30 de março de 2015

O mito do antropoceno

Culpar toda a humanidade pela mudança climática deixa o capitalismo sair ileso

Andreas Malm

Jacobin


John Collier / Biblioteca do Congresso

O ano passado foi o mais quente já registrado. Ainda assim, os últimos números mostram que em 2013 a fonte que gerou a maior parte da energia para a economia mundial não foi solar, eólica, nem mesmo o gás natural ou petróleo, mas o carvão.

O crescimento nas emissões globais – de 1% ao ano nos anos 90 para 3% até agora neste milênio – é impressionante. É um aumento paralelo ao do nosso conhecimento crescente das terríveis consequências do uso de combustíveis fósseis.

Quem está nos levando ao desastre? Uma resposta radical seria a dependência do capitalismo da extração e do uso de energias fósseis. Alguns, porém, preferem identificar outros culpados.

A Terra, nos dizem, entrou agora no “Antropoceno”: a Época da Humanidade. Enormemente popular – e aceito até mesmo por muitos estudiosos marxistas – o conceito do Antropoceno sugere que a humanidade é a nova força geológica transformando o planeta para além de qualquer reconhecimento, principalmente ao queimar quantidades prodigiosas de carvão, petróleo e gás natural.

De acordo com estes intelectuais, tal degradação é o resultado dos humanos agindo segundo suas predisposições inatas, o destino inescapável para um planeta sujeito ao “business-as-usual” da humanidade. De fato, os proponentes não poderiam argumentar de outra forma, por que se essas dinâmicas tivessem um caráter mais contingente, a narrativa de uma espécie inteira ascendendo à supremacia biosférica seria de difícil defesa.

A história deles está centrada em um elemento clássico: o fogo. Apenas a espécie humana pode manipular o fogo, e daí que ela seja a única capaz de destruir o clima; quando nossos ancestrais aprenderam a incendiar as coisas, eles acenderam o estopim do “business-as-usual”. Aqui, escrevem os proeminentes cientistas climáticos Michael Raupach e Josep Canadell, estava “o gatilho evolucionário essencial para o Antropoceno”, levando a humanidade direto para “a descoberta de que a energia poderia ser derivada não apenas de carbono de detritos bióticos, mas também de carbono de detritos fósseis, inicialmente à partir do carvão.”

A razão primária para a atual queima de combustíveis fósseis seria que “muito antes da Era Industrial, uma espécie particular de primatas aprendeu como drenar as reservas de energia estocadas em carbono detrítico.” Eu aprendendo a andar com um ano de idade é a razão pra que eu dance salsa hoje; quando a humanidade inflamou sua primeira árvore morta, só poderia resultar, um milhão de anos depois, em queimar um barril de petróleo.

Ou, nas palavras de Will Steffen, Paul J. Crutzen, e John R. McNeill: “O controle do fogo pelos nossos ancestrais proveu a humanidade com uma poderosa ferramenta monopolística indisponível para outras espécies, que nos colocou firmemente no longo caminho rumo ao Antropoceno.” Nesta narrativa, a economia fóssil é precisamente a criação da humanidade, ou do “o macaco-de-fogo, Homo pyrophilus”, como na versão popular do pensamento do Antropoceno de Mark Lyna, apropriadamente intitulada “A Espécie Divina.

Agora, a habilidade de manipular o fogo foi certamente uma condição necessária para o começo da queima de combustiveis fósseis em larga escala na Inglaterra no início do século XIX. Mas foi também a causa disso?

O mais importante a se notar aqui é a estrutura lógica da narrativa do Antropoceno: algum traço universal da espécie precisa estar guiando a sua época geológica, senão seria o caso de algum subconjunto da espécie [estar cumprindo este papel]. Mas a história da natureza humana pode vir de diversas formas, tanto no gênero do Antropoceno como em outras partes do discurso sobre as mudanças climáticas.

Em um ensaio na antologia “Engaging with Climate Change”, o psicoanalista John Keene oferece uma explicação original para o porquê dos humanos poluírem o planeta e se recusarem a parar. Na infância, o ser humano descarrega dejetos sem limites e aprende que sua zelosa mãe levará para longe as fezes e a urina, e limpará sua virilha.

Como resultado, os seres humanos estariam acostumados à pratica de deteriorar os seus arredores: “Acredito que estes repetidos encontros contribuem para a crença complementar de que o planeta é uma ‘privada-mãe’ ilimitada, capaz de absorver nossos produtos tóxicos ao infinito.”

Mas onde está a evidência para qualquer tipo de conexão causal entre queima de combustíveis fósseis e defecação infantil? O que dizer de todas aquelas gerações que, até o século XIX, dominaram ambas as artes mas nunca esvaziaram os depósitos de carbono da Terra e os despejaram na atmosfera? Eles eram defecadores e queimadores apenas esperando para realizar todo o seu potencial?

É fácil zombar de certas formas de psicanálise, mas tentativas de atribuir o “business-as-usual” às propriedades da espécie humana estão fadadas à vacuidade. O que existe sempre e em toda parte não pode explicar por que uma sociedade diverge de todas as outras e desenvolve algo novo – tal como a economia fóssil, que apenas emergiu a cerca de dois séculos mas que já se tornou tão arraigada que nós a reconhecemos como a única forma em que os humanos podem produzir.

Enquanto isso, porém, o discurso climático mainstream está encharcado de referencias à humanidade como tal, “a natureza humana”, “o engenho humano”, como um grande vilão dirigindo o trem. Em “A Espécie Divina”, podemos ler “O poder divino está sendo cada vez mais exercido por nós. Nós somos os criadores da vida, mas também somos seus destruidores.” Esta é uma das mais comuns metáforas no discurso: nós, todos nós, você e eu, criamos essa bagunça juntos, e a tornamos pior a cada dia.

Entra então Naomi Klein, que em “Isso Muda Tudo” habilmente desnuda as muitas maneiras em que a acumulação de capital em geral, e em sua variante neoliberal em particular, derrama gasolina no incêndio hoje consumindo o sistema da Terra. Dando pouca indulgência ao papo sobre o humano como malfeitor universal, ela escreve, “nós estamos travados por que as ações que nos dariam a melhor chance de evitar a catástrofe – e que beneficiariam a vasta maioria – são extremamente ameaçadoras para uma elite minoritária que estrangula nossa economia, nosso processo político, e a maioria de nossos grandes veículos de comunicação.”

Então como os críticos respondem? “Klein descreve a crise climática como um confronto entre o capitalismo e o planeta,” contradiz o filósofo John Gray no The Guardian. “Seria mais preciso descrever a crise como uma luta entre as demandas em expansão da humanidade e um mundo finito.”

Gray não está sozinho. Este cisma está emergindo como a grande divisão ideológica no debate climático, e os proponentes do consenso mainstream estão contra-atacando.

No London Review of Books, Paul Kingsnorth, um escritor britânico que a tempos tem argumentado que o movimento ambiental deveria debandar e aceitar o colapso total como nosso destino, replica: “As mudanças climáticas não são algo que um pequeno grupo de bandidos impingiu sobre nós”; “no final, estamos todos implicados.” Esta, argumenta Kingsnorth, “é uma mensagem menos palatável do que uma que vê o brutal 1% ferrando o planeta e um nobre 99% se opondo a eles, mas está mais próxima da realidade.”

Está mesmo mais perto da realidade? Seis fatos simples demonstram o contrário.

Primeiro, a maquina à vapor é amplamente, e corretamente, vista como a locomotiva original do “business-as-usual”, pela qual a combustão de carvão foi inicialmente ligada à sempre-crescente espiral capitalista de produção de mercadorias.

Enquanto isso é notoriamente banal de se apontar, as máquinas à vapor não foram adotadas por alguns representantes-por-nascimento da espécie humana. A escolha de um motor primário para a produção de mercadorias não poderia ter sido uma prerrogativa da espécie, já que ela [a produção de mercadorias] pressupunha, de início, a instituição do trabalho assalariado. Foram os proprietários dos meios de produção quem instalaram o novo motor primário. Uma pequena minoria mesmo na Inglaterra – todos homens, e todos brancos – esta classe de pessoas compunha uma fração infinitesimal da humanidade na primeira metade do século XIX.

Segundo, quando os imperialistas britânicos penetraram no norte da Índia mais ou menos na mesma época, eles tropeçaram em veios de carvão que já eram, para sua grande surpresa, conhecidos para os nativos – de fato, os indianos tinham o conhecimento básico para cavar, queimar, e gerar calor à partir do carvão. E ainda assim eles não davam a mínima para o combustível.

Os britânicos, em compensação, queriam desesperadamente o carvão na superfície – para propelir barcos à vapor pelos quais eles transportavam os tesouros e matérias-primas extraídos dos camponeses indianos rumo sua metrópole, e seu próprio excesso de bens de algodão rumo os mercados do interior. O problema era que nenhum trabalhador se voluntariava a entrar nas minas. Daí que os britânicos tiveram de organizar um sistema de servidão por contrato, forçando os agricultores ao inferno para adquirir o combustível para a exploração da Índia.

Terceiro, a maior parte da explosão de emissões no século XXI se origina na República Popular da China. O condutor dessa explosão é evidente: não é o crescimento populacional chinês, nem seu consumo interno, nem seus gastos públicos, mas a tremenda expansão da indústria manufatureira, implementada na China via capital estrangeiro para extrair mais-valia do trabalhador local, percebido ao redor da virada do milênio como extraordinariamente barato e disciplinado.

Tal mudança foi parte de um assalto global sobre os salários e condições de trabalho – trabalhadores ao redor do mundo sendo pressionados pela ameaça do Capital de realocação por substitutos chineses, que só poderiam ser explorados por meio da energia fóssil como um substrato material necessário. A explosão de emissões subsequente é o legado atmosférico da guerra de classes.

Quarto, provavelmente nenhuma outra indústria encontra tanta oposição popular onde quer que se estabeleça quanto as de petróleo e gás natural. Como Klein registra tão bem, comunidades locais estão em revolta contra oleodutos, fraturamento hidráulico [13] e exploração do Alaska ao Delta do Níger, da Grécia ao Equador. Mas contra eles permanece um interesse recentemente expressado com clareza exemplar por Rex Tillerson, presidente e CEO da ExxonMobil: “Minha filosofia é fazer dinheiro. Se posso perfurar e fazer dinheiro, então é isso que quero fazer.” Esse é o espírito do Capital Fóssil encarnado.

Quinto, Estados capitalistas avançados continuam a ampliar e aprofundar implacavelmente suas infraestruturas fósseis – construindo novas rodovias, novos aeroportos, novas usinas de energia à base de carvão – sempre afinados aos interesses do Capital, dificilmente consultando suas populações sobre essas questões [14]. Apenas intelectuais realmente cegos, do tipo de um Paul Kingsnorth, podem acreditar que “estamos todos implicados” em tais políticas.

Quantos estadunidenses estão envolvidos nas decisões de dar ao carvão uma parcela maior do setor elétrico, para que a intensidade de carbono da economia dos EUA tenha subido em 2013? Quantos suecos podem ser culpados pela construção de uma nova rodovia em torno de Estocolmo – o maior projeto de infraestrutura na história sueca moderna – ou pela assistência de seu governo a usinas de energia à base de carvão na África do Sul?

As mais extremas ilusões sobre a democracia perfeita do Mercado são necessárias para manter a noção de que “todos nós” estamos guiando o trem.

