31 de outubro de 2016

Vitorianos do século XXI

A burguesia do século XIX usou a moralidade para afirmar o domínio de classe - algo que as elites ainda fazem hoje.

Jason Tebbe

Jacobin

Ross G. Strachan / Flickr

Tradução / O adjetivo "vitoriano" tende a evocar ideias fora de moda: mulheres apertadas em espartilhos, papeis estritamente fixados para homens e para mulheres, e a mais feroz suposta pudicícia em tudo que tivesse a ver com sexo. Num mundo no qual reinam o consumismo mais promíscuo e a autopromoção, essas noções do século 19, de autocontenção e negação do próprio desejo, parecem inapelavelmente superadas.

Mas o ethos vitoriano não morreu. Está longe de morrer.

Ele sobrevive e manifesta-se no comportamento social "exterior" da chamada classe média alta. Embora alguns aspectos tenham seguido o destino triste dos coletes e chapéus masculinos, persiste bem viva a crença de que a burguesia goza de marcada superioridade moral sobre o resto da humanidade.

Hoje, aulas de pedalar, comida artesanal e processo vestibular para ingresso nas universidades afamadas substituíram as promenades de domingo, as conferências sobre "atualidades" e os "salões" semanais. Mas que ninguém se iluda: todas essas atividades têm o mesmo propósito: transformar o que é privilégio de classe em virtude individual, e assim demarcar ainda mais firmemente a dominação social.

Valores vitorianos

O historiador Peter Gay usou amplamente o adjetivo "vitoriano" para descrever a cultura da classe média alta educada da Europa Ocidental e dos EUA ao longo do século 19. Claro que todos sempre construíram crenças mais complicadas sobre sexo, diferenças entre homens e mulheres socialmente definidos e família, do que se crê que tenham feito.

Os vitorianos implantaram um rígido código moral, mas falavam sobre sexo dia e noite, sem parar, quase obsessivamente. Como Gay mostrou, casais ricos frequentemente trocavam cartas mais calientes que um Motor a vapor de Newcomen.

Apesar dos estereótipos de homens como pais "durões" e autoritários, esse período viu nascer as noções contemporâneas de paternidade. Burguês rico e homem de verdade não apenas provê o sustento da família como, além disso, participa ativamente do bem-estar emocional e afetivo de suas crianças.

Apesar de a classe média alta no século 19 não ter sido nem de longe o que supomos, em matéria de pudicícia e autodisciplina, mesmo assim aderiram a um estrito código de comportamento social. Esses códigos refletiam as mudanças na estrutura de classe pelas quais passava a sociedade, e o crescente desejo da burguesia, de demarcar uma sua suposta superioridade moral sobre a nobreza; e usava-se a virtude real ou só anunciada, para desafiar o lugar que a velha aristocracia ocupava no centro da vida política, social e cultural. Enquanto os filhos da aristocracia caçavam e jantavam interminavelmente, os filhos dos banqueiros e advogados trabalhavam, criavam famílias, faziam filhos e se autoeducavam.

Na Alemanha, a palavra chave é quase intraduzível: Bildung, que significa educação sob a forma de autoformação, formação cultural e contínuo aprimoramento. Essa ideia, manifesta em diferentes idiomas em diferentes nações, aproximou e como que ‘unificou’ toda a classe burguesa internacional em ascensão, quase sem ver fronteiras nacionais. A atenção à autoformação e ao autoaprimoramento demarcava a classe burguesa em ascensão, diferenciando-a do 1% aristocrático decadente.

Por exemplo, ouvir e fazer música passou a ser experiência educacional – não mais simples entretenimento. A música de câmera clássica do século 18 funcionara como agradável trilha sonora para soirées aristocráticas. Nos teatros e salas de concertos, a nobreza exibia-se para ela mesma nos camarotes, e só parcialmente ouvia os cantores e instrumentistas.

Mas quando a classe capitalista rampante assistia a concertos, os burgueses não se comportavam como se assistissem a um desfile de modas: sentavam-se de costas e pescoços eretos, não falavam e exigiam silêncio, para se concentrarem na música.

Vitorianos alemães cunharam o termo Sitzfleisch - "carne sentada" - para descrever o controle muscular necessário para manter-se sentado e absolutamente imóvel durante um concerto. Tosses e espirros tinham de ser contidos, para que não interrompessem a concentração de alguém e pusessem a perder um autoaprimoramento.

A procura pelo Bildung saturava também a vida diária. Mulheres jovens ricas, que não podiam esperar ter alguma carreira além das de mãe e esposa, aprendiam no mínimo um outro idioma e tinham aulas de piano e canto. Os homens usavam os fins de tarde e início da noite para assistir a palestras ou participavam em organizações civis.

Mas para que toda essa dedicação gerasse lucros, esses vitorianos recém-enriquecidos tinham de ostentá-la, marcar, tornar óbvia, a diferença que os separava simultaneamente dos mais ricos e dos mais pobres que eles.

Gastavam porcentagem assustadora das próprias rendas para decorar a casa de modo a que o mobiliário mostrasse o enriquecimento em curso, bom gosto e modéstia, tudo ao mesmo tempo. Sabiam que tinham ‘chegado lá’ quando afinal tinham um salon - uma peça da casa inteiramente devotada a entreter convidados, na qual os moradores jamais punham os pés quando estivessem sós. Aos domingos, toda a família saía a passear pelo parque.

De fato, em toda a Europa e nos EUA, famílias ricas propugnaram pela criação de mais e mais parques públicos. Mas, alinhados com os valores de classe, esses espaços não visavam ao lazer de alguma comunidade e não eram lugar para os muitos: eram como palcos nos quais os burgueses se apresentavam na melhor forma possível aos domingos.

O Central Park de New York, por exemplo, proibia o público de andar sobre a grama ou praticar esportes. Crianças, só entravam nos playgrounds se exibissem um "certificado de bom comportamento" emitido pelos respectivos professores. Proibido vender cerveja aos domingos.

O parque não servia ao lazer da classe trabalhadora: era espaço para discipliná-la. Lá os trabalhadores aprenderam o modo correto de usufruir do parque: caminhando sem parar. O primeiro parque de Fredrick Law Olmsted serviu como templo monstro da noção vitoriana da natureza como espaço de aprimoramento.

Fitness Moral

Embora não se vejam hoje muito homens de cartola e mulheres de anquinhas desfilando as crianças aos domingos, os parques continuam a ser locais para ostentação de virtude e disciplina: a cultura fitness contemporânea repete à perfeição o ethos do século 19, de aprimoramento e disciplina.

Os vitorianos tinham aversão que se tornou histórica a qualquer atividade física - não por acaso foi quando entrou em circulação a expressão "trabalho braçal", dos pobres - e consideravam o sobrepeso como marcador social de classe e respeitabilidade. A obsessão Fitness e com esportes começou a se infiltrar na vida das classes médias no século 20. Hoje cumpre a mesma função que a promenade.

Percebi isso há nove anos. Estava morando em Grand Rapids, Michigan, e gostava de usar minha bicicleta para explorar locais pouco conhecidos. Um dia, decidi visitar Grand Rapids Leste, subúrbio de gente muito rica, porque ali há uma ciclovia em torno do Lago Reeds.

Ao chegar, dei-me conta imediatamente que eu era a única pessoa que não trajava "roupa de ginástica". Não implica dizer que os demais estivessem fazendo ginástica - a maioria caminhava, passeando, exatamente como os burgueses primitivos -, mas todos vestiam roupa de ginástica. Os demais ciclistas vestiam calças e tops justíssimos, de material expansível, como se se estivessem na linha de partida do Tour de France.

As roupas repassavam a mensagem: "Preste atenção: não estamos caminhando para fazer algum serviço, não vamos a lugar algum e não usamos as bicicletas para entregas. Aqui é exercício (melhor dizendo: treino)." Os ricos moradores de Grand Rapids Leste haviam convertido um passeio no parque, em rotina de fitness; os trajes de "lazercício" proclamavam que ali estava em curso um ato de aprimoramento de classe.

Tendências atuais de exercício, tipo hot yoga, pedal e CrossFit, demonstram, todas elas, um compromisso com a autonegação e com a autodisciplina, valores muito prezados pelos vitorianos. Correr maratonas converteu-se no significante mais radical: maratonistas postam autorretratos nas mídias sociais para provar a todos que, sim, torturaram o próprio corpo de modo altamente virtuoso – não como porra-locas.

A mesma determinação espalha-se também para todas as atividades da vida. Trader Joe's [restaurante de comida fresca] e Whole Foods [de comida integral] vivem cheios de gente em trajes de ginástica, sem uma gota de suor no corpo. Esse traje marca quem se enfie neles como gente que respeita o próprio corpo, também quando não está fazendo exercício. Calças de yoga e sapatos de corrida ostentam virtude, tanto quanto os espartilhos expostos mesmo que escondidos por baixo dos vestidos das esposas do século 19 ostentavam.

Ser "sarado" hoje é índice de classe, uma síntese de fitness e cultura da boa comida. Calorias ficaram mais baratas, obesidade deixou de ser sinal de riqueza e passou a ser sinal de fracasso moral. Hoje, não ser saudável funciona como etiqueta para marcar a cupidez dos pobres, vista hoje precisamente como, no século 19, era vista a vitalidade sexual prolífica da classe trabalhadora.

As duas linhas de pensamento afirmam que as classes pobres não se autocontrolam e, por isso, merecem exatamente o que têm e não precisam de coisa alguma a mais. Absolutamente portanto não há qualquer necessidade de melhores salários nem de assistência pública à saúde. Afinal de contas, os pobres sempre desperdiçam em cigarros e cheeseburgers, tudo o que ganham.

Antes, como hoje, essas ostentadas diferenças de saúde manifestam desgosto com os corpos da classe trabalhadora. Em The Road To Wigan Pier (port. Caminho para Wigan Pier) George Orwell discutiu a própria criação vitoriana; conta que foi treinado para crer que haveria "alguma coisa sutilmente repulsiva, num corpo da classe trabalhadora." No tempo de Orwell, água e sabão - não algum fitness - marcava aquela distinção crucial. Ensinaram a Orwell, palavras dele, que "as classes baixas fedem."

Atualmente, a Internet registra esse horror de classe, antipobres, em websites como People of Wal-Mart. Em vez de se distanciarem com repulsa dos "grandes fedidos", os vitorianos modernos "branquearam" os "grandes supernutridos".

Enquanto a burguesia do século 19 viu corpos volumosos não como embaraço a ser erradicado, mas como marca confortadora da própria prosperidade, seus herdeiros espirituais vivem obcecados com comer comidas "certas". Nos últimos 15 anos, comida orgânica foi, de fenômeno marginal, a item de primeira necessidade.

Considerem o movimento "não contém glúten" - os que escolhem eliminar o glúten da própria dieta, não os que sofrem de doença celíaca e têm de evitar completamente o trigo. Há poucos anos, brinquei que encontrar um morador que não contivesse glúten, na minha cidade natal, rural, interior do Nebraska, seria equivalente a encontrar Obras Completas de Peter Kropotkin na biblioteca local. Hoje, já há alimentos tipo ‘não contém glúten’ em praticamente todas as prateleiras do supermercado de lá.

Essa disciplina alimentária é uma modalidade de autonegação virtuosa que encheria de orgulho qualquer burguês vitoriano. Se pelo menos meus avós tivessem vivido o suficiente para alcançar o tempo em que já basta plantar batatas e pepinos nos próprios vasos, para deixar de ser matuto e virar rico...

Guerras de Mamãe e admissão na universidade

Dinâmica similar infecta a vida familiar hoje. Como seus ancestrais, as classes médias contemporâneas dão grande ênfase à família. Embora o autoritarismo do século 19 tenha caído de moda, foi ali que a humanidade começou a ver a infância como período específico e especial da vida. Pai e mãe agiam coerentemente, e nas casas burguesas apareceram os primeiros quartos de crianças.

A cada ano que passa, mais cara a empreitada de criar filhos, o que exige dos pais forte disciplina e muita autonegação. Livro recente - All Joy And No Fun [Só sorrisos e nenhuma graça] soa como música a ouvidos vitorianos. O que seria mais frívolo e menos educativo que sorrisos? Não há tempo para gracinhas, entre as exigências da paternidade/maternidade contemporânea.

As mães têm de amamentar por longo período, só fornecer alimentos orgânicos aos filhos, com televisão ou videogames reduzidos ao mínimo imaginável. Escorregadelas sinalizam fracasso. Esse talvez seja o elo mais claro entre valores vitorianos de então e de hoje: simultaneamente limitar a autonomia das mulheres e reforçar a hierarquia a favor dos homens.

Não há de ser por coincidência que essas novas expectativas demandam tempo e dinheiro. Uma mãe trabalhadora que tenha de enfrentar longa jornada de múltiplos empregos no setor de serviços descobrirá que é muito mais difícil extrair leite no serviço, do que outra mãe que tenha só um emprego fixo. (Para nem falar na disparidade de direitos entre trabalhadoras de alto nível na hierarquia empresarial, e as outras.)

