1 de julho de 2016

A guerra contra os estúpidos

A sociedade americana confunde cada vez mais inteligência com valor humano.

David H. Freedman

The Atlantic

Edmon de Haro

Ainda na década de 1950, não era provável que alguém de inteligência apenas mediana tivesse sua trajetória de vida seriamente limitada. O QI não era um grande fator para determinar com quem você se casaria, onde você moraria e o que os outros pensariam de você. As qualificações para um bom trabalho, seja na linha de montagem ou no escritório, girava mais em torno de integridade, ética no trabalho e habilidade de convivência — normalmente os chefes não exigiam ensino superior e muito menos pediam para verificar as notas do SAT. Conforme determinado na época, as decisões de contratação eram feitas “com base em um candidato que tenha competência crítica e dois ou mais fatores atenuados, como ansiedade, aparência, histórico de família e características físicas”.

Por outro lado, a década de 2010 é um momento terrível para não ser esperto. Os que se consideram espertos zombam abertamente os outros por serem menos do que eles. Mesmo nesta época de preocupação excessiva com pequenas agressões e vitimizações, damos exceções aos não inteligentes. As pessoas que achariam melhor se jogar de um penhasco que utilizar termos pejorativos para raça, religião, aparência física ou incapacidade estão muito contentes para soltar uma besteira: pelo contrário, diminuir os outros por serem “estúpidos” tornou-se quase automático em todas as formas de desavenças.

Também faz parte do entretenimento popular. O chamado Darwin Awards celebra incidentes em que discernimentos e compreensões errôneas, entre outras supostas limitações mentais genéticas, levam a fatalidades horríveis e mais ou menos autopunitivas. Por outro lado, numa noite assistindo programas de TV, mesmo que eles não tenham discurso de ódio, sempre haverá ao menos um insulto de uma grande lista de insultos cômicos aos não inteligentes (“besta quadrada”; “faltam parafusos em sua cabeça”; “mais burro que uma porta”; e assim por diante). No Reddit, as melhores formas de insultar pessoas estúpidas sempre estão disponíveis, e o site fun-stuff-to-do.com dedica uma página ao assunto entre ideias para decorar uma festa e receitas de drinks.

Esta chacota é especialmente cruel, considerando o mais sério abuso que a vida moderna acumulou sobre as pessoas dotadas de menos inteligência. Poucos ficariam surpresos em saber que, de acordo com a Pesquisa Longitudinal Nacional da Juventude dos EUA de 1979, um estudo federal de longo prazo, o QI está relacionado a chances de conseguir um emprego financeiramente recompensador. Outras metas sugerem que a pontuação do QI vale centenas de dólares na renda anual — certamente uma fórmula dolorosa para os 80 milhões de norte-americanos com QI abaixo de 90. Quando as pessoas menos inteligentes são identificadas por falta de conquistas acadêmicas (as quais, nos EUA contemporâneo, estão estritamente relacionadas a QI baixo), o contraste somente aumenta. De 1979 a 2012, a diferença da renda média entre uma família conduzida por dois assalariados com ensino superior e dois assalariados com ensino médio cresceu até $ 30.000 em dólares corrigidos. Além disso, estudos constataram que, em comparação às pessoas inteligentes, as pessoas menos inteligentes estão mais propensas a sofrer certos tipos de doenças mentais, a ficar obesas, a desenvolver doenças do coração, a ter danos cerebrais permanentes resultantes de lesões traumáticas e a acabar na prisão, onde estão mais suscetíveis a violência que os demais detentos. Elas também têm mais chance de morrer mais cedo.

Em vez de buscar formas de facilitar a vida dos menos inteligentes, o bem-sucedido e influente parece estar mais determinado do que nunca a fazê-los sentirem-se excluídos. Atualmente, o site de empregos Monster aconselha seus gestores a contratarem “inteligência”, sugerindo que eles busquem candidatos que, evidentemente, “trabalhem duro”, sejam “ambiciosos” e “legais” — mas que, antes de mais nada, sejam “espertos”. Para garantir que essas pessoas sejam eliminadas, cada vez mais empresas estão aplicando testes aos candidatos com base em competências, julgamento e conhecimento. A CEB, uma das maiores prestadoras de serviços de avaliação de contratação do mundo, avalia mais de 40 milhões de candidatos de empregos ao ano. O número de novas contratações com relatório testado quase dobrou de 2008 a 2013, declara a CEB. Para garantir a avaliação, muitos desses testes verificam a personalidade e as competências, no lugar da inteligência. Porém, testes cognitivos e de inteligência são populares e continuam crescendo bastante. Além disso, muitos empregadores pedem, hoje em dia, notas do SAT (onde a relação com o QI está bem estabelecida); algumas empresas eliminam aqueles cujas notas não fiquem entre os primeiros 5%. Até mesmo o NFL fornece um teste a recrutas em potencial, o Wonderlic.

