31 de outubro de 2023

Ver o mal e não calar

Terrorismo é palavra cômoda para quem tem a prerrogativa exclusiva de usá-la

Salem Nasser
Professor de direito internacional da FGV Direito-SP, publica a newsletter salemhnasser.substack.com

Folha de S.Paulo

Nos últimos dias, após esta Folha publicar meu artigo "Guerra, terror e ultraje seletivo" (11/10), fui perseguido, assediado, acusado de entreter sentimentos antissemitas e de apoiar o terrorismo. Abaixo-assinados, textos no jornal, redes sociais e muitas conversas foram mobilizados em prol dessa perseguição e dessas acusações. Tudo isso é, certamente, um incômodo. Mas nada importa de verdade. São cortinas de fumaça cuja função é impedir que vejamos o verdadeiro mal.

No artigo "Há equivalência moral entre Israel e Hamas? (26/10), um dos meus acusadores, o rabino Samy Pinto, se pergunta se teremos a coragem da chamar o mal pelo seu nome. Pois bem, aqui vai: o mal se chama apartheid, se chama ocupação ilegal dos territórios palestinos, se chama bloqueio criminoso contra a Faixa de Gaza, se chama limpeza étnica da Palestina.

Homem carrega menina palestina ferida durante bombardeio na cidade de Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza - Ibraheem Abu Mustafa - 11.out.23/Reuters - REUTERS

E o mal tem também outros nomes: crimes de guerra, crimes contra a humanidade... Mas que são insuficientes para revelar-lhe a verdadeira face: é preciso, para ver o mal, contar uma a uma as 3.000 crianças mortas, mostrar os efeitos das bombas incendiárias sobre a pele.

Sim, o mal também pode se chamar terrorismo, desde que, honestamente, se conceitue o termo —e desde que, honestamente, se aponte para os verdadeiros terroristas.

Eu, pessoalmente, evito a expressão porque, honestamente, me preocupo mais com o mal que se pode fazer quando se usa a palavra: pode-se despir as pessoas de seus direitos fundamentais, pode-se punir coletivamente um povo, pode-se matar mulheres e crianças, pode-se cometer todos os crimes impunemente. É uma palavra perigosa —"terrorismo"—; e é muito cômoda para quem tem a prerrogativa de usá-la com exclusividade.

Para além dessa resposta ao desafio lançado, não se pode levar muito a sério o conteúdo do artigo acima citado ou de outros publicados na Folha, como "Israel busca proteger a vida e o Hamas sacrifica os palestinos" (17/10) e "Quem deve ser questionado é o Hamas" (21/10).

São peças de retórica vazia, preenchidas com referências à democracia, à liberdade, à civilização, à barbárie dos outros, a compassos morais... Nada que nos soasse estranho se saído da boca do típico colonizador do século 19. São parte da cortina de fumaça, que nos quer impedir de ver. E são parte da mordaça, que nos quer impedir de falar.

Sim, é preciso coragem para denunciar o projeto colonial que pretende substituir uma população por outra na Palestina. Mesmo quando governantes israelenses anunciam o projeto e confessam a sua implementação em alto e bom som, falta quem tenha a coragem de ouvir, quanto mais a de dizer.

Quem ousa falar, deve enfrentar o poder mágico das palavras. Antissemita! Terrorista! Pronto, agora o assunto é você, e todas as suas energias devem ser dedicadas a provar que não merece queimar nessa fogueira. Mas, dia após dia, criança após criança, massacre após massacre, esse cobertor de palavras vai ficando curto e o mal se deixa ver, apesar de tudo.

Eu digo não ao antissemitismo e digo não ao terrorismo, como quer que alguém o conceitue, mas peço aos meus acusadores que percebam: são eles a ferir o judaísmo e os judeus enquanto tentam impor ao mundo uma equivalência espúria entre estes e um Estado criminoso.

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