Os imperativos moralistas hoje associados à amamentação levam as mulheres trabalhadoras - que enfrentam várias ordens de dificuldades para amamentar os filhos - a serem definidas como fracassos morais. De fato, as batalhas públicas em torno do direito de amamentar em público raramente incluem reivindicação de liberdade para amamentar (seja onde for) para mulheres proletárias.

As altas expectativas em torno da paternidade/maternidade continuam até bem depois da infância dos filhos. Desde pequenas, as crianças são estimuladas a participar de clubes e academias sempre caras; e pais e mães têm de desistir das horas de descanso para apoiar os filhos. São atividades que demandam tempo e dinheiro: dois recursos que sempre faltam às classes trabalhadoras.

Essa proliferação de atividades organizadas é uma modalidade de aprimoramento: o tempo livre que a criança antes tinha está hoje totalmente tomado pelo Bildung. E a capacidade para prover essas oportunidades aos filhos é pintada como reflexo (gratuito) da moralidade familiar, não da situação econômica (de riqueza) da família. Assim como as mulheres vitorianas tinham de aprender piano e italiano - para ostentar refinamento inalcançável para outros níveis sociais - as crianças modernas jogam futebol, aprendem mandarim e fazem trabalho voluntário em organizações de caridade no condomínio que habitam.

Mas o ápice da luta contemporânea pela Bildung é sem dúvida o processo de admissão às universidades. Não há análogo do século 19 desse moderno ridículo ritual. Dickens com certeza saberia encontrar meio para satirizar o absurdo inerente: milhões agem como se um sistema que pende fortemente a favor do privilégio fosse realmente alguma espécie de "meritocracia", e como se o valor de alguém pudesse ser aferido pelo prestígio pressuposto da escola que aceite o/a cara.

Muitos dos norte-americanos que chegam à universidade só se candidatam a uma, duas universidades. Mas os filhos das classes privilegiadas cursam cursos preparatórios, fazem exames como "treineiros", fazem "imersão" em grupos supostos de estudo nos EUA ou viajam durante o verão, para ter ‘assunto’ para os trabalhos de admissão, e de modo geral candidatam-se a uma dúzia de universidades, sempre para maximizar as próprias chances de ser aceito na universidade mais "prestigiada". Pais e mães - não importa quais sejam as reais capacidades intelectuais dos filhos - podem então relaxar, certos de que seus rebentos têm melhor futuro que os plebeus que cursem a universidade Directional State (sempre estaduais) mais próxima.

Bildung para todos!

As classes médias altas mantêm hoje a ficção de que todos viveríamos numa sociedade da meritocracia - exatamente como faziam os vitorianos. Essa ficção permite àquelas classes médias altas "blindar" a própria posição econômica, pelas costas dos trabalhadores, os quais são ensinados que seus problemas de atendimento à saúde e miseráveis chances de fazer carreira são efeito de erros individuais, não alguma espécie de disfunção sistêmica.

Claro, muita malhação, ingestão de comida orgânica e obrigar os filhos a empregar o próprio tempo de descanso em atividades "que prestem", não são coisas inerentemente prejudiciais. Mas mesmo assim se tornam marcadores ostensivos de valores burgueses, que em seguida são mobilizados para "provar" a superioridade moral de uma classe sobre a outra e justificar a desigualdade social - movimento que era tão desprezível no século 19 quando é hoje.

Todos temos de pensar em saúde, comida e educação. Mas, em vez de vê-las como meios para promover e aprofundar a dominação de uma classe sobre a outra, temos de cuidar de melhorar as condição nessas três frentes, para todos.

Imaginem se toda a energia hoje mobilizada para meter nas melhores universidades os filhos medíocres das classes privilegiadas... fosse redirecionada para tornar a educação superior mais acessível e menos cara para todos.

Imaginem se garantir para todos o acesso a comida saudável fosse movimento tornado mais urgente e mais necessário que preservar alguma falsa limpeza&virtude considerada mérito ‘natural’ dos ricos.

Imaginem, em resumo, que cara teria nosso mundo contemporâneo se se orientasse por valores socialistas - não, como se guia hoje, por valores puritanos vitorianos.

Colaborador

Relembrando o Partido dos Panteras Negras

Cinquenta anos após a sua fundação, a visão antiracista e anticapitalista do Partido dos Panteras Negras mantém a mesma relevância.

Robert Greene II


Charles Bursey entrega um prato de comida para uma criança como parte do programa de café da manhã gratuito do Partido dos Panteras Negras. Foto cortesia de Pirkle Jones e Ruth-Marion Baruch.

Tradução / Este ano assinala-se o 50º aniversário da expressão "Black Power", cunhada por Stokely Carmichael, e também da formação do Partido dos Panteras Negras (PPN).

Criado pelos ativistas radicais de Oakland, Huey Newton e Bobby Seale, os Panteras Negras depressa se tornaram a maior manifestação da ideologia “Black Power” após a sus formação em outubro de 1966. No entanto, muito do que se sabe acerca dos Panteras permanece no esquecimento ou foi distorcido, e a iconografia das armas surge à frente de um conhecimento aprofundado dos seus objetivos.

Para pôr a história em pratos limpos, o texto que se segue é um manual sobre o Partido dos Panteras Negras - um grupo que meio século após a fundação ainda tem muito para nos ensinar sobre organização, ideologia e os perigos de defender o socialismo revolucionário nos Estados Unidos.

Origens e objetivos

O Partido dos Panteras Negras seguiu os passos dos grupos negros esquerdistas que o precederam, como a African Blood Brotherhood and o National Negro Congress. Tal como os antecedentes, os Panteras Negras adotaram tanto o nacionalismo negro como o socialismo. Seale e Newton pretendiam criar uma organização que pudesse defender a comunidade negra contra a brutalidade policial, dando ao mesmo tempo uma clara visão anticapitalista.

Ao contrário das principais organizações do Movimento dos Direitos Civis, o PPN tinha a sua base potencial no "Lumpenproletariado Negro Urbano", como explicou um dos seus primeiros líderes, Eldridge Cleaver, no manifesto On the Ideology of the Black Panther Party.

Para Cleaver e outros líderes do PPN, o lumpenproletariado negro era composto por quem está "perpetuamente na reserva" - os Afro-Americanos, em Oakland e não só, que não conseguiam encontrar trabalho ou obter a formação necessária para competir numa força de trabalho em modernização. Eles dirigiram-se a este segmento da população - em vez do agente tradicional da revolução, a classe operária organizada - para potenciar a sua luta contra a supremacia branca, o imperialismo e o capitalismo.

Nascido em Oakland, cidade com longa história de radicalismo e luta pelos direitos civis, o PPN acabou por formar núcleos por todo o país - de Nova Iorque a Chicago e no Sul, em locais tão distintos como Winston-Salem, Carolina do Norte e New Haven, Connecticut. Nos seus tempos áureos, o PPN anunciava mais de 5.000 militantes a nível nacional. E chegavam a muitos mais através do seu jornal, o Black Panther, que tinha uma circulação de 250.000.

O que dava coerência aos vários núcleos não era forçosamente uma liderança do topo para a base, mas um ethos de Black Power, organização comunitária e o socialismo que canalizava a energia dos jovens Afro-Americanos descontentes com a hipocrisia do liberalismo da Grande Sociedade e com a insensibilidade do conservadorismo da Nova Direita. Surgiram líderes jovens e talentosos a nível local, em especial Fred Hampton, em Chigago.

Na resistência à brutalidade policial em Oakland, os Panteras escolherem a autodefesa armada, uma tática empregada por muitos Afro-Americanos em todo o Sul do país. A ligação geográfica não era uma coincidência. Fundada por dois sulistas (Seale nasceu no Texas, Newton no Louisiana), o PPN partilha o seu símbolo icônico com a Lowndes County Freedom Organization no Alabama (fundada por Carmichael). Ambos os grupos desafiaram diretamente a supremacia branca nas bases.

Mas para o PPN, a luta contra o racismo não ficava completa sem uma luta contra o capitalismo. A sua plataforma em dez pontos de 1966, a mais clara expressão programática da política do grupo, apresentava uma análise crítica tanto da supremacia branca como do capitalismo na América. Entre as suas reivindicações estavam o "pleno emprego", "habitação digna" e um "plebiscito fiscalizado pelas Nações Unidas" para decidir se os Afro-Americanos desejavam separar-se dos EUA e criar a sua própria comunidade auto-organizada.

Cada um desses objetivos, juntamente com os outros descritos no programa de dez pontos, apontavam para uma organização que já estava juntando os vários eixos do pensamento de esquerda predominantes no final da década de 1960.

As atividades do Partido dos Panteras Negras

Entre as principais atividades dos Panteras estavam os seus serviços sociais, ou "programas de sobrevivência". O mais famoso era o programa de café da manhã gratuito, que fornecia refeições a muitos jovens Afro-Americanos pobres em Oakland. Outro era o programa local de educação para a saúde, que ajudava os Afro-Americanos sem acesso a cuidados de saúde de qualidade.

Juntos, os mais de sessenta programas de sobrevivência permitiram aos Panteras Negras ganhar o apoio de muitos operários Afro-Americanos em luta, melhorando de imediato a qualidade de vida dos moradores enquanto apontavam a um futuro socialista.

O PPN também ficou conhecido por patrulhar a ação dos agentes policiais de Oakland nas ruas. Armados com shotguns e livros de leis da Califórnia, eles circulavam na cidade e fiscalizavam as blitz policiais, procurando diminuir a brutalidade policial. O uso das armas levou a Assembleia Geral da Califórnia a aprovar, e o então governador Ronald Reagan a promulgar, o Mulford Act de 1967, que proibiu o porte público de armas carregadas.

A polícia também não viu com bons olhos a fiscalização armada dos Panteras. No mesmo ano da aprovação do Mulford Act, uma blitz de trânsito descambou num tiroteio entre Newton e o agente da polícia de Oakland John Frey, que morreu no local. Os julgamentos de Newton que se seguiram tornaram-se causas importantes para a esquerda americana, que tomou o slogan "Free Huey" como o grito contra a opressão, a brutalidade policial e a supremacia branca na sociedade.

A inquietação aumentou nos meios governamentais sobre a ameaça que os Panteras colocavam à segurança nacional. Para além das blitz pontuais e emboscadas policiais, o FBI, sob os auspícios do seu famigerado COINTELPRO (Counter Intelligence Program) abriu guerra aos Panteras. O FBI olhou com especial interesse para os núcleos de Oakland e Chicago, semeando a discórdia entre os membros do PPN e muitas vezes deixando os militantes inseguros sobre em quem confiar.

O assassinato de Hampton e de Mark Clark, líder do Partido dos Panteras Negras no estado do Illinois, durante uma vistoria ao apartamento de Hampton a 4 de dezembro de 1969, mostrou até onde as autoridades locais e nacionais estavam dispostas a ir para acabar com o Partido dos Panteras Negras. Até os programas de café da manhã gratuito - vistos como fonte potencial de radicalização de uma nova geração de Afro-Americanos - foram alvo do FBI e da polícia local.

Sob o peso de uma severa repressão estatal, acabaram por surgir divergências graves acerca das diversas atividades do grupo. No início dos anos 1970, os Panteras Negras haviam se dividido tanto sobre a linha ideológica, como tática.

Huey Newton queria centrar a atenção do PPN no ativismo local, formação e programas de serviço comunitário. Eldridge Cleaver - que chegou a ser o ministro da informação do PPN mas que desde então fugira para Cuba e depois para a Argélia na sequência de uma cilada da polícia de Oakland - pressionava o partido para se preparar para a insurreição armada nos Estados Unidos. O cisma foi colocado à vista de todos em 1971, quando Newton criticou abertamente Cleaver nas páginas do Black Panther.

Quando Elaine Brown se tornou a presidente do partido em 1973 - substituindo Newton, que estava exilado em Cuba –, ela fez o partido regressar em força à sua orientação para as bases. Brown deu destaque ao serviço comunitário, gerindo a Oakland Community School nos anos 1970 e formando nesse processo centenas de crianças Afro-Americanas de Oakland.

Durante o seu mandato, o PPN tornou-se um importante agente político em Oakland e na Califórnia. Bobby Seale fez uma grande campanha para prefeito de Oakland em 1973 e 1975 (acabando em segundo entre nove candidatos após perder no segundo turno), e Brown entrou na disputa para o conselho municipal em 1973 e 1975 (nas duas vezes ficou perto de ganhar). Brown apoiou também a candidatura bem sucedida do Democrata Jerry Brown a governador em 1974 (embora seja menos evidente no que é que esse apoio beneficiou o eleitorado do PPN).

No fim das contas, a visão de Newton para o PPN acabou por triunfar. Mas o seu regresso do exílio em 1976 desencadeou outra luta pelo poder que acabou por destruir o PPN.

A relação com a esquerda

O Partido dos Panteras Negras não se isolou do resto da esquerda. O seu núcleo de Chicago, por exemplo, tinha uma relação de trabalho com os Young Patriots, uma organização composta sobretudo pelos filhos e filhas dos migrantes brancos dos Apalaches. Em 1969, o PPN convidou os Young Patriots e outras organizações de esquerda para virem a Oakland participar na United Front Against Fascism Conference.

