28 de abril de 2016

A crise do liberalismo é a promessa do socialismo

O socialismo não é a negação do liberalismo e sim a realização dos melhores valores liberais, que é impossibilitado pelo próprio capitalismo.

Joseph M. Schwartz



Tradução / Jonathan Chait, articulista da revista New York, publicou recentemente uma série de artigos atacando a nova geração de “marxistas” – sintetizados na figura da Jacobin – pela absolvição de “Lenin, Stalin e Mao” de seus crimes.

Para Chait, todos os socialistas são marxistas e todos os marxistas rezam pela mesma cartilha. Ele alega que “governos marxistas atropelam direitos individuais porque a teoria marxista não se preocupa com direitos individuais. O marxismo é uma teoria de justiça de classe”.

Chait diz que o ressurgimento contemporâneo pelo socialismo nega as benesses do liberalismo e defende restrições de falas em universidades, incluindo esforços para cancelar comícios de Trump.

O título do primeiro ataque de Chait, “Lembrete: o liberalismo está funcionando e o marxismo sempre fracassou”, reflete sua cegueira em relação aos 40 anos da crise do progressismo do New Deal e de sua substituição por um regime neoliberal de desregulamentações econômicas, privatizações, ataques aos direitos sindicais e cortes de impostos que redistribuem a riqueza na direção do topo da pirâmide.

Chat está preocupado que o aumento da atração dos jovens pelo socialismo e a campanha de Bernie Sanders possam empurrá-los por um caminho escorregadio rumo a um comunismo autoritário.

Mas, o interesse recente dos millennials pelo socialismo não é produto de visões ingênuas sobre as maravilhas dos planos quinquenais. Ao contrário, eles reconhecem que o “triunfo do capitalismo” lhes legou um mundo de trabalho ocasional, baixos salários, dívida estudantil pesadíssima e um futuro incerto.

Chait conjura imagens de jovens marxistas defendendo gulags. Na realidade, a maioria dos entusiastas de Sanders defende um retorno ao próprio liberalismo progressista do New Deal que Chait afirma defender. Eles não querem “coisas de graça”, querem um sistema de impostos progressivos que expandisse os bens públicos e que reduzisse a vulnerabilidade individual em relação ao mercado.

Esses ganhos “liberais” ocorrem apenas quando uma esquerda socialista forte obriga elites políticas moderadas a expandir os direitos sociais. Mas, em uma economia globalizada, isso só é possível se a esquerda reconstruir o poder da classe trabalhadora em relação ao capital numa escala internacional.

Alcançar isso demanda novas formas de organização e estratégia política. É por isso que jovens ativistas e intelectuais se sentem atraídos por ideias e veículos de comunicação socialistas.

Vamos ler Marx pela ótica marxista, não pela leitura enviesada de Chait

Mas e as acusações de Chait de que os marxistas seriam hostis às liberdades políticas e civis? Sem dúvida, as ideologias de Estado dos regimes marxista-leninistas dispensavam as liberdades civis como meros “direitos burgueses”. Contudo, os ativistas, socialistas democráticos e comunistas dissidentes seguiram defendendo esses direitos de forma inabalável, tanto como benéficos pelas suas próprias virtudes, quanto pela necessidade de organização política da classe trabalhadora.

Em A questão judaica, Marx sustentou que a ausência de democracia social e econômica torna os direitos civis e políticos menos valiosos e que os direitos civis sob o capitalismo frequentemente priorizam os direitos de propriedade acima dos direitos individuais. Na concepção de Marx, a “liberdade de expressão” é muito mais valiosa para as empresas donas da mídia de massas do que para os pobres. O valor da ideia de “uma pessoa, uma voz e um voto” acaba sendo erodido quando os recursos financeiros podem ser convertidos em poder político.

Mas Marx também avisou em O 18 de Brumário de Luis Bonaparte e em Guerra Civil na França que regimes autoritários que eliminam liberdades civis e políticas básicas eram uma ameaça à liberdade. Seu panfleto de 1875, Crítica ao Programa de Gotha, atacou a liderança de Ferdinand Lassalle no Partido Socialista Operário da Alemanha (o precursor do Partido Social Democrata) porque ele defendia o regime autoritário de Bismarck.

Lassalle apontava para os esquemas de seguridade social de Bismarck (incluindo o seguro nacional de saúde) que beneficiavam os trabalhadores. Marx sustentava que o movimento dos trabalhadores não deveria nunca abraçar um governo que retira seus direitos políticos de se organizar livremente.

O próprio Manifesto Comunista termina com um emblemático chamado aos trabalhadores para que derrubem os regimes aristocráticos e então vençam a “batalha pela democracia”, lutando pelo comunismo.

Cumprindo as promessas liberais

Os socialistas democráticos acreditam que a democracia capitalista é capitalista demais para ser totalmente democrática. Ao lutar pela extensão da democracia para a esfera econômica, os socialistas buscam ir além da democracia liberal ao mesmo tempo em que realizam os seus objetivos: o florescimento da individualidade humana e a capacidade de todos de ter uma voz equivalente das instituições do governo que afetam a vida cotidiana.

Esses objetivos só podem ser atingidos se a sociedade proporciona garantias institucionais aos direitos civis e políticos e aos bens necessários para o desenvolvimento do potencial humano (coisas como acesso à saúde, moradia, educação, cuidados na infância e na terceira idade).

Os socialistas estendem o conceito liberal de autodeterminação democrática por meio da luta pela extensão da democracia no ambiente de trabalho e para alcançar o controle social sobre aquilo que produzimos (e como produzimos) e sobre como alocamos o excedente criado.

Chait, que não parece ter lido muito Marx, para não falar do pensamento marxista do século XX, mistura tudo – da social democracia de esquerda ao anarco-comunismo libertário – com o estalinismo.

Marxistas-leninistas ortodoxos de fato se valeram da visão por vezes reducionista de Marx sobre política apenas como um conflito de classes para argumentar que, numa sociedade sem classes, a questão de como organizar a sociedade seria puramente administrativa e tecnocrática. Contudo, quase todos os socialistas hoje em dia acreditam que os conflitos políticos e sociais continuariam a existir sob o socialismo, só que em formas mais humanas do que sob o capitalismo.

O debate e a deliberação democrática, ao invés de um partido único e onisciente, deverão determinar como a sociedade organiza coisas como o cuidado, a moradia, a vida cultural e a mobilidade.

Tampouco Chait está ciente da longa tradição “socialista liberal” que remonta ao líder socialista francês Jean Jaurés, do período anterior à Primeira Guerra Mundial, e a Carlo Rosselli, o antifascista italiano autor de Socialismo Liberal. Ambos afirmam que apenas uma sociedade socialista democrática pode atingir os mais notáveis objetivos do liberalismo: a possibilidade de cada ser humano de desenvolver livremente suas capacidades.

Em um ensaio de 1977 na revista Dissent, “Socialism and Liberalism: Articles of Conciliation?” [“Socialismo e liberalismo: artigos conciliáveis?”, em tradução livre], Irving Howe argumentou que os liberais que compreendem que as corporações são instituições antidemocráticas e governadas hierarquicamente (ao invés de organizações criadas por uma série de “contratos livres”), com frequência abraçam o socialismo democrático.

Socialistas criticam a romântica concepção lockeana dominante de que cada um de nós possui nossa própria terra, ferramentas e trabalho e pode determinar seu próprio destino mediante o esforço individual. Eles apontam para o fato de que os valores liberais só podem ser alcançados se os direitos de propriedade corporativos forem extirpados do cânone liberal.

Ainda, feministas antirracistas e socialistas contemporâneas defenderiam que apenas uma sociedade com papéis de gênero democratizados e igualdade de fato perante a lei pode atingir os objetivos professos do liberalismo.

O marxismo leva inevitavelmente ao gulag?

Chait demonstra sua ignorância sobre o trabalho de Marx quando iguala sua visão de comunismo com o comunismo autoritário da antiga União Soviética e da China maoísta.

Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, Marx argumentou que o comunismo apenas seria possível após o desenvolvimento pleno do capitalismo. Ele previu que, se comunistas forçassem sociedades agrárias e feudais (como Rússia e China) a se industrializar, acabariam transformando o Estado no “capitalista universal” que exploraria a população como a “classe trabalhadora universal”.

O que Marx não podia antever era que acabaria sendo mais fácil derrubar oligarquias fundiárias (especialmente quando os oligarcas não eram capazes de proteger o campesinato da invasão estrangeira) do que transicionar de uma democracia capitalista ao socialismo (apesar de, por vezes, nas décadas de 1970 e 1980, tal mudança parecer possível no Chile, na França e na Suécia).

Chait não consegue reconhecer que nem a tradição marxista e nem a tradição capitalista desenvolveram um caminho pacífico e humano para o desenvolvimento econômico equitativo em sociedades pré-industriais. Os horrores da “acumulação primitiva” (escravidão, genocídio contra povos indígenas) no mundo capitalista não parecem incomodar Chait.

Capitalismo versus democracia

Chait também silencia a respeito do fracasso do liberalismo em alcançar seus objetivos de direitos iguais a todos. Ele não reconhece como o capitalismo, o racismo e o patriarcado impedem a valorização moral equitativa das pessoas, que é o fundamento moral do próprio liberalismo.

É por isso que os socialistas são ativos nas lutas para acabar com as restrições eleitorais, com a brutalidade policial, o encarceramento em massa e para defender e expandir os serviços reprodutivos.

Chait celebra as “reformas sociais igualitárias, aumento dos impostos sobre os mais ricos com diminuição para os mais pobres e a nova e significativa transferência de renda aos americanos pobres e da classe trabalhadora através de reformas no sistema de saúde e outras medidas” promovidas por Obama.

No entanto, essas medidas são de natureza tépida, quando comparadas com as reformas de bem estar social mais robustas (embora também falhas e causadoras de exclusão) promulgadas nas décadas de 1930 a 1960 nos EUA, quando uma esquerda e um movimento de trabalhadores mais poderosos introduziram um pouco mais de robustez no liberalismo progressista.

A direita é a principal ameaça à liberdade

Chait também culpa o marxismo (e os leitores da Jacobin!) pela suposta supressão da liberdade de expressão nos campus universitários, especialmente por conta da tática de boicotar comícios de Trump. Mas os socialistas têm posições diferentes a respeito de como regular a livre expressão nas universidades (ou mesmo sobre se isso seria desejável).

Chait não parece se preocupar muito com o fato de que muitos estudantes de grupos historicamente sub-representados não se sentirem reconhecidos como membros legítimos e plenos das comunidades de seus campus. Tampouco reconhece que abuso e violência sexuais continuam sendo grandes ameaças nas universidades.

Apenas os protestos estudantis de militantes foram capazes de transformar a composição do corpo estudantil e docente universitários na década de 1960 nos EUA. E os conservadores – e alguns liberais – criticaram esses protestos por serem “anti-liberais”.

Talvez Chait reconheça a necessidade de se opor a discursos que incitam pessoas a atos racistas ou homofóbicos. Porém, ele reserva sua ira não para os movimentos anti-liberais nativistas que apoiam políticos explicitamente racistas, anti-imigração e islamofóbicos, como Trump, mas para aqueles que protestam contra a política do ódio.

Muitas democracias liberais proíbem o discurso de ódio ou racista. Alguém pode se opor a essas proibições (como é o meu caso), mas quando o discurso vira ação repressiva (como a violência racista contra os outros), então a força deve ser repelida pela força. O fracasso do Estado alemão em cessar a violência fascista contra reuniões pacíficas de cidadãos democráticos durante a República de Weimar sem dúvida contribuiu para a ascensão do nazismo ao poder.

Espantalhos frequentemente substituem análises por fantasias. Aparentemente temos que afirmar o óbvio: ler Marx não leva inexoravelmente alguém a idolatrar Stalin. A maior parte dos socialistas está comprometida com um projeto político construído em torno da realização da promessa do liberalismo – liberdade, igualdade e solidariedade -, que é impedida pelo capitalismo. E é por isso que nos opomos ao liberalismo progressista do tipo defendido por Jonathan Chait.

Sobre o autor

Joseph M. Schwartz é o vice-presidente nacional dos Socialistas Democráticos da América e professor de ciência política na Universidade Temple, na Filadélfia.

22 de abril de 2016

Um mundo socialista não significaria só uma crise ambiental maior ainda?

Sob o Socialismo, nós tomaríamos decisões sobre o uso de recursos democraticamente, levando em consideração necessidades e valores humanos, ao invés da maximização dos lucros.

por Alyssa Battistoni

Ilustração por Phil Wrigglesworth / Jacobin

O capitalismo está espalhando destruição sobre o mundo em que vivemos. A mudança climática ameaça alterar nosso planeta para além do reconhecível, inundando cidades e vilas costeiras, intensificando secas e ondas de calor e fortalecendo climas extremos.

Os efeitos mais nocivos, é claro, estão caindo sobre as pessoas pobres do mundo. A sobrepesca tem empurrado pescadores para o ponto de colapso; suprimentos de água doce são escassos em regiões que abrigam metade da população mundial; fazendas de cultivo industrial com uso intensivo de fertilizantes tem exaurido de nutrientes as terras agrícolas; florestas tem sido demolidas em níveis atordoantes para abrir caminho para agricultura comercial e ranchos de gado; as taxas de extinção se comparam com aquelas de apocalipses pré-históricos induzidos por meteoros.

Estes não são problemas que podem ser resolvidos como se trocássemos uma lâmpada. A atividade humana tem transformado o planeta inteiro de formas que estão agora ameaçando o jeito em que o habitamos – alguns de nós muito muito mais do que outros. Mas se você apontar que não é a “Humanidade” em abstrato, mas o Capitalismo que deveríamos responsabilizar, ouvirá uma réplica familiar: “O Socialismo é mau para o meio-ambiente também!” A produção na União Soviética também se baseava em combustíveis fósseis, degradou terras agrícolas, poluiu rios e desflorestou vastas extensões.

É verdade que o histórico ambiental das URSS não inspira muita confiança. Mas isso não significa que o Capitalismo pode resolver nossos problemas ambientais, como declaram empreendedores verde-claro, ou que a sociedade industrial moderna precisa ser abandonada por completo, como alguns ambientalistas verde-escuro iriam sugerir. O Capitalismo pode certamente sobreviver a condições ambientais se agravando, pelo menos por um tempo – mas ele vai sobreviver sob condições de um “eco-apartheid” cada vez maior, com segurança e conforto para os ricos e uma escassez crescente para o Resto.

