, esses princípios também pressupõe o “marxismo plenamente desenvolvido”, porém não como verdade de sua própria gênese, mas como a teoria que torna possível uma compreensão de sua própria gênese e de qualquer outro processo histórico.(11)

Vemos aqui a noção de verdade retornar com toda a força na forma de uma “verdade para”, que possuiria um grau de dignidade científica, distinta de uma “verdade de”, relegada ao nível da ideologia e sendo, portanto, desqualificada. Como deveríamos entender essa “verdade para”? Presumidamente como a verdade que surge de um processo de conhecimento que opera a uma certa distância de seu objeto porque, em vez de considerá-lo como uma totalidade já dada pela experiência imediata, cuja verdade poderia ser apreendida no máximo como “verdade de”, esse processo reconstrói completamente o objeto a fim de transformá-lo no que Althusser mais tarde chamará de objeto teórico, um objeto de pensamento, um “concreto-em-pensamento”, de acordo com o que ele designa como a pré-condição da colocação legítima de um problema. Podemos vislumbrar nessa análise as lições epistemológicas algo primitivas que Althusser colheu de suas leituras de Bachelard e Koyré, e que continuariam a basear as reflexões de Althusser e seus discípulos sobre o conceito de ruptura: uma ciência digna do nome não estuda objetos diretamente disponíveis, como que entregues de bandeja pelo movimento espontâneo da realidade e da vida, mas considera somente os objetos que ela problematiza por seus próprios meios, retrabalhando-os a partir de suas próprias investigações, colocando assim “questões teóricas” para esses objetos e gerando uma “verdade para”, que não se resume a uma questão de método, preocupada somente em obter acesso a uma “verdade de”.

Como essas considerações se aplicam ao Jovem Marx? Na medida em que, para utilizar os termos de Althusser, eles conduzem à “teoria que torna possível uma compreensão de sua própria gênese e de qualquer outro processo histórico.” O que Althusser chama de “marxismo plenamente desenvolvido” – e retornaremos a esse ponto em breve, embora a expressão “marxismo constituído” teria sem dúvida sido mais feliz – permite que a obra do Jovem Marx seja repensada. Ele possibilita “uma compreensão de sua própria gênese” na medida em que essa gênese é tratada da mesma forma que qualquer outro processo histórico. Assim, sem se aproximar demais de uma doutrina que se regozija da própria auto-inteligibilidade, arrogando-se a tarefa de fornecer sua própria “verdade de”, mas ao mesmo tempo com o auto-distanciamento necessário a uma atividade que busca a “verdade para”, que se obriga a reconstruir seus objetos utilizando-se de “questões teóricas” para identificar o que no interior desses objetos conduz a mudanças e transformações; baseando-se em problemas que trabalham sobre os objetos de dentro e de fora, de acordo com uma dimensão dual, objetiva e subjetiva. Como escreve Althusser: “tudo depende do jogo entre o rigor de um pensamento individual e o sistema temático de um campo ideológico… no exato momento em que aquele indivíduo concreto, o Jovem Marx, emergiu no mundo do pensamento de seu próprio tempo para, por sua vez, pensá-lo”.(12)

Essa análise repousa sobre um pressuposto, indicado pela expressão “marxismo plenamente desenvolvido”; e há, é claro, a questão de saber o que distingue esse pressuposto de um simples preconceito. O que nos autoriza a afirmar a existência de uma teoria que logrou se distanciar, de uma vez por todas, dos objetos que lhe dizem respeito e consagrar, por uma espécie de unção divina, a prática da “verdade para”, uma vez que tenha exorcizado os demônios da “verdade de”? Não encontraríamos aqui, sob o disfarce da Teoria, uma ideologia da ciência, que apresenta a última como constitutiva de uma ordem distinta, fazendo uso de um privilégio exorbitante para afastar regimes de conhecimento que intervieram em sua gênese, tendo conquistado sua homogeneidade graças a essa separação? E não seria essa ideologia, em última análise, política, visto que responde, acima de tudo, à necessidade do partido dos trabalhadores e das massas de ter uma doutrina viável, ou ao menos viável o bastante para garantir teoricamente sua prática? Mas o fato de que uma “teoria” sirva para garantir a prática não a desviaria naturalmente do caminho da teoria autêntica?