A liderança de Hampton era crucial para estabelecer esta ligação. Enquanto líder do núcleo de Chigago, Hampton dirigia-se aos brancos pobres como parte do seu esforço para forjar uma aliança antiracista e anticapitalista dos necessitados. Como explicou Hampton, "Não vamos lutar contra o racismo com racismo, mas sim com solidariedade. Não vamos lutar contra o capitalismo com o capitalismo negro, mas sim com o socialismo". O seu assassinato em 1969 destruiu o Partido dos Panteras Negras e retirou ao movimento um dos seus líderes mais jovens e promissores.

Os Panteras também estiveram envolvidos no movimento antiguerra, considerando que a sua luta pela libertação negra e a autodeterminação estava ligada aos movimentos de resistência no Vietnã, Argélia e noutros países. Chegaram mesmo a abrir um núcleo na Argélia em 1969. Quando se envolveram no movimento anti-alistamento ("uma das primeiras alianças bem sucedidas que tivemos", sublinhou Seale), os Panteras deixaram claro que os abusos que os Afro-Americanos enfrentavam às mãos da polícia nos EUA eram o reflexo da repressão que os vietnamitas e outros grupos sofriam dos militares norte-americanos.

Os textos de Newton sobre a ideologia do Partido dos Panteras Negras no fim dos anos 1960 mostram uma tendência mais ampla entre os radicais Afro-Americanos - de Martin Luther King, Jr. a Stokely Carmichael - que ligavam o racismo no país ao imperialismo no estrangeiro. Newton, por exemplo, exprimiu muitas vezes o seu apoio à Palestina nos seus artigos, que eram muito lidos.

Nos anos 1970, enquanto membros da esquerda Black Power mais vasta, os Panteras entraram nos debates sobre o caminho a seguir pelos Afro-Americanos após o declínio do Movimento pelos Direitos Civis. Figuras de proa do movimento Black Power como Amiri Baraka (LeRoi Jones antes da sua adesão ao nacionalismo negro no fim dos anos 1960) tornaram-se reconhecidos marxistas e combateram a retórica nacionalista.

Os Panteras, embora com menos nacionalismo negro do que a imaginação popular lhe dá, nunca renegou a sua marca Black Power. Mas gastaram bem mais tempo a refletir sobre a melhor combinação de nacionalismo negro e socialismo - e influenciou a prática de outros grupos de esquerda nesse processo.

O legado dos Panteras

A importância do trabalho dos Panteras Negras permanece ainda hoje, por muitas razões. Primeiro, recordam-nos que o problema da brutalidade policial está connosco há muito tempo (Martin Luther King, Jr. até o mencionou no seu muito citado, e muitas vezes mal interpretado, discurso do "I Have a Dream". De fato, os protestos que se seguiram à morte de Denzil Dowell em North Richmond, uma localidade perto de Oakland, em abril de 1967, tiveram um papel determinante no crescimento do PPN, que passou de uma pequena organização de quadros a uma grande força política e social.

Em segundo lugar, o PPN mostra-nos um bom modelo de ativismo de base e de ideologia em ação. Enquanto o grupo era dilacerado pelos conflitos entre Newton e Cleaver nos anos 1970, os Panteras continuaram a fazer um importante trabalho no terreno em Oakland. Os seus "programas de sobrevivência" dirigiram-se a Afro-Americanos na pobreza que não conseguiam apoio da administração local. E sobretudo, eles ligaram o seu programa de educação e café da manhã gratuito a um projeto político mais amplo. Enquanto mistura genial da prática com o visionário, o trabalho comunitário do PPN foi o trabalho mais revolucionário que fizeram.

O Partido dos Panteras Negras foi também um importante campo de treinamento para as mulheres ativistas Afro-Americanas, como Kathleen Cleaver e Elaine Brown. Tal como no Movimento pelos Direitos Civis, as mulheres fizeram boa parte do trabalho básico do PPN.

Isto não quer dizer que o PPN fosse um exemplo no que toca aos direitos das mulheres. Quando Seale e Newton formaram o grupo, dirigiram o seu apelo aos "irmãos do bairro" Em Noutras ocasiões, a sua retórica foi bastante progressista: em agosto de 19760, Newton tornou-se um dos primeiros líderes Afro-Americanos de qualquer estirpe ideológica a exprimir solidariedade com os gays e lésbicas norte-americanos. Mesmo durante o mandato de Brown na presidência do PPN; a direção do grupo permaneceu esmagadoramente masculina e as mulheres Panteras eram sujeitas a abusos verbais e físicos.

Ainda assim, Brown e outras mulheres Panteras Negras conquistaram o seu espaço e deram um contributo imenso para a organização.

Finalmente, o legado do Partido dos Panteras Negras pode ser visto hoje no movimento Black Lives Matter. As suas reivindicações por justiça econômica, poder comunitário e compensações fazem lembrar a plataforma de dez pontos do Partido dos Panteras Negras. E tal como os movimentos Black Power e dos Direitos Civis, o movimento Black Lives Matter teve de enfrentar repetidamente a cobertura noticiosa negativa e a crítica de muitos liberais norte-americanos para “irem mais devagar”.

Agora que passam cinquenta anos desde a sua fundação, os Panteras devem ser recordados por mais do que as suas boinas negras e as shotguns. Apesar das suas falhas, eles combinaram a urgência e a transformação numa ideia política poderosa, defendendo uma aliança multirracial contra o racismo, o capitalismo e o imperialismo que resultou em ganhos tangíveis para os mais explorados. Essa ideia continua hoje a ser tão inspiradora como então.

Colaborador

Robert Greene II é professor assistente de história na Claflin University e editor de resenhas de livros do blog da Sociedade de Historiadores Intelectuais dos EUA.

24 de outubro de 2016

De novo a Belíndia

Ricardo Antunes

Folha de S.Paulo

O governo Michel Temer avança celeremente para o abismo social. Talvez tenha ficado impactado, em sua recente viagem à Índia, ao constatar que aquele espetacular país tem um bolsão monumental (dezenas, talvez centenas de milhões) de excluídos do mercado de trabalho.

Lembro-me que em outubro de 2014, quando visitei a Índia para fazer conferência em Nova Déli, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, acabava de lançar um "novo" slogan. Dizia que, assim como a China celebrizou-se pelo made in China, a Índia deveria consagrar-se pelo make in Índia. No país das castas e classes, riquezas e vilipêndios, a superexploração do trabalho poderia ser ainda mais intensa que a chinesa.

Temer não pôde ver com os próprios olhos, poucas semanas antes de sua viagem, a greve que foi considerada a maior do país, com mais de 180 milhões de participantes.

No Brasil, o ministro do Trabalho, anteriormente, sugeriu que deveríamos aumentar a jornada de trabalho para 12 horas diárias.

O desemprego, por aqui, não para de crescer -são quase 12 milhões de pessoas e outras tantas entre o subemprego e o desalento.

O eixo central das ações de Temer nas relações de trabalho é implantar a flexibilização completa dos direitos. O sentido essencial do PLC 30/2015 é avançar na terceirização total, por meio da eliminação da disjuntiva entre atividade-meio e atividade-fim. O governo age alegando que está, na verdade, regulamentando o trabalho terceirizado.

Todos sabem o real significado desse ato -a deterioração ainda maior das relações de trabalho, uma vez que os terceirizados receberão menos, trabalharão mais e terão ainda maior subtração de direitos.

Enquanto isso, as empresas contratadas que fornecem os terceirizados poderão continuar fugindo das penalidades por meio de burlas que frequentemente praticam e pelas quais raramente são condenadas.

Vou dar um exemplo emblemático que parece excitar o empresariado, global e tropical. Trata-se do "zero hour contract" (contrato de zero hora), modalidade perversa de trabalho que viceja no Reino Unido e em outros cantos, onde os contratos não têm determinação de horas.

Trabalhadores das mais diversas atividades ficam à disposição e, quando recebem uma solicitação, ganham estritamente pelo que fizeram. Nada recebem pelo tempo que ficam à espera da nova dádiva.
E os capitais informáticos, numa engenhosa forma de escravidão digital, cada vez mais se utilizam dessa pragmática de flexibilização total.

Assim, de um lado deve existir a disponibilidade perpétua para o labor, facilitada pela expansão do trabalho on-line. De outro, propaga-se a precariedade total, que destrói ainda mais os direitos vigentes.

É por isso que, neste mundo do trabalho digital e flexível, o dicionário empresarial não para de "inovar". "Pejotização" em todas as profissões -médicos, advogados, professores, bancários, eletricistas, cuidadoras. "Frila fixos" espalhados nas Redações dos jornais, com "metas" impostas que geram assédios, adoecimentos e depressões.

Isso sem falar nos pilotos da aviação global que já são contratados nos países em que a legislação está em processo de desmonte.

E "trabalho voluntário" em ritmo compulsório na Olimpíada, que enriquece ainda mais as corporações do entretenimento.

Em breve teremos um Brasil com riqueza exuberante no topo, parecido com a Bélgica, e uma miserabilidade social que segue os padrões da Índia. Seremos novamente a Belíndia.

Sobre o autor

Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho na Unicamp. Escreveu, entre outros, o livro "Os Sentidos do Trabalho" (ed. Boitempo).

23 de outubro de 2016

O núcleo duro da divergência entre ortodoxos e heterodoxos na economia

José Luis Oreiro e Paulo Gala


Numa série de artigos publicados recentemente na "Ilustríssima", temos observado um acalorado debate a respeito das diferenças entre a ortodoxia e a heterodoxia econômica no Brasil.

Para autores como Samuel Pessôa e Marcos Lisboa, a diferença entre essas correntes seria essencialmente o método de análise. Enquanto a ortodoxia se basearia em conjecturas precisas e "falseáveis", ou seja, sujeitas a rejeição por intermédio de testes empíricos, a heterodoxia se basearia em "grandes narrativas" apoiadas em "fatos estilizados" selecionados de forma casuística –ou ainda na leitura exegética dos grandes autores do passado, como Karl Marx ou John Maynard Keynes.

Já para autores como Luiz Fernando de Paula e Elias Jabbour, a ênfase dada pelos ortodoxos à importância decisiva dos testes empíricos seria apenas um artifício retórico, ou seja, uma estratégia de convencimento do grande público acerca da alegada superioridade científica da agenda ortodoxa. A história do pensamento econômico, não custa lembrar, está repleta de casos em que a evidência empírica foi insuficiente para resolver as controvérsias, como demonstrado em artigo de Pérsio Arida ("A História do Pensamento Econômico como Teoria e Retórica", 1996).

Nos parece que a resposta de Paula e Jabbour é uma chancela tácita ao argumento de que a diferença entre as abordagens ortodoxa e heterodoxa se refere ao método de análise. Isso porque, como ressaltado por Lisboa e Pessôa, "em momento algum os autores questionaram a nossa taxonomia, contrapondo exemplos de abordagens heterodoxas que, sistematicamente, testam [...] as suas conjecturas, utilizando a melhor metodologia disponível".

Mas será mesmo que a taxonomia usada por Lisboa e Pessôa está correta? A grande maioria dos economistas heterodoxos no Brasil e no mundo escreve artigos nos quais suas conjecturas teóricas também passam pelo crivo dos testes empíricos, inclusive os escribas que assinam este texto (seriamos nós ortodoxos?).

Basta uma rápida análise dos principais periódicos heterodoxos indexados no Brasil e no exterior para se constatar que grande parte da pesquisa heterodoxa segue exatamente o mesmo protocolo defendido por Lisboa e Pessôa, ou seja, o protocolo do método científico.

Etimologia
O termo ortodoxia tem sua origem no grego, em que orthos significa reto, e doxa, fé ou crença. Ortodoxo significa, portanto, aquele que segue fielmente um princípio, norma ou doutrina. Está claro que a origem etimológica do termo não é suficiente para estabelecermos a diferença entre "ortodoxia" e "heterodoxia" na economia, pois um economista marxista que seguisse fielmente os princípios de Marx também poderia ser chamado de "ortodoxo".

No Brasil, a expressão "economista ortodoxo" é usualmente entendida como "economista neoclássico", ou seja, aquele que compartilha o programa de pesquisa neoclássico, definido a partir de um núcleo duro de proposições formado por princípios como a racionalidade econômica, entendida como a maximização da satisfação ou lucro, e o equilíbrio dos mercados como norma ou "ponto de referência" para o funcionamento do sistema.

Deve-se destacar aqui que esses princípios básicos do programa de pesquisa neoclássico são tidos como axiomas, ou seja, fazem parte da "visão de mundo" dos economistas neoclássicos, sendo aceitos como verdades autoevidentes, não estando, em princípio, sujeitos a comprovação empírica.

Em outras palavras, o que está sujeito ao teste empírico são as conjecturas obtidas a partir de modelos teóricos (o assim chamado "cinturão protetor") que se baseiam nesses princípios.

O conceito de programa de pesquisa, de acordo com Lakatos ("The Methodology of Scientific Research Programmes", 1978), consiste num conjunto de regras metodológicas que definem os caminhos que devem ser evitados e os que devem ser trilhados.