Assim, o sonho socialista do Século XX de maximizar a produção na busca de abundância e igualdade parece cada vez mais insustentável. Marxistas afirmavam que o Comunismo surgiria em meio a condições pós-Capitalistas de superabundância: uma vez que os motores do Capitalismo estivessem rugindo, eles poderiam ser tomados e colocados para beneficiar a todos. Mas esses motores não podem mais funcionar às custas de combustíveis fósseis, e o Capitalismo consumista contemporâneo não é a abundância que tinhamos em mente. Nós precisamos não apenas tomar os meios de produção, mas transformá-los.

Nós também precisamos de uma visão de futuro diferente da que tem sido levada adiante pela Esquerda mais recentemente.

O Esquerdismo ambiental ultimamente tem tendido a uma posição um tanto anarquista que desconfia da produção de larga escala e do poder concentrado, sejam eles privados ou públicos. Isso não deveria surpreender – como os problemas ambientais são tão específicos em diferentes localidades, eles frequentemente despertam soluções locais de pequena-escala. Mas a mudança climática e outras crises ambientais surgindo de sistemas globais de produção e consumo são questões sistêmicas de Economia Política; lidar com elas vai requerer mais do que bolsas de práticas alternativas. E problemas ambientais não respeitam fronteiras políticas: a interdependência ecológica é outra lembrança de que a Sustentabilidade só virá através de uma Solidariedade Global.

A qual futuro o Socialismo do Século XXI deve aspirar? Como podemos atingir uma sociedade justa sem dependermos de combustíveis fósseis ou exacerbarmos outras formas de destruição ambiental?

Ao buscar uma resposta, os socialistas deveriam olhar para as tradições socialistas-feministas preocupadas com o trabalho que faz a vida “vivível”. Socialistas-feministas têm há muito chamado atenção para o serviço de reprodução social – as atividades necessárias para reabastecer trabalhadores assalariados tanto individualmente como através de gerações, tais como educação, cuidados à infância, trabalho doméstico e preparação de comida. Lutas sobre a reprodução social tem se focado em demandas e possibilidades da vida fora da fábrica, e elas tem muito para nos ensinar sobre organizar novas formas de viver. Nós também precisamos valorizar o trabalho de reprodução ecológica – reconhecer que a atividade dos Ecossistemas mantêm a Terra viável para a vida humana, e cuidar delas de acordo.

Enquanto alguns Socialistas aspiram a uma superabundância de tudo para todos, ambientalistas tendem a apontar o sobre-consumo como um culpado primário da degradação ambiental. Mas nem todo consumo é equivalente. O Capitalismo depende de insumos baratos na forma de trabalho e recursos naturais para fazer os seus produtos baratos. Como resultado, o sistema consistentemente força para baixo tanto os custos quanto os padrões ambientais e trabalhistas. Produtos baratos não são necessariamente ruins, mas eles não deveriam vir às custas das pessoas trabalhadoras e dos Ecossistemas. O objetivo de uma sociedade socialista não é reprimir o consumo popular, mas criar uma sociedade que enfatize a qualidade de vida sobre a quantidade de coisas.

Nós precisamos encontrar caminhos para viver luxuriosamente mas também levemente [2], esteticamente ao invés de asceticamente. Ao invés de um ciclo sem fim de trabalho e compras, a vida em um futuro socialista de baixo-carbono seria orientada em torno de atividades que tornam a vida bela e completa mas requerem um consumo de recursos menos intensivo: ler livros, ensinar, aprender, fazer música, ver espetáculos, dançar, praticar esportes, ir ao parque, fazer caminhadas, gastar tempo com os outros.

Uma robusta provisão de bens públicos torna possível aproveitar luxúrias comunais enquanto formas de consumo privado de desperdício decrescente. Isso significa moradia pública acessível para todos; sistemas de transporte extensivos e gratuitos tanto dentro como entre cidades para que as pessoas possam andar por aí sem possuir um carro; parques e jardins espaçosos que ofereçam uma pausa da vida diária; suporte para artes e cultura de uma variedade de formas; e espaços abundantes para educação pública e de uso recreativo, como bibliotecas, quadras de basquete e teatros. As cidades são muitas vezes vendidas como uma parte chave de futuros verdes por conta de sua densidade eficiente em energia. Mas cidades verdes requerem mais do que apenas planejamento urbano e altos edifícios. O Socialismo precisa reclamar a cidade como um espaço para de luta e solidariedade na busca de necessidades e desejos – providenciar recursos públicos como uma maneira de emancipar e ajudar a florescer, e insistir em espaços públicos como lugares de beleza e prazer.

Os Capitalistas prometem que a tecnologia vai nos salvar dos problemas ambientais. Soluções tecnológicas não são uma panaceia, mas também também não podemos renunciar à tecnologia e deixá-la apenas para Capitalistas de risco: projetos socialistas utópicos têm há muito tempo imaginado um mundo melhor construído da combinação de habilidades de humanos, natureza e tecnologia. E uma variedade de tecnologias atuais, desde fontes de energia limpa até biotecnologia, prometem ser parte de um futuro mais sustentável. Mas enquanto elas forem controladas de forma privada, produzidas apenas quando lucráveis, e acessíveis apenas para aqueles que podem pagar, seu potencial será explorado apenas como servir aos capitalistas. Uma sociedade socialista daria suporte a pesquisas sobre problemas cujas soluções não são lucráveis e garantir que as tecnologias resultantes fossem usadas para benefício público.

Energia [3], em particular, é de central importância – o uso de energia responde por metade de todas as emissões de carbono e subjaz a vida moderna em cada ponto. Tecnologias de energia renovável, e energia solar em particular, prometem fontes abundantes de energia limpa. Mas enquanto a energia solar é frequentemente vendida como inerentemente de pequena-escala e democrática, companhias privadas estão também montando usinas solares gigantes, se posicionando como o conduíte para um futuro de energia limpa. Enquanto isso, a desregulação e privatização de empresas de energia elétrica na era Neoliberal tem aleijado a habilidade pública de construir a nova infraestrutura interconectada que tornaria possível uma transição maior para uma energia-limpa. Uma sociedade socialista poderia escolher quais fontes de energia usar e quão rápido uma transição deveria ocorrer a partir do conhecimento sobre os benefícios ambientais, de saúde e as necessidades sociais, ao invés de margens de lucro. Nós poderíamos produzir energia limpa em larga escala e construir a infraestrutura necessária para torná-la disponível e acessível a todos.

Ao mesmo tempo, novas tecnologias não se constituem em progresso por si mesmas, apesar das falas auto-congratulatórias das companhias de tecnologia. Novos equipamentos eletrônicos médicos, por exemplo, nem sempre se traduzem em melhores cuidados; iPads não se traduzem em melhor educação – de fato, o oposto é muito frequentemente o caso. Uma sociedade socialista tomaria decisões sobre produção e implementação de novas tecnologias baseada em objetivos escolhidos democraticamente, ao invés de produzir e consumir de maneira desperdiçadora para garantir a lucratividade de várias indústrias. Nós poderíamos garantir que todos tivessem acesso a eletricidade limpa e barata, por exemplo, antes de devotar recursos para fazer brinquedos eletrônicos para os ricos.

Ainda haveriam atividades extrativistas, usinas de energia de larga-escala e fábricas industriais em um socialismo sustentável. Algumas dessas serão desagradáveis de se ver; algumas vão gerar distúrbios em ecossistemas locais. Mas ao invés de despejar os danos da produção moderna sobre as pessoas com menos poder para resistir a eles – tais como trabalhadores, comunidades negras e indígenas – nós faremos decisões conscientes sobre quais danos nós vamos aceitar e onde e como eles vão se materializar, priorizando as perspectivas e necessidades daqueles que tem sofrido a tempo demais por eles. Nós poderíamos tratar paisagens de trabalho como mais do que áreas destruídas e reconhecer que a presença de maquinaria e indústria não precisam significar devastação. Poderíamos pagar os custos de minimizar o dano ambiental ao invés de pegar atalhos para derrotar os competidores.

O Capitalismo começou através do fechamento de recursos públicos e comunais para benefício privado e despossuindo seus antigos usuários. A propriedade coletiva dos meios de produção deveria incluir a propriedade coletiva da terra, dos oceanos e da atmosfera. Isso significaria não apenas compartilhar os recursos que esses espaços geram, mas decidir juntos como eles deveriam ser usados. Uma sociedade socialista poderia usar o conhecimento científico sobre a capacidade ecológica para administrar e regular o uso daqueles espaços ao invés de ceder aos caprichos da indústria: nós escutaríamos os 98% de cientistas que dizem que a mudança climática antropogênica está acontecendo, por exemplo, ao invés das mentiras de lobistas das companhias de combustíveis fósseis.

Sob o Socialismo, nós tomaríamos decisões sobre o uso de recursos democraticamente, em relação a necessidades e valores humanos ao invés de maximizar o lucro. Um socialismo ecologicamente sustentável [4] não é sobre preservar um conceito idealizado de uma natureza printina e intocada. É sobre escolher o mundo que fazemos e em que vivemos, e sobre reconhecer que compartilhamos esse mundo com outras espécies além dos humanos. Um mundo em que se possa viver é um mundo em que todo mundo possa ter uma boa vida, ao invés de apenas se virar para se sustentar.

Esse mundo vai precisar de florestas tanto quanto de fábricas, refúgios selvagens tanto quando de cidades. Nós buscaremos prover as pessoas de bons trabalhos, mas também trabalharemos menos; nós pensaremos sobre quais trabalhos realmente precisam serem feitos ao invés de criar trabalhos apenas para manter pessoas empregadas. Nós escolheremos manter alguns espaços livres de uso humano óbvio, e proteger espaços para a vida selvagem enquanto também tornando possível para as pessoas escapar da vida na cidade para gastar algum tempo em Ecossistemas restaurados. Nós teremos como alvo produzir o bastante para que todo mundo tenha vidas ricas e completas, ao invés de esperar pela remota possibilidade de acumular riquezas privadas. Com nossas necessidades satisfeitas, poderemos realizar nosso potencial humano no contexto de relações sociais sem pressa com outros humanos e outras espécies, com o bastante para todos e tempo para o que quisermos.

20 de abril de 2016

Trotsky e o problema da burocracia soviética

Kevin Murphy resenha o livro Trotsky e o problema da burocracia soviética escrito por Thomas Twiss

Kevin Murphy

Historical Materialism

Tradução / A academia nunca foi muito amável com Leon Trotsky. Como parte do seu trabalho demonizar a revolução inteira, esta escola totalitária desde o seu inicio retratou Lênin e Trotsky como não melhores do que Stalin. O que ainda hoje se conhece por “estudos acadêmicos” sugere que os padrões ainda melhoram muito. Geoffrey Swain afirma que Trotsky, que era certamente a autoridade contemporânea mais importante no contexto da ascensão do fascismo, “não tinha absolutamente nenhuma compreensão da política europeia”.[1] No lançamento de Trotsky: uma biografia, em Londres, Robert Service (2009) declarou: “Há ainda vida no velho Trotsky – mas se o picador de gelo não fez completamente seu trabalho o matando, eu espero ter conseguido”. Da mesma forma, em sua biografia de Stalin, Stephen Kotkin lamentou que “o golpe bolchevique poderia ter sido evitado por um par de balas” atiradas em Lênin e Trotsky. Para diminuir Trotsky, Kotkin afirma que Stalin não somente o enganou, mas supostamente encontrou sua “vocação” como uma “pessoa do povo” no aparato do partido.[2]

O livro de Thomas Twiss (2014), Trotsky and the problem of Soviet bureaucracy [Trotsky e o problema da burocracia soviética], vai contra esse clima anti-Trotsky. Esta é uma obra atenciosa e meticulosa em muitos níveis. Twiss visa “explicar o desenvolvimento do pensamento de Trotsky sobre o problema da burocracia soviética”. Embora se concentre na burocracia soviética, Twiss não a isola da economia política do sistema stalinista. Este talvez seja o trabalho mais sistemático sobre as análises dinâmicas e em constante movimento de Trotsky. Embora claramente simpático a Trotsky, Twiss frequentemente contesta suas posições sem deixar-se levar pela última moda dos estudos russos que o tratam como um inepto.

Grande parte da análise Twiss é baseada em uma integração habilidosa do que hoje se conhece sobre vários aspectos do sistema stalinista. Ele repetidamente critica Trotsky por aceitar a veracidade da propaganda stalinista, como o julgamento - espetáculo dos engenheiros de Shakhty, em 1928, e o julgamento - espetáculo Menchevique, em 1931.[2] Enquanto Trotsky oferecia insights sobre os julgamentos - espetáculos de Moscou em 1936, os comentários de Twiss apontam para a inexistência de evidências de que “os defensores da repressão” tenham antevisto a possibilidade da restauração capitalista melhor do que “suas vítimas”. Ele também desafia a alegação absurda de Trotsky de que os julgamentos foram uma resposta por parte da burocracia devido ao sucesso da Quarta Internacional. De fato, Twiss repetidamente repreende Trotsky por afirmações exageradas acerca da força da oposição que, supostamente, pressionou o regime para a industrialização para a “esquerda” e que ainda declarava ter milhares de apoiadores em 1936.

As mais importantes críticas de Twiss à análise de Trotsky dizem respeito as coletivizações forçadas de Stalin e aos kulaks (supostamente camponeses ricos). Ele observa que Trotsky aceitou a propaganda stalinista de uma “greve kulak” em 1928 e que as autoridades frequentemente “aplicavam o rótulo de ‘kulaks’ ou ‘kulaks ideológicos’ para camponeses médios ou pobres que resistiram à coletivização”. Significativamente, Twiss enfatiza o erro crucial de Trotsky no apoio à coletivização, que este “aceitou em essência a caracterização da liderança da coletivização como um movimento espontâneo do campesinato”. Somente em 1935 Trotsky reconheceria que os “mujiques assustados” foram levados para as fazendas coletivas “pelo chicote” e, somente em 1939, embora isto não seja mencionado por Twiss, Trotsky começaria a aceitar os resultados do catastrófico custo humano da coletivização na Ucrânia.