Sexto, e talvez o mais óbvio: poucos recursos são tão desigualmente consumidos quanto energia. Somente os 19 milhões de habitantes de Nova Iorque consomem mais energia que os 900 milhões de habitantes da África Subsariana. A diferença no consumo de energia entre um pastor de subsistência no Sahel e um canadense médio pode estar facilmente na casa de 1000 vezes ou mais – e esse é um canadense médio, não o proprietário de cinco casas, três SUVs e um avião particular.

Um solitário cidadão estadunidense médio emite mais que 500 cidadãos da Etiópia, Chade, Afeganistão, Mali ou Burundi; quanto um milionário médio nos EUA emite – e quão mais que um trabalhador médio nos EUA ou no Camboja – permanece não-contado. Mas a marca de uma pessoa na atmosfera varia tremendamente dependendo de onde ela nasce. “Humanidade” é, como resultado, uma abstração magra demais para carregar o peso da culpa.

Estamos não na Época Geológica da humanidade, mas do capital. É claro, uma economia fóssil não precisa necessariamente ser capitalista: a União Soviética e seus Estados-satélite tiveram seus próprios mecanismos de crescimento vinculados ao carvão, petróleo e gás natural. Eles não eram menos sujos, cobertos de fuligem, ou intensivos em emissões – eram talvez até mesmo mais – que seus adversários na Guerra Fria. Então por que focar no capital? Por que razão se aprofundar sobre a destrutividade do capital, quando os estados comunistas tiveram um desempenho no mínimo tão abismal quanto?

Em medicina, uma questão similar seria talvez ‘por que concentrar esforços de pesquisa no câncer ao invés da varíola? Ambos podem ser fatais!’ Mas apenas um ainda existe. A História fechou os parênteses ao redor do sistema soviético, então estamos de volta ao início, onde a economia fóssil corresponde diretamente ao modo de produção capitalista – só que agora em escala global.

A versão stalinista merece suas próprias investigações, e em seus próprios termos (sendo os mecanismos de crescimento de um tipo próprio); mas nós não vivemos no gulag de mineração de carvão em Vorkuta nos anos 30 do século passado. Nossa realidade ecológica, abrangendo todos nós, é o mundo fundado pelo capital-à-vapor, e existem cursos alternativos que um socialismo ambientalmente responsável poderia tomar. Daí o Capital, e não a Humanidade como tal.

Não obstante o sucesso de Naomi Klein e recentes mobilizações de rua, esta permanece uma visão muito minoritária. A Ciência climática, a política e o discurso são constantemente concebidos dentro da narrativa do Antropoceno: a auto-flagelação coletiva indiferenciada, o ataque à humanidade, o pensamento em termos de Espécie, apelam à população geral de consumidores a corrigir seus atos e outras piruetas ideológicas que servem apenas para ocultar o maquinista.

Retratar certas relações sociais como propriedades naturais da espécie não é nada de novo. Des-historicizar, universalizar, eternizar e naturalizar um modo de produção específico de um tempo e lugar – estas são as estratégias clássicas da legitimação ideológica.

Elas bloqueiam qualquer prospecto de mudança. Se o “business-as-usual” é o produto da natureza humana, como podemos mesmo imaginar algo diferente? É perfeitamente lógico que os defensores do Antropoceno e de formas associadas de pensamento deem suporte a falsas soluções que se esquivam de desafiar o capital fóssil – como “geo-engenharia” no caso de Mark Lynas e Paul Crutzen, o inventor do conceito do Antropoceno – ou preguem a derrota e o desespero, como no caso de Kingsnorth.

De acordo com este último, “está claro que parar a mudança climática é impossível” – e, a propósito, construir uma usina eólica é tão ruim quanto abrir outra mina de carvão, pois ambos profanam a paisagem.

Sem antagonismo não pode haver qualquer mudança em sociedades humanas. O pensamento em termos de espécie em relação a mudança climática apenas induz à paralisia. Se todos são culpados, então ninguém é.

26 de março de 2015

Democratizem o universo

Com a humanidade se jogando em direção ao espaço, como a riqueza da galáxia será compartilhada?

Nick Levine

Jacobin


Tradução / A privatização da Via Láctea começou.

No verão passado, o bipartidário Asteroids Act foi levado ao congresso. O propósito dessa lei é garantir às corporações estadunidenses direitos de propriedade sobre quaisquer recursos naturais – como os platinoides usados em eletrônicos – que eles extraírem de asteroides.

O projeto de lei se utilizou de uma ambiguidade no Outer Space Treaty da ONU, legislado em 1967. Esse tratado impediu que nações e organizações privadas reivindicassem território em corpos celestes, mas não deixou claro se era permitida a exploração de seus recursos naturais e nem, caso fosse, sob que termos.

O quadro jurídico que rege o desenvolvimento econômico do espaço sideral vai ter enormes efeitos na distribuição de riquezas e renda na Via Láctea e além. Nós poderíamos lutar por uma democracia galática, onde os rendimentos da economia espacial fossem distribuídos amplamente. Ou nós poderíamos aceitar o trickle-down previsto pelos astrônomos no Asteroids Act, que permitiria a concentração de vasto poder econômico e político nas mãos de poucas corporações e dos países mais desenvolvidos tecnologicamente.

Dados os problemas urgentes de desigualdade e mudanças climáticas na terra, a esquerda estadunidense esteve compreensivelmente desinteressada ou desprezou quaisquer fins espaciais. Por tal razão, ela ainda está despreparada para promover justiça econômica extraterrestrialmente. A rejeição do Espaço, por parte da esquerda, efetivamente abriu mão dos espaços comuns celestes para os interesses comerciais que literalmente universalizariam o laissez-faire.

Promover políticas extraterrestres não foi sempre tratado como uma distração escapista. Nos anos 1970, lutar pelos recursos espaciais era um pilar na luta dos países em desenvolvimento pela criação de uma ordem econômica mais justa.

Nos anos 1960, uma coalização de países subdesenvolvidos, muitos recentemente descolonizados, afirmou sua força em números na ONU, formando uma bancada conhecida como Grupo dos 77. Perto dos anos 1970, esse bloco anunciou seu interesse de estabelecer uma “nova ordem econômica internacional”, cuja expressão se deu em uma série de tratados da ONU que rege regiões internacionais, como o fundo do mar e o Espaço, na esperança de disseminar os benefícios econômicos desses recursos mais equitativamente, em especial atenção aos paises menos desenvolvidos.

Para esses países – bem como para os apreensivos interesses comerciais americanos que fizeram oposição a eles – seu plano de “socializar a lua”, como disseram alguns naquela época, foi o primeiro passo em diração a uma distribuição mais igualitária de riquezas e poder na nossa sociedade.

Muitos anos virão antes que a industrialização do Espaço seja economicamente viável, se é que um dia vai ser. Mas o paradigma legal que moldaria essa transição está sendo moldado agora. O Asteroids Act foi apresentado em nome daqueles que se beneficiariam mais com um sistema extraterrestre de laissez-faire. Se nós deixarmos a discussão sobre direitos de propriedade celeste aos interesses comerciais que a monopolizam agora, qualquer sonho de democracia econômica espacial vai para o lado dos jetpacks, carros voadores e 15 horas de trabalho semanal.

Como abaixo, tão acima

As críticas da esquerda a propostas nesse sentido fazem os mesmos erros que os mais tecno-utópicos e sonhadores industriais. Do ponto de vista dos últimos, o desenvolvimento extraterrestre vai prover salvação definitiva para a raça humana, nos fazendo uma espécie multi-planetária; os primeiros vêem o Espaço como um vazio infinito essencialmente antagônico à vida humana, interesse que só é orquestrado para fins políticos dissimulados. Ambos os lados erroneamente entende as atividades extraterrestres como qualitativamente diferentes das atividades econômicas da terra.

Empreender no espaço pode ser um desafio técnico maior; pode custar mais, ser mais perigoso, ou um desperdício de recursos. Mas entender essas perspectivas em termos existenciais, ao invés de vÊ-lo como um novo episódio na familiar história do desenvolvimento industrial e da extração de recursos – com todos os riscos político-estratégicos e oportunidades de organização que vêm com eles – é ser cegado pelo romanticismo espacial que é um vestígio peculiar à geopolítia da Guerra Fria.

Se e como nós devemos ir ao espaço não são questões filosóficas profundas, pelo menos não de antemão. O que está em jogo não é apenas a “estatura humana”, como afirmou a Hannah Arendt, mas uma luta político-economica sobre o futuro dos recursos celestiais, o que pode resultar em uma intensificação dramática da desigualdade – ou em um pequeno passo da humanidade em direção a um estado mais igualitário das coisas no nosso planeta atual.

Sem dúdivda, há boas razões para ser cético em relação à ida ao Espaço. Alguns argumentam que isso desvia a atenção aos problemas difíceis de justiça econômica e ambiental que já temos na terra – pense no poema falado de Gil Scott-Heron “Whitey on the moon” [4], que contrapõe a privação da subclasse americana com os vastos recursos desviados para o espaço.

A crítica de Scott-Heron é poderosa, mas é importante lembrar que ele estava denunciando um sistema econômico injusto. Ele não estava fazendo uma condenação atemporal das atividades espaciais como um todo. Se os objetivos de prover para todos e desenvolver no Espaço são mutuamente exclusivos, depende das forças políticas no terreno.

Nós podemos também questionar se minerar asteróides pode ser prejudicial ao desenvolvimento do planeta terra em médio prazo. Se não acharmos uma forma renovável de decolação para o espaço, a exploração desses recursos pode levar a uma intensificação, e não o distanciamento, da economia de combustíveis fósseis.

Se impacto ambiental da mineração espacial tornar-se muito grande, isso seria análogo ao fracking [5] – um desenvolvimento tecnológico que nos dá acesso a novos recursos, mas com efeitos colaterais de devastação ecológica, e deverá ser combatido por razões semelhantes. Por outro lado, especula-se que minerar as reservas de Helium-3 da lua, por exemplo, poderia prover uma fonte abundante de energia limpa. O impacto ambiental na terra das atividades espaciais ainda é uma questão em aberto que deve ser estudada antes de depositarmos nossas esperanças no desenvolvimento no Espaço.

Filósofos aconselharam que nós devemos ter deveres éticos para preservar os estados “naturais” dos corpos celestiais. Outros temem que nossas atividades possam, sem saber, extirpar a vida microbial extraterrestre. Nós devemos nos manter sensíveis ao valor estético e cultural do Espaço, bem como do potencial de extinção e de exaustão de recursos enganosamente proclamados ilimitados.

Mas se a Esquerda rejeitar espaço nesses terrenos, nós deixamos seu destino à mercê dos interesses privados. Essas preocupações não deveriam nos levar a eliminar o espaço completamente – pelo contrário, elas deveriam nos motivar ainda mais a lutar pelo prudente e democrático uso dos recursos celestes para o benefício de todos.

Há também uma razão para ser cautelosamente otimista em relação à extensão de nossas atividades econômicas ao Espaço. Os recursos lá – sejam metais platinóides úteis em eletrônicos, ou combustíveis que podem ser importantes para o funcionamento semi-independente de uma economia extraterrestre – têm o potencial de melhorar nossos padrões de vida. Imagine a superabundancia de metais de asteróides que são escassos na terra, como platina, conduzindo o tipo de automação que poderia expandir a produção e reduzir a necessidade de trabalhar.