Sim, algumas carreiras exigem inteligência. Mas enquanto um alto nível de inteligência está sendo tratado cada vez mais como pré-requisito a um trabalho específico, evidências sugerem que ele não é a mais pura vantagem que parece ser. O professor da Faculdade de Administração de Harvard, Chris Argyris, argumentou que pessoas inteligentes podem se tornar os piores funcionários, em parte porque não estão habituadas a lidar com falhas ou críticas. Diversos estudos concluíram que competências interpessoais, autoconsciência e outras qualidades “emocionais” podem ser melhores indicativos de um bom desempenho no trabalho que a inteligência convencional, e a própria Administração da Universidade salienta que ela nunca afirmou que as notas do SAT seriam filtros úteis para contratação. (Com relação ao NFL, alguns dos seus líderes mais bem-sucedidos surpreendentemente tiveram notas baixas no Wonderlic, incluindo Hall of Famers, Terry Bradshaw, Dan Marino e Jim Kelly). Além disso, muitos trabalhos que exigiam ensino superior, variando de gerente de varejo a auxiliar administrativo, não se tornaram mais difíceis de forma geral para que os menos educados conseguissem desempenhá-los.

Ao mesmo tempo, os cargos que ainda podem ser obtidos sem ensino superior estão desaparecendo. A lista de trabalhos dos serviço de fabricação e de baixo nível que foram assumidos (ou quase isso) por robôs, serviços on-line, apps, quiosques e outras formas de automação cresce a cada dia. Entre os diversos tipos de trabalhadores que podem perder seus empregos em breve, estão: qualquer um que conduza pessoas ou coisas para viver, graças aos carros sem condutor dos serviços da Google e da entrega de drones em teste da Amazon, por exemplo, assim como aos caminhões sem condutor, que estão sendo testados neste momento nas estradas; e a maioria das pessoas que trabalha em restaurantes, graças aos robôs acessíveis e amigáveis feitos por empresas como Momentum Machines e a um número crescente de apps que permitem que você organize uma mesa, faça pedidos e pagamentos — tudo isso sem a ajuda de um ser humano. Esses dois exemplos juntos incluem trabalhos realizados por uma estimativa de 15 milhões de norte-americanos.

Enquanto isso, nosso fetichismo pelo QI vai agora além do local de trabalho. A inteligência e a conquista acadêmica estão subindo constantemente nos rankings de características desejadas em um parceiro; pesquisadores da Universidade de Iowa relatam que agora a inteligência está acima das competências domésticas, sucesso financeiro, estilos, sociabilidade e saúde.

A comédia mais popular da televisão é The Big Bang Theory, que acompanha um pequeno grupo de jovens cientistas. Scorpion, que possui uma equipe de antiterroristas transformados em gênios, é um dos programas com maior audiência da CBS. O detetive e gênio Sherlock Holmes possui duas séries de TV e uma franquia de filmes blockbusters, sendo uma das estrelas mais rentáveis de Hollywood. “Durante a história, toda sociedade escolheu uma característica que aumenta o sucesso para alguns”, diz Robert Sternberg, professor de desenvolvimento humano na Universidade Cornell e especialista em avaliar as características dos alunos. “Nós escolhemos competências acadêmicas”.


O que entendemos por inteligência? Dedicamos grande energia para rotular as diferentes formas que ela pode assumir — interpessoal, corporal e cinética, espacial e assim por diante — não classificando, por fim, ninguém como “não inteligente”. Mas muitas dessas formas não vão aumentar as pontuações ou notas do SAT e, provavelmente, não vão resultar num bom trabalho. Em vez de se esforçar para encontrar maneiras de discutir inteligência que não deixem ninguém de fora, faria mais sentido reconhecer que a maioria das pessoas não possui a versão necessária para prosperar no mundo de hoje.