De fato, todos os argumentos de Trotsky a respeito da coletivização e dos supostos kulaks foram refutados por evidencias esmagadoras das pesquisas em arquivo. Mesmo antes da abertura dos arquivos, Moshe Lewin mostrou que os kulaks eram propaganda e não um termo econômico, frequentemente aplicado aos camponeses médios e até pobres, o que significa que a coletivização implicava represálias violentas “contra setores inteiros da ampla massa do campesinato”. Conforme argumentou o chefe da Federação Socialista Russa, “se não temos os kulaks, devemos adquirir alguns por nomeação” (LEWIN, 1968, p.77 e 491). Um estudo sistemático dos relatórios da OGPU feitos para Stalin mostra que, no início de 1924, a polícia secreta ainda era simpática à difícil condição do campesinato, mas os relatórios cada vez mais hostis, especialmente sob Yagoda, mostram que eles perderam a fé na própria propaganda, que o termo kulak tornou-se indistinguível ao de campesinato (HUDSON, 2012). Reuniões nas aldeias frequentemente nomeavam viúvas, pessoas idosas ou mesmo sorteavam lotes para atender as absurdas cotas da OGPU de“deskulakização”. Resistências massivas às coletivizações, particularmente pelas mulheres, frequentemente envolviam aldeias inteiras. Mesmo as distorcidas estatísticas soviéticas que tentaram usar os “kulaks” como bode expiatório reconheceram que a maioria dos 2,5 milhões de camponeses envolvidos em 13.754 rebeliões somente em 1930, era formada por camponeses médios ou pobres (VIOLA, 1996, p. 100-131). Esta informação é tão avassaladora que os textos-padrão da história da União Soviética hoje em dia se referem à coletivização como a “guerra aos camponeses” de Stalin. O total de mortes desta guerra, incluindo a coletivização, a deskulakização, a fome e os camponeses que morreram em transito ou nos gulags é superior a seis milhões, incluindo 700 mil presos políticos executados entre 1937-1938 (SUNY, 1998, p. 235-250).

Embora Twiss pareça reconhecer tudo isso, ele falha em reconhecer a única conclusão lógica. Esta não é uma questão obscura a respeito de um aspecto menor do stalinismo. Apesar de suas reservas e revisões posteriores, a posição de Trotsky na época da coletivização colocou-o no lado errado da rebelião camponesa mais violenta do século XX.

As seções mais fascinantes e provocativas deste estudo são aquelas que detalham a mudança de definição de Trotsky da burocracia soviética como um regime bonapartista. Em O Estado e a Revolução, Lênin (2007) sumarizou o papel do Estado como um instrumento para a exploração das classes oprimidas, mas ele também citou Engels com relação à “exceção”, quando “ocorrem os períodos em que as classes em conflito se equilibram tão perto que o poder do Estado como mediador ostensivo adquire, momentaneamente, um certo grau Revista Outubro, de independência de ambos”. Tal foi o caso do bonapartismo no Primeiro e no Segundo Império na França, de Bismarck na Alemanha e, acrescenta Lênin, de Kerensky em 1917. Em 1928, Trotski começou a descrever o regime dentro desse referencial teórico, como um “kerenskysmo ao reverso”. Esse modelo claramente emoldurou muito do seu pensamento sobre o stalinismo, conforme Trotsky faria referência ao bonapartismo soviético em mais de uma centena de artigos e entrevistas nos doze anos seguintes.

Ao longo dos anos 1930, Trotsky repetidamente usou o paradigma do Estado bonapartista em termos gerais, embora, conforme Twiss descreve, às vezes de maneira inconsistente, favorecendo o termo “centrismo burocrático” ou fazendo referência ao bonapartismo em um tempo futuro como uma força potencial para a restauração do capitalismo. No início de 1935, ele mudou para uma definição mais precisa tomada da comparação específica com regime do Primeiro Império na França, argumentou que a conquista política do Termidor havia ocorrido uma década antes, e estabeleceu o paralelo com a derrota da oposição de esquerda em 1924. No entanto, assim como Napoleão não “restabeleceu a economia do feudalismo”, argumentou Trotski, “o conteúdo social da ditadura da burocracia é determinado pelas relações produtivas criadas pela revolução proletária”.

Embora faça referência à discussão magistral de Hal Draper sobre os escritos de Marx e Engels a respeito do bonapartismo, Twiss não fornece uma definição precisa para avaliar a análise de Trotsky. Citando longamente Marx e Engels, Draper mostrou que o Estado avança para a autonomização temporária durante períodos de crise por conta de uma classe “guardiã”, fruto de uma “luta de classes não resolvida que equilibra o poder das classes em competição, umas contra as outras”. Compara, assim, o bonapartismo a um molde de gesso que surge porque “não há outra alternativa para impedir a agitação da sociedade, que se divide em conflitos internos”. O bonapartismo fornece as condições, então, para a necessária “modernização da sociedade”, quando nenhuma classe existente é “capaz de realizar esse imperativo sob seu exclusivo poder político”. No entanto, esse arranjo transitório carrega as “sementes da própria dissolução”, uma vez que a modernização significa que a burguesia em fase de maturação começaria a reconhecer seu próprio poder e o Estado bonapartista “começaria a sobreviver do valor deseus serviços” (DRAPER, 1976, p. 439-463).

A tentativa de aplicar a análise de Trotsky a esse modelo coloca muitas questões. Embora ele reconheça a aceitação acrítica de Trotsky de grande parte da autopropaganda do regime sobre os kulaks, Twiss (2014) subestima o papel crucial que essa classe contrarrevolucionária fantasmagórica teve na análise de Trotsky sobre o bonapartismo soviético. A fixação de Trotsky e as centenas de referências a kulaks são inexplicáveis fora do contexto do paradigma bonapartista.

Conforme ele escreveu em abril de 1929:

“O problema do Termidor e do bonapartismo é, no fundo, o problema do kulak. Aqueles que se esquivam desse problema, aqueles que minimizam sua importância e distraem a atenção para as questões do regime partidário, para o burocratismo, para os polêmicos métodos injustos, e outras manifestações superficiais e expressões dos elementos de pressão do kulak sobre a ditadura do proletariado, assemelham-se a um médico que persegue os sintomas, ignorando os distúrbios orgânicos e funcionais”.

Além disso, Twiss cita o estudo de Alec Nove (2011) sobre a economia soviética que mostra que o primeiro Plano Quinquenal resultou na “miséria e fome em massa” de 1933 e que foi a “culminação do mais precipitado declínio em tempos de paz dos padrões reconhecidos de vida da história registrada”. No entanto, Twiss persiste em descrever esta ofensiva estatal como uma virada à “esquerda”, embora ele nunca explique o porquê. Para Trotsky, a suposição era de que a classe trabalhadora se beneficiava da industrialização e, neste sentido, polarizaria contra os kulaks em relação ao qual o stalinismo vacilava. No entanto, nas fábricas o stalinismo havia convertido os sindicatos em órgãos de produtividade, silenciado amplamente seus dissidentes, utilizado rações alimentares como um meio de disciplinar os trabalhadores e prendido milhares de oposicionistas. Ao invés de oferecer estabilidade temporária para evitar que as classes em luta destruíssem a sociedade soviética, o stalinismo era uma força brutal, caótica que golpeava os camponeses e trabalhadores soviéticos numa tentativa de forçá-los a pagar pela rápida industrialização.

A busca de Trotsky por “classes conflitantes” para que estas se ajustassem ao seu modelo bonapartista se provaria ilusória. Em outubro de 1932, quase três anos após Stalin ter iniciado a “deskulakização” e um mês depois do primeiro relatório sobre a fome ucraniana aparecer em seu Biulleten ‘Oppozitsii, Trotsky continuou a alertar o regime sobre o “perigo kulak”. Sua definição refinada de bonapartismo, em 1935, foi orientada, em parte, como Twiss demonstra, pelas concessões do regime aos camponeses pauperizados nas fazendas coletivas. Aqui, a classe conflituosa de Trotsky, por sua própria admissão, sequer existia e a própria natureza da produção agrícola deveria inevitavelmente formar essa força reacionária em algum ponto no futuro. No final da década de 1930, Trotsky abandonou amplamente a retórica do kulak e considerou o imperialismo e, uma parte da burocracia, como as forças restauradoras da
contrarrevolução.

Twiss sustenta que, em 1936, Trotsky acreditava que a burocracia se afastara da “autonomia relativa” indo em direção a uma “extrema autonomia” e, segundo Twiss, “isso sugeria um grau de autonomia de classe”. No entanto, tal transformação para completar a autonomia, teria que ter negado o bonapartismo e representado uma classe, não uma formação “semelhante a uma classe”. Além do mais, durante a década de 1930, Trotsky afirmou dezenas de vezes que o colapso do sistema stalinista era iminente, um prognóstico inextricavelmente ligado ao seu modelo bonapartista – mesmo que seus epígonos mais tarde o ignorassem. Certamente, Trotsky nunca afirmou ter redefinido a teoria marxista do Estado, conforme Twiss sugere. Ou a burocracia era um fenômeno temporário que oscilava entre as classes em disputa ou representava os interesses de uma determinada classe, mesmo que essa classe fosse a própria burocracia. Esta era a posição na qual Trotsky estava se movendo, apesar da afirmação de Twiss de que, em um instantâneo de 1936, teria se congelado seu veredicto final. Twiss falha em responder à pergunta óbvia. Uma vez que classes conflitantes e a natureza temporária do bonapartismo stalinista são descartadas em favor da “extrema autonomia” da burocracia, o que exatamente restaria do modelo bonapartista de Trotsky?

Evidências arquivísticas decisivas têm demolido os mitos stalinistas sobre a  guerra brutal do regime ao campesinato soviético. Os marxistas que, anteriormente, haviam tentado se agarrar as análises remanescentes de Trotsky são agora confrontados com os enigmas de escolher entre repetir o que hoje conhecemos como propaganda estalinista ou, alternativamente, aceitar falhas graves em sua análise bonapartista. Quaisquer que sejam as lacunas deste estudo, Thomas Twiss merece o crédito por ter iniciado uma discussão historicamente mais precisa e não sectária sobre a natureza do sistema stalinista.

Notas:

1. SWAIN, G. Trotsky. Nova York: Routledge, 2006.

2. KOTKIN, S. Stalin: Paradoxes of Power (1878-1928). Boston: Penguin Press, 2014.

3. LEWIN, M. Russian Peasants and Soviet Power: A Study of Collectivization. Nova York: Norton, 1968.

4. HUDSON, H. The Kulakization of the Peasantry: The OGPU and the End of Faith in Peasant Reconciliation, 1924-1927. Jahrbücher für Geschichte Osteuropas, 2012.

5. VIOLA, L. Peasant Rebels Under Stalin. Oxford: Oxford University Press, 1996.

6. SUNY, R. S. The Soviet Experiment. Oxford: Oxford University Press, 1998.

7. DRAPER, H. Karl Marx’s Theory of Revolution: State and Bureaucracy. Londres: Monthly Review Press, 1976, v. 1.

Sobre o autor

Dr. Kevin Murphy teaches Russian history at the University of Massachusetts Boston. His book Revolution and Counterrevolution won the 2005 Isaac and Tamara Deutscher Memorial Prize. His current research is on the Petrograd Soviet of 1917.

18 de abril de 2016

Os ricos não merecem ficar com a maior parte do seu dinheiro?

A riqueza é criada socialmente – a redistribuição apenas permite que mais pessoas aproveitem os frutos do seu trabalho.

Michael A. McCarthy


Ilustração por Phil Wrigglesworth / Jacobin

Tradução / Magnatas da tecnologia, artistas e apresentadores adorados, e atletas brilhantes quase sempre surgem em discussões acaloradas sobre impostos. Você não gosta do seu iPod? E do Harry Potter? Economistas neoliberais defendem que figuras como Steve Jobs, J. K. Rowling, LeBron James deveriam ganhar mais dinheiro que o resto de nós. Afinal de contas, nós – os consumidores – somos quem compra seus produtos. Seu pagamento mais alto criaria o incentivo necessário para o trabalho duro e a inovação dos quais mesmo os mais preguiçosos entre nós se beneficiam.

Apesar de bem intuitiva, essa visão não se sustenta. Defensores de baixos impostos sobre os ricos deliberadamente escolhem exemplos das áreas de tecnologia e entretenimento, sugerindo que as elites são grandes inovadores, realmente talhados de uma madeira diferente dos outros. Mas uma olhada de relance na lista dos maiores CEOs nos Estados Unidos nos conta uma história diferente. O executivo mais bem pago é David Zaslav, da Discovery Communications, que recebeu mais de 150 milhões de dólares em 2014. Sua grande contribuição para a obra humana? Ajudar a veicular “Honey Boo Boo”.

A maioria das pessoas entende isso e acredita que os ricos deveriam pagar mais impostos. De acordo com uma pesquisa da Gallup de 2015, 62% acreditam que as pessoas de renda mais alta são “muito pouco” taxados, enquanto apenas 25% acham que elas pagam a sua “justa parte”. 69% acreditam que as corporações não são taxadas o bastante, enquanto apenas 16% estavam satisfeitos com as taxas atuais. Mas a justificação socialista para os impostos se baseia em uma visão – não muito capturada em pesquisas de opinião – sobre como a riqueza capitalista é realmente criada. Para explorar essa visão, precisamos primeiro entender o que são os impostos e o que não-socialistas pensam sobre eles.

A política fiscal faz duas coisas em uma sociedade capitalista. Primeiro, ela determina qual parcela do total do “bolo econômico” será gerenciada pelo público, na forma de receita governamental, e quanto sobrará para o uso de atores privados como indivíduos e corporações. Segundo, ela estipula como aquela parcela pública é dividida entre as necessidades e desejos concorrentes de indivíduos, organizações e corporações. A primeira é sobre controle de recursos, enquanto a segunda é uma questão de alocação.

Mesmo quando um governo toma uma alta receita, ele não a aplica necessariamente para fins progressistas. Apenas considere os enormes benefícios que fluem para as corporações através de subsídios ou Pesquisa e Desenvolvimento financiada pelo Estado [1], e fica fácil de ver como os governos podem redistribuir para cima, para baixo ou horizontalmente. Em uma economia capitalista, onde recursos produtivos permanecem como propriedade privada, Socialistas demandam que uma porção significante do produto social seja controlada publicamente e redistribuída para baixo democraticamente.