É claro, não há nada inevitável em relação aos benefícios do lucro produtivo serem distribuidos amplamente, como vimos nos Estados Unidos nos últimos anos. Esse é um problema que não concerne apenas ao Espaço, e o mito da “fronteira final” não deve nos distrair dos já existentes problemas de riqueza e distribuição de renda na terra.

Mesmo a industrialização do sistema solar não sendo uma panaceia para todos os males econômicos, ela oferece uma significativa oportunidade organizadora, visto que causará um embate em relação ao futuro dos vastos recursos celestes.

As possibilidades democráticas de tal luta foram reconhecidas anteriormente: um grupo conservador de cidadãos americanos nos anos 1970 chamou um tratado espacial progressista das Nações Unidas de “componente vital das demandas do Terceiro Mundo pela redistribuição massiva de riquezas, de forma que, finalmente, se equilibrem as posições econômicas dos dois hemisférios”. Muitos nos anos 1970 identificavam o potencial igualitário do desenvolvimento no Espaço, e a esquerda não deve negligenciá-lo hoje.

De volta ao futuro

Uma das maiores metas do Grupo dos 77 era aplicar algumas funções redistributivas do estado de bem-estar, em escala global. Em 1974, a coalização emitiu uma “Declaração sobre o Estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional”, a qual reivindicou por um sistema mais justo de comércio global e distribuição de recursos, que pudesse aliviar a desigualdade histórica. Um dos campos de batalha do Grupo dos 77 foi a negociação sobre os direitos de propriedade extraterrestres.

O Tratado Espacial de 1967, assinado por cerca de noventa países no calor da primeira corrida para a lua, rejeitava a noção de que corpos celestiais caem sob os principios legais de res nullius [6] – o que significa que o Espaço era um território vazio que poderia ser reclamado por uma nação, por meio de ocupação. Ele proibiu a “apropriação nacional por reivindicação de soberania, por meio de uso ou ocupação, ou por quaisquer outros meios” do espaço exterior.

Mas o acordo não era apenas restritivo. Também tinha um requisito positivo para conduta extraterrestre: “A exploração e utilização do espaço exterior”, declarou, “deve ser efectuada em benefício e no interesse de todos os países, independentemente do seu grau de desenvolvimento econômico e científico, e será província de toda a humanidade”. No entanto, ninguém sabia o que isso significaria na prática: foi uma chamada para a economia igualitária, ou um anúncio vazio de benevolência liberal?

Para complicar as coisas, não ficou claro se a extração e venda de recursos naturais a partir do espaço exterior caiu sob a categoria de “apropriação”, que tinha sido proibida. E o que seria, exatamente, esse benefício a todos os países que nossas atividades no espaço exterior deveriam trazer? Como é que a sua distribuição seria aplicada? Que interpretação venceria era mais uma questão de poder político do que de manobras legais esotéricas.

O Grupo dos 77 tomou uma abordagem ativista para essas questões, propondo alterações ao regimento do Tratado Espacial que iriam espalhar os benefícios econômicos dos recursos celestes para os países menos desenvolvidos que não têm os recursos para chegar ao espaço, e muito menos para minerá-lo.

Assim, em 1970, o delegado argentino para o Comitê das Nações Unidas para a Utilização Pacífica do Espaço Exterior propôs a designação legal do espaço e seus recursos como “patrimônio comum da humanidade”. Primeiro aplicada nas negociações sobre o direito marítimo poucos anos antes, o conceito de “patrimônio comum” destinava-se a dar base legal para a governança internacional pacífica dos recursos.

Como uma alternativa à abordagem laissez-faire defendida por muitos interesses privados, o princípio do “patrimônio comum” também forneceu um quadro jurídico para a distribuição democrática das receitas derivadas das terras comuns internacionais. Em 1973, a delegação indiana ao Comitê para a Utilização Pacífica do Espaço Exterior tentou colocar essa idéia em prática celeste propondo uma alteração ao Tratado Espacial que solicitava a partilha equitativa dos benefícios do espaço, particularmente com os países em desenvolvimento.

O delegado brasileiro à comissão resumiu a posição do grupo: “Não parece justificável… que as atividades espaciais... devam evoluir num clima de total de laissez-faire, que esconderia sob o manto da racionalidade novos caminhos para um exercício abusivo do poder por aqueles que têm controle sobre a tecnologia”. Apesar da oposição tanto da União Soviética, quanto dos Estados Unidos, o esboço final deste novo acordo espacial incluiu uma versão da doutrina do “patrimônio comum da humanidade”.

Quando o tratado concluído foi trazido aos EUA, em 1979, para ratificação, grupos empresariais o empacaram. A visão da democracia galáctica igualitária sugerida pelo documento foi justamente vista como contrária à aproximação dos interesses americanos.

A United Technologies Corporation, uma designer e fabricante de aeronaves e outras maquinarias pesadas (incluindo o helicóptero Black Hawk) colocou um grande anúncio no jornal Washington Post e uma série de outros jornais, advertindo que o tratado seria estabelecer um “monopólio estilo OPEC, exige a transferência obrigatória de tecnologia, e impõe altos impostos internacionais sobre os lucros como uma forma de transferir riqueza dos países desenvolvidos para os países menos desenvolvidos”.

O presidente da corporação, Alexander Haig, também testemunhou contra o tratado no Congresso em 1979, advertindo que “o conceito de patrimônio comum expresso no Tratado subjaz esforços do Terceiro Mundo dirigidos a uma redistribuição fundamental da riqueza global”. Haig foi contratado como secretário de Estado de Ronald Reagan em 1981, e a oposição política ao projeto de lei forçou o conselheiro-chefe da NASA a abandonar a defesa do tratado.

No final, o Tratado sobre a Lua, como o documento de 1979 veio a ser conhecido, não conseguiu ganhar mais do que alguns signatários, deixando em aberto a questão de como os benefícios oriundos do Espaço deveriam ser compartilhados. Em 1988, uma coalizão diferente de países em desenvolvimento acrescentou o questão desses benefícios na agenda da comissão do espaço extraterrestre da ONU. Mas eles não conseguiram ganhar força, e em 1993 eles tiveram que admitir, como dois delegados para o comitê espaço de longa data colocaram: “a tentativa [de] uma revolução redistributiva em cooperação espacial internacional tinha falhado”.

A conversa se deslocara da distribuição de benefícios econômicos para uma ênfase mais estreita em matéria de coordenação e ajuda ao desenvolvimento científico internacional. Esse recuo culminou com a declaração de 1996 que limita a interpretação da cláusula do “benefício” do Tratado Espacial para vagas promessas de ajudar os países menos desenvolvidos a melhorar suas tecnologias espaciais.

O último fracasso do Tratado Lua representava os desenvolvimentos mais amplos na política internacional, como a diminuição da influência do Grupo dos 77. O fato de que as políticas de ajustamento estrutural do Consenso de Washington sobrepujaram as metas redistributivas do Terceiro Mundo foi resultado de fatores contingentes – exacerbação do choque petrolífero de crises de dívida, por exemplo – mas também indicou os limites do poder que o Grupo dos 77 outrora exercia.

Em Outubro de 2014, a comissão espaço exterior da ONU emitiu um comunicado que resume a sua mais recente sessão. Sua manchete: “Benefícios oriundos do Espaço não devem ter a possibilidade de alargar a disparidade na desigualdade econômica e social, afirma o quarto comitê”. Apesar da conversa fiada sobre suas preocupações passadas, a comissão agora enfatiza a igualdade de acesso, transferência de tecnologia voluntárias, e modesta ajuda ao desenvolvimento através da abordagem direta redistributivo que levou na década de 1970 .

Essa mudança de lutar pela igualdade de resultados para a igualdade de oportunidades, sem qualquer mecanismo de responsabilização para assegurar sequer as últimas, representa um retrocesso impressionante. Os sonhos igualitários da “revolução dos colonizados ” na ONU, como era foi chamada na época, foram esquecidos.

O império contra-ataca

Os últimos planos dos EUA para o desenvolvimento do espaço, moldado majoritariamente por intuições e capital do Vale do Silício, estão em forte contraste com os sonhos democráticos futuristas do Grupo dos 77.

A mais proeminente dessas visões empreendedoras tem sido o plano de Elon Musk para colonizar Marte. Por agora, o direito internacional parece proibir inequivocamente reivindicações territoriais em Marte e outros corpos celestes.

A legalidade da extração de recursos, por outro lado, continua a ser uma questão em aberto. Um grupo importante de empresários está esperando para criar um precedente para a apropriação privada dos recursos naturais de asteróides, sem obrigações redistributivas internacionais.

Planetary Resources, uma companhia de mineração de asteróides cujos partidários incluem Larry Page, Eric Schmidt e James Cameron, planeja lançar satélites de prospecção de asteróides valiosos nos próximos dois anos. Outra empresa americana, Deep Space Industries, irá lançar satélites exploratórios já no próximo ano. Esses empresários esperam para extrair os metais preciosos do grupo da platina, essenciais para a fabricação de eletrônicos, que são raros na Terra. Artigos sensacionalistas sobre a mineração espacial vão falar de um asteróide que vale US $20 trilhões.

Os investidores também acreditam que os asteróides podem fornecer água que poderia ser dividida em oxigênio e hidrogênio no espaço, produzindo ar para os astronautas e combustível para seus navios. Isso poderia facilitar uma aceleração dramática no desenvolvimento econômico no Espaço.

O CEO da Deep Space Industries disse que espera que os asteróides perto da Terra serão “como o Intervalo de ferro de Minnesota foi para a indústria automobilistica de Detroit século passado – um recurso fundamental localizado perto de onde foi necessário. Neste caso, metais e combustíveis de asteróides pode expandir as indústrias espaciais deste século. Essa é a nossa estratégia”. Outro empresário chamou a industrialização do Espaço de “a maior oportunidade de criação de riqueza na história moderna”.

Antes que esses valores possam ser gerados, no entanto, as rugas legais têm de ser resolvidas. E assim, no verão de 2014, o Asteroids Act foi introduzido na Câmara dos Deputados para “promover o direito das
entidades comerciais dos EUA de explorar e utilizar os recursos de asteróides no Espaço, em conformidade com as obrigações internacionais dos Estados Unidos, livre de interferência prejudicial, e livre para transferir ou vender tais recursos”.

A legislação visava elucidar as interpretações estadunidenses da lei espacial internacional, explicitamente concedendo a empresas norte-americanas o direito de extrair recursos de asteróides e de trazê-los para o mercado. A conclusão da última sessão do Congresso significa que o projeto de lei terá de ser reintroduzido para que ele seja aprovado, e é incerto exatamente quando e como isso vai acontecer.

Mas seu surgimento marcou outro clara tentativa de empurrar unilateralmente as normas internacionais para a extração livre de recursos no Espaço, com responsabilidades democráticas limitadas – esse não será o último.

Joanne Gabrynowicz, editor emérita do Jornal de Direito Espacial, disse que um consultor da Planetary Resources tinha elaborado o projeto de lei. Deep Space Industries também enviou uma carta apoiando o projeto diretamente para o subcomitê do Espaço da Câmara dos Representantes. Além disso, o congressista Bill Posey, um co-patrocinador do ato, representa Florida, um estado que Gabrynowicz pontuou que recentemente forçado a tentar atrair negócio do espaço comercial – uma resposta direta à dificuldade econômica causada pelo encerramento do programa de ônibus espaciais da NASA. Tais interesses no espeço extraterrestres, sem dúvida, continuarão a exercer pressão legislativa.