Alguns números ajudam a esclarecer a natureza e o objetivo do problema. A Administração da Universidade sugeriu uma “meta de prontidão na universidade”, que considera 500 pontos em cada categoria do SAT como uma nota baixa, onde os estudantes provavelmente não poderão a alcançar ao menos B menos como média em uma “faculdade de quatro anos” — provavelmente uma média única. (Para fins comparativos, a Universidade do Estado de Ohio, uma faculdade consideravelmente melhor que a média, ficou classificada em 52º lugar entre as universidades dos EUA de acordo com o U.S. News & World Report, e os calouros de 2014 tiveram uma média de 605 em leitura e 668 em matemática no SAT).

Quantos alunos do ensino médio são capazes de cumprir a meta da Administração da Universidade? Não é fácil responder isso, pois em muitos estados, um grande número de estudantes nunca fez um vestibular (na Califórnia, por exemplo, no máximo 43% dos estudantes de ensino médio fizeram o SAT ou o ACT). No entanto, para ter uma ideia geral, podemos observar Delaware, Idaho, Maine e o Distrito de Columbia, que fornecem o SAT gratuitamente e possuem participação no SAT acima de 90%, de acordo com o The Washington Post. Em 2015, a média percentual dos estudantes destes estados foi de ao menos 500 em leitura, que varia de 33% (no D.C.) a 40% (em Maine), com notas distribuídas em 500 ou mais em matemática e redação. Considerando que esses dados não incluem desistências, parece seguro dizer que, no máximo, um em três estudantes do ensino médio norte-americano é capaz de atingir a meta da Administração da Universidade. Não vamos dar os detalhes que todos vocês queriam, mas não há dúvidas de que a maioria dos norte-americanos não são inteligentes o suficiente para dar um passo essencial para ser bem-sucedido em nossa nova economia centralizada no cérebro — isto é, passar quatro anos na faculdade com notas moderadamente boas.

Muitas pessoas que se beneficiaram do sistema atual gostam de dizer a elas mesmas que trabalharam duro para ajudar uma pessoa não inteligente a se tonar inteligente. Essa é uma meta maravilhosa, e décadas de pesquisa mostraram que ela pode ser alcançada por meio de duas abordagens: reduzindo drasticamente a pobreza e fazendo com que crianças com risco de ter um desempenho acadêmico ruim realizem programas educacionais infantis intensivos. O vínculo entre pobreza e esforço na escola é forte e não poderia ser mais rígido para as ciências sociais. Ainda assim, não há muito ganho em discutir a diminuição da pobreza como uma solução, já que o nosso governo e sociedade não estão considerando seriamente nenhuma iniciativa capaz de realizar uma diminuição significativa nos números ou condições de pobreza.

Isso nos deixa com a educação infantil, que, quando feita corretamente — e para crianças pobres, o que raramente é feito — parece superar bastante os déficits cognitivos e emocionais que a pobreza e outras circunstâncias de ambiente transmitem nos primeiros anos de vida. Conforme esclarecido de forma mais abrangente pelo Perry Preschool Project, em Ypsilanti, Michigan, na década de 1960; mais recentemente pelo programa Educare de Chicago; e por dezenas de programas experimentais, para que a educação infantil seja realizada de forma correta deve ser iniciada aos 3 anos de idade ou antes, com professores que tenham bom treinamento acerca das demandas específicas da educação infantil. Esses programas de alta qualidade foram estudados de perto, alguns por décadas. E embora os resultados não provem que o QI dos estudantes aumente de forma duradoura na ausência de uma educação mais forte nos anos posteriores à pré-escola, praticamente todos os efeitos desejáveis, geralmente relacionados a um QI alto, permanecem altos por anos e mesmo décadas — incluindo melhores notas na escola, notas maiores em testes, renda maior, diminuição da criminalidade e melhoria na saúde. Infelizmente, o Head Start e outros programas de educação infantil raramente chegam perto desse nível de qualidade e não estão perto do universal em nenhum lugar.