Podemos pôr de lado provisoriamente essas interrogações, e buscar entender que elementos de “verdade para” esse marxismo plenamente desenvolvido – o qual, como Althusser imediatamente esclarece, não é um marxismo completo, no sentido de uma teoria que não teria novos conhecimentos a produzir – tem a oferecer para uma compreensão do pensamento do Jovem Marx, uma vez que esse é o principal objeto a que essa investigação nos conduziu. O primeiro desses elementos é o conceito já antecipado de “campo ideológico”. Como esse conceito – assumindo que ele mereça a dignidade de um verdadeiro conceito – pode ser considerado relevante para as “questões teóricas” em jogo? Porque ele encoraja uma reconstrução, ao lado dos pensamentos singulares que Marx produziu em seu próprio nome durante sua juventude, da complexa atmosfera temática dentro da qual sua empreitada foi historicamente conduzida, sem que uma conclusão – se é que ela de fato ocorreu em algum momento – esteja de qualquer modo prefigurada em seus condições iniciais.

Desse ponto de vista, parece que estudar as obras do jovem Marx perde qualquer caráter “científico”, uma vez que passam a ser consideradas autônomas, sendo no máximo re-inscritas no contexto de uma “‘visão de mundo” auto-inteligível batizada com o nome de marxismo, supostamente governando sua própria gestão por meio de sua imutabilidade. A questão teórica que surge então, e que, podemos admitir, põe um fim à confusão que havia previamente reinado nos estudos sobre o Jovem Marx, pode ser capturada, de forma simples, nos seguintes termos: como foi que o que passaríamos a chamar de marxismo – um único termo que abrange uma realidade intelectual complexo e conflituosa – pôde ser elaborado a partir de materiais que não eram inicialmente parte do “marxismo”, não sendo assim desde já marxistas, mas que se provaram indispensáveis para a efetiva produção desse marxismo, cuja estrutura não era pré-inscrita no domínio das puras ideias onde se produzem as visões de mundo? Como o marxismo se constituiu a partir do trabalho de alguns indivíduos? Em primeiro lugar, há o próprio Marx, através das correntes mais amplas de pensamento que estruturaram o “campo ideológico” da Alemanha da década de 1840: essencialmente Hegel e Feuerbach, mas também as obras que surgiram a partir do culto intelectual a August Cieszkowski, que em 1838 defendeu uma filosofia da ação de uma perspectiva pós-hegeliana, bem como outras abordagens, mais secretas, como a do autodidata Moses Hess, que serviu como mediador para o socialismo utópico, ou mesmo as primeiríssimas descobertas no campo da economia política, realizadas por Engels, o jovem industrialista encantado pelas ideias revolucionárias e preocupado com a condição da classe trabalhadora. Esse intensa fermentação de ideias agitou não somente os intelectuais do período, mas também os grupos na Alemanha e na França que prefiguraram as primeiras formas organizacionais do movimento dos trabalhadores.

A relação de Marx com Feuerbach, um tema pelo qual Althusser se interessava vivamente nesta época, tendo ele próprio acabado de concluir uma tradução do Manifesto Filosófico de Feuerbach, é particularmente importante nesse sentido.(13) Quando, num certo momento de seu desenvolvimento intelectual, Marx emprega os esquemas de pensamento de Feuerbach deslocando seu ponto de aplicação – num primeiro nível, da religião à política, e num segundo nível, da política à economia, como Engels o inspirou a fazer com seu “Esboços de uma Crítica da Nationalökonomie” – deveríamos considerar que as formações teóricas geradas nessa condições resultaram numa combinação entre certos elementos que teriam sido extraídos de Feuerbach e outros que não, podendo assim prefigurar o Marx por vir, com essa combinação tendo dado origem a um pensamento misto, híbrido, cujo caráter composto poderia ser chamado de uma operação de decantação, apenas aparentemente inevitável?

Na verdade, não. O que precisa ser entendido – embora essa seja uma tarefa difícil – é que esse momento específico no desenvolvimento do pensamento do Jovem Marx apresenta a unidade de uma “estrutura sistemática típica”, definida por uma “problemática”; isto é, o que dá a essa estrutura sua própria coerência é o modo pelo qual reflete seus objetos, retrabalhando-os sob a luz das questões que podemos perguntar a seu respeito. Althusser acrescenta: “descobrir nessa unidade um conteúdo determinado que torna possível ao mesmo tempo conceber o significado dos “elementos” da ideologia em questão e relacioná-la aos problemas colocados diante de cada pensador pelo período histórico em que ele vive.”(14)