Além de asteroides, as empresas estão investindo milhões na mineração da lua, apesar de incertezas jurídicas. Uma dessas empresas, a Lua Express, já recebeu um contrato de compartilhamento de dados de $10 milhões com a NASA. Um dos fundadores da empresa, que um antigo bilionário dot-com, disse ao Los Angeles Times:

“Há um forte precedente legal e de consenso ‘achado não é roubado’, para os recursos que são liberados através do investimento privado , eo mesmo será verdade na lua. Você não tem que possuir terras para ter a propriedade dos recursos que você tirar delas. A Lua Express irá usar precedentes existentes de presença pacífica e a exploração definida pelo governo dos EUA há quarenta anos.”

Esta readaptação do princípio “achado não é roubado” é um anátema para o regime redistributivo imaginado pelo Grupo dos 77. As empresas privadas como a Planetary Resources e Lua Express, com o apoio do governo federal, estão apostando não só na viabilidade do espaço industrialização, mas também na sua capacidade de manipular através de um regime jurídico que irá validar as suas reivindicações de propriedade em seus termos. Mas a universalização do laissez-faire não é inevitável.

A tese da fronteira final

A história do Tratado da Lua serve como um lembrete de que o espaço não é apenas uma tela sobre a qual projetamos fantasias tecno-utópicas ou ansiedades existenciais sobre o vazio infinito. Tem sido, e continuará a ser, um local de luta concreta sobre o poder econômico.

As políticas do presente, são indubitavelmente diferentes daqueles da década de 1970. O projeto igualitário do Grupo dos 77 deu lugar ao estilo BRICS de liberalismo de mercado. O capital global tem ganhado poder onde os esforços internacionais de trabalho estagnaram. Desigualdades nacionais dispararam. A rápida proliferação das tecnologias de informação tem mascarado temporariamente a realidade de que o futuro, parafraseando William Gibson, não está sendo distribuído uniformemente.

Sem organização política internacional para desafiar o fundamentalismo de mercado galático, uma odisséia no espaço do século XXI pode significar a concentração de ainda maior riqueza e renda nas mãos de poucas empresas poderosas e dos países tecnologicamente mais avançados. Ao mesmo tempo, e pelas mesmas razões, a perspectiva de preservar a fronteira final ao bem comum celeste é uma oportunidade de lutar por uma política econômica mais democrática.

A partilha dos benefícios dos recursos celestes é a chave para expandir a democracia a uma escala galática. Um testado e aprovado meio de distribuir universalmente os benefícios da extração de recursos naturais é o fundo soberano de bem-estar, que o Alaska usa para entregar as receitas do petróleo para seus moradores. Com recursos internacionais, o espaço oferece uma oportunidade de experimentar tais mecanismos redistributivos, além dos confins tradicionais do estado-nação.

Agir em torno de um problema de tal escala pode parecer utópico, mas é também necessário. Com a regulamentação de capital para mitigar a mudança climática, os problemas com os quais nos defrontamos são inerentemente de âmbito global e exigem estratégias proporcionais.

A esquerda mundial deve, no mínimo, exigir a criação de um Fundo independente de Riqueza Galática para gerenciar a receita advinda de recursos do Espaço, em nome de todos os seres humanos. Inicialmente, ele valeria pouco, dividido entre todos nós. Mas com a economia espacial em crescimento em relação à terrestre, os dividendos sociais do Fundo de Riqueza Galáctica poderiam fornecer a base para uma renda básica verdadeiramente universal.

Este é apenas um componente de uma plataforma mais ampla para a democracia galática que deve ser desenvolvida coletivamente. Justiça econômica extraterrestre – não apenas avanços tecnológicos brilhantes – será fundamental para qualquer política verdadeiramente igualitária no século XXI. É hora de começar a construir um futurismo democrático. >>

Sobre o autor

Nick Levine é um candidato MPhil em história da ciência na Universidade de Cambridge.

23 de março de 2015

Edutopia

A educação não é um problema de design com uma solução técnica. É um projeto social e político que os neoliberais querem inovar.

Megan Erickson



Tradução / Em um treinamento de desenvolvimento profissional em 2015, me disseram para imaginar o tipo de escola que eu construiria se tivesse 5 milhões de dólares. Rascunhei algumas ideias, as compartilhei com o grupo e então me pediram para considerar como poderia implementá-las agora, sem o dinheiro.

O ponto era esse: esqueça a grana. Esqueça que nos EUA os professores gastam uma média de 500 dólares por ano suprindo suas salas de aula com materiais. Tudo é possível, se você colocar sua mente naquilo que quer fazer.

De forma similar, o Design Thinking para Educadores, a “caixa de ferramentas para projetos” de 81 páginas disponibilizada para professores como um download gratuito  pela empresa sediada em Nova Iorque IDEO – que já projetou cafeterias para o Distrito Escolar Unificado de São Francisco; transformou bibliotecas em “laboratórios de aprendizado” para a Fundação Gates; e desenvolveu um plano de marketing para a Universidade Capella,  que oferece Educação à Distância e é orientada ao lucro – não contém ferramentas físicas. Problemas variando desde “não consigo fazer meus estudantes prestarem atenção” até “os estudantes vêm para a escola com fome e não conseguem se focar no trabalho” são definidos pela organização como oportunidades para disfarçadamente exercitar a prática de pensar em projetos.

Tim Brown, o CEO da IDEO e figura costumeira em Davos e em TED talks, descreveu o “design thinking” como uma forma de injetar planejamento “local, colaborativo e participativo” no desenvolvimento de produtos, processos organizacionais – e agora, em escolas.

O Design Thinking para Educadores está cheio de gráficos e esquemas muito bem desenhados e de questões como “de que forma podemos criar uma experiência de aprendizado do século XXI na escola?”, com respostas de parágrafo único. A palavra “responsabilidade” é usada três vezes no texto, sempre em referência à necessidade dos professores de realizar “brainstorms” para juntos consertarem os problemas e desenvolverem “uma perspectiva evoluída.” (A palavra “financiamento” simplesmente não é usada – nem a palavra “exigir”.)

Nós ficamos sabendo que o corpo docente de uma escola embarcou em uma “jornada de design” e chegou a uma abordagem que chamam de “aprendizado investigativo”, que vê os alunos “não como receptores de informações, mas como os construtores do conhecimento,” sem detalhes mais profundos sobre como exatamente isso foi alcançado.

É claro, a ideia de envolver os estudantes como co-professores em sua própria educação não é nenhuma novidade, e nem se trata de uma inovação que brotou de um único grupo de professores usando organizadores gráficos para fazer brainstorms e mapear soluções.

O educador marxista Paulo Freire desenvolveu sua crítica ao “modelo bancário” de educação – em que as mentes dos estudantes são tratadas como receptáculos passivos para professores enfiarem fatos da mesma forma que se coloca moedas em um cofre – enquanto ensinava brasileiros adultos e pobres a ler nos anos 60 e 70. Seu livro “Pedagogia do Oprimido” ajudou a reacender o movimento de educação progressista daquela era, e sua abordagem colaborativa para o aprendizado permanece influente nas faculdades de pedagogia estadunidenses ainda hoje.

Peter McLaren, que lecionou no ensino fundamental e médio em complexos de moradia pública por cinco anos antes de se tornar professor universitário e pesquisador em Educação, tem desenvolvido as ideias de Freire em um corpo extensivo de pedagogia crítica revolucionária, o qual conheci em minha primeira aula como mestranda em educação. O projeto “Matemática Radical” (“Radical Math”), lançado em meados da década de 2000 por um professor de ensino médio no Brooklyn cuja escola estava localizada a cerca de trezentos metros de uma instalação de despejo de lixo tóxico, bebe fortemente da perspectiva de Freire em seu currículo pela integração da justiça econômica e social na Matemática.

E ainda assim, aí estão os EUA, uma “nação em risco” (para usar uma expressão já utilizada em relatórios oficiais sobre a educação no país), com notas mais baixas em testes do que seus pares internacionais e crianças ainda chegando na escola todos os dias sem tomar o café da manhã.

Como todas as filosofias gerenciais modernas que escoram seus nomes em inovação, o “design thinking” foi concebido por acólitos da classe-criativa como um novo caminho para resolver velhos e persistentes desafios – mas suas ideias não são novas de verdade.

De acordo com Tim Brown, os “design thinkers” começam com uma necessidade humana e avançam no aprendizado por meio da construção, “ao invés de pensar sobre o que construir, construindo para pensar.” Seus protótipos, ele diz, “aceleram o processo de inovação, porque é apenas quando nós colocamos nossas ideias no mundo que começamos a entender suas forças e fraquezas. E quanto mais rápido fizermos isso, mais rápido nossas ideias evoluem.”

O que o “design thinking” oferece, em última análise, não é uma evolução, mas a aparência e a sensação de progresso – gráficos legais, configurações esteticamente interessantes de espaço e mobília – lado a lado com a familiar e gratificante ilusão de eficiência. Se problemas institucionais e estruturais puderem ser solucionados através de nada mais que reuniões de brainstorm, então é possível que as entradas num nível macro (livros didáticos, salários dos professores) permaneçam as mesmas, enquanto os resultados (desempenho em testes, serviços ao cliente) melhorem. Da perspectiva capitalista, essa é a única alquimia que importa.

O Design Thinking para Educadores insta os professores a serem otimistas sem dizer porquê, e a simplesmente acreditar que o futuro será melhor. A “caixa de ferramentas” instrui os professores a terem uma “mentalidade abundante”, como se a solução de problemas fosse um hábito mental. “Por que não começar com ‘E se?’ ao invés de ‘O que há de errado?’”.

Há muitas razões para começar com “O que há de errado?” Essa questão é, no fim das contas, a base do pensamento crítico. A crença num futuro melhor dá uma sensação maravilhosa se for uma bandeira que você consegue agitar – mas é passiva, irrelevante e inerte sem uma análise sobre como chegar lá. As únicas pessoas que se beneficiam da estratégia de “construir agora, pensar depois” são aqueles empoderados pelas relações sociais do presente.

As mesmas pessoas se beneficiam quando a análise é abandonada em nome de soluções técnicas – quando é ignorada a longa história da educação para a libertação, de Paulo Freire às Escolas da Liberdade SNCC (sigla de Comitês de Coordenação Estudantil Não-Violenta), passando pelas escolas dos Panteras Negras e chegando nos projetos de Matemática e Álgebra Radicais (nenhum deles perfeito, mas todos instrutivos).

Não é surpreendente, então, que quando Carlos Rodríguez-Pastor Persivale, o bilionário filho de uma família de banqueiros da elite peruana,  decidiu expandir seu império de restaurantes e cinemas através da compra de uma rede de escolas primárias de língua inglesa com fins lucrativos, o seu  primeiro passo foi entrar em contato com a IDEO e contratá-la para projetar tudo: os edifícios, o orçamento, o currículo, as oportunidades de desenvolvimento profissional para os professores. A rede é chamada Innova, e está a caminho de se tornar o maior sistema de escolas privadas no Peru.