Em vez de uma educação infantil excelente, abraçamos uma estratégia mais familiar para reduzir o déficit de inteligência. Ou seja, investimos fé e o dinheiro dos nossos impostos para reformar o ensino fundamental, que recebe 607 bilhões de dólares em receitas municipais, estaduais e federais por ano. Porém, esses esforços são insuficientes e tardios: se os déficits cognitivos e emocionais relacionados a um desempenho ruim na escola não forem abordados nos primeiros anos de vida, não é provável que esforços futuros sejam bem-sucedidos.

Confrontados com a evidência de que nossa abordagem está falhando — veteranos do ensino médio com nível de leitura de quinta série e classificações internacionais decadentes — nos conformamos com a ideia de que estamos tomando medidas para encontrar crianças desprivilegiadas que sejam, mesmo com dificuldades, extremamente inteligentes. Encontrar esta pequena minoria de crianças pobres dotadas e fornecer a elas excelentes oportunidades educacionais permite-nos invocar a farsa amigável do noticiário de que há um sistema de oportunidades iguais, como se a maioria problematicamente pouco dotada não merecesse a mesma atenção que “a melhor parte do ovo”. A cobertura da imprensa condena a diferença de cursos de Encaminhamento Avançado em escolas pobres, como se o seu real problema fosse a escassez de física a nível superior e mandarim.

Mesmo se nos recusarmos em impedir a pobreza ou em fornecer uma educação infantil soberba, devemos considerar outros meios de abordar a condição de uma pessoa média. Parte do dinheiro que entrar para a reforma da educação deve ser distribuída para a criação de programas vocacionais de última geração (hoje em dia denominados ensino técnico profissionalizante). Neste momento, somente 20 escolas de ensino médio norte-americanas são escolas de ensino técnico profissionalizante em tempo integral, e essas escolas estão cada vez mais sucateadas. Considere a Chicago’s Prosser Career Academy, que tem um programa de ensino técnico profissionalizante aclamado. Embora 2 mil estudantes sejam matriculados por ano na escola, o programa de ensino técnico profissionalizante tem espaço para menos de 350. A matrícula do requerente é reduzida a um sorteio, mas classificações por testes acadêmicos também desempenham um papel. Pior ainda, muitas escolas de ensino técnico profissionalizante estão cada vez mais focadas em ciência, tecnologia, engenharia e matemática, sob o risco de acabar com a capacidade de auxiliar os alunos que fazem um grande esforço acadêmico — e não aqueles que desejam aperfeiçoar suas habilidades acadêmicas e perspectivas de carreira já excelentes. Seria bem melhor manter o foco na gestão de alimentos, administração de escritórios, tecnologia de saúde e, certamente, ofícios clássicos — todos atualizados com ferramentas computadorizadas incorporadas.

Precisamos parar de glorificar a inteligência e tratar nossa sociedade como o parque de diversões da minoria inteligente. Pelo contrário, devemos começar a modelar nossa economia, nossas escolas e mesmo nossa cultura com um olhar voltado para as competências e necessidades da maioria e na ampla variedade da capacidade humana. O governo deve, por exemplo, fornecer incentivos a empresas que resistem à automação, preservando empregos para os menos espertos. Ele também poderia desencorajar práticas de contratação que eliminam, de forma arbitrária e não produtiva, as pessoas com um QI menor. Isso poderia mesmo ser revertido ao benefício dos contratantes: seja quais as vantagens uma inteligência elevada proporciona aos funcionários, não necessariamente forma funcionários melhores e mais eficientes. Entre outras coisas, os menos espertos são, de acordo com estudos e com alguns especialistas em negócios, menos propensos a ignorar seus próprios preconceitos e falhas e a assumir de forma errônea que tendências recentes continuarão no futuro, além de terem menos propensão a ansiedade e arrogância.

Quando Michael Young, um sociólogo britânico, inventou, em 1958, o termo "meritocracia", tratava-se de uma sátira distópica. No momento, o mundo que ele imaginava, onde a inteligência determinava completamente quem prosperava e quem definhava, era entendido como predatório, patológico e absurdo. Nos dias de hoje, entretanto, quase terminamos de instaurar esse sistema e abraçamos a ideia de meritocracia com algumas reservas, tratando-a mesmo de forma virtuosa. Isso não pode estar certo. Pessoas inteligentes devem se sentir no direito de fazer o máximo de si. Mas não deve ser permitido que remodelem a sociedade de modo a instaurar a inteligência como um critério universal do valor humano.

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