Em outras palavras, poderíamos dizer que a unidade de uma estrutura de pensamento tem, em última análise, uma base prática e não teórica. A expressão “questões teóricas”, ou “questões de teoria”, que é o subtítulo do artigo de Althusser, adquire uma nova dimensão, uma vez que as questões teóricas não são apenas ou simplesmente teóricas, ou intra-teóricas. As questões teóricas não devem ser entendidas apenas pelas questões que a teoria coloca ou coloca para si, mas também pelas questões em relação às quais a teoria se define ao reagir de acordo com os meios à sua disposição. Qual a importância disso? Esse aspecto ambivalente da teoria indica que o que está em jogo é a união dos dois extremos de uma corrente: apreender a unidade de uma estrutura teórica que produz determinados efeitos de significado e ao mesmo tempo medir em que ponto essa estrutura, apesar de formar um todo unificado, é afetada por um certo grau de instabilidade, uma instabilidade transmitida que lhe é transmitida pela conjuntura histórica da qual ela é apenas um componente; um conjuntura com seus próprios problemas reais, aos quais a teoria reage com seus próprios meios, isto é, seus meios teóricos.

Podemos começar a entender, então, porque Althusser, ao longo de todas as suas análises, foca tão insistentemente na noção de ideologia, que ele aplica sistematicamente ao pensamento do jovem Marx. A ideologia deveria ser entendida como uma estrutura de pensamento ao mesmo tempo unificada e instável, sendo assim impelida a um movimento permanente de reestruturação que explora suas dificuldades internas e externas – os dois tipos de dificuldades que uma ideologia enfrenta, na medida em que aborda problemas teóricos pelo confronto simultâneo com problemas reais. Deveríamos ter em mente que esse movimento de reestruturação não segue condições lógicas e que seu fim, se o há, não está anunciado no ponto de partida; sobretudo se considerarmos que a continuação desse movimento não segue a lógica da consciência teórico-reflexiva, mas opera de modo majoritariamente inconsciente e, portanto, cego. Como escreve Althusser a respeito da estrutura ideológica que determina o pensamento nessas condições: “no geral, o filósofo pensa em seu interior ao invés de pensar sobre ela.”(15)

Como se constitui a estrutura ideológica da qual as obras do Jovem Marx fazem parte? Para Althusser, ela possui uma forma essencialmente antropológica, o que explica o papel que Feuerbach desempenha na formação do pensamento de Marx nesse período. Pouco importa que essa perspectiva antropológica seja aplicada a objetos diferentes como religião, política, história ou economia: o que importa é a “problemática básica” a que esses objetos distintos estão sempre relacionados, na medida em que são sempre interpretados como sendo objetos do homem, ou objetos em que o homem projeta e eventualmente aliena seu ser-genérico, ao transformar seus próprios objetos numa forma-objeto, como afirma Feuerbach. A questão central que Marx enfrenta – assim que essa estrutura ideológica passa a ser um problema – é a seguinte: como deixar de ser feurbachiano? Esse questão é colocada explicitamente por ele ao esboçar Teses Sobre Feuerbach, em torno de 1845, após haver escrito com Engels A Ideologia Alemã.

Evidentemente, precisamos ir além de Althusser nesse ponto: ainda que aquele fosse um projeto consciente, teria Marx realmente abandonado Feuerbach em algum momento? Teria ele de fato varrido de suas análises a problemática antropológica, presente desde o início? Toda a controvérsia envolvendo o humanismo teórico está, in nuce, nessa questão; hoje podemos arriscar a interpretação de que Althusser foi imprudente ao absolver Marx em definitivo – o que ele considerava o verdadeiro Marx, o Marx do “marxismo plenamente desenvolvido” – de toda suspeita antropológica, uma suspeita que na verdade respondia a uma das preocupações filosóficas bastante específicas de Althusser – ao menos o jovem Althusser, que escreve seu artigo sobre o Jovem Marx baseando-se em recordações advindas em grande parte de sua leitura de Spinoza. Essa complacência é produto de uma das convicções de Althusser, afirmada veementemente ao longo de sua análise: “o marxismo não é uma ideologia.” É por isso que, entre o marxismo, grafado com inicial minúscula, e o Marxismo, com “M” maiúsculo, do Marx que havia se tornado ele mesmo, o verdadeiro Marx, há uma enorme incompatibilidade. Althusser expressará subsequentemente essa incompatibilidade ao empregar a noção de ruptura.