De acordo com a “comunidade de tecnologia educacional” edSurge, a Innova é “mais do que apenas um exemplo de como as idéias do primeiro mundo sobre aprendizado combinado e design thinking podem ser adaptadas em um país em desenvolvimento”. Ela pretende fechar a lacuna de realizações, construir a próxima geração de líderes do Peru, “e obter lucros enquanto faz isso”.

Os alunos da Innova usam programas de tutoria computadorizada projetados pela Pearson e por Sal Khan, um queridinho da Fundação Gates. (Até agora, a história de Khan é canônica entre os leitores da Revista de Administração de Harvard: em 2005, o antigo analista de fundos de cobertura no mercado financeiro resolveu criar um programa de computador simples para praticar problemas de matemática e alguns vídeos de instrução para ajudar seus primos com uma tutoria à distância. O material viralizou no YouTube entre os pais que procuravam atividades de aprimoramento pós-escola para seus filhos, incluindo o próprio Bill Gates.)

Em uma fotografia de um local postado no site da IDEO, os alunos se sentam em grupos de seis, cada um deles concentrado em seu próprio laptop. As paredes modulares da escola desmoronam para permitir que as classes de trinta alunos sejam unidas em um grande grupo de sessenta estudantes em vários momentos ao longo do dia.

Depois de uma visita, Khan observou: “Fiquei deslumbrado quando visitei a Innova. Era lindo, aberto e moderno. Foi inspirador ver uma escola acessível proporcionar uma educação que rivalizaria com as escolas nos países mais ricos.” A questão que fica é “acessível para quem?”

A mensalidade em uma escola da Innova em 2015 era de 130 dólares – uma quantia consideravelmente menor do que o custo de uma escola particular média nos EUA, mas que exigiria o desembolsar de mais de um quarto da renda mensal de uma família vivendo com a renda familiar média peruana na época, de 430 dólares por mês. Metade das famílias cujos filhos frequentam a Innova são chefiadas por casais de profissionais liberais e  – contadores, engenheiros, etc – ou empresários. Para ser justo, Rodríguez-Pastor deixou claro que as escolas são direcionadas especificamente para a classe média peruana emergente, mas os reformadores educacionais estadunidenses possuem uma percepção diferente do que essas escolas representam.

A IDEO promove o fato de que os alunos da Innova em média apresentam um desempenho superior à média nacional em testes de matemática e comunicação como prova de que eles conseguem entregar o que prometem em seu mantra para o projeto: “acessibilidade, escalabilidade e excelência”.

Mas se os resultados nos testes são superiores aos das escolas públicas, não é por causa de professores/designers em uma missão profunda; é, isso sim, porque o custo do ensino é cerca de um quarto da renda média nacional. No fim das contas, um padrão consistente verificado na pesquisa em educação durante o último meio século é que o status socioeconômico dos pais de uma criança é um dos fatores mais fortes para se prever o seu sucesso acadêmico.

“Normalmente no Peru, nossas escolas são como uma prisão”, diz o fundador da Innova, Yzusqui Chessman. “Mas as escolas [da Innova] […] possuem muita transparência, muitas cores e banda larga em todos os lugares.” Transparência e Wi-Fi para a classe média, enquanto todos os outros frequentam escolas semelhantes a prisões?

Considerando os dados, talvez fosse mais revolucionário, mais inovador – mais “fora-da-caixa” – se, ao invés de “kits de ferramentas” gratuitos para “novas ideias”, a IDEO criasse um sistema que garantisse que todas as crianças, ricas ou pobres, tivessem acesso a essas lindas novas escolas. Existe uma solução simples e elegante: torná-las gratuitas e públicas, e taxar com impostos os empresários ricos como Rodríguez-Pastor para pagar por elas.

Por outro lado, o historiador da educação estadunidense Larry Cuban observou que mesmo quando as inovações de fato são bem financiadas para uso em massa nas escolas públicas – durante o “Baby Boom” no pós-segunda guerra mundial, por exemplo, mais de 100 milhões de dólares foram investidos pelo governo federal e pela Fundação Ford para promover o uso de televisores nas salas de aula para aliviar a falta de professores -, essas inovações raramente mudam a natureza fundamental da educação escolar.

Quando pensamos em como poderão ser nas salas de aula do futuro, temos de nos perguntar, como Marshall McLuhan,  sobre o que tecnologias como o rádio e a televisão podem fazer que a sala de aula atual não possa. Isso significa perguntar: o que há de futurista no futuro? E, igualmente importante, de quem será esse futuro? Para quem?

Máquinas de ensino

A tecnologia oferece possibilidades reais para de fato mudar a maneira como nos relacionamos uns com os outros como seres humanos. Por exemplo, a tecnologia adaptativa para crianças com necessidades especiais nos dá o potencial de integrar até crianças com deficiências severas nas salas de aula de educação geral.

Só que ter um laptop por criança na escola não vai tirar as comunidades da pobreza, porque a tecnologia não é uma alternativa à redistribuição da riqueza do 1% no  topo para os 99% abaixo. Há uma distância entre o que imaginamos que a tecnologia e a educação podem fazer e o que elas fazem de verdade.

Os gurus da administração e seus seguidores na indústria da tecnologia insistem que, se somos capazes de sonhar com algo, podemos fazê-lo; que em vez de “jogar mais dinheiro sobre o problema”, devemos usar nossa criatividade para fazer um reuniões de brainstorm para reunir ideias sobre as melhores práticas para a educação e torná-las factíveis e escaláveis. Clayton Christensen, Professor da Harvard Business School, acredita que, no futuro, a instrução baseada nos computadores substituirá totalmente o modelo atual, trazendo um maior retorno sobre o investimento para o sistema educacional da nação.

Os reformadores corporativos da educação atual expressam frustração com a continuidade dos métodos tradicionais de escolarização – embora a maioria deles não reconheça a história à qual eles estão intimamente ligados, uma vez que consideram a inovação tecnológica tão a-histórica quanto apolítica. Em uma live no Google+/HangOuts em 2013, a Secretária de Educação dos EUA, Arne Duncan, disse a Sal Khan:

“Temos de continuar acelerando. O fato de que ainda estamos ensinando com base em um modelo do século XIX não faz nenhum sentido, com 25 ou 30 crianças sentadas em filas aprendendo a mesma coisa, ao mesmo tempo, no mesmo ritmo. Soa uma coisa Neanderthal, é um absurdo. Essa ideia com a tecnologia é uma ótima coisa para empoderar a transição do tempo sentado na carteira para a competência: eu não quero saber por quanto tempo você ficou sentado na carteira, quero saber se você sabe as matérias. Você sabe Álgebra, Biologia, Química ou Física? Se você souber, não deve ter que ficar sentado ali.”

Edward Thorndike, o psicólogo comportamental conhecido por introduzir métodos científicos no campo da educação, compartilhou essa frustração quando teorizou pela primeira vez sobre a possibilidade de uma máquina de ensino. Os livros didáticos, observou ele em 1912, estimulam o aluno a raciocinar, mas são incapazes de administrar o processo de elucidação o suficiente para ajudá-lo a chegar às suas próprias conclusões.

Descrito por colegas como um prodígio na eficiência de leitura, que gostava de ler livros inteiros de uma vez, só parando para fumar cigarros entre os capítulos, ao longo de toda a sua carreira Thorndike se preocupava com a quantificação da inteligência humana – ele chegou a criar um teste de aptidão usado pelos militares estadunidenses durante a Primeira Guerra Mundial, bem como exames de admissão à faculdade – mas sua objeção contra o uso de livros didáticos nas salas de aula era um argumento contra a padronização, ou pelo menos, contra a aprendizagem em um único ritmo padrão mediado por um professor.

Thorndike imaginava um futuro em que os textos fossem capazes de oferecer uma experiência de aprendizagem autodirigida para as crianças em idade escolar: se, “por um milagre da engenhosidade mecânica”, escreveu ele, um livro pudesse ser organizado para ocultar informações e exibi-las passo a passo, de forma que a página dois só estivesse acessível após o domínio da página um, “grande parte do que agora exige instrução pessoal poderia ser gerenciado na própria impressão” – tornando efetivamente obsoleta a figura do professor-como-guia.

Quatro décadas depois, B. F. Skinner,- um homem que não acreditava no livre arbítrio nem tinha esperança de que o mundo tivesse salvação – permanecia em pé diante de um novo tipo de sala de aula e anunciava que o futuro estava ali. Skinner fora influenciado pelo trabalho de Sidney Pressey, um psicólogo que, seguindo a pesquisa de Thorndike sobre a retenção de informações por meio da prática, desenvolveu uma máquina que ele acreditava que viria a gerar uma revolução industrial na educação (Pressey em si foi dissuadido pela Grande Depressão de avançar com essa ideia).

“Eu sou B. F. Skinner, Professor de Psicologia na Universidade de Harvard. Eu gostaria de discutir algumas das razões pelas quais estudar com uma máquina de ensino costuma ser dramaticamente eficaz ”, anuncia ele em um vídeo de 1954.

Na tela, vemos um enorme grupo de adolescentes sentados cotovelo a cotovelo em mesas compridas, inserindo respostas  rápida e silenciosamente em um dispositivo que parece uma mistura de máquina de escrever e toca-discos. Na janela da máquina de cada jovem está uma frase incompleta ou uma equação em que falta um elemento. Depois que o aluno preenche os espaços em branco, a máquina confirma ou corrige a resposta. Cada criança trabalha sozinha.

“A máquina que vocês acabaram de ver em uso […] é uma grande melhoria em relação ao sistema em que os papéis são corrigidos por um professor, onde o aluno precisa esperar talvez até outro dia para saber se o que ele escreveu está certo ou não. Um conhecimento tão imediato […] [leva] mais rapidamente à formação do comportamento correto ”, reflete Skinner.

Skinner não estava preocupado apenas em aumentar a eficiência da absorção do conhecimento para o aluno individual, mas também para o grupo. Ele nos deixa essa frase: “com técnicas em que uma classe inteira é forçada a avançar junto, o aluno brilhante perde tempo esperando que os outros o alcancem, e o aluno lento, que pode não ser inferior em nenhum outro aspecto, é forçado a seguir rápido demais [...] Um aluno que está aprendendo por meio de máquinas segue na taxa que for mais eficaz para ele. ”

Para Skinner, assim como para os reformadores educacionais das corporações, o conhecimento é estático e os alunos são recipientes passivos; a transmissão eficiente de informações é o objetivo da educação. Além disso, a tecnologia seria o meio pelo qual tornamos esse processo de transmissão mais rápido, mais barato e mais inteligente. As crianças superdotadas seriam melhor atendidas movendo-se individualmente no seu próprio ritmo, enquanto os “alunos lentos” se movem no seu, cada um deles de maneira isolada.

Essa forma de conceituar o aprendizado é perfeitamente adequada ao nosso sistema econômico atual, no qual os indivíduos se destacariam ou ficariam para trás de acordo com seus próprios méritos, mas não é capaz de lidar com – e na prática, oculta – o que há de duvidoso e conflituoso na realidade.

A nova sala de aula de Skinner passou por muitas iterações ao longo das décadas que se seguiram. Uma versão mais sofisticada, conhecida como Instrução Prescrita Individualmente (IPI), foi usada em 1965 pelos alunos da Escola Fundamental Oakleaf, de Pittsburgh, e foi descrita por uma publicação contemporânea de pedagogia como “a primeira operação bem-sucedida no país de instrução individualizada de forma sistemática, passo a passo. ” Sua máquina de ensino, entretanto, nunca chegou a ser adotada em grande escala nas escolas públicas estadunidenses.