Nesse contexto, o programa de pesquisa possui uma "heurística negativa", a qual define um conjunto de proposições (o "núcleo" do programa) que não estão sujeitas ao critério de falseabilidade exposto por Karl Popper, ou seja, que são tidas como "irrefutáveis" por parte dos aderentes ao programa de pesquisa.

No entorno desse núcleo de proposições são estabelecidas diversas hipóteses auxiliares, as quais devem ser testadas contra os fatos observados.

Além da "heurística negativa", existe também uma "heurística positiva", que é constituída por um conjunto parcialmente articulado de sugestões de como mudar e desenvolver as "variantes refutáveis" do programa de pesquisa.

Aqui se inclui uma cadeia de modelos cada vez mais sofisticados que buscam "explicar" a realidade. Na formulação dos programas de pesquisa, é de esperar que algumas de suas variantes particulares (o "cinturão protetor") sejam refutadas pelos testes empíricos.

A função da "heurística positiva" é, portanto, de contornar esses problemas, definindo as regras que devem ser obedecidas na construção de novas variantes particulares do programa.

Em contraposição à ortodoxia entendida em economia como adesão ao programa de pesquisa neoclássico, a heterodoxia se define como rejeição ao núcleo duro desse programa.

Maximização

Em outras palavras, os economistas heterodoxos são todos aqueles que discordam da ideia de que o núcleo duro de um programa de pesquisa deva ser construído a partir dos princípios da maximização e do equilíbrio dos mercados. Economistas marxistas, por exemplo, acreditam que uma análise séria a respeito do funcionamento do sistema econômico deva se basear na dinâmica de conflitos entre as classes sociais, particularmente entre capital e trabalho.

Nesse contexto, a racionalidade individual –maximizadora ou não– é irrelevante para o entendimento do funcionamento do sistema econômico.

Já economistas pós-keynesianos não discordam da necessidade de basear a análise econômica no suposto de racionalidade individual, mas acreditam que a incerteza que permeia o ambiente econômico torna impossível analisar as decisões individuais a partir do suposto de maximização.

Num contexto de incerteza, o comportamento dos agentes é baseado em convenções ou rotinas que não só simplificam o processo de tomada de decisão como também permitem àqueles lidar com o fato inescrutável da extrema precariedade e incompletude do conjunto de informações sobre o qual decisões racionais devem ser tomadas.

A moeda e a preferência pela liquidez, por exemplo, adquirem, nesse contexto, papel fundamental para explicar o funcionamento do sistema econômico, algo que em princípio parece não fazer sentido para o programa de pesquisa neoclássico, como se pode constatar pela ginástica que os manuais mais modernos dessa corrente têm que fazer para incorporar a moeda na estrutura dos modelos de equilíbrio geral.

Essas divergências entre os programas de pesquisa são diferenças do núcleo duro, ou seja, naquela parte dos programas que não é falseável no sentido de Popper e que, portanto, não está sujeita ao crivo do teste empírico.

A refutação empírica só pode ser aplicada às conjecturas desenvolvidas a partir dos modelos teóricos construídos segundo as regras metodológicas definidas pelo núcleo duro.

Pluralismo
Se os programas de pesquisa não podem ser rejeitados com base em testes empíricos, pois são constituídos a partir de um núcleo duro não refutável, então a única atitude cientificamente honesta e politicamente democrática é aceitar, incentivar e conviver com o pluralismo teórico.

Ninguém pode afirmar que daqui a cem anos o programa de pesquisa neoclássico continuará hegemônico na comunidade científica. Isso porque não podemos descartar a possibilidade de que esse programa entre em trajetória degenerativa. Ou seja, que, em função do acúmulo de anomalias que não podem ser explicadas a partir de modelos construídos segundo a metodologia definida pelo núcleo duro, o referido programa comece a recorrer a hipóteses "ad hoc" para explicá-las.

Existem sinais importantes de que isso já está acontecendo com o programa de pesquisa neoclássico, mas certamente trata-se de um tema que demandaria outro texto; por isso, não o abordaremos.

Em suma, não é verdade que a diferença entre ortodoxos e heterodoxos no Brasil ou no mundo se resuma ao uso ou não de testes empíricos para aceitar ou refutar conjecturas.

A diferença entre essas correntes se baseia em diferentes "núcleos duros", não sujeitos a comprovação empírica. Nesse contexto, a melhor política será sempre "deixar que mil flores floresçam no campo" e que o tempo, senhor da razão, decida quem deve prosperar ou desaparecer.

Sobre os autores
José Luis Oreiro, 45, professor de economia da UFRJ, é autor de "Macroeconomia do Desenvolvimento: uma Perspectiva Keynesiana" (LTC).

Paulo Gala, 40, é professor de economia da FGV-SP.

14 de outubro de 2016

Trump e as mulheres: uma crítica marxista

Pode-se dizer que trumpismo e feminismo corporativo são dois lados da mesma moeda.

por Sam Miller

Jacobin

Ivanka Trump na Pensilvânia. Michael Vadon / Flickr

Tradução / Todos nós sabemos que Donald Trump é misógino. Mas isso não é o fim da história. Trump usa as mulheres de forma calculada para promover sua imagem política e seu império de negócios.

Esta promoção faz parte de uma dinâmica mais ampla, em que a construção da feminilidade é exercida como um cimento ideológico para os capitalistas: as mulheres são necessárias no mundo dos negócios e da política a fim de manter uma imagem de suavidade, de ternura assistencialista na aparência externa, ao mesmo tempo em que é preciso ser dura, brutal e cortadora-de-cabeças no trato interno para chegar ao topo. A maneira pela qual Donald Trump se associa a mulheres em sua vida profissional e pessoal é um microcosmo de tendências maiores. A filha de Trump, Ivanka, e sua adversária política (e ex-amiga) Hillary Clinton, ambas representam o mesmo feminismo corporativo.

Em “The Art of the Deal”, Trump descreve seu pai como arrojado, implacável e trabalhador; sua mãe, por outro lado, é descrita como “a dona de casa perfeita”, que “cozinhava, limpava, remendava meias e fez trabalho de caridade no hospital.” De acordo com Donald, sua mãe era glamourosa, solidária e bonita – como muitas mulheres na vida de Trump, Mary era subordinada a um marido dominador e apenas desempenhou um um papel acessório na família.

É claro que Trump internalizou a dinâmica de seus pais, que ele carregou para seu primeiro casamento com Ivana Zelníčková, uma imigrante da Checoslováquia. Ivana relata um incidente com o pai de Donald, Fred, no jantar, em que este insistiu em controlar as escolhas de menu dela: “’Eu gostaria do peixe”, disse ao garçom, e Fred disse: ‘Não, Ivana não vai querer peixe. Ela vai querer bife’. Eu disse, ‘Não, eu vou querer o meu peixe.”” Donald insistiu para Ivana que Fred estava agindo por “amor”.

Fred Trump era contra a contratação de mulheres para posições gerenciais, que ele considerava ser “trabalho de homem”. Mesmo que Donald tenha rompido com a atitude de seu pai mediante a contratação de mulheres, ele ainda as explora e prepara a seu gosto. Quando Donald contratou Ivana como presidente do Plaza Hotel ele disse aos repórteres: “Minha esposa, Ivana, é um gestora brilhante. Vou pagar-lhe um dólar por ano e todos os vestidos que ela puder comprar!” Ivana sentiu-se humilhada.

No longo prazo, Donald reverteu em direção a algumas das atitudes de seu pai em relação às mulheres, dizendo que seu maior erro com Ivana tinha sido “tirá-la do papel de esposa e permitir que ela gerenciasse um dos meus casinos em Atlantic City.” Donald preferiria voltar para casa depois de um longo dia para uma mulher pronta para discutir “os temas mais suaves da vida”, em vez de uma mulher que tratasse o seu trabalho a sério. Como ele disse: “Eu nunca mais vou dar a uma esposa qualquer responsabilidade dentro do meu negócio.”

Ao longo de seus livros, Trump entra em detalhes sobre suas várias “façanhas” sexuais. O que torna essas passagens tão perturbadoras é o modo pelo qual ele projeta sua bizarrice predatória sobre as mulheres. Um exemplo é contado em “The Art of the Comeback” (1997), relativa a um jantar com uma mulher não nomeada, com poder e prestígio:

“De repente eu senti sua mão no meu joelho, então na minha perna. Ela começou a me acariciar de todas as maneiras diferentes… Ela então me pediu para dançar, e eu aceitei. Enquanto estávamos dançando ela se tornou muito agressiva, e eu disse: “Olha, nós temos um problema. Seu marido está sentado naquela mesa, bem como minha esposa”. “Donald”, ela disse, “eu não me importo. Eu simplesmente não me importo. Eu tenho que ter você, e eu tenho de tê-lo agora”.”

Trump caracteriza as mulheres como enganadoras, manipuladoras e cruéis. “As espertas agem de modo muito feminino e carente, mas por dentro são verdadeiras assassinas. A pessoa que veio com a expressão ‘sexo frágil’ ou era muito ingênuo ou devia estar brincando. Eu vi mulheres manipularem homens com apenas uma contração de seus olhos – ou talvez outra parte do corpo.” Para Trump, mulheres bem sucedidas nunca perdem seu exterior “feminino”, que esconde seu núcleo frio e astuto.

Trump define sua personalidade como parte empresário e parte showman, e apresenta Ivana e sua segunda esposa, Marla Maples, como representando dois extremos diferentes de sua personalidade. Ambas são “loira e bonita”, mas Ivana é retratada como uma mulher de negócios “durona”, enquanto Marla é a “performer e atriz.” Seu casamento com Marla também falhou, uma vez que os negócios eram a maior prioridade. “Uma coisa que eu aprendi [sobre relacionamentos]: há a alta manutenção, há baixa manutenção. Eu não quero nenhuma manutenção.” Desta vez, com Marla, Trump fez com que o acordo pré-nupcial perfeitamente claro e sem complicações. Ele não queria uma repetição da disputa legal de seu divórcio anterior.

Trump comprou o concurso Miss Universo por $10 milhões, e levou de brinde o Miss EUA e Miss Teen EUA, “a tríplice coroa da beleza”. Trump reivindica que estes concursos tratam sobre “diversão” e “beleza, a beleza suprema – a de uma mulher”. Em uma entrevista a Howard Stern, Trump se gabou de o concurso ser o seu acesso final às mulheres, grosseiramente brincando que elas devem ser “obrigadas” a dormir com ele como o proprietário da organização. O comportamento de Trump causou estragos emocionais na primeira Miss Universo, Alicia Machado, a quem ele envergonhou e humilhou. Trump descreveu sua constante pressão sobre Machado para que perdesse peso como “cavalheiresca”. Seu controle sobre ela deixou no caminho cicatrizes psicológicas profundas e ela sofrendo de distúrbios alimentares como resultado.

Se o Miss Universo era mais sobre a beleza exterior, por sua vez “O Aprendiz” focava nos instintos assassinos das mulheres nos negócios. “O Aprendiz” durou por quatorze temporadas, com Trump como o juiz de mais de uma dúzia de empresários concorrendo ao prêmio de gerenciar uma das empresas de Trump. De acordo com Scott McLemee, “O Aprendiz” transforma “as condições normalmente precárias de emprego sob o neoliberalismo em entretenimento de um jogo de alto risco”. Trump termina cada episódio em sua sala de reuniões, gritando “você está despedido!” ao competidor desclassificado.

As mulheres, no show de TV, foram pegas em um dilema, onde agir de modo “feminino” ou “masculino” poderia ser prejudicial, dependendo da situação. Como Trump afirmou, “negociação é uma arte muito delicada. Às vezes você tem que ser duro; às vezes você tem que ser doce como torta – a depender com quem você está lidando”. No decorrer do show, comportamentos estereotipicamente “masculinos”, como insultar e interromper os outros, atacar e colocar as pessoas para baixo, e dominar a conversa foram preferidos em detrimento dos chamados “femininos”: afastar-se do conflito, falar minimamente, enfatizar relacionamentos interpessoais e fornecer “feedbacks” construtivos. O próprio Trump definiu o tom “masculino” e descreveu a si mesmo como o “ditador” do show. Era imperativo para as mulheres no show que adotassem uma mentalidade calculada para manipular os outros e ganhar. Com efeito, elas precisavam de internalizar o próprio estilo empresarial de Trump.

Se Ivana foi uma mulher “de negócios demais” para que Trump lidasse com ela como esposa, e Marla resistiu à negligência de Trump para com a sua vida familiar, sua terceira esposa, Melania, uma modelo nascida eslovena, parece preencher a lacuna e a função do jeito que Donald espera. Melania é quieta: ela suporta seu marido, tolera sua ética de trabalho e se alegra em assumir a responsabilidade de criar seu filho de dez anos, Barron.