A terceira seção do artigo é dedicada a aspectos históricos específicos do problema colocado pela interpretação da obra do Jovem Marx: pode-se resolver o problema levantado? Nesta última seção do texto, Althusser examina o que ele chama de “a trajetória de Marx”, isto é, a evolução que o leva, num dado momento – que Althusser estima ser 1845, a data provável em que Marx esboça suas Teses sobre Feuerbach – a repudiar a estrutura ideológica antropológica que ele havia em grande parte herdado de Feuerbach. Qual é o motor dessa evolução? Althusser passa muito rapidamente pelos aspectos dessa questão que estão ligados à própria personalidade de Marx, e podemos facilmente entender o porquê; isso está ligado ao que Sartre, citado nessa ocasião, chama de o “projeto básico” de um autor, do qual todos os elementos constitutivos de sua obra se irradiam, na medida em que, através desse projeto, o autor realiza sua liberdade.

Deve-se resistir à tentação de reduzir a evolução de Marx a um trabalho de reflexão e, portanto, a um esforço intra-cognitivo – um trabalho de reflexão cujo “material” seria fornecido pelas “ideias” que o filósofo tinha então à sua disposição, quais sejam, as de Hegel e Feuerbach, ideias que ele teria perseguido a todo custo, fazendo-as operar de outra maneira, extraindo delas seu conteúdo de verdade. Seria isso que Marx teria feito, por exemplo, ao inverter a dialética hegeliana: “desvirando-a” ou “colocando-a de novo sobre seus pés”, segundo a conhecida fórmula; isto é, transformando a dialética idealista numa dialética materialista, como se a palavra “dialética” pudesse ter o mesmo significado num contexto materialista e num contexto idealista. Althusser resume essa tentação da seguinte maneira:

“O leitor não consegue resistir à transparência do rigor reflexivo e da potência lógica dos primeiros escritos de Marx. Tal transparência naturalmente o inclina a crer que a lógica da inteligência de Marx coincide com a lógica de sua reflexão, e que ele extraiu do mundo ideológico sobre o qual se debruçou a verdade que aquele de fato continha. Essa convicção é ainda reforçada pela convicção do próprio Marx, que está presente em todos os seus esforços e mesmo em seus entusiasmos – em suma, pela sua consciência.”(16)

O objetivo dessa análise é explicar como o motor da evolução teórica de Marx teria sido uma consciência da verdade, no sentido de uma verdade escondida que deve ser descoberta ou revelada a qualquer preço mas que, por assim dizer, pré-existe à sua exibição: uma verdade que é, em certo sentido, ideal, uma vez que não precisa ser realizada, ou poderíamos dizer praticada, para de fato existir como verdade. Mas se quisermos cultivar qualquer esperança de compreender como Marx, ou o Marx do marxismo com “m” minúsculo, tornou-se o Marx do Marxismo com “M” maiúsculo, essa abordagem hermenêutica que enxerga a verdade como um segredo aguardando revelação precisa ser abandonada; a questão se resume então em saber se já há um destino no interior da ideia mesma de verdade que seja intimamente ligado a essa abordagem, ao ponto de tornar a verdade um conteúdo de pensamento independente do fato materialmente conhecido.

É por isso que é necessário diferenciar uma real lógica de invenção de uma lógica ideal de reflexão, para usar os termos de Althusser. O que as distingue em primeiro lugar é o fato de que a lógica da reflexão aparece como lógica da necessidade, enquanto a lógica da invenção é uma lógica da contingência, ou o que poderia ser chamado de uma lógica do evento. Sim, a invenção do marxismo com “M” maiúsculo, a constituição de uma Teoria (na medida em que ela se distancia da ideologia) é um processo submetido à contingência do evento. O que isso quer dizer? Que essa Teoria não é uma teoria pura, que poderia ser compreendida somente no nível teórico, mas faz parte do resultado incerto de uma determinada conjuntura histórica – a da Alemanha da década de 1840, para ser mais exato – quando um jovem filósofo chamado Marx precisou, na visão de Althusser, inventar uma nova ciência, a ciência do continente da história, sob condições semelhantes àquelas nas quais todas as ciências são de fato criadas – por meio de um trabalho que não é exclusivamente intra-teórico, de reflexão ideal-consciente, mas também atravessado pela irrupção da história real, no movimento da transformação do pensamento.