Entretanto, nos Estados Unidos hoje, a visão libertariana [2] de que “imposto é roubo” se infiltrou tão fundo nas concepções cotidianas de propriedade que mesmo aqueles que defendem impostos progressivos muitas vezes aceitam a premissa de que existem ganhos pré-impostos que as pessoas recebem e que deveriam possuir por completo. Mesmo o credo progressista [3] de que todos precisam “fazer sua parte justa” está baseada na ideia implícita de que trabalhadores e o Capital pagam impostos, semelhantemente, por causa de uma obrigação cívica de abrir mão de uma parte do que é deles para o melhoramento da Sociedade.

Pelos mesmos motivos, libertarianos defendem que se o ganho pré-impostos é o produto direto do próprio esforço de uma pessoa ou corporação, ele deveria ser deles para que o usem como bem entenderem. Nessa visão, mesmo se o governo decidiu democraticamente cobrar dos ricos uma taxa mais alta, a cobrança de impostos permanece fundamentalmente injusta. Na formulação extrema do filósofo político libertariano Robert Nozick, “taxação de ganhos do trabalho está à par de trabalho forçado.”

Esse ponto de vista tem sido corretamente criticado por progressistas. Mas socialistas não deveriam cair de volta no critério comum progressista para a taxação: de que a capacidade de pagar de uma pessoa ou corporação deveria determinar a quantidade que eles deveriam pagar. A justificação familiar circula mesmo entre esquerdistas, que ouvem nela um eco do ditado “de cada um segundo suas habilidades, a cada um segundo suas necessidades.” [4]

Essa perspectiva sugere uma de duas coisas, ambas incorretas. Primeiro, que impostos são um tipo de “mal necessário” para aqueles que estão sendo taxados. Mesmo que os ganhos pré-impostos [5] de uma pessoa ou corporação seja o resultado de seu próprio trabalho, é mais prático para a Sociedade taxar parte desses ganhos para propósitos públicos do que deixá-los sob controle privado. Ou, alternativamente, que taxar mais os ricos é só uma questão de ser justo. Ambas visões nos deixam presos de volta no matagal libertariano [6] – uma política fiscal dessas não invade os direitos do indivíduo? Então a justeza deveria atravessar os Direitos Individuais? E em última instância o argumento socialista para alta taxação progressiva não viola os direitos do indivíduo também? Por que os Socialistas odeiam tanto a Liberdade?

A visão socialista de redistribuição dentro de uma sociedade capitalista precisa rejeitar uma premissa importante presente em quase todos os debates sobre impostos: que a renda pré-impostos é algo recebido unicamente pelo esforço individual e possuído privadamente antes do Estado intervir e tomar parte dele. Uma vez que rompemos com essa fantasia libertariana, fica fácil de perceber que as rendas individuais e corporativas são possibilitadas apenas através de ação estatal financiada pelos impostos.

A Economia capitalista não é auto-regulável. A primeira pré-condição para que as empresas possam lucrar são Direitos de Propriedade garantidos pelo Estado, que dão a algumas pessoas a posse e o controle sobre recursos produtivos, enquanto exclui outras. A segunda, que os governos precisam gerenciar os mercados de trabalho para ajudar garantir que as necessidades das empresas sobre habilidades sejam supridas. Os Estados fazem isso estabelecendo políticas de imigração e educacionais. Todos os Estados Capitalistas também tentam mitigar os riscos do mercado de trabalho, seja o risco de escassez de trabalhadores para as empresas ou desemprego para os trabalhadores. Terceiro, a maioria dos capitalistas querem que os Estados faça cumprir leis anti-monopólio, contratuais, criminais, de propriedade e de Direito Penal, pois isso torna as interações no mercado mais previsíveis e confiáveis. E finalmente, a Economia Capitalista precisa de uma infraestrutura funcionando. Mesmo a maioria dos libertarianos defende que o controle estatal sobre o suprimento de dinheiro e as taxas de juros é necessário para estimular ou desacelerar o crescimento quando a Economia precisa.

Tudo isso é feito com impostos. Resumindo, a própria noção de renda ou lucros pré-impostos é um truque de contabilidade. A renda de uma pessoa ou os lucros de uma corporação são em parte o resultado do governo coletando impostos e criando ativamente as condições sob as quais eles foram capazes de ganhar dinheiro, em primeiro lugar. Nesta estrutura, “taxar os ricos” não é meramente um grito de rancor ou uma demanda pelo que é justo.

O argumento socialista por taxação e redistribuição progressiva é construído à partir de três fatores básicos sobre como o Capitalismo funciona. Primeiro, como acabamos de explorar, renda pessoal e lucros corporativos não são simplesmente o resultado de trabalho individual e competição entre negócios – ao invés disso, eles são parte de um produto social mais abrangente. A renda total gerada em uma sociedade capitalista é o resultado de um esforço social coletivo, tornado possível por uma arquitetura social e legal específica, e canalizado através tanto de instuições de financiamento público e instituições de controle e financiamento privados.

Segundo, a desigualdade de classes que resulta da geração desse produto social é relativa. Capitalistas são capazes de acumular enormes quantias de riqueza apenas por que os trabalhadores não podem. Tudo sendo igual, as empresas podem subir seus lucros na proporção inversa aos custos de trabalho que eles pagam. A condição para essa relação é, novamente, política – e mantida através da receita dos impostos. As empresas confiam nos Estados para fazer cumprir os direitos de propriedade e os contratos que mantém a posse dos recursos produtivos da sociedade – seus “Meios de Produção” – nas mãos de bem poucos. Como um resultado, no Capitalismo, a maioria das pessoas trabalha para outras; elas não contratam outras para trabalhar para elas. E capitalistas empregam trabalhadores apenas quando acreditam que os esforços desses trabalhadores farão a empresa ganhar mais dinheiro do que eles receberão como salário – o contrário seria suicídio de mercado.

É claro, trabalho duro, astúcia e sorte podem dar a alguns trabalhadores a possibilidade de se tornar capitalistas. Mas a estrutura básica do Capitalismo, em que um pequeno número de pessoas possui a maior parte dos ativos produtivos, garante que a vasta maioria das pessoas (na melhor das hipóteses) gastará sua vida recebendo salários, mas nunca lucros. A taxação fornece um remédio parcial para a desigualdade estrutural e essencial da sociedade capitalista.

Terceiro, a redistribuição através de taxação [7] é uma forma de estender a liberdade individual – não de reduzí-la, como afirmam os libertarianos. A Liberdade, de acordo com o teórico Isaiah Berlin, tem uma composição dupla. Por um lado, existe a Liberdade Negativa, a ausência de coerção ou o “livre de” que é a marca da maioria das concepções comuns de Liberdade nos Estados Unidos hoje. No que diz respeito à coerção, impostos financiam uma variedade de provisões públicas que oferecem aos cidadãos alguma medida de liberdade da tirania privada das empresas. Elas formam a base inteira do aparato estatal que, em uma sociedade capitalista, é a única força cujo poder excede o da classe capitalista como um todo.

Sem leis proibindo a escravidão, escritas por legislaturas e aplicadas em cortes sustentadas pelos cofres públicos, pessoas seriam compelidas pela ameaça de violência ou da fome a trabalhar em troca de dinheiro nenhum. Sem regulações, como aquelas que demandam pelo menos uma segurança mínima no ambiente de trabalho ou aquelas que obrigam a administração a se envolver em negociações coletivas, os trabalhadores perderiam o pouco de voz que têm sobre como o seu trabalho está organizado.

No contexto da política fiscal, porém, Liberdade Positiva importa também. Liberdade Positiva é a “habilidade de” – a capacidade de fazer coisas, e a possibilidade de escolher objetivos e fazer o esforço para realizá-los. Tal liberdade requer recursos. Em sociedades capitalistas com baixos níveis de redistribuição, a Liberdade Positiva é um jogo de soma-zero [8] em que alguns poucos desfrutam muitíssimas dessas habilidades às custas de muitos outros. Uma política fiscal que divide o produto social de uma maneira que permite que algumas pessoas vivam em opulência enquanto outras mal conseguem pagar as contas ou sobreviver, não pode se gabar por promover Liberdade. O sistema público de educação, por exemplo, que oferece aos cidadãos a oportunidade de desenvolver conhecimento e habilidades na busca de suas ambições coletivas e individuais, é um alicerce de Liberdade Positiva que só pode ser sustentado por taxação.

Em uma sociedade verdadeiramente socialista, a combinação de igualdades política e econômica ofereceria a todos um grau bem maior tanto de Liberdade Negativa quanto de Liberdade Positiva do que a que eles desfrutam sob o Capitalismo. Até que tornemos aquele mundo real, a redistribuição progressiva através de impostos é tanto uma maneira de compensar desigualdades estruturais e a forma primária em que podemos expandir e estender a Liberdade para tantas pessoas quanto for possível.

Mas nós estamos seguindo na direção errada. Durante as últimas décadas, os ganhos financeiros de uma crescente produtividade do trabalho tem fluído primariamente para o topo, enquanto as taxas de impostos sobre os altos escalões têm sido baixadas drasticamente e agora se aproximam de níveis anteriores ao New Deal. Mesmo um aumento modesto na carga total de impostos sobre o 1% mais rico para uma taxa de 45%, muito menor do que seus níveis no pós-guerra, geraria 275 bilhões de dólares adicionais de receita. Isso é muito mais do que os 47 bilhões necessários para fazer todas as Faculdades e Universidades Públicas gratuítas. Tais aumentos ainda seguem um longo caminho na direção da geração da receita necessária para financiar um sistema de saúde universal [9], aumentar os benefícios de segurança social, e reconstruir nossa infraestrutura em desintegração.

A maioria concordaria que todos merecemos viver em uma sociedade onde recebemos o que merecemos, onde somos livres, e temos a possibilidade de sermos criativos e alcançarmos nosso potencial. Por menos glamuroso que isso possa parecer, a taxação redistributiva é um passo nesta direção. Os ricos não ‘mereceram’ a sua riqueza – eles estão apenas aproveitando dela por nós.

Colaborador

Michael A. McCarthy is an assistant professor of sociology at Marquette University.

8 de abril de 2016

A crise no Brasil

Perry Anderson


Anne Rothenstein

Tradução / Os países dos BRICS estão em apuros. Por um tempo eles foram os dínamos do crescimento global enquanto o Ocidente estava envolto na pior crise financeira e recessão econômica desde a Grande Depressão, mas agora eles se tornaram a principal fonte de preocupação nos quartéis-generais do FMI e do Banco Mundial. A China, acima de todos eles, por causa do seu peso na economia global: produção desacelerada e um Himalaia de dívidas. A Rússia: sitiada, com a queda dos preços do petróleo e as sanções tirando seu quinhão. A Índia: segurando melhor as pontas, mas com preocupantes revisões estatísticas. A África do Sul: em queda livre. As tensões políticas emergem em cada um deles: Xi e Putin respondem às tensões com força bruta, enquanto Modi vai se afundando nas pesquisas e Zuma é jogado na lama junto com seu próprio partido. Todavia, em nenhum outro lugar as crises política e econômica se fundiram de forma tão explosiva quanto no Brasil, cujas ruas no último ano viram mais manifestantes do que o resto do mundo combinado.

Escolhida por Lula para a sucessão, Dilma Rousseff, a ex-guerrilheira que se tornou chefe de Estado, venceu a disputa presidencial em 2010 com uma maioria esmagadora de votos. Quatro anos depois ela foi reeleita, mas dessa vez com uma margem muito menor de votos, uma vantagem de 3% sobre o seu oponente, Aécio Neves, governador de Minas Gerais, num pleito marcado por uma polarização regional nunca antes vista, com um Sul-Sudeste industrializado voltando-se contra ela e com um Nordeste lhe dando uma vantagem ainda maior do que em 2010, com 72%. Mas, ainda assim, foi uma vitória definitiva, comparável à de Mitterrand sobre Giscard, e maior, para não dizer também mais limpa, do que a de Kennedy sobre Nixon. Em janeiro de 2015, Dilma – e nesse ponto vamos abandonar os sobrenomes, como os brasileiros costumam fazer – começou sua segunda presidência.

Em três meses, grandes manifestações lotaram as ruas das principais cidades do país, com cerca de pelo menos dois milhões de pessoas que exigiam sua saída. No Congresso, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de Neves e seus aliados, encorajados pelo fato de que as pesquisas mostravam a queda vertiginosa na popularidade de Dilma, se movimentaram para conseguir seu impeachment. No dia Primeiro de Maio, ela não conseguiu nem mesmo dar seu discurso tradicional transmitido pela televisão a todo o país. Anteriormente, quando seu discurso no dia Internacional da Mulher foi transmitido, as pessoas começaram a bater suas panelas e fazer buzinaços, numa forma de protesto que ficou conhecida como panelaço. Da noite para o dia, o Partido dos Trabalhadores (PT), que desfrutara do mais longo e maior índice de aprovação do Brasil, tornou-se o partido mais impopular do país. Confidencialmente, Lula teria lamentado: "Nós vencemos a eleição. No dia seguinte, nós a perdemos". Muitos militantes se questionaram se o partido iria sobreviver a tudo isso.

Como a situação chegou a esse ponto? No último ano do governo Lula, quando a economia global estava ainda se recuperando da primeira onda do crash financeiro de 2008, a economia brasileira cresceu 7, 5%. Ao assumir o governo, Dilma instituiu uma política de controle contra o superaquecimento da economia, o que deixou satisfeita a imprensa financista, naquilo que parecia ser uma política semelhante a que Lula teve durante o início de seu primeiro mandato. Mas tão logo o crescimento experimentou uma queda vertiginosa e as finanças globais pareceram sombrias novamente, o governo mudou seu prumo, criando um pacote de medidas que visavam priorizar os investimentos em desenvolvimentos subsidiados. As taxas de juros foram reduzidas, as dívidas trabalhistas foram abatidas, os custos da energia elétrica foram reduzidos, a moeda se desvalorizou e foi imposto um limitado controle sobre o movimento do capital.¹ No embalo de todo esse estímulo, durante a primeira metade de sua presidência, Dilma desfrutou de um índice de aprovação de 75%.