Mas mesmo Melania teve que condenar os comentários lascivos de seu marido em 2005 sobre apalpar mulheres. Trump fez esses comentários enquanto Melania estava grávida de Barron, mas eles não são um desvio em relação a outras piadas cruéis que ele fez às custas de Melania. Por exemplo, Howard Stern perguntou a Trump durante uma entrevista de rádio se ele iria ficar com Melania se ela sofresse um terrível acidente de carro ficando incapacitada. Trump respondeu: “Como é que estão os seios?” “Os seios estão bem,” Stern respondeu. Trump respondeu em seguida com certeza, “porque isso é importante.” Não é nenhum segredo que a aparência física de Melania importa para seu marido. Quanto à sua vida profissional, Melania pode ter sua própria linha de joias, mas o seu negócio e seu estilo de vida não são ameaças para as ambições do marido.

As perturbadoras ofensas sexistas não terminam com as esposas de Trump: ele tem sido conhecido ao longo do tempo por sexualizar publicamente sua filha Ivanka. Quando ela tinha apenas dezesseis anos, Trump disse ao New York Times: “Não acha a minha filha gostosa? Ela é gostosa, certo?” A coisa fica ainda mais assustadora: em uma gravação, em 1994, de Trump com sua então esposa, Marla Maples, o entrevistador Robin Leach perguntou sobre sua filha de um ano, Tiffany, ao que Trump respondeu: “Bem, eu acho que ela puxou muito a Marla, ela é realmente um lindo bebê, e ela é, uh, ela tem as pernas de Marla. Não sabemos se ela puxou ou não essa parte ainda”, disse Trump, apontando para seu peito “mas o tempo dirá”.

Quando confrontada com as observações obscenas de seu pai, Ivanka recusou-se a criticá-lo, descartando as alegações de que ele é um misógino e, em vez disso fazendo a discussão se tornar sobre quantas mulheres ele contratou para a construção e desenvolvimento ao longo dos anos.

Com a idade de trinta e quatro anos, Ivanka Trump é vice-presidente executiva de desenvolvimento e aquisições na Trump Organization e tem a sua própria linha de artigos de moda. Ela também é casada e tem três crianças. Ela fala frequentemente sobre a interligação entre a vida profissional e pessoal, com forte ênfase nos negócios. Ela é uma forte defensora de um feminismo de estilo corporativo, cunhando a hashtag #WomenWhoWork (MulheresQueTrabalham) como parte da campanha de sua marca para promover o empreendedorismo feminino. Ivanka está cumprindo o papel que seu pai havia previsto para os seus filhos no livro de 1990, “Surviving at The Top”: o de seguidor gerencial.

“Talvez eu esteja apenas sendo um pai superprotetor, mas se eu tiver alguma influência na questão, os meus filhos podem muito bem ser os gestores, não empreendedores. Me daria uma grande alegria saber que eles estavam apenas vivendo uma boa vida e mantendo o império Trump – seja lá o que este acabar por ser quando esta minha estranha aventura estiver concluída”.

Ironicamente, Ivanka remete à ética profissional de sua mãe Ivana como sua principal fonte de inspiração – a mesma ética profissional que Donald Trump detestava durante o casamento. Para Trump, a diferença entre Ivana e Ivanka é que Ivana aparecia como uma competidora para Donald, enquanto Ivanka foi preparada como sua sucessora, motivo pelo qual ela não representa uma ameaça. O feminismo corporativo de Ivanka não é de forma alguma exclusivo dela. Na verdade, vemos em seus discursos os mesmos jargões neoliberais de outras mulheres de topo no mundo dos negócios, como Sheryl Sandberg – mulheres que endossaram Hillary Clinton. Na verdade, sem o acidente do nascimento, poderia-se imaginar Ivanka Trump como sendo ela mesma uma firme apoiadora de Hillary. A sua mensagem de empoderamento feminino em uma sociedade profundamente estratificada é uníssono ao feminismo apoiado por Wall Street de Hillary Clinton.

A mensagem é simples: “dê um gás” em seu local de trabalho; “use a incerteza em sua vantagem;” “se levante e seja notada”; “tire o máximo proveito de qualquer negociação”. Em seu livro “O Cartão Trump”, Ivanka cita Arianna Huffington e Russell Simmons como inspirações: duas firmes partidárias de Clinton.

Mas tal feminismo desprovido de classe não está tão longe assim daquele de seu pai. Suas vulgaridades podem ser chocantes mas, em sua prática comercial diária, ele definiu a dialética deste feminismo como algo entre o “doce por fora”, mas implacável por dentro. Pode-se dizer que o trumpismo e feminismo corporativo são dois lados da mesma moeda. No feminismo corporativo, o patriarcado celebra o seu domínio como feminino.

13 de outubro de 2016

A nova história de Svetlana Aleksiévitch

Orlando Figes

The New York Review of Books

Svetlana Alexievich, Stockholm, Novembro, 2012. Magnus Hallgren/DN/TT/Sipa USA.

Secondhand Time: The Last of the Soviets
by Svetlana Alexievich, translated from the Russian by Bela Shayevich
Random House, 470 pp.

Tradução / Quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 2015, Svetlana Aleksiévitch era pouco conhecida fora de seu país, a Bielorrússia, e da ex-União Soviética, onde suas obras eram publicadas em russo. Os jornais correram para se informar sobre aquela escritora e reunir opiniões abalizadas sobre seus “escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”, segundo as palavras de Sara Danius, secretária permanente da Academia Sueca, ao anunciar o prêmio. Em sua justificativa, a academia creditou a Aleksiévitch a invenção de um novo gênero literário, “uma história das emoções” – uma “colagem de vozes humanas de cuidadosa composição”, as quais foram registradas em entrevistas. As histórias orais da autora (porque é isso que são) apresentam-se sob a forma de monólogos e estão menos preocupadas com o registro dos acontecimentos do que com os sentimentos dos entrevistados, isto é, a maneira pela qual a vida interior das pessoas foi moldada por esses eventos históricos.

Não há quem não se comova com os testemunhos de Vozes de Tchernóbil (1997), ou com as entrevistas com soldados soviéticos, suas mães e viúvas em Garotos de Zinco (1989), dedicado à Guerra no Afeganistão de 1979 a 1989. São livros importantes, originais e poderosos, que recontam a história por intermédio de narrativas pessoais e desmancham mitos soviéticos imbuídos da força de verdades humanas. Destilam a voz da memória para transformá-la numa forma de literatura. Como história oral, no entanto, eles não são tão inventivos quanto pensou o júri do Nobel.

A prática da história oral se desenvolveu mais lentamente na União Soviética do que no Ocidente, onde seus seguidores se valem há muito tempo de entrevistas para explorar os reflexos que os acontecimentos deixam no mundo interior dos entrevistados. Como disciplina, a história oral jamais foi reconhecida pela Academia Soviética de Ciências, não tendo sido integrada à pesquisa histórica profissional. O Estado mantinha controle estrito sobre a história, moldava a memória coletiva por meio da propaganda política e da mídia, dos livros didáticos e das comemorações, sublinhando assim a versão oficial do passado soviético – um mito propagandístico de heroicos sacrifícios e conquistas do povo sob o comando da liderança do Partido. Se aprovadas, as memórias eram publicadas com o intuito de acrescentar conteúdo “subjetivo” a essa narrativa. Na década de 20, registraram-se reminiscências orais de veteranos revolucionários, mas com a finalidade de escrever a história do Partido. Tais registros descartavam a matéria de que se compõe a história oral – as lembranças confusas, incontroladas, potencialmente subversivas de pessoas comuns.

As primeiras tentativas de se fazer história oral na União Soviética ficaram a cargo dos soldados que, ao retornarem dos combates entre 1941 e 1945, narraram experiências radicalmente diferentes do mito oficial da Grande Guerra Patriótica. Um deles foi o escritor Ales Adamovitch, da Bielorrússia, onde, ainda adolescente, se juntara aos partisans na luta contra o Exército alemão. Juntamente com o escritor soviético Daniil Granin, também veterano de guerra, Adamovitch compilou o Blokadnaia Kniga [Livro do Bloqueio], uma história do cerco de Leningrado de 1941 a 1944. Composta de testemunhos, diários e entrevistas com sobreviventes, a obra foi parcialmente publicada em 1977, na revista liberal soviética Novyi Mir, mas a versão integral em livro só seria lançada em 1984.


Adamovitch exerceu grande influência sobre Aleksiévitch, que a ele se refere como seu mentor. Suas técnicas, no entanto, diferem. Se o primeiro intercala comentários ao longo das entrevistas, Aleksiévitch jamais interrompe os entrevistados. Quando começou a trabalhar, no início da década de 80, essa prática, tivesse a jornalista consciência disso ou não, já se tornara padrão na história oral no Ocidente – ensinava-se que toda interrupção não apenas influenciava, mas também contaminava a narrativa do entrevistado. De acordo com um perfil de Masha Gessen para a New Yorker, a ganhadora do Nobel de Literatura “queria se livrar tanto da voz autoral como das habituais cronologias e contextualizações. O que pretendia era uma proximidade maior com as vozes que ouvia na infância, quando as mulheres se reuniam de tardezinha nos vilarejos e contavam histórias sobre a Segunda Guerra Mundial”.

Mulheres tendem a se lembrar de forma diferente dos homens – uma diferença, de resto, já observada tanto por psicólogos como por historiadores orais. Elas são melhores para relembrar sentimentos e falam sobre si abertamente. Os homens, concentrados em ações e na sequência dos acontecimentos, são mais propensos ao retraimento quando indagados sobre incidentes traumáticos, mesmo se do passado remoto. Não é surpresa, pois, que a voz feminina predomine na obra de Aleksiévitch.

Seu primeiro livro, A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (1985), traz monólogos femininos. São militares, médicas, enfermeiras, partisans, mães, esposas, viúvas – mulheres envolvidas na Grande Guerra Patriótica de 1941 a 1945. Suas histórias de sacrifício e coragem misturam-se a relatos mais sombrios de sofrimento, medo e caos que derrubam os mitos da propaganda soviética. Lançada em 1985, a obra vendeu 2 milhões de exemplares nos anos da perestroika. Ampliada, foi publicada em 2002, depois do colapso da União Soviética.


Ométodo que Aleksiévitch empregou nesse livro de estreia foi aplicado a toda sua produção posterior, inclusive a O Fim do Homem Soviético, seu primeiro volume depois do Nobel. Trata-se do projeto mais ambicioso da autora até hoje – um estudo panorâmico de vidas comuns afetadas pelo desmoronamento do sistema soviético, com base em centenas de extensas entrevistas e conversas gravadas entre 1991 e 2012. O título original – Vremia Sekond Hend [Época do second-hand] – seria uma referência à confusão e ao senso de deslocamento provocados pelo colapso soviético, como Aleksiévitch explica na introdução, a que chamou de “Observações de uma cúmplice”:

Antes da Revolução de 1917, Aleksandr Grin escreveu: “E o futuro parece que deixou de estar em seu próprio lugar.” Cem anos se passaram, e mais uma vez o futuro não está em seu lugar. Chegou a época do second-hand.

As vozes registradas pertencem, em sua maioria, a pessoas (75% delas mulheres) que julgam ter vivido sob o sistema soviético o melhor de suas existências. Como Aleksiévitch reconhece, ela selecionou pessoas de uma geração (na qual ela própria se insere) tão imersa no modo de vida soviético que o repentino desaparecimento da União Soviética as obrigou a sair em busca de uma nova identidade:

Busquei aquelas pessoas que se apegaram com todas as forças ao ideal, absorveram esse ideal de tal forma que não podiam se desprender dele: o Estado tornou-se seu universo, substituiu tudo nelas, até a própria vida. Elas não conseguiram abandonar a Grande História, dar adeus a ela, serem felizes de outra maneira…

São pessoas que foram incapazes de se adaptar ao modo de vida capitalista, no qual não havia nenhuma grande ideia, nenhum objetivo coletivo definido pelo Estado – apenas uma existência privada, “normal”.

Esses últimos soviéticos viveram o colapso de 1991 como um desbaratamento, uma ruptura da noção de tempo que tinham. Falam com Aleksiévitch sobre os últimos anos da União Soviética como se de um passado distante: “Isso foi há pouco tempo, mas era outra época… Em outro país…” Veem-se a si mesmos como exilados de um país desaparecido, de uma União Soviética mítica, lembrada com saudade pelas certezas, familiaridade e bens de consumo que nunca existiram. A nova Rússia lhes é estranha. Anna M., uma arquiteta que cresceu num orfanato de Moscou, tem apenas 59 anos, mas não consegue (ou talvez não queira) se adaptar à nova Rússia, que ela não tergiversa em acusar com termos provenientes do regime soviético:

Como é a nossa vida? Você vai andando por uma rua conhecida: tem loja francesa, alemã, polonesa. Todos os nomes são em línguas estrangeiras. As meias são de fora, as blusinhas, as botas… os biscoitos, a kolbassá... Em lugar nenhum você encontra as nossas coisas, soviéticas. Por todo lado eu só escuto o seguinte: a vida é uma luta, o mais forte vence o mais fraco, e isso é uma lei natural. É preciso desenvolver chifres e cascos, uma couraça de ferro, ninguém precisa dos fracos. Por todo lado as pessoas se debatendo, se debatendo, se debatendo. Isso é fascismo, isso é a suástica! Eu fico em choque… e desesperada! Isso não é para mim. Não é para mim isso! [Silêncio]


Para as pessoas dessa geração, os anos 90 foram uma catástrofe. Elas perderam tudo: um modo de vida conhecido, um sistema econômico que garantia segurança, uma ideologia que lhes dava certezas morais e talvez alguma esperança, um império gigantesco com status de superpotência e uma identidade que sobrepujava divisões étnicas, além do orgulho nacional pelas conquistas culturais, científicas e tecnológicas. Aleksiévitch registra um coro de lamentações, vozes que em sua maioria se queixam de não terem sido consultadas sobre a dissolução da União Soviética (que, de fato, não se deu pelo voto democrático). Os sentimentos de traição e desilusão reaparecem praticamente a cada página:

Entregaram um país como esse! Uma potência! Sem um único tiro… Eu só não entendo uma coisa: Por que ninguém perguntou nada para nós. Passei a vida inteira construindo um país grandioso. Era o que nos diziam. O que prometiam.