Parte da resistência à tecnologia vinha dos educadores. Recém profissionalizados, eles se opunham terminantemente à transformação de seu papel como professores em um tipo de coordenador. Rodney Tillman, Reitor da Escola de Pedagogia da Universidade George Washington, escreveu em um ensaio intitulado simplesmente “As escolas precisam de IPI? Não!” que as funções de um professor que usa esse sistema se limitam a “redigir prescrições de percursos para o estudo, diagnosticar as dificuldades do aluno e dar suporte como um tutor […] Isso eu não posso aceitar. ”

Tillman não estava sendo hostil ao uso da tecnologia nas escolas, mas sim à visão específica de educação implícita nas máquinas de ensino, que recompensava o aprendizado por meio de repetição mecânica, ao mesmo tempo em que avaliava o desempenho dos alunos isoladamente. As habilidades necessárias para preparar as crianças para o futuro não eram habilidades didáticas, argumentava ele, mas interpessoais.

E até mesmo nos neuróticos EUA pós-Sputnik, os pais tendiam a compartilhar da crença no modelo largamente humanista de educação. Em 1960, a Associação Nacional de Educação (NEA) achou necessário divulgar uma declaração tranquilizando as mães preocupadas de que, ainda que aparelhos mecânicos fizessem então parte de uma sala de aula moderna, eles nunca seriam o modo de instrução. “A NEA acalma os temores dos pais sobre professores-robôs” foi a manchete do jornal Tribuna de Oakland.

A ansiedade sobre a tecnologia nas salas de aula, ou sobre robôs criando os filhos, foi cristalizada na cultura pop. Os Jetsons, que estreou em 1962, é a história de uma família nuclear típica no ano de 2062. George Jetson trabalha algumas horas por semana na Rodas Dentadas Espaciais do Spacely; Jane Jetson é uma dona de casa e a professora do jovem Elroy Jetson é um robô chamado Senhorita Brainmocker (ou “Zombacérebros”).

Em 1981, no final de sua vida, Skinner havia repudiado sua crença de que a tecnologia poderia resolver os problemas do mundo, observando amargamente que ninguém tinha a inclinação de usar as ferramentas que ele havia criado. Skinner não estava sozinho em seu desejo de transformar radicalmente a educação para um novo século, ou em sua eventual desilusão com esse projeto. Poucas décadas antes do desenvolvimento da máquina de ensino de Skinner, Thomas Edison declarou que os livros estavam obsoletos e que o cinema iria iniciar uma revolução no sistema escolar dentro de dez anos – um processo que, cem anos depois, ainda está dramaticamente incompleto.

As possibilidades da tecnologia educacional permanecem ambíguas. As ferramentas com as quais aprendemos não são nem intrinsecamente empoderadoras, como assumia Skinner e como Arne Duncan continua a assumir, e nem são intrinsecamente ameaçadoras. Elas podem ser usadas de maneiras que libertam ou oprimem. No entanto, a ideia popular de que a inovação tecnológica seria cruel (a Sra. Brainmocker/”Zombacérebros”) não é totalmente irracional.

A palavra “inovação” é quase sempre invocada por membros das elites para ignorar o conflito de classes, a tal ponto que algumas pessoas na esquerda passaram – erroneamente, mas de maneira compreensível – a suspeitar da ideia de modernização como um todo.  Desde Thomas Edison experts vem defendendo com entusiasmo a incorporação do filme e do rádio nas salas de aula, sem levar em conta o fato de que, como aponta o historiador David Tyack, havia ainda dezenas de milhares de escolas estadunidenses sem eletricidade até a década de 1960. Evidentemente, essas escolas não estavam distribuídas uniformemente por todo o país, e eram frequentadas por crianças da classe trabalhadora, principalmente em comunidades negras e imigrantes.

O otimismo dos bilionários

Em 1966, um professor do MIT lamentou que tivesse sido mais fácil colocar um homem na lua do que reformar as escolas públicas. Hoje, o CEO da SpaceX, Elon Musk, quer substituir o programa dos ônibus espaciais dos EUA e botar pelos ares o sistema educacional, o transformando num jogo e adicionando efeitos especiais.

“Vamos dar às crianças uma chance de voar”, disse Duncan a Khan na sua live. “As deixe encontrar sua paixão e elas chegarão até a lua com ela.” Por que dois conceitos tão díspares quanto educação e viagens espaciais estão tão intimamente ligados em nosso discurso público? A educação e o espaço representam metonímias para o futuro.

Quando as crianças de hoje crescerem e se tornarem os adultos de amanhã, realizando reuniões em holodecks e se transportando num feixe de energia pela galáxia vestidos em golas altas marrons, elas terão nos substituído. Quando a ficção científica se tornar realidade, estaremos todos mortos, a menos que possamos descobrir uma maneira de realizar o impossível.

Do ponto de vista da indústria de tecnologia, a educação e as viagens espaciais são semelhantes porque são problemas em busca de respostas racionais e personalizadas do século XXI, como aquelas às quais chega o design thinking. A expectativa é que essas respostas obliterem as limitações materiais, a luta de classes – a história, o passado e o presente.

O design thinking, adotado por figuras-chave nos negócios e especialmente na indústria de tecnologia, insiste que os educadores adotem uma atitude perpetuamente otimista, porque isso é o que é preciso para se acreditar que tudo vai ficar bem se simplesmente trabalharmos juntos para dar uma direção aos nossos esforços. Isso é o que é preciso para se acreditar que a melhor ideia é aquela que sobrevive à discussão em grupo e que por isso ela é adotada. O otimismo raivoso do vernáculo tecno-utópico, com suas metáforas que não são mais registradas como metáforas, obscurece os imperativos do mercado por trás da visão da indústria para o futuro.

Isso é intencional. A confusão da ideia de futuro com um progresso universal sem ambiguidades nos coloca a todos em pé de igualdade. Participar como cidadão neste quadro consiste em doar o seu dólar, tweetar o seu apoio, usar a sua pulseira, jurar não ser complacente.

Criticar a solução só impediria a eventual descoberta da solução. E por que fazer exigências por poder se você mesmo for empoderado? O empoderamento, como utilizado por Duncan, é um eufemismo. A raiva empodera, a frustração empodera, a crítica empodera. A competência não empodera.

O fato é que a educação não é um problema de design com uma solução técnica. Não tem nada a ver com construir uma nave espacial. É um projeto social e político que o imaginário neoliberal insiste em tentar fazer deixar de existir por meio da inovação. Os desafios mais significativos enfrentados hoje na educação não são obstáculos naturais a serem superados pelo aumento da produtividade – são disputas criadas pelos seres humanos sobre como os recursos são alocados.

Em um relatório de recomendações políticas frequentemente citado sobre o desempenho acadêmico e os gastos nos últimos quarenta anos, Andrew J. Coulson, do think tank neoliberal Cato Institute, chega à conclusão de que aumentos dramáticos no financiamento da educação não resultaram em melhorias no desempenho dos alunos.

“Em praticamente todos os outros campos”, observa Coulson, “a produtividade aumentou ao longo desse período graças à adoção de inúmeros avanços tecnológicos – avanços que, em muitos casos, pareceriam idealmente adequados para facilitar o aprendizado. E, no entanto, mesmo cercada por essa torrente de progressos, a educação permaneceu ancorada no leito do rio, observando o resto do mundo passar por ela.” O que Coulson e outros que repetem esse mito ignoram é quem especificamente é deixado de fora do êxtase da marcha do mundo tecnológico rumo ao progresso e como e por que eles são deixados de fora.

Os EUA são um dos poucos países da OCDE onde as escolas que atendem as famílias ricas possuem mais recursos do que as escolas que atendem as famílias pobres. Um relatório da OCDE de 2010 observou:

Em 16 países da OCDE, mais professores são alocados em escolas desfavorecidas para reduzir a proporção aluno-professor, com o objetivo de moderar a desvantagem (OCDE, 2010). Este é particularmente o caso de Bélgica, Itália, Irlanda, Espanha, Estônia, Islândia, Portugal, Japão, Holanda e Coréia. Apenas na Turquia, Eslovênia, Israel e Estados Unidos as escolas desfavorecidas são caracterizadas por uma proporção maior de alunos por professor.

Em 2013, Andreas Schleicher, que dirige as avaliações educacionais internacionais da OCDE, disse ao jornal New York Times: “o resultado final é que a grande maioria dos países da OCDE investe igualmente em todos os alunos ou desproporcionalmente mais nos alunos desfavorecidos. Os EUA são um dos poucos países que fazem o oposto. ”

Em um país onde os 20% mais ricos da população ganham oito vezes mais que os 20% mais pobres, isso inevitavelmente leva a dois sistemas de educação distintos e paralelos, um para os ricos e outro para os pobres. Não é que o “dinheiro não importa” para reformar o sistema educacional, ou que a tecnologia possa ser um substituto para ele, e sim que crianças de famílias da classe trabalhadora e pobre têm notas mais baixas em testes padronizados do que seus pares ricos – e os EUA têm muito mais famílias pobres do que ricas.

O cinismo dos gestores

A Khan Academy de Sal Khan, financiada por generosas doações da Fundação Gates, é o milagre de engenhosidade mecânica com o qual Thorndike sonhava um século atrás.

Quando entrei pela primeira vez na Khan Academy, fiquei surpresa ao descobrir que, apesar de todo o apoio da indústria de tecnologia, não era atraente, simples ou intuitiva. Os usuários passam o mouse sobre a barra de temas e escolhem entre Matemática, Ciências, Economia e Finanças, Artes e Humanidades, Computação, Preparação para Testes ou Conteúdo de Parceiros. Clicando em uma “missão” de Matemática te leva a uma página com exercícios básicos. Nos vídeos instrutivos, Khan é esquisito – um “ex-atleta” da matemática com um leve sotaque e a exuberância afetada de alguém que sofreu provocações, mas que no final foi recompensado por ser ele mesmo.

O site é interativo no sentido mais mecanicista da palavra: ele fornece avaliações individuais. Após dez respostas corretas, o usuário pode passar para o próximo conceito. Dez respostas corretas são aplicadas uniformemente em todo o site como uma métrica, embora não fique nítido por que o sucesso nesta métrica indica o domínio de um tema, assim como os 85% de respostas corretas exigidos pelo sistema do IPI pareciam ter sido selecionados arbitrariamente para permitir que a máquina de ensino funcionasse. Medalhas, que devem servir como incentivos, são exatamente o tipo de coisa que um adulto “descaradamente geek” pensaria que uma criança deveria achar interessante.

É uma versão portátil e baseada na nuvem da máquina de ensino de Skinner. Seu ponto forte é que ela é autoguiada: os exercícios permitem a repetição e fornecem aos alunos uma avaliação imediata à medida que praticam.

O desempenho da memória melhora com a prática, e a prática leva à automaticidade, o que libera a memória de trabalho e permite que nos concentremos na compreensão. É por isso que é impossível obter uma visão complexa dos conceitos abstratos de literatura ou álgebra até que possamos ler palavras e equações fluentemente. A prática passiva na verdade não melhora nossa capacidade de recordar informações, e Thorndike, que via a mente como um grupo de hábitos, foi o primeiro a identificar o uso de avaliações e devolutivas  como essencial para o aprendizado bem-sucedido.