Mas, ao invés de decolar, a economia desacelerou de um crescimento medíocre de 2,72% em 2011 para mero 1% em 2012. Além disso, com uma inflação que já ultrapassava os 6%, em abril de 2013 o Banco Central aumentou os juros de forma abrupta, minando assim a base da “nova matriz econômica” de Guido Mantega, o ministro da Fazenda. Dois meses depois, o país foi acometido por uma onda de protestos de massas cuja origem estava nas passagens de ônibus em São Paulo e no Rio, mas que rapidamente aumentaram sua dimensão tornando-se expressões generalizadas de descontentamento com os serviços públicos e, estimulados pela mídia, também de hostilidade contra um Estado incompetente. Rapidamente a aprovação do governo caiu para a metade. Em resposta, ele bateu em retirada, dando início a reduções caucionárias nos gastos públicos e permitindo que os juros aumentassem novamente. O crescimento caiu ainda mais – ele seria praticamente zero em 2014 – mas o desemprego e os salários permaneceram estáveis. No fim de seu primeiro mandato, Dilma liderou uma desafiadora campanha para reeleição ao assegurar a seus eleitores que ela continuaria priorizando as melhorias nas condições de vida dos trabalhadores, assim como atacando o seu oponente do PSDB por planejar reverter os acúmulos sociais feitos pelo PT, cortando benefícios e atingindo assim os mais pobres. Apesar do contínuo ataque ideológico sofrido contra ela pela imprensa, ela conseguiu chegar à vitória.

Antes mesmo de seu segundo mandato começar formalmente, Dilma mudou o seu rumo. Ela rapidamente passou a defender que um pouco de austeridade se fazia necessária. O arquiteto da nova matriz econômica foi então dispensado do ministério da Fazenda e quem assumiu foi alguém orientado em Chicago, o diretor da gestão de ativos do segundo maior banco privado do Brasil, assumindo um mandato que deveria reduzir a inflação e restaurar a confiança. Os imperativos tornaram-se o corte nos gastos sociais, reduzir o crédito dos bancos públicos, leiloar propriedades do Estado e aumentar taxas para trazer o orçamento de volta a uma situação de superávit primário. Rapidamente o Banco Central aumentou sua taxa de juros para 14,25%. E já que a economia se encontrava estagnada, o efeito desse pacote pró-cíclico foi de mergulhar o país numa recessão generalizada – queda nos investimentos, salários diminuindo e o desemprego dobrando. Enquanto o PIB contraía, as receitas fiscais diminuíam, piorando ainda mais o quadro de déficit e dívida pública. Nenhum índice de aprovação do governo poderia ter aguentado a rapidez de tal deterioração econômica. Mas a crise da popularidade de Dilma não foi resultado apenas de um resultado previsível sobre o impacto da recessão nas condições de vida do povo. Ela também foi, ainda que seja mais dolorido admiti-lo, o preço a ser pago por ela ter abdicado das promessas pelas quais ela foi eleita. De forma generalizada, a reação de seus eleitores foi de que sua vitória poderia ser qualificada como "estelionato", ou seja: ela enganou seus apoiadores ao cumprir o programa dos seus adversários de campanha. E isso não gerou apenas desilusão, mas também raiva.

Ainda que ocultas, as raízes dessa debacle vingaram justamente no solo do próprio modelo petista de crescimento. Inicialmente poderia se dizer que seu sucesso dependia de dois tipos de nutrientes: um superciclo de aumento nos preços das commodities e um boom do consumo doméstico. Entre 2005 a 2011, os ganhos comerciais do Brasil aumentaram para mais de um terço, pois a demanda por matéria-prima da China e de outras partes do mundo aumentou o valor das suas principais exportações, assim como o volume de retorno fiscal para gastos sociais. No final do segundo mandato de Lula, a fatia correspondente da exportação de bens primários dentre as exportações brasileiras subiu de 28 para 41%, no que o espaço dos bens manufaturados caiu de 55 para 44%; no final do primeiro mandato de Dilma, as matérias-primas eram responsáveis por mais da metade do valor das exportações. Mas de 2011 em diante, os preços das principais mercadorias comercializadas pelo país entraram em colapso: o minério de ferro caiu de 180 Dólares para 55 Dólares a tonelada, a soja caiu de 18 Dólares a saca para 8 Dólares, o petróleo cru despencou de 140 Dólares para 50 Dólares o barril. E reagindo ao fim da bonança do comércio exterior, o consumo doméstico também entrou em declínio. Durante seu governo, a principal estratégia do PT foi expandir a demanda interna ao aumentar o poder de compra das classes populares. E isso foi possível não apenas com o aumento do salário mínimo e com transferências de renda para os pobres – o ‘Bolsa Família’ – mas também por uma massiva injeção de crédito aos consumidores. Durante a década de 2005 a 2015, o total de débitos controlados pelo setor privado aumentou de 43% para 93% do PIB, com empréstimos aos consumidores atingindo o dobro do nível dos países vizinhos. Quando Dilma foi reeleita, em 2014, os pagamentos de juros no crédito mobiliário estavam absorvendo mais de 1/5 da renda média disponível dos brasileiros. Junto com a exaustão do boom das commodities, a época de gastança também não era mais viável. Os dois principais motores do crescimento tinham estagnado.

Em 2011, o alvo da nova matriz econômica de Mantega foi estimular a economia a partir de um aumento nos investimentos. Mas os meios para fazê-lo tinham diminuído. Desde 2006, os bancos estatais passaram a aumentar gradualmente sua quantidade de empréstimos, indo de um terço para metade de todo crédito – o portfólio do banco de desenvolvimento do governo, o BNDES, chegou a aumentar em sete vezes seu valor desde 2007. Ao ofertar taxas preferenciais de juros para as grandes companhias num valor muito mais alto do que os outros subsídios para as famílias pobres, a ‘Bolsa Empresarial’ passou a custar ao tesouro nacional o dobro do que custava a ‘Bolsa Família’. Favorável ao agronegócio e às construtoras, essa expansão direta dos financiamentos públicos foi um anátema pelo qual a classe média urbana passou a aderir a um movimento cada vez mais violento anti-PT, com a mídia nacional – amplificada pela imprensa financista de Nova York e Londres – fazendo vitupérios sobre os perigos do estatismo. Assim, ao mudar de direção, Mantega esperava impulsionar os investimentos do setor privado com concessões tributárias e juros mais baixos, mas isso impactou na redução dos investimentos nas estruturas públicas do país, assim como pela desvalorização do Real que ajudou nas exportações manufatureiras. Mas todos esses agrados à indústria brasileira foram em vão. Estruturalmente, as finanças são uma força muito maior no país. A capitalização combinada dos dois maiores bancos privados do Brasil, Itaú e Bradesco, é hoje duas vezes maior do que da Petrobrás e da Vale, as duas principais empresas extrativas do país, e com finanças muito mais saudáveis. As fortunas desses e de outros bancos foram concebidas de acordo com o maior sistema de juros de longo prazo do mundo – um horror para os investidores, mas verdadeiro maná para os rentistas – e com um abissal spread bancário, com mutuários pagando de cinco a vinte vezes mais pelos seus empréstimos. Além disso, somando-se a esse quadro, há também o sexto maior bloco de fundos de pensão do mundo, sem falar no maior banco de investimento da América Latina, uma verdadeira constelação de fundos de coberta e de private equity.

Na esperança de que isso trouxesse o setor industrial para o seu lado, o governo confrontou os bancos ao força-los a aceitarem a recuarem o patamar sem precedentes de 2% dos juros no final de 2012. Em São Paulo, a Federação das Indústrias (FIESP) brevemente expressou satisfação perante a medida, para logo depois pendurar bandeiras em apoio aos manifestantes anti-estatistas de Junho de 2013. Os industrialistas ficaram felizes em colher os frutos de altos rendimentos durante o período de crescimento elevado do governo Lula, no qual virtualmente cada grupo social viu sua posição melhorar. Mas quando isso terminou durante o governo Dilma e as greves recomeçaram, eles não tiveram qualquer compaixão por quem lhes favorecera anteriormente. E não apenas as grandes empresas, assim como suas parceiras do Norte global, se encontravam cada vez mais em holdings financeiros que eram afetados negativamente por conta das políticas rentistas – e por essa razão, não poderiam dar as costas totalmente aos bancos e fundos de investimento –, mas o próprio grupo social a que pertenciam a maior parte dos empresários era formado por uma alta classe média que tornara-se mais numerosa, vocal e politizada do que os antigos grupos de empresários, manifestando assim maior capacidade de comunicação e coesão ideológica perante a sociedade em geral. A furiosa hostilidade desse estrato para com o PT foi inevitavelmente seguida também pelos industrialistas. Tanto os banqueiros do andar de cima e os profissionais do andar de baixo, ambos estavam comprometidos a derrubar um regime que agora viam como ameaça aos seus interesses comuns, o que significou que os empresários tinham cada vez menos autonomia.

Contra essa frente, que tipo de apoio o PT poderia esperar? Os sindicatos, ainda que mais ativos no governo Dilma, eram apenas uma sombra do seu antigo passado. Os pobres seguiram sendo beneficiários passivos do governo petista, que nunca se dispôs a educa-los ou organizá-los, quanto muito mobilizá-los em torno de uma força coletiva. Movimentos sociais – dos sem-terra e dos sem-teto – foram mantidos distantes do governo. Intelectuais acabaram sendo marginalizados. Mas não houve apenas uma ausência de potencialização política das energias vindas dos subalternos. Também não existiu uma verdadeira política de redistribuição de riqueza ou de renda: a infame estrutura tributária regressiva legada de Fernando Henrique Cardoso para Lula, que penalizava os pobres e deixava os ricos intocados, foi mantida. Houve, de fato, alguma distribuição que acabou melhorando consideravelmente as condições de vida dos mais miseráveis, mas isso foi feito de forma ainda individualizada. Com o ‘Bolsa Família’ tomando forma de recompensa para mães de filhos em idade escolar, isso era um resultado esperado. Aumentos no salário mínimo significaram também um aumento no número de trabalhadores com ‘carteira assinada’, o que lhes garantiria acesso aos direitos formais do emprego; mas não houve aumento, e pode ter havido até mesmo uma queda, na sindicalização. Acima de tudo, com a chegada do ‘crédito consignado’ – os empréstimos bancários com juros altos deduzidos diretamente dos salários – o consumo privado cresceu sem amarras e às custas dos gastos com serviços públicos, cujas melhorias teriam sido uma forma mais cara de estimular a economia. A compra de eletrônicos, bens de consumo e veículos foram estimuladas (a compra de automóveis recebeu incentivos fiscais), enquanto o suprimento de água, pavimentação, ônibus eficientes, saneamento básico aceitável, escolas decentes e hospitais públicos foram negligenciados. Os bens coletivos não tinham prioridade nem ideológica e nem prática. Logo, junto com a tão necessária melhoria nas condições de vida doméstica, o consumismo em sua forma mais deteriorada se espalhou nas camadas populares através de uma hierarquia social em que a classe média vislumbrava, ainda que por padrões internacionais, com revistas e shopping centers.

O quão prejudicial isso foi para o PT pode ser observado através da questão da moradia, onde necessidades individuais e coletivas mais visivelmente se intersectam. Nela, a bolha de consumo se transformou cada vez mais numa dramática bolha imobiliária, na qual vastas fortunas foram feitas por empreiteiros e empresas de construção enquanto o preço dos imóveis disparou para a maioria das pessoas que viviam nas grandes cidades e cerca de um décimo da população não tinham acesso a moradias adequadas. Entre 2005 a 2014, o crédito para a especulação imobiliária e construção civil aumentou vinte vezes; em São Paulo e no Rio de Janeiro os preços por metro quadrado quadruplicaram. Somente no ano de 2010, os aluguéis em São Paulo aumentaram 146%. E nesse mesmo período, havia cerca de 6 milhões de apartamentos desocupados, com sete milhões de famílias sem teto. E ao invés de aumentar a oferta de casas populares, o governo financiou construtoras privadas para construírem condomínios mediante um belíssimo lucro em áreas periféricas, cobrando aluguéis mais caros do que aqueles que os mais pobres poderiam pagar, ao mesmo tempo que ele apoiava as autoridades locais e os despejos feitos em ocupações. Diante de tudo isso, os movimentos sociais ganharam fôlego com os sem-teto e agora são uma das principais forças do Brasil: esses movimentos não estão dentro, mas sim contra o PT.

Sem contar com uma força-tarefa popular capaz de lidar com a pressão das elites do país, Dilma sem dúvida torceu para que, após sua apertada reeleição, ao bater em retirada economicamente, com uma política inicial de apertar os cintos semelhante a que Lula fez nos seus primeiros anos no poder, ela poderia então reproduzir o mesmo tipo de virada de mesa. Mas as condições externas impediram qualquer comparação possível. A dança das commodities já se foi e uma recuperação, seja lá quando vier, parece não ter sustentação. Pode se argumentar, observando esse contexto, que a extensão das atuais dificuldades não deve ser exagerada. O país está passando por uma severa recessão, com o PIB caindo 3,7% no último ano e provavelmente a mesma coisa acontecerá esse ano. Por outro lado, o desemprego ainda está longe de atingir os níveis da França, o que dirá da Espanha. A inflação é ainda mais baixa do que os anos de FHC e o país possui mais reservas. O déficit público é metade do déficit da Itália, ainda que com os juros brasileiros o custo de reduzi-la seja bem maior. O déficit fiscal ainda está abaixo da média dos Estados Unidos. Tudo isso tende a piorar. Todavia, a atual profundidade do abismo econômico não encontra respaldo no volume do clamor ideológico que existe sobre ele: a oposição militante e a fixação neoliberal possuem interesses em aumentar o grau de martírio do país. Mas isso, por sua vez, não reduz a escala da crise a qual o PT está agora envolto, que não é apenas econômica, mas também política.