Passamos a vida inteira construindo, e tudo foi embora por meia pataca. Deram vouchers [de empresas estatais] para o povo… enganaram…

Muitos falam da humilhação que sofreram na década de 90, quando a inflação lhes privou das economias que haviam feito a vida inteira e mal podiam se alimentar com os salários e as pensões que o Estado muitas vezes não pagava. Um projetista se lembra de que passou a vender as bitucas de cigarro que os pais de sua mulher, professores universitários, coletavam nas ruas. O colapso do padrão de vida minou a confiança popular na “liberdade” e na “democracia” capitalista – termos abstratos, que as pessoas não compreendiam (não tinham experiência de liberdades garantidas por lei), a não ser como o acesso mais livre e democrático a bens materiais. Um dos entrevistados mais jovens, e não identificados, explica:

Todos sonhavam com uma nova vida… Sonhavam… Sonhavam que apareciam montes de kolbassá nas prateleiras, a preços soviéticos, e que os membros do Politburo pegariam uma fila comum para comprar aquilo. Kolbassá é o ponto de partida. Temos um amor existencial pela kolbassá…

Em O Fim do Homem Soviético, os jovens não são tão ouvidos como os velhos. Aleksiévitch está menos interessada neles, embora um dos melhores capítulos do livro, “Sobre a solidão que é muito parecida com a felicidade” – a história de Alissa, uma publicitária de 35 anos que a autora encontra por acaso num trem –, ponha em relevo a divisão moral entre aqueles que, como a publicitária, são jovens e fortes o bastante para vencer no mundo moscovita dos negócios, e a intelligentsia soviética, gente como os pais dela, professores de uma escola em Rostov cujos valores estão definidos nos livros. Depois de anos de farra na companhia dos oligarcas – evidentemente auxiliada por sua bela aparência –, Alissa quer se estabelecer, determinada a fazer dinheiro, e a fazê-lo sozinha, sem a ajuda dos homens:

Eu odeio quem cresceu na pobreza, com uma mentalidade “de pobre”, o dinheiro para eles significa tanta coisa, que não dá para confiar neles. Não gosto dos pobres, dos humilhados e ofendidos [referência ao romance de Dostoiévski]… Não confio neles!

A mãe de Alissa quer largar o magistério, incomodada com os alunos que se aborrecem quando ela lhes fala de Aleksandr Soljenítsin (“Nós não sonhamos com essas façanhas, nós queremos viver normalmente”). Leem Almas Mortas, de Nikolai Gógol, e têm em Tchítchikov – o canalha que protagoniza o romance – seu modelo.

Nas muitas histórias de suicídio, porém, os jovens ganham proeminência. Há pelo menos uma dúzia delas no livro: o garoto de 14 anos que se enforca sem motivo aparente; uma mulher que, enganada por bandidos que a privam de seu apartamento, se joga debaixo de um trem; uma jovem policial que, oficialmente, teria atirado contra si mesma na Tchetchênia, embora sua mãe, investigando por conta própria, descubra que ela foi morta por colegas bêbados, depois de se recusar a aceitar propina. Muitas outras relatam tentativas de suicídio, um tema que interessa à autora desde muito tempo. Em 1993, Aleksiévitch publicou a coletânea de histórias Zacharovannye Smertiu [Fascinados pela Morte], todas elas tentativas de suicídio relacionadas a uma crise pessoal provocada pelo colapso da União Soviética. Algumas delas reaparecem em O Fim do Homem Soviético, como a autora reconhece em suas “Observações”.


Dessas páginas emerge um quadro da Rússia contemporânea extremamente sombrio, uma paisagem inóspita habitada por pobres, deprimidos, humilhados, por prejudicados e amargurados, por refugiados sem-teto de guerras étnicas, por criminosos e assassinos – um lugar sem muito espaço para a esperança ou o amor. Sem dúvida alguns russos vão se ofender e reclamar da ausência de histórias mais positivas, ou acusar a autora de vender estereótipos russofóbicos. A mídia russa, sob controle do Estado, reagiu à notícia do Nobel para Aleksiévitch com uma avalanche de impropérios, protestando por ela não ser uma escritora de fato, só agraciada por suas visões anti-Putin. Foi uma reação que ecoou ocasiões anteriores em que o prêmio foi concedido a escritores russos conhecidos por suas opiniões antissoviéticas: Ivan Bunin, em 1933; Boris Pasternak, em 1958; Aleksandr Soljenítsin, em 1970; e Joseph Brodsky, em 1987.

Meu senão com O Fim do Homem Soviético não tem nada a ver com sua atmosfera sombria, e sim com uma sensação de que muitas das histórias foram escolhidas por seu efeito dramático ou sensacionalista. Há no livro relatos extraordinários – mais do que todos, aquele que já foi até objeto de um filme: Ielena Razdúieva, uma operária de 37 anos, desiste de tudo (um bom marido, três filhos e um lar) para viajar à outra extremidade da Rússia em busca de um homem que não conhece, condenado à prisão perpétua. “É aquele tipo russo”, diz a cineasta, “aquele russo que Dostoiévski descreveu como tão vasto como a terra russa. O socialismo não o mudou, o capitalismo também não vai mudar.”

Trata-se de uma história que poderia, de fato, ter saído diretamente das páginas de um romance de Dostoiévski – o que não está tão claro, no entanto, é o que ela está fazendo aqui. Pretenderia lançar uma luz redentora sobre um livro sombrio? Desejaria contemplar a “alma russa”?

Svetlana Aleksiévitch já caracterizou seus livros como “romances feitos de vozes”. Em O Fim do Homem Soviético, ela afirma que seu propósito é a transformação da vida – da vida simples – em literatura:

Fico sempre vigiando, tentando ouvir nas conversas, particulares e gerais. Mas às vezes me distraio na vigilância, e um “pedacinho de literatura” pode reluzir em toda parte, às vezes até no lugar mais inesperado.

Ao ouvi-las e editá-las com zelo, a autora transforma suas entrevistas numa literatura falada que carrega toda a verdade e a pujança emocional de um grande romance. As histórias mais dramáticas, porém, nem sempre são as mais representativas. Talvez por isso o livro termine com as “Observações de uma cidadã”, sintetizando em uma página uma entrevista que poderia ter sido feita com qualquer uma entre milhões de mulheres que habitam os vilarejos da ex-União Soviética.

Pode-se criticar a ausência de intervenções autorais. Monólogos ininterruptos podem se transformar em vitupérios ou se tornar repetitivos. Penso que talvez devêssemos ser mais bem informados sobre o histórico de cada entrevistado (nome, idade e profissão não bastam) e sobre o local em que cada entrevista foi realizada (há um abismo entre Moscou e as províncias russas). Ainda que as entrevistas estejam agrupadas por décadas (1991–2001 e 2002–2012), elas não são datadas – resta ao leitor a tarefa de adivinhar quando teriam sido feitas. É uma falha grave, porque a União Soviética de 2001 era muito diferente daquela que seus defensores conheceram em 1991, e, em se tratando de história oral, o cenário político da entrevista é sempre importante.

Mas são questões que não diminuem um feito considerável. Aleksiévitch deu voz a uma geração perdida que se sente traída, surrupiada de sua própria vida pela história. Ao dar ouvidos aos humilhados e ofendidos, podemos aprender a respeitá-los.

Sobre o autor

Orlando Figes é professor de história no Birkbeck College, University of London. Seu último livro é Revolutionary Russia, 1891-1991: A History (2018).

9 de outubro de 2016

Uma crítica aos pressupostos do ajuste econômico

Autores repelem argumentos de economistas clássicos acerca do papel da austeridade na redução da relação dívida/PIB e na retomada do crescimento. O texto critica a proposta de teto para gastos públicos, que adiaria o reencontro do país com a prosperidade.

Luiz Gonzaga Belluzzo e Pedro Paulo Zahluth Bastos

Folha de S.Paulo

Fomos honrados pela citação de nosso artigo (publicado no site da "Ilustríssima") por Luiz Fernando de Paula e Elias Jabbour, que responderam a um artigo polêmico de Marcos Lisboa e Samuel Pessôa a respeito da diferença entre direita e esquerda em economia. Concordamos em geral com a resposta, mas pretendemos levantar novos elementos para reflexão.

O argumento central de Lisboa e Pessôa é que, nos EUA, os debates entre direita e esquerda são resolvidos com o uso de métodos quantitativos de verificação de hipóteses e que, no Brasil, isso não se faz. Nesse sentido, o fenômeno da heterodoxia "sem uso de dados" seria tipicamente brasileiro, como reiterado em novo artigo de Lisboa e Pessôa em 04/09.

Os equívocos de Lisboa e Pessôa são diversos e alguns deles foram apontados por de Paula e Jabbour. Primeiro, não é verdade que praticamente não existam heterodoxias fora do Brasil, mas apenas divisões entre esquerda e direita no seio da "economia tradicional". Esse desconhecimento reflete o fato de que as faculdades neoclássicas não estudam as heterodoxias, embora os heterodoxos estudem e saibam bem por que rejeitam a ortodoxia neoclássica.

Por outro lado, como de Paula e Jabbour alertaram bem, há uso abundante de técnicas econométricas entre economistas heterodoxos, particularmente (agregaríamos) o uso de séries temporais. É verdade que a heterodoxia recorre a métodos quantitativos com muito mais ceticismo do que a ortodoxia, e quase sempre em simbiose com análises qualitativas (institucionais e históricas). Contudo, enquanto as metarregressões de John Stanley documentaram fartamente o viés de publicação dos resultados empíricos desejados pelos neoclássicos, autores como Anthony Thirlwall, John McCombie e Jesus Felipe, por exemplo, apresentam estudos econométricos que refutam cabalmente as hipóteses neoclássicas sobre determinantes do crescimento econômico e da distribuição de renda, sendo convenientemente ignorados pela ortodoxia.

O que deve ser esclarecido é o que de fato diferencia a ortodoxia neoclássica e as heterodoxias. Depois de fazermos isso, mostraremos que as proposições teóricas de Lisboa e Pessôa são refutadas empiricamente mesmo no seio da ortodoxia, mas resolvidas pelas heterodoxias. Finalmente, abordaremos o desastre da proposta ortodoxa de austeridade no Brasil.

ORIGENS

A ortodoxia e as heterodoxias podem ser entendidas como derivações da economia política fundada por Adam Smith. Por um lado, Smith alegava que a livre concorrência levaria à eficiência e harmonia no uso dos recursos, justificando a liberação das restrições à busca de interesses pelos indivíduos e o livre comércio entre países. Por outro lado, Smith posiciona os indivíduos em classes sociais (aristocratas da terra, burgueses e trabalhadores) que têm conflitos agudos, documentando coordenação dos empresários para rebaixar salários e aprovar leis que proíbem a reação coletiva dos trabalhadores.

Grosso modo, a ortodoxia neoclássica parte do indivíduo como unidade de análise e chega ao equilíbrio geral entre a soma de indivíduos que formam uma economia harmônica. As heterodoxias partem da assimetria entre classes sociais ou países e enfatizam a dinâmica contraditória e a instabilidade geradas pela busca de enriquecimento dos empresários.

Por isso, enquanto a ortodoxia legitima um Estado mínimo ou com intervenções pontuais, as heterodoxias justificam políticas mais estruturantes e maior regulação dos mercados. Na primeira metade do século 19, Alexander Hamilton nos EUA e Friedrich List no mundo alemão já questionavam a harmonia entre países desiguais, inspirando políticas protecionistas e de desenvolvimento.

Em Smith, a distinção entre indivíduo e classe social não muda sua preferência pelos burgueses. Tanto ele quanto David Ricardo justificaram a concentração do patrimônio e da renda pelos capitalistas. Sua abstinência dos prazeres do consumo supostamente geraria a poupança necessária para o investimento que, em seguida, geraria a riqueza que gotejaria para os trabalhadores perdulários, para as rendas dos aristocratas da terra e para a arrecadação tributária. É isso o que Karl Marx e, depois, Keynes questionariam, fundando heterodoxias.