Mas cadê a tal revolução? Khan é rápido em dizer que seus vídeos não substituem os professores, uma afirmação que parece não ser sincera, visto que a missão de seu projeto é “fornecer uma educação gratuita de nível mundial para qualquer pessoa, em qualquer lugar”. Pedagogicamente, os vídeos não são muito ambiciosos. Mesmo com um livro didático de papel, o aluno pode avançar no seu próprio ritmo e receber avaliações ao verificar as respostas no final do livro. Por que uma versão digitalizada deveria criar um resultado significativamente diferente?

A Khan Academy é uma boa maneira de praticar problemas matemáticos ou de aprender uma habilidade didática. Agora, com certeza não se trata de uma inovação pedagógica ou em design. Como sistema educacional, é um fracasso, degradando tanto o aluno quanto o professor, ao depreciar a importância da interpretação e da crítica na educação, assim como faz o design thinking.

Um exemplo da importância desse tipo de prática flexível e evolutiva – especialmente para crianças de famílias de baixa renda – vem de Lisa Delpit, educadora e autora do livro Other People’s Children (“Crianças dos Outros Povos”). Em palestras, Delpit usa uma situação que ela testemunhou em uma pré-escola na qual uma professora distribuiu uma bandeja de doces e instruiu as crianças para que cada uma pegasse um pedaço e passasse a bandeja. Algumas das crianças pegaram vários doces e não houve o suficiente para chegar em todos.

Um professor que avaliasse as crianças sem interpretar o contexto, como uma máquina, concluiria que as crianças não tiveram sucesso na conclusão da tarefa e que precisariam de mais prática de compartilhamento. Na verdade, depois de perguntar por que as crianças pegaram doces a mais, a professora humana descobriu que elas estavam simplesmente se engajando em um tipo diferente de economia criativa, guardando alguns doces para mais tarde levar para os seus irmãos em casa.

Suspeito que a inovação na qual Gates está investindo não é tecnológica, mas gerencial. A única coisa verdadeiramente nova que Sal Khan fez foi produzir uma maneira barata e popular de distribuir palestras e exercícios básicos para um grande número de pessoas que gostam deles.

É possível que aquilo que Gates mais admira nele seja o fato de que um mesmo homem é capaz de ensinar tantas matérias diferentes em diferentes níveis, desde matemática de jardim de infância até biologia celular e mercados financeiros. No festival Aspen Ideas, Gates elogiou Khan por mover “cerca de 160 pontos de QI da categoria dos fundos de cobertura para a categoria de ensino-de-muitas-pessoas-de-maneira-alavancada”. Ele parece estar dizendo “olha só todo o valor que se pode extrair de um único funcionário!”

Em uma entrevista de 2012, Gates disse a Fareed Zakaria: “quando você revoluciona a educação, você está pegando o próprio mecanismo de como as pessoas se tornam mais inteligentes e fazem coisas novas e você está canalizando o dinheiro para estimular o caminho para tantas coisas incríveis. Durante a próxima década, em todos os níveis e em todos os países, isso vai mudar de maneira dramática.” A tecnologia “vai ocupar esse espaço nos níveis atuais de investimento e vai nos permitir fazer um trabalho muito melhor”.

Em outro lugar, Gates defendeu a austeridade na educação pública, repetindo o conhecido argumento de que, por 30 anos, os EUA têm gasto dinheiro, enquanto o desempenho das crianças permanece o mesmo. O que é preciso fazer, diz ele, é aumentar o desempenho sem gastar mais, por meio de mudanças na maneira como o dinheiro é gasto. Para tanto, Arne Duncan perguntou a uma sala cheia de empreendedores e investidores do Vale do Silício no ano passado: “Será que podemos encontrar maneiras de aumentar a escala dos professores incríveis que temos?” Os sistemas que são propícios ao “aumento de escala” são aqueles que mantêm a qualidade mesmo sob uma carga de trabalho maior. Modificar os professores para “aumentar a escala” significaria substituí-los por robôs ou computadores.

Os gerentes são incentivados a terceirizar empregos e tarefas redundantes, mas nos últimos trinta anos tem havido um foco especial na redução da segurança e da estima dos professores e do sistema escolar nos EUA. Certamente isso tem a ver com dinheiro, como sempre, mas o apoio financeiro da Fundação Gates é astronômico o suficiente para que a questão seja menos sobre uma verdadeira escassez e mais sobre como esse financiamento será gasto.

A demissão e disciplinamento de professores também é uma escolha ideológica: os professores são uma ameaça à classe dominante. Embora sejam atomizados como trabalhadores em salas de aula separadas em distritos que nos EUA concorrem entre si, como afirma Beverly Silver,  os professores estão em uma localização estratégica na divisão social do trabalho. Se eles não forem para o trabalho, ninguém vai – ou pelo menos ninguém que tenha filhos para cuidar. Como cuidadores, os professores são, por definição, figuras importantes e que recebem a confiança da comunidade, são funcionários públicos capazes de interromper a produção privada.

Nos Estados Unidos, onde a vasta maioria das famílias continua a dar uma alta classificação aos professores de seus próprios filhos, mesmo acreditando no mantra político de que o sistema educacional do país estaria se deteriorando rapidamente – proteções de trabalho únicas, como estabilidade de emprego, servem para fortalecer ainda mais a capacidade dos professores de resistir às reformas neoliberais.

Na mesma linha, as escolas são espaços públicos em que as crianças e adolescentes podem largar seus lápis, laptops ou tablets e se organizar contra a violência e a coerção do Estado, como vimos após o assassinato de Michael Brown. As possibilidades de enfrentamento às injustiças são tão poderosas que as crianças (especialmente as crianças negras e pardas, mas cada vez mais, todas as crianças) são literalmente policiadas e consideradas suspeitas em seus próprios edifícios escolares.

Os professores que incentivam a resistência são fontes essenciais de apoio e orientação para os jovens. As pessoas não aprendem a pensar criticamente e a construir significados isoladamente – que é a premissa por trás da tendência dos livros didáticos que respondem individualmente a cada aluno e que permitem que eles se movam no seu próprio ritmo. As pessoas discutem, discutem, brincam, experimentam e conversam. E, como Delpit escreve:

Apenas aqueles que são autêntica e criticamente alfabetizados podem se tornar os cidadãos de pensamento independente necessários para a evolução de qualquer sociedade. A oportunidade de atingir esses níveis de alfabetização é ainda mais crítica para aqueles que a sociedade em geral estigmatiza [...] Quando as pessoas não-brancas são ensinadas a aceitar acriticamente textos e histórias que reforçam sua posição marginalizada na sociedade, elas facilmente aprendem a nunca questionar sua posição.

Aprender em grupo não é um processo indolor. Um bom professor conhece bem seus alunos, os respeita e ganha seu respeito em troca, além de os desafiar a mirar naquilo que Vygotsky chamava de “zona de desenvolvimento proximal” – seu potencial.

Como Katherine McKittrick apontou em resposta à ideia de avisos de gatilho colocados nos programas de estudos das faculdades: a sala de aula não é segura, ela não deve ser um lugar seguro. Para McKittrick, ensinar é uma “escaramuça diária”, e os professores devem trabalhar duro para criar diálogos em sala de aula “que lidem com a maneira como o conhecimento está ligado a uma luta contínua para acabar com a violência”, para se envolver com a história que os alunos trazem com eles para a sala de aula e para resistir de maneiras práticas à reificação do pensamento opressor.

Em 2015, durante o evento da “Hora do Código”, patrocinada pela indústria de tecnologia e apoiada pelo Departamento de Educação dos EUA, Susan DuFresne, uma professora de jardim de infância e ex-professora auxiliar com 40 anos de experiência me disse: “As crianças não seguem um padrão. Elas precisam de brincadeiras não estruturadas dentro e fora de casa para desenvolver habilidades”, como compartilhar, ouvir, cooperar e se autorregular.

A Hora do Código é uma manobra publicitária em que crianças de escolas públicas desde a pré-escola recebem laptops e estudam programação. DuFresne tem sido veementemente contra. As crianças “têm estilos de aprendizagem diferentes”, disse ela. “Alguns aprendem mais rápido com a tecnologia. Mas agora as crianças já na terceira série serão obrigadas a digitar respostas escritas em caixas de texto, clicar e arrastar e usar várias ferramentas de software de tecnologia nos testes do ‘Common Core’”. Todavia, sua resistência tinha pouco a ver com o medo de novas ferramentas e tudo a ver com a conceituação do papel da tecnologia na sala de aula.

Outra professora do ensino médio, Brooke Carey, que trabalha há mais de uma década no sistema escolar municipal de Nova York, concorda que a tecnologia é frequentemente usada em salas de aula de escolas públicas de “uma forma bastante tradicional”, com tablets servindo como uma versão mais sofisticada de caneta e papel e com as “Smartboards” funcionando como uma lousa ou quadro branco computadorizado. Nas escolas públicas estadunidenses, as ferramentas de ensino foram digitalizadas e otimizadas para eficiência, mas o conteúdo e a filosofia permanecem os mesmos.

Até mesmo os engenheiros do Google sabem disso. Uma reportagem no jornal New York Times apontou a popularidade do modelo Waldorf de educação no Vale do Silício como se fosse uma contradição: “uma escola do Vale do Silício que não é sobre computação”.

As escolas Waldorf incorporam no currículo experiências e ferramentas criativas e táteis, incluindo martelos e pregos, facas, agulhas de tricô e lama – mas não computadores. O envolvimento vem da conexão entre as crianças e seus professores, que enfatizam o pensamento crítico e buscam criar planos de aula interessantes, baseados na investigação e no questionamento.

De acordo com o jornal, funcionários do Google, Apple, Yahoo, Hewlett-Packard e eBay mandam seus filhos para a Escola Waldorf da Península. “A ideia de que um aplicativo em um iPad posse ensinar melhor meus filhos a ler ou fazer cálculos, isso é ridículo”, disse ao jornal Alan Eagle, executivo de comunicações do Google que já escreveu discursos para o CEO da empresa, Eric Schmidt.

A grande ironia é que os próprios reformadores do Vale do Silício, que promovem e financiam modelos tecno-utópicos para as crianças estadunidenses, se recusam a submeter seus próprios filhos a algo parecido, escolhendo modelos pedagógicos inovadores em vez de novas telas sensíveis ao toque.

A sala de aula do futuro

Um dos momentos mais marcantes para mim, como professora iniciante, foi assistir ao vídeo de uma aula que dei. A gravação me permitiu transcender a biologia: sair da minha própria cabeça e me ver como meus alunos viam, perceber e interpretar sussurros e correntes ocultas que, de outra forma, teriam me escapado inteiramente devido a limitações puramente físicas.

Em uma hora, aprendi mais sobre minha prática do que durante meses de avaliações de supervisores. Os iPads são mais do que painéis caros e exaltados, que podem ser apagados a seco. Eles poderiam ser usados para conectar os professores (que tradicionalmente operam dentro dos limites de suas próprias salas de aula individuais) uns aos outros para fins de desenvolvimento e crescimento. Por que não filmar as aulas de professores experientes e compilar uma biblioteca nacional ou global de como pode ser uma aula envolvente, imediatamente acessível aos novos professores?