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Pode-se dizer que as origens desse dilema residem na estrutura da Constituição Brasileira. Em praticamente quase todos os países da América Latina, presidências inspiradas pelo modelo estadunidense coexistem com parlamentos aos moldes europeus: ou seja, Executivos superpoderosos de um lado e, do outro, Legislativos eleitos por um sistema proporcional de representação – e não no modelo distorcido de past-the-post, tal qual nos sistemas anglo-saxões. O resultado típico desse modelo, ainda que não seja invariável, é uma presidência com enormes poderes administrativos cuja fraqueza reside no fato de que nenhum partido consegue ter uma maioria parlamentar com poder significativo. Todavia, em nenhum lugar o Executivo se separou tanto do Legislativo como no Brasil. Isso é porque, acima de tudo, o país possui o mais frágil sistema partidário do continente. No Brasil, a representação proporcional toma forma de um sistema de lista aberta na qual os eleitores podem escolher qualquer candidato dentro de um enorme número de indivíduos que nominalmente estão dentro da mesma disputa, em legislaturas que geralmente recebem cerca de pouco mais que dois milhões de votos. As consequências dessa configuração são duais. Na maioria dos casos, eleitores escolhem um político que eles conhecem – ou acham que conhecem – ao invés de escolherem um partido do qual eles pouco ou nada sabem, enquanto os políticos, por sua vez, precisam obter uma grande quantia de dinheiro para financiar suas campanhas e garantir que os eleitores se identifiquem com eles. A grande maioria dos partidos, cujos números aumentam a cada eleição (atualmente há 28 partidos com representação no Congresso), não possuem qualquer coerência política, o que dirá disciplina política. O seu propósito é simplesmente assegurar favores dos chefes do Executivo diretamente para os seus bolsos e, claro, dar algum retorno para assegurar a reeleição de seus correligionários, oferecendo aos governos votos favoráveis nas diferentes câmaras.

Quando o Brasil emergiu após duas décadas de Ditadura Militar em meados dos anos 1980, esse sistema foi criado por uma classe política que se moldara sobre ela. Objetivamente, a sua função era (e ainda é) neutralizar a possibilidade de que a democracia levasse à formação de algum tipo de vontade popular que ameaçasse a grandeza da desigualdade brasileira, ao anestesiar as preferências eleitorais num miasma de disputas subpolíticas por vantagens venais. Cabe ressaltar que o que acentua os problemas desse sistema é também sua massiva desproporção geográfica. Todos os sistemas federais exigem algum tipo de equalização dos pesos de cada região, geralmente envolvendo uma sobrerepresentação das áreas menores e rurais numa câmara mais alta, às custas das áreas maiores e mais urbanizadas, tal como o Senado dos EUA. Contudo, poucos países chegam perto do grau de distorção criado pelos engenheiros do sistema brasileiro, no qual a proporção dessa sobrerepresentação entre os pequenos e maiores Estados atinge uma proporção de 88 para 1 (nos EUA ela fica em torno de 65 para 1). E o problema não é apenas o fato de que as três mais pobres e atrasadas regiões controlam 3/4 dos assentos do Senado e contam com cerca de 2/5 da população (assombradas, na maior parte, pelos mais tradicionais "caciques" que dominam as clientelas mais submissas). Mas de forma única, eles também comandam a Câmara dos Deputados. Ou seja, ao invés de corrigir esse problema conservador do sistema, a democratização o aumentou, criando inclusive novos estados com população pequena, desequilibrando ainda mais o cenário.

Nesse cenário, ao contrário de outros países da América Latina que emergiram do domínio dos militares nos anos 1980, nenhum partido político do período anterior à ditadura sobreviveu. Na verdade, o palco foi inicialmente ocupado por duas forças derivadas das invenções dos generais: o partido da oposição permitida, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e seu partido de situação, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – ridicularizados por serem vistos como os partidos do "sim" e do "sim senhor". O primeiro posteriormente renomeou-se como Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e boa parte do segundo se transformou em Partido da Frente Liberal (PFL). Com a saída dos militares, o primeiro governo estável de fato só aconteceu com a presidência de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, nascida de um pacto de uma dissidência do PMDB que ele ajudara a criar, nominalmente social-democrática, mas na realidade social-liberal (o PSDB), cujo eleitorado se concentrava nas regiões Sul e Sudeste. Ao lado do PSDB estava o nominalmente liberal, mas na realidade conservador PFL, cuja base se encontrava nas regiões Norte e Nordeste. Esse foi um pacto entre os oponentes moderados e os tradicionais ornamentos da Ditadura e conseguiu construir uma grande maioria no Congresso, agindo a serviço daquele que se tornaria o principal programa neoliberal do país, afinado com o Consenso de Washington. Enquanto candidato presidencial, Cardoso – tomado pelo grande capital como uma garantia contra radicalizações – recebeu enormes quantias de dinheiro: os ricos sabem reconhecer seus amigos. O custo relativo de suas campanhas, num país mais pobre, foi maior até mesmo que os gastos das campanhas de Clinton no mesmo período. Concorrendo contra ele estava Lula, diante de uma montanha de dinheiro que financiava a campanha de Cardoso. Mas assim que assumiu o cargo, FHC geralmente não precisou de dinheiro para comprar o apoio do Congresso – embora exista pelo menos uma notável exceção nessa afirmativa – pois sua coalizão com os clãs das oligarquias do Nordeste, ainda que sujeitas às suas disputas regionais, não era meramente oportunista, mas sim baseada numa parceria natural para objetivos comuns. O acordo foi estável e, nos anos recentes, foi muito elogiado por admiradores de Cardoso no Brasil e nos países anglófonos, considerado um modelo de "presidencialismo de coalizão", tomado inclusive como um exemplo esperançoso para o resto do mundo, em lugares onde os modelos de governo europeu ou americano raramente conseguem vingar.

Ainda assim, os cofres das campanhas de FHC estavam "limpos" no sentido dos financiamentos americanos, onde os Super PACs compram votos, e sua coalizão era ideologicamente sólida, já que uma vez eleito, nem seus objetivos e tampouco os de seus aliados poderiam ser atingidos por outros meios. Tanto seu vice-presidente, Marco Maciel, assim como seu mais poderoso aliado no Congresso, Antônio Carlos Magalhães, eram verdadeiros eixos da política repressiva no Nordeste – ambos instalados pela Ditadura como governadores, o primeiro em Pernambuco e o segundo na Bahia, algo feito tão logo eles apoiaram a derrubada do regime democrático em 1964 – e sem nenhuma intenção de alterar esses métodos tradicionais. ACM, como gostava de ser chamado, bravateava: ‘Eu ganho eleições com um saco de dinheiro na mão e um chicote na outra’. Seu filho, Luís Eduardo, era o político favorito de Cardoso no Congresso, o delfim apontado para sucedê-lo e assim seria se não tivesse morrido precocemente. O próprio FHC, que por um bom tempo sustentou que a reforma do sistema partidário era uma prioridade para o Brasil e prometeu entrega-la, mudou de ideia tão logo chegou no Palácio do Planalto, afirmando que a maior prioridade era revisar a Constituição para que ele próprio pudesse ser reeleito para um segundo mandato. Abandonando qualquer tentativa de racionalizar ou democratizar a ordem política, ele presidiu – e para isso, sim, foi necessário – uma campanha direta de subornos a deputados para comprar uma super-maioria no Congresso requerida para passar a emenda da reeleição.

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Quando Lula foi finalmente eleito em 2002, o PT estava numa posição diferente. Assim que ele passou a reassegurar que não atacaria bancos e empresas, e tão logo pareceu que sua vitória era certa, essas companhias passaram a financiá-lo, ainda que numa escala menor do que a de seu predecessor. Mas dentro do Congresso ele não possuía aliados naturais que tivessem muita expressão. O PT, apesar de toda a moderação da campanha de Lula na presidência, era visto – e ainda é – como um partido radical, posicionado à esquerda do verdadeiro pântano que domina o Legislativo. Lá, ele nunca conseguiu mais do que 1/5 dos deputados, somando uma votação três vezes menor do que a do próprio Lula. Como garantir algum tipo de maioria funcional para apoiá-lo em meio a esse verdadeiro marais? O método tradicional, concretizado numa escala heroica durante a primeira presidência civil após a Ditadura – a de José Sarney, outro antigo lacaio dos generais –, era o de comprar apoios distribuindo ministérios e cargos de confiança para aqueles que tivessem interesse e pudessem trazer consigo a maior quantidade de votos. Inicialmente isso ocorreu dentro das facções de seu próprio partido, o PMDB, a maior e mais fisiológica entidade política do país e que, uma década depois, tornara-se a fossa na qual desaguavam todas os riachos da corrupção política. O caminho clássico para o PT era então fazer acordos com essa criatura, alocando para eles uma boa parte de seus ministérios e agências estatais. Todavia, essa solução fora rejeitada pelo partido – há uma disputa sobre quem, dentro da cúpula, estava a favor e quem estava contra – pois havia receio de que as consequências seriam criar um peso-morto ideológico dentro do governo que poderia neutralizar o momentum progressista que se criara. Ao invés disso, a decisão foi de costurar um grupo de apoiadores de uma densa camada de partidos pequenos, sem conceder assim muito terreno para um deles em específico, mas pagando-os com dinheiro em troca de apoio na câmara num esquema de propina. De fato, o PT tentou compensar a falta de parceiros naturais (algo que FHC não teve que lidar) e sua recusa em retomar o sistema concebido por Sarney, criando assim um sistema de estímulos materiais para cooperações dentro do Congresso e por uma moeda de troca mais barata: ou seja, usando de mesadas para não usar de lugares específicos dentro do governo.

Quando esse esquema veio à tona em 2005, o chamado escândalo do mensalão (ou seja, de pagamentos mensais aos deputados) fez com que Lula perdesse o apoio do eleitorado de classe média e por muito pouco não terminou precocemente com sua primeira presidência. Tão logo ele sobrevivera e fora triunfantemente reeleito no ano seguinte, o PT não teve outra escolha senão recuar e aceitar a solução que tanto temia em abraçar: o PMDB então entrou no bloco do governo, garantindo assim alguns importantes ministérios e postos centrais no Congresso, e assim permaneceu até o primeiro mandato de Dilma e no primeiro ano do segundo mandato. Contudo, isso não significa que a corrupção tenha diminuído e sim que ela aumentou drasticamente. Isso não apenas porque o PMDB era o campeão do saque dos recursos públicos em âmbitos municipais e estaduais (por décadas o partido inclusive abandonara as disputas presidenciais), mas também porque um gigantesco pote de mel, maior do que tudo que se podia imaginar, estava se concretizando com a expansão da Petrobrás, a empresa de petróleo estatal cujas atividades equivalem a 10% do PIB nacional; nesse momento, uma capitalização a tornaria a quarta mais valiosa empresa do mundo. A construção de novas refinarias, petrolíferas, poços, plataformas, complexos petroquímicos oferecia vastas oportunidades para retribuições e logo um esquema acabou sendo estabelecido. Leilões seriam tomados por um verdadeiro cartel composto pelas principais empreiteiras do país, mas os contratos eram cobrados a partir de grandes somas de dinheiro que iam direto para os bolsos dos diretores da Petrobrás e para os partidos políticos que estivessem envolvidos – calcula-se cerca de 3 bilhões de dólares em subornos. Esse tipo de prática não era novidade na história da companhia, sendo que FHC preferiu fingir que ela não acontecia, e até a primavera de 2013, a companhia desfrutou da costumeira impunidade oriunda da riqueza e do poder no Brasil.

O que mudou nisso tudo foram três efeitos pós-mensalão. A delação premiada foi introduzida no Brasil; a prisão cautelar, um antigo poder judiciário usado para lotar as cadeias do país com pobres, tornou-se pela primeira vez um instrumento aceitável para dobrar aqueles de classes superiores; e as sentenças na primeira instância não podiam mais ser deferidas por intervenção do Supremo, o que permitia apressar as prisões. Os dois primeiros efeitos foram as mesmas armas que os magistrados italianos utilizaram para derrubar a classe política e empresarial italiana nos escândalos da Tangentopoli, nos anos 1990. Mas o terceiro efeito eles nunca conseguiram. Inclusive no Brasil foi criada uma forma de extrair confissões daqueles sob prisão preventiva: ameaçar a estender o mesmo tratamento à esposas e filhos. Em 2013, gravações feitas num caixa de uma empresa de lavagem de carros (um lava-jato) em Brasília levou à prisão de um contrabandista com longa ficha criminal. Mantido em Curitiba, na região Sul, para proteger sua família, esse doleiro passou a revelar a escala do sistema de corrupção da Petrobrás, na qual ele havia sido um dos principais intermediários na transferência de recursos entre contratantes, diretores e políticos dentro e fora do país. Num primeiro momento, as acusações caíram sobre nove das principais construtoras e empreiteiras do Brasil, com seus famosos chefes e diretores sendo presos, junto com outros três diretores da Petrobrás, em investigações que atingiram ainda mais de cinquenta políticos, tanto deputados e senadores como até mesmo governadores.

Os três principais partidos envolvidos – eles eram sete no total – foram o PMDB, o Partido Progressista (PP, um partido oriundo da Ditadura) e o PT. Quem ganhou mais no esquema ainda não está claro. Mas já que não existiam ilusões sobre os dois primeiros, foi a exposição do terceiro que realmente ganhou relevância política. O mensalão foi somente uns trocados em comparação com a enormidade do petrolão, enquanto o primeiro não teve nenhum benefício privado para políticos do PT, o segundo, por sua vez, apagou completamente os limites entre fundos de campanha e enriquecimento pessoal. Dentre outros detalhes, veio à tona que o próprio chefe da Casa Civil de Lula, José Dirceu (o arquiteto por trás da formação do PT enquanto partido), que havia sido afastado por conta de seu envolvimento no mensalão, havia insistido que uma parte do petrolão fosse dirigida para suas próprias contas bancárias. Se o grosso dessas retribuições eram utilizadas para financiar as campanhas e o aparato do partido, a presença contínua de grandes somas de dinheiro clandestino não tinha como não corromper aqueles que botavam suas mãos nele. O sociólogo Chico de Oliveira alertara, antes mesmo do petrolão ter sido descoberto, que o PT estava caminhando a passos largos para um processo de transfiguração numa aberrante espécie taxonômica de vida política, algo que não mais podia ser visto como uma metáfora.