Ao pensar essa irrupção da realidade, ou o que parece uma irrupção no interior do desenvolvimento de um corpo de pensamento, Althusser fala novamente de uma “emergência súbita” que força esse pensamento, agora solicitado e provocado pela realidade, a retornar a seus problemas fundamentais, a reconstruir inteiramente sua abordagem. Podemos entender essa virada como a elaboração de uma teoria materialista do conhecimento, uma concepção em que, para usar termos simples, as coisas ganham voz na formação da teoria que lhes confronta. Isso se dá porque o que estamos chamando de “coisas” não representam apenas um estado de fatos estáticos imóveis, oferecidos numa bandeja para o filósofo – como uma ordem estagnada, suspensa, que existiria a fim de ser compreendida o mais objetivamente possível – mas existem também de forma dinâmica, como ação: um processo prático e vivo, em que as operações do pensamento estão plenamente envolvidas. Se o que estamos chamando de “coisas” não funcionam “no” pensamento, no sentido de uma intervenção causal mecânica, elas funcionam “no interior” do pensamento, uma vez que o pensamento não deriva das coisas, isto é, não está nas coisas. O pensamento é ele mesmo uma coisa pertencente à ordem das coisas, sendo apenas um elemento entre outros.

As premissas dessa concepção materialista de conhecimento, ainda a serem elaboradas, podem ser lidas nos interstícios do artigo de Althusser sobre o Jovem Marx; elas fornecem seu drama secreto e sem dúvida constituem sua contribuição mais significativa e substancial. Mas tais premissas aparecem em conjunção com outros elementos: elementos intra-teóricas e, para usar a linguagem de Althusser, ideológicos. No entanto, como observa o próprio Althusser, o status de um pensamento vivo não pode ser compreendido extraindo-se dele uma combinação de elementos que são de jure separáveis; o artigo sobre o Jovem Marx constitui, assim, uma unidade orgânica atravessada ou penetrada por contradições, por “problemas” que apontam para conflitos reais. A fim de melhor compreender a natureza destes problemas, a abordagem de Althusser, por sua vez, deve ser remontada a seu próprio “campo ideológico”, isto é, deve ser situada em relação a um conjunto de debates que fizeram da vida intelectual francesa dos anos 1960 um todo coerente porém instável – fundamentalmente antagonístico, mas também, como resultado, sempre em movimento.(17) Isso confirma que a história de um pensamento – quer seja de Althusser quer de Marx – jamais aparece de forma pura, e que o projeto de expurgar impurezas está fadado ao fracasso. Nas páginas finais de seu artigo, Althusser fala da “gênese dramática do pensamento de Marx” que segundo ele, “conduziu de fato ao marxismo, mas somente ao preço de uma prodigiosa ruptura com suas origens.”18 Não seria esse drama precisamente a gênese de todo pensamento? Essa é a melhor lição a se extrair dos ensaios teóricos do jovem Althusser.

O tradutor deseja agradecer a Ted Stolze, Tijana Okíc e Robert Cavooris por seus comentários úteis sobre rascunhos anteriores.

Este ensaio apareceu pela primeira vez em Actuel Marx, 31.1 (2002), 159-175.

Este artigo faz parte de um dossiê intitulado “Uma luta sem fim”: as intervenções de Althusser.

Referências:

[1] Ao aderir ao estilo de Althusser no artigo em discussão, capitalizei o “jovem Marx” por toda parte.

[2] Ver Jean-Paul Sartre, Search for a Method, trad. Hazel E. Barnes (Nova York: Alfred A. Knopf, 1963). Nota do tradutor: Ben Brewster traduziu “Questions de théorie” para o inglês como “Theoretical Questions”, perdendo assim um pouco do teor da polêmica de Althusser.

[3] Louis Althusser, “On the Young Marx,” in For Marx, trans. Ben Brewster (New York: Verso, 2007 [1970]), 52.

[4] Ibid., 54

[5] Ibid., 55

[6] Ibid., 57

[7] Ibid., 78, n40.

[8] Ibid., 62

[9] Ibid., 62-63

[10] Ibid., 63

[11] Ibid

[12] Ibid

[13] Ver Ludwig Feuerbach, Manifestes philosophiques: textes choisis (1839-1845), trad. Louis Althusser (Paris: Presse Universitaires de France, 1960). O primeiro texto em For Marx é uma introdução a esta coleção de Feuerbach, que apareceu na coleção “Epiméthée” da PUF, liderada por Jean Hyppolite.

[14] Althusser, “On the Young Marx,” 67.

[15] Ibid., 69.

[16] Ibid., 74.

[17] Nota do tradutor: Neste ponto, ver agora Knox Peden, Spinoza Contra Phenomenology: French Rationalism from Cavaillès to Deleuze (Stanford: Stanford University Press, 2014), Capítulos 5 e 6.

[18] Ibid., 82, 84.

Sobre o autor:

Pierre Macherey é professor de Filosofia na Université Lille Nord de France.

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