O que o debate atual sobre o desenho das salas de aula do século XXI deixa passar é o fato de que as inovações não ocorrem fora da economia política; são parte dela. O que chamamos de tecnologia e o que criamos com ela é determinado pela paisagem social e política na qual criamos. Como escreveu Marcuse em O Homem Unidimensional: “Não existe algo como uma ordem científica puramente racional. O processo de racionalidade tecnológica é um processo político. ”

Para a camada gerencial na elite, o propósito que dá ânimo à tecnologia nas salas de aula é desenvolver o capital humano com mais eficiência, tornar algumas pessoas mais inteligentes e mais rápidas e separar o resto delas na pilha de descarte do capitalismo: o trabalho de baixa remuneração. Como o capitalismo industrial torna a todos nós, trabalhadores e capitalistas, dependentes do mercado para a aquisição das necessidades básicas da vida, nossas vidas são dominadas pelos imperativos do mercado.

O sistema educacional dos EUA é moldado por esses imperativos do mercado – pelo menos para crianças nas escolas públicas. Os ricos sabem que JavaScript pode ser aprendido em questão de meses. A educação para o empoderamento exige o demorado cultivo de uma compreensão complexa da história e do lugar que ocupamos nela, bem como sobre a maneira com que ela continua a moldar nossos relacionamentos e economia política.

Quando imaginamos o ensino bem-sucedido como sendo a instrução de um número X de pessoas atingindo o nível Y de fluência, nós o redefinimos – seja ele realizado por humanos ou por máquina – de um ato social (e potencialmente político) para um ato meramente técnico.

Os professores devem continuar tendo a capacidade de ajudar as crianças a pensar criticamente sobre as maneiras como a realidade é remodelada pela tecnologia e pelas mudanças no modo de produção. Como as crianças que assumem o Google como algo simplesmente dado entenderão a pesquisa e a investigação? Como será a amizade para as crianças da era eletrônica, que têm a opção de nunca perder o contato com os amigos de infância graças ao Facebook? Quem ganha e quem perde com a adoção de tecnologias específicas?

É impossível dizer hoje como devemos ensinar e aprender sobre as relações sociais mediadas pela tecnologia, já que isso é algo que deve ser moldado pela práxis – por professores e alunos trabalhando juntos. Mas simplesmente imaginar a evolução da educação dessa forma é fazer perguntas radicais, começando com a pergunta proibida, “o que há de errado com a educação atual?” Essa pergunta inevitavelmente leva a outra ainda maior e mais perigosa – o que há de errado com a sociedade?

Em 1922, um jornalista descreveu como a tecnologia muda nossa relação com o mundo: “Para o aluno do ano de 1995, a História não será apenas algo a ser memorizado a partir de livros. Ela será visualizada e tornada real para ele pelas imagens em movimento que estão sendo feitas agora. As pessoas de nosso tempo não serão meros fantasmas de livros de história para este menino, mas criaturas vivas que sorriam para ele, que caminham, brincam, amam e odeiam, que trabalham e que comem.”

Só que não é assim que enxergamos a História em 2015. Hoje, vemos a História como um campo agonizante, em uma esfera separada da educação em relação às ciências exatas e tecnológicas; seus praticantes são comparados aos últimos falantes de uma língua perdida, empenhados em preservá-la e sendo desvalorizados da mesma forma que o trabalho das mulheres: com baixa remuneração. O humanismo é considerado inerentemente oposto às máquinas; ainda assim, como o jornalista de 1922 sugeriu, a tecnologia nos oferece a capacidade de formar conexões e experimentar intimidade com mais pessoas, com outras pessoas, vivas e mortas, através do tempo e do espaço.

Em um romance contemporâneo sobre a Inglaterra vitoriana, Sarah Waters faz sua protagonista notar que a coisa mais interessante sobre o rádio como uma invenção não é o choque inicial de se ouvir vozes no espaço. “Era ainda mais estranho tirar os fones de ouvido e perceber que o sussurro ainda prosseguia – e pensar que ele continuaria, tão apaixonadamente como sempre, quer a pessoa ouvisse ou não.”

Ao longo dos tempos, a tecnologia tem transformado a maneira como nos relacionamos uns com os outros e os próprios fundamentos epistemológicos da sociedade – a maneira como percebemos a realidade coletivamente. Esta é uma abertura verdadeiramente radical para os socialistas, dentro e fora da sala de aula. O que faremos com ela?

Colaborador

Megan Erickson é editora da Jacobin e autora de Class War: The Privatization of Childhood ("Guerra de Classes: A Privatização da Infância").

Aquela velha magia Bibi

Justamente quando parecia que o campo Sionista iria ganhar, o ativista astuto começou a tirar coelhos da cartola.

Neve Gordon
Neve Gordon é professor de Direito Internacional na Queen Mary University of London.


Netanyahu acena para apoiadores na sede do partido em Tel Aviv. Reuters

Tradução / Benjamin Netanyahu é verdadeiramente um mágico. Ainda na sexta-feira (20/3/2015), a maioria das pesquisas indicava que seu partido Likud conquistaria em torno de 21 cadeiras no Parlamento israelense, quatro cadeiras a menos que o Campo Sionista (Partido Labor, com nome novo) de Yitzhak (Bougie) Herzog.

Revelações de corrupção na residência do primeiro-ministro, seguidas de um relatório devastador sobre a crise imobiliária real, além do encolhimento da indústria, greves sindicais, previsões de economia fraca, impasse diplomático e crescente isolamento internacional, tudo parecia indicar que Netanyahu estava de saída. Mas quando mais parecia que o campo Sionista substituiria o campo nacionalista, o exímio marqueteiro de campanhas eleitorais começou a tirar seus coelhos da cartola.

Como se não bastasse a decisão de atropelar o governo Obama na questão das negociações com o Irã, Netanyahu pôs-se a martelar a favor da direita, dando a conhecer ao mundo que os palestinos estariam condenados para sempre a jamais ter um Estado, dado que ele não promoveria a criação de mais um estado árabe para cercar Israel.

"Conspiração da mídia esquerdista"

Apresentou o partido Likud como vítima de uma conspiração da “mídia” esquerdista para derrubar o governo da direita. E convenientemente não disse a ninguém que seu aliado Sheldon Adelson é o proprietário do jornal Yisrael Hayom, o jornal impresso de maior circulação em todo o país.

Ele convidou seus eleitores a voltar para “casa”, prometendo dar conta de todas suas carências econômicas. E no próprio dia das eleições, aterrorizou os judeus com declarações de que os cidadãos palestinos de Israel estariam correndo às urnas em multidões, apresentando os palestinos, que votam em seus próprios candidatos, como se fossem mais uma ameaça existencial.

A poção envenenada de Netanyahu é feita com campanhas para gerar medo, ódio racista contra árabes e ódio militante contra a esquerda política. Pelo que agora se vê, muitos eleitores foram realmente envenenados. Em questão de poucos dias, Netanyahu conseguiu virar a favor dele votos suficientes para eleger mais dez candidatos do seu partido, canibalizando dois dos seus aliados da extrema direita: o partido de Avigdor Lieberman e o partido de Naftali Bennett.

Graças à mágica-veneno de Netanyahu, o Likud saiu-se muito melhor do que esperava, e em coalizão com os partidos ultra-ortodoxos e um novo partido recém criado por um ex-ministro do Likud, o partido Kulanu (All of US), será muito provavelmente criado um bloco de extrema direita, com 67 dos 120 assentos com direito a voto (e isso ainda antes de se computarem os votos dos soldados, que em geral são de centro-direita).

O resultado é claro: o povo de Israel votou pelo Apartheid.

Israel vota pelo Apartheid

Agora é extremamente provável que volte à tona uma leva de leis antidemocráticas que haviam sido engavetadas. Entre essas, as leis que monitoram e limitam o financiamento de ONGs de direitos humanos, restringem a liberdade de expressão, reduzem a autoridade da Suprema Corte, cancelam o status oficial da língua árabe e, claro, levam a votação a lei do Estado-nação.

Essa lei, originalmente proposta por um membro do Likud, define a judaicidade como padrão do estado em todas as instâncias, legal ou legislativa – na qual conflitam as definições de “estado judeu” e “estado democrático”. Significa que as leis que garantem direitos iguais a todos os cidadãos israelenses podem ser derrubadas, sob a alegação de que não respeitam o “estado judeu”. Além disso, essa lei reserva direitos comunitários só para judeus; nega portanto aos cidadãos palestinos qualquer tipo de identidade nacional.

Além da legislação antidemocrática, podemos esperar todo um desfile de políticas de discriminação. O novo governo provavelmente implementará alguma variação do Plano Prawer, que visa a realocar à força milhares de beduínos palestinos e tomar a terra que lhes pertence.

Continuarão a jorrar bilhões de dólares nas colônias israelenses na Cisjordânia e nas colinas do Golan, e mais casas serão expropriadas em Jerusalém Leste. E provavelmente serão presos milhares de refugiados e trabalhadores migrantes “ilegais” que atualmente vivem e trabalham em cidades israelenses.

Mas os resultados dessas eleições trazem uma importante vantagem: clareza. Agora, pelo menos, caiu a fachada sionista liberal, que camuflava a disposição de Israel para fazer avançar seu projeto colonial. O refrão israelense, de que não se poderia alcançar solução diplomática com os palestinos, porque os palestinos não teriam liderança, soará mais vazio, a cada dia. Finalmente, já se pode ver que pretender que Israel seria a única democracia no Oriente Médio é o que é: meia verdade. Enquanto Israel é uma democracia para os judeus é um regime repressivo para os palestinos.

Deve-se também esperar pouca resistência contra o governo de extrema direita, porque o campo Sionista de Herzog e o partido de Yair Lapid também são arabofóbicos e, portanto, pouco lutarão contra a substância racista do novo governo, embora talvez lutem contra o estilo direitista ruidoso de Netanyahu.

"BibiBennett"

Afinal de contas, nos dias antes da eleição via-se um só pacote político, com enormes cartazes que mostravam foto de (Bibi) Netanyahu e seu adversário, representante oficial da extrema direita, Naftali Bennett, em que se lia que “Com BibiBennet continuaremos contra os palestinos por toda a eternidade”. A dupla deve ter esquecido o fato de que 20% dos cidadãos israelenses são palestinos.

Pois mesmo assim, durante essas eleições, um raio de esperança brilhou na escuridão. O esforço concentrado de quase todos os partidos judeus para excluir os cidadãos palestinos produziu um efeito não esperado. Criando uma frente unida, os palestinos conquistaram 14 cadeiras no Parlamento, 25% a mais do que jamais antes. Hoje, os palestinos já são a terceira maior força no Knesset.

Diferente de seus contrapartes noutros partidos, Ayman Odeh, que preside a nova Lista Árabes Unidos, é líder genuíno. Extremamente incisivo, é orador que muitas vezes se serve de muita ironia para ridicularizar seus detratores, ao mesmo tempo em que divulga incansavelmente sua visão igualitária do futuro. Num raro momento de sinceridade, uma conhecida jornalista comentarista israelense denunciou a atitude de Odeh, para ela uma grave ameaça: “É um homem muito perigoso”, disse ela. “Ele projeta algo com que todos os israelenses podem se relacionar”.

Será essa "ameaça" capaz de deter a iminente avalanche de novas leis de Apartheid em Israel? Sinceramente, duvido.

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