Liderando o ataque ao petrolão, a equipe investigativa de Curitiba se tornou, assim como os juízes e policiais de Milão que os inspiravam, verdadeiras estrelas midiáticas. Jovens, de cara limpa, queixos quadrados, beneficiando-se de seu treinamento legal em Harvard, o juiz Sergio Moro e o promotor Deltan Dallagnol pareciam saídos direto de um desses seriados americanos de tribunais. Sobre o seu zelo no combate à corrupção e o valor do choque que aplicaram nas elites políticas e empresariais do país, não havia dúvidas. Mas assim como na Itália, objetivos e métodos nem sempre coincidiram. A delação premiada e a prisão preventiva sem acusações combinaram induzimento e intimidação: instrumentos obtusos em busca da verdade e da justiça, mas no Brasil eles estavam dentro da lei. Contudo, o vazamento de informações, ou às vezes até de suspeições, por parte dos investigadores para a imprensa, não é: eles são claramente ilegais. Na Itália, eles foram constantemente utilizados pela equipe de Milão e foram usados ainda mais ostensivamente pela equipe de Curitiba. Desde o início os vazamentos pareciam seletivos: eles almejavam o PT e, persistentemente, – ainda que não exclusivamente, pois os estilhaços se espalhavam – aparecendo nas principais revistas da bateria anti-governo, como a semanal Veja, que após semanas de exposição fez uma edição a ser lançada poucas horas antes da eleição de 2014 com as imagens de Lula e Dilma sob uma sinistra meia-luz com tons de vermelho e negro com a exclamação “Eles sabiam de tudo!”, alertando os eleitores para quem eram as verdadeiras mentes criminosas por trás do petrolão.

Mas será que o fato dos magistrados terem alimentado a mídia com vazamentos significa que seus objetivos eram os mesmos, ou seja, que eram fruto – tal como o PT sustentou – de uma operação comum? Pode-se dizer que o judiciário brasileiro, assim como seus colegas de promotoria e Polícia Federal, compartilha muito da identidade de classe média brasileira, cujas camadas eles pertencem, com suas preferências e preconceitos de classe típicos. Nenhum partido operário, por mais emoliente que seja, consegue atrair simpatia particular desse meio. Mas será que os vazamentos contra o PT são resultado de uma aversão militante, ou fruto de uma ideia de que não há melhor forma de enfatizar os horrores da corrupção do que pegar aquela que é a principal força política do país por mais de uma década, que inclusive é justamente aquela que a mídia, por suas próprias razões, estaria mais disposta a divulgar as revelações? Histórias que atingissem o PMDB seriam banais e o PSDB poderia ser poupado, em âmbito nacional, pois sendo um partido de oposição teria menor acesso aos cofres públicos, independente do seu domínio dentro dos estados.

O escândalo da Lava Jato estourou de fato na primavera de 2014 e sucessivas prisões e acusações chegaram às manchetes durante a corrida presidencial no outono. A virada econômica de Dilma, tão logo eleita, pode ser vista em parte como conduzida pela esperança de aplacar a opinião neoliberal o suficiente para que a mídia moderasse seu discurso sobre o PT, que estava sendo tratado como uma gangue de ladrões. Mas se foi isso de fato, ela foi em vão. Superando até mesmo o PSDB na virulência de seus ataques, uma nova direita passou a ganhar proeminência nas manifestações massivas contra Dilma em março de 2015. No Brasil, o slogan tradicional da direita era “Deus, Família e Liberdade”, verdadeiros banners do conservadorismo que clamou pelo golpe militar que gerou a Ditadura de 1964. Meio século depois, os gritos dos manifestantes mudaram. Recrutados a partir de uma geração mais jovem de militantes de classe média, uma nova direita – e geralmente com orgulho de afirmar-se assim – passou a falar menos em termos de religiosidade, menos ainda em termos de família e reinterpretou o sentido de liberdade. Para eles, o livre mercado era a base necessária para todas as outras liberdades, concebendo assim o Estado como uma espécie de hidra de muitas cabeças. Essa política se iniciou não nas instituições da ordem decadente, mas sim nas ruas e nas praças, onde cidadãos poderiam se reunir contra um regime de parasitas e ladrões. Surfando na onda das manifestações massivas contra Dilma, os dois principais grupos dessa direita radical – Vem Pra Rua e Movimento Brasil Livre – modelaram suas táticas assimilando elementos do Movimento Passe Livre, um movimento de extrema-esquerda que desencadeou os protestos de 2013, inclusive com o MBL deliberadamente fazendo um acrônimo com o MPL. Ambas organizações da direita eram pequenas, mas dependiam de um intenso trabalho de mobilização de massas por meio da internet. O Brasil possui mais viciados em Facebook do que qualquer outro país, perdendo somente para os Estados Unidos, e tanto o Vem Pra Rua como o MBL e outros grupos da direita – o Revoltados On-Line (ROL) é outro movimento proeminente – vem conseguindo mobilizar a população com muito mais sucesso do que a esquerda, embora seja importante levar em consideração o previsível perfil de classe de quem adentra na rede social de Zuckerberg. Até então, o efeito multiplicador desses grupos de direita tem sido muito maior.

No horizonte de toda essa situação, há também a ambígua nébula de uma nova religião. Mais de 20% dos brasileiros atualmente são convertidos a alguma variedade de protestantismo evangélico. Seguindo o padrão da Igreja da Unificação do Reverendo Moon, muitas delas – certamente as maiores – são verdadeiros balcões de negócios que ficam ordenhando o dinheiro de seus fiéis para erigir verdadeiros impérios financeiros para os seus fundadores. A fortuna de Edir Macedo, o líder da Igreja Universal do Reino de Deus, cujo gigantesco ekitsch Templo de Salomão na região do Brás em São Paulo – próximo do menos grotesco, mas ainda impressionante templo da rival Assembleia de Deus, numa espécie de Wall Street religiosa – onde ocorrem performances de melodramáticos exorcismos nos telões e em que os fiéis cantam e oram, ultrapassa mais de 1 bilhão de dólares. Parte desse império se associa também ao controle da segunda maior rede de televisão do país. Atualmente bastante próspera nas periferias, a organização de Macedo prega uma “teologia da prosperidade”, prometendo sucesso material na Terra, ao invés de mera salvação celestial. Diferente dos evangelistas americanos, as Igrejas Evangélicas no Brasil não possuem perfis ideológicos muito específicos além de assuntos como aborto e direitos LGBT. Macedo chegou a apoiar FHC como uma forma de impedir o comunismo, mas nas eleições seguintes apoiou Lula e desde então vem criando sua própria organização política. Mas muitas dessas igrejas operam no descrédito dos partidos brasileiros: elas são veículos a serem contratados, trocando votos por favores, com a diferença de que elas apoiam candidatos de qualquer partido – a bancada evangélica no Congresso, cerca de 18% dos deputados, inclui congressistas de 22 partidos. Seus principais interesses residem em garantir concessões de rádio e televisão, evasão fiscal para igrejas e acesso à zoneamento urbano para a construção de monumentos faraônicos.

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Ao mesmo tempo, ainda que mais passivas e promíscuas do que seus iguais nos Estados Unidos, essas Igrejas formam um reservatório conservador para os agressivos líderes da direita no Congresso. Sintomaticamente, o presidente da Frente Evangélica é um musculoso pastor e ex-policial que senta na bancada do PSDB. Ali também se encontra o Presidente da Câmara dos Deputados, eleito em fevereiro de 2015 – esse sendo o cargo mais importante do Congresso e o terceiro da linha sucessória depois do vice-presidente –, o deputado Eduardo Cunha, um corretor da bolsa evangélico do Rio e líder da bancada do PMDB. Geralmente identificado como o mais perigoso inimigo de Dilma – ela inclusive tentou impedir sua eleição – seu jeito garboso e modos imperturbáveis escondem um excepcionalmente talentoso e cruel político, um mestre nas artes obscuras da manipulação parlamentar e na administração, uma pessoa a quem grandes números do chamado “baixo clero” do Congresso tornaram-se dependentes de seus favores desde que assumiu o cargo, enquanto outros vivem acuados diante de sua força sem conseguir enfrenta-lo. E tão logo as manifestações nas ruas clamaram pelo impeachment de Dilma, ele logo tornou-se o ponta de lança dentro do Legislativo que garantiria a saída da presidente, sob o pretexto de que antes das eleições ela havia transferido, de forma imprópria, fundos dos bancos estatais para contas federais.

Atingindo um crescendo no mês de setembro, o movimento para depô-la atingiu números impressionantes, configurando diferentes forças e personagens que se entrecruzavam de diferentes formas, desde os “jovens turcos” do MBL e ROL posando para fotos com Cunha, até pilares da lei como Moro e Dallagnol (que também é evangélico) encontrando-se com políticos do PSDB e lobistas pró-impeachment, sem contar também com a imprensa atacando virulentamente o PT e o Planalto com novas denúncias diárias. Ou Dilma havia ilegalmente legado um déficit nas contas do Estado para seguir sendo reeleita, ou ela havia permitido grandes injeções de verbas ilegais para financiar sua campanha eleitoral... ou ambos – em qualquer caso, material suficiente para acelerar o processo de retirada dela da presidência enquanto afronta a probidade pública. Naquele momento, cerca de 80% da população queria que ela fosse embora.

Nesse meio tempo, uma bomba explodiu. Em meados de outubro, as autoridades suíças notificaram o Procurador Geral da República em Brasília de que Cunha tinha nada mais do que quatro contas secretas na Suíça – e outra logo em seguida foi descoberta nos Estados Unidos – uma delas no nome de sua esposa, outra no nome de uma companhia empresa-fantasma em Cingapura que recebia direto de outra empresa-fantasma da Nova Zelândia. O valor total era de 16 milhões de dólares, ou trinta e sete vezes mais a riqueza que ele havia declarado no Brasil. À disposição do casal também havia duas companhias locais – e, desafiando o escárnio, uma delas se chamava Jesus.com – além de uma frota de nove limusines e caminhonetes no Rio de Janeiro. As evidências de que ele acumulava propinas da Petrobrás começaram a se acumular. Mesmo para a mais obediente imprensa isso era demais. No Congresso, uma comédia às avessas tinha início. Segundo a Constituição Brasileira, o Presidente da Câmara possui o poder solene de dar início à moção de impeachment presidencial. Por meses o PSDB ficou cortejando Cunha, conferenciando com ele em conclaves íntimos sobre as táticas e o momento do processo. A revelação da sua caixa-forte na Suíça, com muito mais evidências do que aquelas que caíam sobre Dilma, tornou-se um profundo constrangimento para o partido. O que deveria ser feito? Cunha ainda controlava as chaves para o impeachment, que se fosse bem-sucedido poderia até mesmo anular as eleições de 2014 e garantir, assim, a vitória de Neves. O partido então se silenciou sobre as ondas que vinham de Berna, no que vale mencionar que o próprio Cunha ainda não havia se pronunciado e era tomado como inocente até que se provasse o contrário. Mas seus apoiadores na mídia não conseguiram conter os questionamentos: como pode o partido da moralidade dar cobertura para tamanha criminalidade? Diante do clamor, o PSDB foi forçado a bater em retirada e tirar o apoio ao Presidente da Câmara – um pequeno partido socialista independente, a essa altura do jogo, havia entrado com recurso para tirar Cunha da Câmara. Ao perceber que o PSDB deixara de lhe dar apoio, Cunha rapidamente fez um jogo de dupla-face. Negociando a portas fechadas, ele ofereceu trancar o impeachment de Dilma se o PT o protegesse das tentativas de anulação de seu mandato e expulsão do Congresso. E isso rapidamente aconteceu. Os ministros do PT, tão desavergonhados quanto os políticos do PSDB, concordaram em auxiliá-lo a manter-se no cargo, desde que ele não fizesse nenhum movimento contra Dilma. Esse surreal carrossel foi demais para as bases do partido que estavam afastadas do Congresso e o acordo teve de ser cancelado. Por um breve momento, pareceu que a posição de Cunha era insustentável e a causa do impeachment estava tão desgastada pela sua exposição que havia, portanto, quase nenhuma chance de ela passar.

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Nos bastidores, contudo, o principal repositório das esperanças de acabar com o PT não tinha desistido. Desde o início da crise, FHC tornou-se onipresente na mídia – sua imagem estava em toda parte, numa enxurrada de entrevistas, artigos, discursos, diários. Bastante estimado pelos barões da mídia e seus lacaios, sua renovada proeminência era fruto de um cálculo político mais imediato de ambas as partes. Apresentado como o estadista ancião da República, a cuja sabedoria se deve a estabilidade atingida, editores e jornalistas esforçaram-se para construí-lo como um pensador de renome internacional, a voz da sanidade e da responsabilidade diante das mazelas do país, inclusive com a imprensa e a academia anglófona cotejando-o, engolindo todo esse coro de sicofantia. A razão para toda essa apoteose é bastante simples: a presidência de Cardoso administrou ao Brasil uma generosa dose de administração pró-mercado, um remédio que parecia ser mais urgente do que nunca diante do escárnio populista do PT. O próprio Cardoso, que quando presidente lamentou a “enorme dificuldade” de que “o Brasil não gostava do sistema capitalista”, estava tranquilo em exercer esse papel. Mas ele também tinha uma questão pessoal no meio de todos esses holofotes. Quando ele saiu da presidência, seu índice de aprovação não era muito mais alto do que o de Dilma hoje, e por oito anos ele sofreu uma dura comparação com Lula, um presidente muito mais popular que repudiou seu legado e transformou o país de forma decisiva, assegurando ao PT mandatos que duraram o dobro do seu.

Isso foi algo duro de suportar. Será que a aura do pensador poderia suportar a perda de seu prestígio como governante? Objetivamente, o segundo mandato foi – e isso é bastante normal – menos popular do que o primeiro. Na busca pela presidência, Cardoso sacrificou não apenas suas antigas convicções, que inclusive eram marxistas e socialistas, mas com o tempo até mesmo seus padrões intelectuais. A banalidade dessa mudança chega a ser disparatada – bromas elogiosas para os efeitos da globalização e ansiedade com seus efeitos colaterais. Em raras ocasiões ele acabava sendo sincero: “Eu devo admitir que, ainda que meu lado intelectual seja forte, eu sou basicamente um Homo politicus”, disse ele certa vez. Mas subjetivamente, a vaidade – atingida pelo apelo político grandioso de um ex-operário sem educação formal – não permite que pretensões mais cerebrais sejam colocadas de lado. Tingido pelo verde e amarelo da Academia Brasileira de Letras, uma cópia tropical da versão original e pomposa dos franceses – com uma espada a seu lado, ele declarou que o sociólogo e o presidente nunca divergiram, demonstrando uma carreira coerente e uma administração criativa, inteiramente em sintonia uma com a outra.