A ênfase no individualismo metodológico só se completou, porém, com a revolução marginalista proposta na década de 1870 por Jevons, Menger e especialmente Walras, patrono do modelo de equilíbrio geral que é a base da ortodoxia contemporânea. O destaque da economia política clássica nas classes sociais é substituído, então, pelo equilíbrio harmônico e justo entre indivíduos livres e iguais, que não se preocupam mais com a aprovação simpática do outro como dizia Smith, mas apenas com sua vantagem utilitária, à la Bentham.

Assim, a ortodoxia neoclássica parte do axioma (não empírico) de indivíduos racionais e maximizadores de utilidade de acordo com preferências e dotações de recursos que precedem sua interação social. Nem suas relações nem suas preferências seriam estruturadas, assimetricamente, de acordo com seu posicionamento em classes sociais (e países) com poder diferente sobre recursos econômicos e políticos e sobre a formação de convenções sociais.

Partindo desses supostos axiomáticos, a dedução lógica assegura a conclusão esperada desde Adam Smith: as interações livres entre indivíduos (e países) levam a um equilíbrio estável e maximizador, satisfatório para todos. Como as interações individuais não são estruturadas por relações desiguais entre classes sociais e países que mudam historicamente, os fenômenos não precisam ser entendidos com base em uma análise qualitativa de assimetrias estruturais e suas transformações complexas, como é típico das heterodoxias.

À moda positivista, a causalidade é mera concomitância regular de eventos em uma economia de mercado que é essencialmente a mesma em qualquer tempo e espaço. Assim, os fenômenos são explicados pela mudança exógena de preferências, técnicas e intervenções políticas, gerando incentivos comunicados pelos preços que, por sua vez, induzem a reação de indivíduos maximizadores até que um novo equilíbrio seja alcançado.

A moeda é vista apenas como um véu que facilita trocas reais, enquanto o sistema financeiro apenas intermedeia recursos reais entre poupadores e investidores. Assim, a inflação atrapalha a poupança e as interações mercantis que sempre tendem ao pleno emprego dos recursos reais, resultando de alguma intervenção exógena, como gastança do governo ou egoísmo dos sindicatos. Os equilíbrios aquém do ótimo não seriam resultados endógenos das interações, mas meras reações da economia de mercado a intervenções que querem levá-la além do ótimo.

O DESAFIO DE KEYNES

Em 1936, Keynes desafiou a ortodoxia ao afirmar que a economia monetária de produção tinha mecanismos endógenos que não asseguravam o equilíbrio com pleno emprego. O pleno emprego era uma situação possível e especial, mas uma teoria geral deveria explicar outros estados de equilíbrio sem pleno emprego. Keynes alegou que a mera disponibilidade de recursos não assegurava que fossem usados ao máximo, pois os capitalistas investiriam caso houvesse expectativas favoráveis de demanda efetiva para ocupar a capacidade ociosa.

Se imaginarem que a capacidade ociosa não será ocupada e estiverem endividados, os empresários podem destinar recursos para o pagamento de dívidas ou para a constituição de reservas financeiras. O que é racional para o indivíduo, contudo, é ruim para a classe: no agregado, a queda do gasto significa queda de receitas, o que pode tornar ainda mais difícil pagar dívidas e induzir a novas contrações dos gastos e das receitas.

Ao invés da causação cumulativa, a ortodoxia confia no feedback negativo da flexibilidade de preços para restaurar o equilíbrio maximizador: a queda de preços e salários aumentaria a demanda automaticamente. Keynes acusa aí uma nova falácia de composição: preços menores reduziriam a capacidade de pagamento de dívidas e encareceriam sua rolagem, enquanto salários menores reduzem o gasto dos capitalistas, mas também seu nível de produção e suas receitas, inibindo ainda mais o investimento. Michal Kalecki, o principal macroeconomista marxista contemporâneo de Keynes, diria que os trabalhadores tendem a gastar o que ganham, mas os capitalistas ganham o que gastam.

De nada adianta que o corte do gasto privado leve a uma redução da arrecadação de impostos. Se o governo cortar despesas, as receitas do setor privado voltariam a cair e a capacidade ociosa a subir. E nada garante que as exportações líquidas aumentem para compensar a contração da demanda interna.

Isso é agravado pelo funcionamento do sistema financeiro. Como mostrou Hyman Minsky, o sistema não se limita a intermediar recursos reais entre poupadores e investidores: ele cria poder de compra, endogenamente, através da expansão do crédito, alimentando um otimismo crescente que rebaixa exigências para concessão de empréstimos e inflaciona o preço de ativos financeiros.

Quando o ciclo muda de direção, as convenções sociais que animam a valoração de ativos tornam-se pessimistas, levando à queda de preços à medida que são liquidados em uma busca pela liquidez de saldos monetários e títulos da dívida pública. O aumento da poupança financeira desejada microeconomicamente não leva a um aumento da poupança macroeconômica, pois os investimentos caem e, com eles, a renda agregada, os lucros e a capacidade de pagar dívidas.

Assim como a elevação de investimentos, consumo dos trabalhadores, gasto público pode se realimentar e levar a economia a um boom de otimismo e tomada de riscos crescentes, a reversão dos gastos pode alimentar um círculo vicioso de pessimismo e queda de demanda até uma crise financeira, se a deflação de ativos financeiros levar à desconfiança quanto à solvência dos bancos que financiaram a expansão e a especulação.

O recado de Keynes é que o sistema não tem a capacidade de se autorregular. Sem que o governo diminua sua poupança e incorra em deficits quando os empresários resolvem poupar coletivamente, a busca de poupança será frustrada pela queda da renda agregada. Sem que bancos centrais reduzam juros, ofereçam créditos que os bancos não conseguem contratar no interbancário e até comprem ativos quando os bancos os liquidam, a desaceleração cíclica e o esgotamento da bolha financeira acabará em falências bancárias e em uma montanha de dívidas impagáveis.

Melhor que remediar, contudo, seria prevenir a instabilidade com a construção de instituições apropriadas. Primeiro, o planejamento e coordenação de um volume amplo de investimentos públicos reduziria a instabilidade do investimento privado ao assegurar um nível adequado de demanda efetiva. Segundo, o Banco Central deveria assegurar a liquidez dos bancos, mas em troca proibir ou restringir fortemente o financiamento de posições nos mercados de ativos, separando o financiamento do investimento produtivo e os ciclos especulativos. Terceiro, controles de capitais proibiriam a especulação nos mercados de câmbio, enquanto instituições multilaterais financiariam desequilíbrios de balanço de pagamento sem impor uma recessão, que apenas transferiria o desequilíbrio de um país a outro. Finalmente, políticas de renda e sociais deveriam inibir a desigualdade, pois a maior propensão a consumir dos trabalhadores (em relação aos ricos) ampliaria o multiplicador do gasto autônomo e contribuiria para um nível adequado de demanda para os investimentos.

A RESPOSTA NEOCLÁSSICA

A reação ortodoxa foi enquadrar a macroeconomia de Keynes no arcabouço neoclássico, fazendo da situação de ociosidade de recursos novamente um caso particular da microeconomia do equilíbrio geral. Os macroeconomistas neoclássicos não abandonaram o individualismo metodológico nem incorporaram a concepção de causação cumulativa e endógena dos ciclos de crédito e investimento, o papel da incerteza e das convenções sociais que induzem os agentes a comportamentos individualmente racionais, mas coletivamente irracionais em ondas de otimismo que se desdobram em pessimismo, em razão do excesso de investimento em capacidade ociosa, inflação de ativos e endividamento.

Os neoclássicos não chegaram ao resultado keynesiano apontando motivos endógenos à interação entre capitalistas, pois mantiveram a suposição de indivíduos com acesso simétrico aos mercados de crédito e seguros e às melhores informações e tecnologias, usando o mesmo modelo teórico e operando em concorrência perfeita. O sistema só não seria levado ao equilíbrio maximizador por causa de falhas de mercado que, no fundo, eram um bloqueio exógeno a um sistema que não teria qualquer instabilidade intrínseca. Não haveria imperfeição ou equilíbrio subótimo na realidade sem a perfeição subjacente ao modelo de indivíduos racionais e maximizadores de utilidade.

O irrealismo dos supostos e a experiência recorrente de crises levou a questionamentos crescentes dentro e fora da igreja neoclássica: como confiar nas previsões se os supostos eram cada vez mais deslocados de uma realidade de grandes empresas e bancos com poder oligopólico crescente? A falsa solução foi proposta por Milton Friedman em 1953, criando a metodologia neoclássica moderna e sua ênfase na formalização matemática e métodos econométricos.

Friedman alegou que os economistas neoclássicos não deveriam se importar com o irrealismo das hipóteses sobre a concorrência perfeita e sobre o comportamento dos indivíduos. Não era mais necessário fazer pesquisa empírica e histórica sobre as condições institucionais do capitalismo realmente existente. Bastava partir de supostos escolhidos arbitrariamente (axiomas não empíricos) e supor que o mundo funciona "como se" eles fossem válidos. Em vez de explicar, tratava-se simplesmente de prever a correlação entre variáveis exógenas e endógenas ao modelo, supondo, com toda a fé, que os elos causais entre elas resultem da operação (não observada) de indivíduos livres sem interações assimétricas.

A imensa maioria dos ortodoxos nem sequer sabe que a proposta metodológica de Friedman, próxima do instrumentalismo, é rejeitada quase universalmente entre filósofos e epistemólogos, porque faz da economia a única ciência em que a maioria dos praticantes não se preocupa em explicar fenômenos, mas apenas em prever correlações com base em descrições e supostos completamente irrealistas sobre o funcionamento do objeto.

A despeito de sua artimanha metodológica, todas as hipóteses de Friedman foram refutadas quando se mostrou que confundiam causalidade e correlação ou que a correlação nem existia: que a oferta de moeda era exógena; que a variação de preços dependia da oferta exógena de moeda; que a velocidade de circulação da moeda era praticamente constante; que os agentes econômicos não se preocupavam com variáveis nominais; que a especulação estabilizante levaria o preço de ativos ao seu equilíbrio fundamental.

Não obstante seu fracasso teórico, a liberação do irrealismo dos supostos permitiu que vários economistas neoclássicos formulassem hipóteses ainda mais ousadas para elogiar a perfeição dos mercados e a imperfeição de políticas que busquem limitar e orientar comportamentos econômicos. A economia política neoclássica, por exemplo, admitiu de modo protocolar a existência de falhas de mercado (como monopólios naturais e a poluição), mas as considerou raras e menores do que as falhas dos governos que tentassem revertê-las.

Era a senha para o ataque neoliberal contra as instituições de regulação do capitalismo construídas no pós-guerra e desmontadas a partir da década de 1980. A revolução das expectativas racionais, liderada por Lucas, Barro e Sargent, levou ao extremo a confiança na mecânica dos mercados livres. Para os autores novo-clássicos, como os agentes racionais sabem que o aumento do gasto público levará à elevação futura de impostos, anulam completamente a política fiscal com cortes compensatórios dos gastos privados, para economizar recursos para o pagamento futuro de impostos. A melhor política contracíclica seria, portanto, cortar o gasto público, o que levaria os agentes a aumentar o gasto privado desde logo!

Como os mercados financeiros seriam eficientes e bolhas de ativos seriam impossíveis, as restrições às operações financeiras deveriam ser eliminadas ou fortemente reduzidas para permitir a melhor alocação possível dos recursos. Finalmente, políticas de rendas e sociais deveriam ser "flexibilizadas" para permitir a redução de salários e o aumento da poupança, a realocação de trabalhadores entre ramos e o aumento dos incentivos para o trabalho duro.

Hoje em dia, o campo neoclássico é dividido em dois grupos. A visão novo-keynesiana, mais à esquerda, reconhece falhas de mercado (rigidez de preços e salários ou assimetrias de informação) e confia na capacidade do Estado em regulá-las, enquanto os novo-clássicos desconfiam à direita. Os novo-keynesianos defendem políticas contra a desigualdade, mas, contra Keynes, compartilham com os novo-clássicos a hipótese de que geram perda de eficiência e crescimento. Também admitem a política fiscal "de emergência" durante crises, mas até 2008 se uniram em uma "nova síntese" que alegava que novas crises seriam improváveis graças à submissão dos banqueiros centrais às regras do regime de metas de inflação. Nenhuma das escolas neoclássicas previu a crise financeira mundial, ao contrário de inúmeros autores heterodoxos que mantiveram a concepção dinâmica das instabilidades do capitalismo herdada de Marx, Keynes e Minsky.

AUTOCRÍTICA SEM TEORIA

É claro que o fracasso das políticas e reformas neoliberais não poderia passar despercebido pelo campo neoclássico. Curioso é que a autocrítica não passe perto dos neoclássicos brasileiros. Lisboa e Pessôa, por exemplo, sustentam o dogma de que "em geral, as economias operam nas proximidades do pleno emprego" e não o consideram refutado pelas evidências desde 2008.

Continuam afirmando a contradição - central ao programa neoliberal - entre busca de igualdade e ganho de eficiência e crescimento, como se o aumento da desigualdade não tivesse convivido com redução do crescimento nas três décadas de neoliberalismo e como se até o FMI já não rejeitasse tal causalidade.

Também defendem a pauta mínima dos neoinstitucionalistas anglo-saxões quanto aos direitos de propriedade e gastos em educação como fonte do poderio de seus países, e não a percebem refutada 1) pelos casos de desenvolvimento com planejamento industrial, empresas estatais e bancos públicos nas periferias do capitalismo, 2) pelo fato de que regras legais, direitos de propriedade intelectual e o gasto educacional foram ampliados nas últimas três décadas, o que não impediu o aumento e aprofundamento das crises financeiras depois do ataque neoliberal, liderado por reformadores anglo-saxões, às instituições keynesianas de regulação dos mercados.

Com efeito, os países que mais cresceram foram os que combinaram a flexibilidade da empresa privada com controles amplos sobre o sistema financeiro, assim como empresas estatais, bancos públicos e políticas industriais que orientavam investimentos públicos e privados, internos e externos. Em suma, o neoliberalismo fracassou na promessa de alocar melhor os recursos (sem crises) e de ampliar a desigualdade para gerar mais crescimento econômico.

É curioso que Lisboa e Pessôa aleguem que as controvérsias teóricas devam ser resolvidas com evidências empíricas, mas ao mesmo tempo desconheçam as evidências que os próprios neoclássicos juntaram contra as proposições teóricas que exportaram, desde a década de 1980, para o Brasil e o resto do mundo através do Consenso de Washington.

Há poucas semanas o Fundo Monetário Internacional surpreendeu ao publicar uma autocrítica aguda do neoliberalismo. A autocrítica envolveu três aspectos do programa que o Fundo impôs aos países periféricos desde a década de 1980: 1) liberalização financeira; 2) a relação entre desigualdade e crescimento econômico; 3) austeridade fiscal.

É digno de nota que tamanha autocrítica se fez sem qualquer reflexão teórica profunda (apesar das dúvidas de Olivier Blanchard), como se não houvesse sistemas universitários e teóricos que formassem economistas que previam o fracasso das reformas neoliberais desde o início. Mais do que isso: como se o próprio patriarca do FMI, John Maynard Keynes, não tivesse criado um sistema teórico que explica por que fracassam as políticas e instituições que a nova ortodoxia neoliberal do FMI difundiu pelo mundo 40 anos depois de sua criação, apoiada pelas "melhores" faculdades de economia e pelo próprio governo dos EUA, assim como por "think-tanks" financiados por grandes empresários e corporações.

Diante da descoberta muito tardia do fracasso das previsões de seu sistema teórico de base neoclássica, os neoclássicos não sabem o que fazer, a não ser agregar hipóteses secundárias, ad hoc, por cima de modelos hipotéticos que partem de um único "agente representativo", mas preveem o equilíbrio maximizador entre indivíduos racionais. A mágica é retorcer os modelos com "choques imaginários" e "falhas de mercado" de modo que, exogenamente, produzam resultados econométricos aparentemente adequados aos dados recortados. A explanação teórica e a reconstituição histórica, no entanto, se perdem em meio a formalizações e racionalizações irrelevantes para entender e explicar as economias capitalistas realmente existentes.

Quanto à liberalização financeira, foi acompanhada pela explosão de crises, à medida que os países confiaram na capacidade de autorregulação dos mercados e desmontaram a regulamentação keynesiana do sistema financeiro doméstico e os controles ao movimento internacional de capitais. O FMI agora voltou a admitir controles de capitais como no mundo anterior à década de 1980 e como na Índia e na China ainda hoje, embora o principal sócio da instituição multilateral, os EUA, vete uma defesa explícita que nem sequer é discutida no meio da ortodoxia brasileira.

No que tange às relações entre desigualdade e crescimento econômico, tecnocratas neoliberais legitimaram o ataque de empresários, desde a década de 1970, contra os impostos que financiavam o Estado de Bem-Estar Social e contra os arranjos sindicais e políticos que asseguravam o aumento de salários reais. Recuperando argumentos pré-keynesianos, economistas neoclássicos apresentaram evidências episódicas para assegurar que a redução de alíquotas de impostos sobre os ricos e a "flexibilização" (queda) de salários reais e do gasto social aumentariam o crescimento econômico, o nível de emprego e a própria arrecadação tributária. Hoje o FMI admite que o aumento da desigualdade, parcialmente resultante do desmonte das políticas sociais e salariais que buscavam maior igualdade social, trouxe menos e não mais crescimento econômico.

Programas de austeridade fiscal, por sua vez, não se mostraram capazes de controlar o crescimento da dívida pública em relação ao PIB, tendendo ao contrário a aumentá-la ao provocar desacelerações ou mesmo recessões que deprimem a arrecadação tributária. Hoje, o FMI considera melhor reduzir o peso da dívida pública no PIB "organicamente", isto é, depois que o crescimento econômico seja retomado com políticas anticíclicas e, então, provoque aumento da arrecadação tributária a um ritmo superior ao do gasto público, enquanto a redução da taxa de juros diminui o peso da dívida pública no PIB. A ideia de que a contração fiscal é expansionista só não morreu no meio da ortodoxia brasileira.

A DITADURA DA AUSTERIDADE

Só a fé na hipótese de contração fiscal expansionista explica a desconsideração dos neoclássicos brasileiros em relação aos dados de queda da rentabilidade das empresas (apesar das isenções fiscais), deflação do preço das commodities e o ciclo longo de endividamento de empresas e famílias cuja reversão se iniciava em 2014. Nessas condições, tomar a parte pelo todo, o micro pelo macro, a economia doméstica ou a empresa pelo sistema complexo, implica recomendações desastrosas de política econômica: para um empresário individual, o corte do gasto público e do salário real pode representar promessa de custos menores no futuro, sem que entenda a interação complexa por meio da qual a queda resultante da demanda agregada vai prejudicar, antes da redução de custos, as receitas e o balanço patrimonial de sua empresa.

Mais grave é que o mesmo equívoco se repita entre economistas. Sua esperança é que o investimento privado se recupere à medida que corte do gasto público acompanhe a queda da arrecadação, sem prever que, ao se defrontar com o corte da demanda gerado pela austeridade fiscal e salarial, o empresário vai destinar receitas para pagar suas dívidas e comprar títulos públicos, sobretudo se o Banco Central prometer um ciclo longo de elevação de juros.

Em um sistema complexo, a falácia de composição implica que quando todos, inclusive o governo, tentam poupar, o corte de demanda agregada frustrará o desejo de poupar e dificultará ainda mais o pagamento das dívidas. Como não perceber o desastre caso o governo e o Banco Central também sinalizem para uma grande depreciação cambial que, antes de estimular exportações, encarecerá importações e passivos externos?

Nos meses finais de 2014, já escrevíamos que a economia brasileira estava à beira da recessão. Também apontávamos a queda do preço das commodities, a operação Lava-Jato e a possibilidade de racionamento de água e energia como motivos por que um ajuste fiscal seria contraproducente ao jogar a economia na recessão que acentuaria a queda da arrecadação tributária e aumentaria o peso da dívida pública no PIB. Ao mesmo tempo, economistas neoclássicos faziam festa com o anúncio do programa de Joaquim Levy, expressa por exemplo na previsão do boletim FOCUS de que a economia se recuperaria em relação a 2014, crescendo 0,8% em 2015. A breve melhoria da confiança empresarial no final de 2014 parecia dar materialidade à crença de que, pelo menos no Brasil, a fada da confiança faria milagres.

Nunca afirmamos que foi apenas o corte severo da despesa pública, acelerado no primeiro semestre de 2015, que provocou a contração do PIB de 3,8%. Neste caso, o "conjunto da obra" que reforçou a desaceleração cíclica já em curso e jogou a economia na recessão incluiu, além das políticas monetária e cambial incensadas pela ortodoxia, o aumento de receitas por meio da elevação de preços públicos e impostos federais e estaduais, e as declarações de Levy de que continuaria cortando o que fosse necessário para correr atrás da enorme queda de arrecadação e alcançar a meta fiscal irrealista, acentuando a espiral descendente que, certamente, contribuiu para aumentar a impopularidade da presidenta e as incertezas trazidas pela crise política.

Afirmamos sim que o programa fiscal seria contraproducente para sua finalidade declarada, melhorar o resultado fiscal ou, pior ainda, a relação dívida pública/PIB. Estudos econométricos apontam que o multiplicador fiscal, o montante que a renda nacional cresce (ou cai) para cada real gasto (ou eliminado) pelo governo, se amplia em uma recessão, podendo chegar a um valor maior do que 3,5, sobretudo se cortar o investimento público e prejudicar a confiança no futuro de empresas e famílias. A sensibilidade da arrecadação tributária a uma recessão também é maior, de modo que a tentativa do governo de aumentar sua poupança tende a se frustrar à medida que o multiplicador fiscal se eleva e a arrecadação despenca. Não se estimou o esforço tributário de Estados e municípios, mas o da União chegou a pelo menos 0,44% do PIB, com ganho de carga tributária de apenas 0,12% em 2015 (e com IRPF de 2014!).

Ou pior, uma política que contribui para derrubar o PIB não tem como reduzir a relação dívida/PIB, tanto mais se a política de juros altos colabora para aumentar o numerador e reduzir o denominador. Como dizia Keynes, se há algum momento propício para a austeridade, esse é o boom e não a recessão. O ônus da prova de que o contrário vale para o Brasil, mas não no resto do mundo, continua com os defensores de primeira hora da austeridade expansionista.

Eles precisam provar, também, que a concentração da renda aumenta a capacidade de recuperação da economia brasileira, que acabou de passar por um longo ciclo de crescimento sob o impulso da desconcentração da renda e da incorporação de trabalhadores pobres aos mercados de consumo. Joaquim Levy afirmou em junho de 2015 que havia gente que não queria entrar mais no mercado de trabalho, mas voltaria com a recessão a procurar emprego, o que seria bom pois "não existe crescimento sem aumento da oferta de trabalho."

Em debate que tivemos em outubro de 2015 com Lisboa e Pessôa, este afirmou que, "quanto mais os salários reais caírem, mais rápido e indolor o ajuste vai ser. Em maio, junho, fiquei superfeliz porque as expectativas estavam mostrando uma queda de salário real de 5%". Ora, Keynes já mostrara há décadas que, assim como o corte do gasto público, a queda de salários e do nível de emprego também reduz os lucros agregados à medida que as vendas caem. Mesmo prevendo salários e custos menores, os capitalistas não investem sem demanda. E, paradoxalmente, não lucram se não gastam.

O resultado é que a queda de receitas torna as empresas superendividadas, com risco crescente de inadimplência que, por sua vez, retrai ainda mais o crédito bancário. Ou seja, quando todos poupam para pagar suas dívidas ao mesmo tempo, tanto a dívida pública quanto a privada aumentam em relação ao PIB em queda.

Curiosamente, muitos dos economistas que diziam não haver espaço fiscal para uma política anticíclica no final de 2014 aceitaram a primeira revisão da meta de deficit fiscal para R$ 170,5 bilhões em 2016 pelo governo interino, nos fazendo supor que não eram tecnicamente equivocadas, mas politicamente motivadas, as censuras àqueles que, como nós, criticavam a resistência do ministro Levy a revisar a meta fiscal irrealista em 2015.

A solução do novo governo Temer é, contudo, dobrar a aposta na austeridade, tornando-a permanente com a PEC 241, que impede a ampliação real do gasto público. Se aprovada, levará a cortes radicais nas leis que preveem ampliação da cobertura de bens e serviços públicos, inclusive educação e saúde, para poupar recursos para o pagamento da dívida pública.

Macroeconomicamente, é um mau negócio. O gasto social tem um grande multiplicador fiscal, conservadoramente estimado pelo Ipea acima de 1,5, mas o multiplicador do pagamento de serviços da dívida pública é estimado pouco abaixo de 0,8, dado o de fato que seus portadores são, em geral, liberados de preocupações imediatas de consumo.

Embora mesmo o FMI admita que a melhor maneira de controlar o peso da dívida pública no PIB é estimular o PIB e reduzir a taxa de juros, as atas do Copom sob comando de Ilan Goldfajn parecem condicionar a queda da taxa de juros à "continuidade dos esforços para aprovação e implementação (das) reformas fiscais", leia-se a PEC 241.

O problema disso, primeiro, é que o deficit público não resulta de gastança, mas de queda de arrecadação, logo a inflação não resulta de excesso de demanda pública a controlar com juros altos. Segundo, os juros elevados e inexplicáveis são o principal determinante da ampliação da dívida pública, gerando custos que a austeridade do gasto social e do investimento público é incapaz de controlar, tanto mais porque os cortes limitam o crescimento do PIB.

Politicamente, é uma impostura: pesquisas de opinião mostram que a imensa maioria da população (até 98%) aprova a universalidade e a gratuidade da saúde e da educação pública. No mundo acadêmico, além de injusta, a austeridade é vista como contraproducente tecnicamente. O maior risco atual à democracia brasileira é que instituamos uma ditadura de tecnocratas que legitimam, com retórica cientificista, mudanças no pacto social inscrito na Constituição Federal com base em argumentos desatualizados empírica e teoricamente.

Sobre os autores
LUIZ GONZAGA BELLUZZO, 73, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS, 45, é professor associado do Instituto de Economia da Unicamp.

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