Por anos ele teve motivos para reclamar que, enquanto oposição, o próprio PSDB foi insuficientemente leal à memória de seu líder máximo, evitando qualquer defesa mais vigorosa de sua modernização nacional e seu corajoso programa de privatizações. Agora, contudo, diante da crise do lulopetismo – seu uso mais desdenhoso, implicando algo ainda focado nas bases, mais demagógico do que o mero suporte petista, ou petismo – fica claro o quão certo Cardoso esteve todo esse tempo. Se houve algo de bom durante o governo do PT, isso se deve à herança deixada por FHC. Se houve algo desastroso e terrível, então a culpa não é dele, pois havia alertado a todos o que aconteceria. Era tempo de erguer novamente as bandeiras de 1994 e 1998, sem qualquer inibição, colocando assim um fim ao desgoverno do PT. Ainda que ele mesmo não tivesse evocado o impeachment, ele o reconhecia como um processo legítimo, desde que tivesse base legal para isso. E ainda que não tivesse, Dilma ainda poderia ser removida politicamente. Mas – e aqui os cálculos de Cardoso mostram-se diferentes daqueles feitos pela nova geração de políticos do PSDB no Congresso, ansiosos para tomar o poder rapidamente – era melhor esperar pelo Judiciário, que poderia ser tido como um instrumento para que a justiça política fosse cumprida.

Essa confiança vinha das íntimas conexões entre os juízes mais veteranos e estava longe de estar errada. Indicado para presidir o caso contra Dilma no Supremo Tribunal Eleitoral estava Gilmar Mendes, um parceiro próximo indicado pelo próprio Cardoso para o Supremo Tribunal Federal, ocupando este lugar até os dias de hoje – e que nunca fez nenhum segredo sobre o seu desgosto para com o PT. Mas Dilma era o alvo menos importante. Para FHC, o alvo crucial a ser destruído era Lula e não apenas por questão de vingança, embora isso tenha sido muito saboreado no âmbito privado, mas porque havia risco, dada sua antiga popularidade, de que ele voltasse em 2018 – supondo que Dilma sobrevivesse até então, algo que assustava o PSDB e seu programa de orientar o país novamente para uma modernização responsável. E tão logo as deixas de Cardoso começaram a encontrar eco, uma série de vazamentos feitos pela força tarefa da Lava Jato passaram a aparecer na imprensa, implicando Lula em dúbias transações financeiras de tipo pessoal: viagens em jatos empresariais, palestras remuneradas por empreiteiras, apartamentos confortáveis, melhorias num sítio, sem falar nos ganhos obscuros de um de seus filhos. Logo em seguida veio a apreensão de um amigo milionário fazendeiro, acusado de repassar as retribuições de um contrato da Petrobrás para o tesoureiro do PT. Aparentemente, a rede estava se fechando sobre ele.

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Rapidamente, durante a primeira semana de março, uma força-tarefa da Polícia Federal chegou na porta da casa de Lula às seis da manhã, levando-o sob custódia para ser interrogado no aeroporto de São Paulo. A imprensa, informada de antemão, estava esperando do lado de fora para invadir com suas câmeras, esperando obter o máximo de publicidade. O pretexto para todo esse show é de que se Lula fosse convidado a dar esclarecimentos, ele poderia ter se recusado. Na semana seguinte, a maior manifestação no Brasil após a Ditadura – de acordo com a polícia, com 3,7 milhões de pessoas nas ruas – clamou por justiça contra Lula e impeachment para Dilma. Três dias depois, Dilma apontou Lula como chefe da Casa Civil de seu governo – algo equivalente a um Primeiro Ministro. Como ministro, Lula teria imunidade perante as acusações de Moro em Curitiba, possibilitando que ele, assim como os demais membros do governo, respondesse somente ao Supremo Tribunal. Moro não perdeu tempo. Na mesma tarde, ele publicou as gravações de uma conversa telefônica entre Lula e Dilma, na qual ela disse a ele que mandaria os papéis necessários para que ele assinasse e assumisse, “se necessário”. Sua fala foi ambígua. Mas o escândalo midiático foi ensurdecedor: aqui, pega com a boca na botija, estava uma manobra para fugir da justiça e salvar Lula, deixando-o longe do alcance da lei. Dentro de 24 horas, um juiz em Brasília impediu a nomeação – um juiz que, como se soube mais tarde, havia postado imagens nas redes sociais de quando ele estava nas manifestações pelo impeachment, ostentando alegremente uma camiseta do PSDB. Mas esse juiz rapidamente foi apoiado por Gilmar Mendes e, naquela mesma noite, o PMDB anunciou que estava saindo do governo, no qual ele controlava a vice-presidência e outros seis ministérios, pavimentando o caminho para uma rápida deposição de Dilma no Congresso.

Nessa dramática escalada da crise política, o protagonista central era o judiciário. A noção de que a operação de Moro estava agindo de forma imparcial em Curitiba, inicialmente defensável, acabou sendo prejudicada com a cobertura gratuita e espetaculosa da imprensa sobre a condução coercitiva de Lula, o que acabou ainda sendo seguida por uma mensagem pública saudando as manifestações a favor do impeachment: “o Brasil está nas ruas”, anunciou o juiz. “Sinto-me tocado”. Contudo, ao publicar as gravações da conversa entre Lula e Dilma, horas depois do grampo ter sido anulado pela Justiça, ele violou a lei duas vezes: violou o sigilo das interceptações, ainda que fosse permitido o grampo, e sem falar também no princípio da confidencialidade que supostamente protegia as comunicações da chefe do Executivo. Ficou tão evidente que essas coisas eram ilegalidades que logo Moro foi repreendido pelo juiz do Supremo responsável por Moro, mas sem qualquer sanção efetiva. Ainda que “inapropriado”, seu superior notou delicadamente que a ação do juiz havia atingido seu objetivo.

Na maioria das democracias contemporâneas, a separação dos poderes é uma ficção bem-educada, com os Supremos Tribunais – no que o caso americano é uma importante exceção – curvando-se perante os governos. Os contorcionismos do Tribunal Constitucional Alemão – geralmente visto como exemplo de independência judicial – ao sustentar as violações do país tanto no Grundgesetz e no Tratado de Maastricht e favorecer os diferentes regimes de Berlim pode ser visto como uma norma geral. No Brasil, a politização do judiciário é uma tradição longínqua. A figura inverossímil de Gilmar Mendes é talvez um caso extremo, ainda que seja revelador. Como presidente, Fernando Henrique Cardoso defendeu seu amigo de acusações criminais ao lhe promover como Ministro antes de elevá-lo ao STF – e Mendes agora se volta contra Dilma por ela fazer o mesmo com Lula. Ao colocá-lo no posto e tentando evitar chamar atenção, FHC entrava pelo prédio sorrateiramente pelo edifício da garagem, encontrando Mendes no estacionamento. Bastante militante em relação ao PSDB – “tucano demais”, considerando que a ave é o símbolo do partido – até mesmo para Eliane Catanhêde, uma respeitável jornalista de direita, Mendes geralmente era visto almoçando com proeminentes líderes do partido após ter sido absolvido das acusações e o juiz não hesitou em utilizar dinheiro público para alistar seus subordinados a partir de uma escola privada de advocacia que ele possui, algo feito enquanto ele já era juiz no maior tribunal da nação. Seus ataques contra o PT são constantes.

Sergio Moro, por sua vez, é de uma geração mais jovem e vinho de outra pipa. Os Estados Unidos, país que ele visita com regularidade, é sua principal referência. Um sujeito trabalhador e provinciano, ele considera que nada deve aos sistemas de patronagem e compadrio. Mas vale destacar que, quando Moro tinha pouco mais de 30 anos, ele demonstrou também sua indiferença com os princípios básicos das leis e das regras num artigo exaltando o exemplo dos magistrados italianos nos anos 1990, “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, nos termos que antecipariam seus procedimentos uma década depois. Recusando-se a pesquisar na literatura mais extensiva sobre a Tagentopoli, ele utilizou somente duas eulogias feitas pela equipe de Milão e que foram traduzidos para o inglês, citados sem qualquer dose de reflexão crítica, inclusive confiando no depoimento de um chefe da máfia que vivia com um salário do Estado enquanto delator, ainda que ele tenha sido rejeitado pela corte. A presunção da inocência não poderia ser tida como “absoluta’, tal como ele declarara: ela era apenas um “instrumento pragmático’ que poderia ser desfeita de acordo com a vontade do magistrado. Ele celebrou os vazamentos seletivos para a mídia como forma de “pressão sobre os acusados’, usados quando “os meios legítimos não podem ser atingidos por outros métodos’.

O perigo de ter um judiciário atuando nesse espírito é o mesmo no Brasil do que foi na Itália: uma campanha absolutamente necessária contra a corrupção se torna tão infectada com o desdém pelo devido processo, com um conluio tão inescrupuloso com a mídia, que ao invés de instalar qualquer nova ética de legalidade, ela acaba confirmando o longo desrespeito social pela lei. Berlusconi e seus herdeiros são a prova viva disso. Todavia, a cena no Brasil se difere da situação na Itália por dois aspectos. Não há nem Berlusconi ou Rinzi no horizonte brasileiro. Moro, cuja celebridade agora excede qualquer um dos seus modelos italianos, sem dúvida está sendo solicitado para suprir o vazio político, caso a Lava Jato faça de fato uma limpeza sobre a velha ordem. Mas o medíocre destino de Antonio di Pietro, o mais popular dos magistrados de Milão, pode ser lido como um aviso para Moro, por mais puritana que seja a sua aparência, evitar a tentação de envolver-se na política. O espaço para uma ascensão meteórica também tende a ser menor, pois há uma diferença crucial entre as duas cruzadas contra a corrupção. O assalto feito pela Tagentopoli foi direcionado contra os principais partidos do país, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, que estiveram no poder durante trinta anos. A Lava Jato, por sua vez, não parece estar focada nos partidos tradicionais do poder político no Brasil que, diga-se de passagem, estão bastante divididos, mas sim nos sistemas que possibilitaram que eles chegassem lá. Nesse ponto, ela parece mirar somente num alvo e, sendo assim, mais manipuladora.

Tal manipulação pode ser acentuada naquilo que se considera como a segunda diferença entre a Itália dos anos 1990 e o Brasil de hoje. Quando a Tagentopoli atingiu o sistema político, a mídia italiana formou um cenário homogêneo. Jornais independentes passaram a apoiar o judiciário de Milão em toda parte. O chefe do conglomerado midiático do Olivetti, De Benedetti, cujo jornal recebeu a maior parte dos vazamentos, acusou duramente os democratas cristãos e socialistas ao mesmo tempo em que ficou quieto sobre as implicações em outros partidos. O império de jornais e televisão de Berlusconi enalteceu e instigou os magistrados. E o resultado foi que, com o passar do tempo, havia ainda mais questionamentos sobre as ações de diferentes esferas do judiciário – muitas delas bastante corajosas, enquanto outras eram mais dúbias – do que no Brasil. Ali a mídia tem sido bastante monolítica e partidária em sua hostilidade anti-PT e nada crítica quanto à estratégia de vazamentos e pressões vindas de Curitiba, do qual a imprensa age como sua porta-voz. O Brasil possui alguns dos melhores jornalistas do mundo, cujos textos vem analisando a atual crise num nível intelectual e literário que vai além do que fazem o Guardian ou o New York Times. Mas tais vozes são sufocadas por uma enorme floresta de conformistas que nada mais fazem do que ecoar as visões de patrocinadores e editores.

Comparar a cobertura da mídia sobre qualquer vazamento que prejudique o PT com o tratamento dado às informações ou rumores que afetam a oposição é uma forma de medir a extensão da sua política de dois pesos e duas medidas. Enquanto a Lava Jato estava se desenrolando, veio à tona um pujante exemplo. Em 1989, num dos mais famosos momentos decisivos da história moderna brasileira, Lula – que na época era visto como um perigoso radical pelas elites – estava perto de assegurar uma vitória em sua primeira corrida presidencial, quando dias antes da eleição, uma ex-namorada sua apareceu na televisão em nome de Collor, paga pelo próprio irmão de Collor, acusando Lula de querer que ela abortasse de um filho de ambos. Aquele momento, amplificado até o limite pela mídia, foi fundamental na sua derrota eleitoral. Dois anos depois, Cardoso – na época um proeminente senador do PSDB, já cotado como futuro candidato à presidência – ficou conhecido no meio político por ter uma amante trabalhando na mesma rede de televisão que prejudicou a campanha de Lula, a TV Globo. Quando ela teve um filho do ex-senador, ela saiu do país e foi mandada para Portugal. Em meados de 1994, depois de ter sido Ministro da Fazenda, Cardoso estava disputando a presidência e o trabalho dela passou a ser somente nominal, ainda que a Globo seguisse pagando seu salário. Tão logo FHC foi eleito, seu braço direito, o jovem Magalhães, instruiu ela a não retornar para o Brasil por medo de comprometer sua reeleição. Quando a Globo a tirou da folha de pagamento, um trabalho ficcional foi feito para ela, fazendo pesquisas de mercado na Europa para uma cadeia de lojas duty-free que recebera do próprio FHC direitos monopolísticos nos aeroportos brasileiros. Por meio dessa firma, ela teria lavado cerca de cem mil dólares via uma conta bancária nas Ilhas Cayman – teria sido pensão alimentícia ou suborno para ficar calada? A história veio à tona em fevereiro, em meio ao furacão das denúncias sobre as reformas no sítio de Lula. A mídia fez de tudo para que isso recebesse o mínimo possível de cobertura. A firma agora está sob investigação por transação criminosa. Cardoso protege sua inocência. E ninguém espera que ele sofra qualquer inconveniência.

Será que isso pode ser generalizado para toda a oposição? Moro lançou seus grampos incendiários no dia 16 de março. Uma semana depois, a polícia de São Paulo invadiu a casa de um dos executivos da Odebrecht, a maior empreiteira da América Latina, cujo diretor recém havia sido sentenciado por 19 anos pelo crime de suborno. Na casa os policiais encontraram uma lista com 316 políticos com quantias de dinheiro ligadas aos seus nomes. Estavam inclusas figuras tradicionais do PSDB, do PMDB e de vários outros partidos – um verdadeiro panorama da classe política brasileira. Objetivamente falando, essa lista produzia muito mais barulho do que a conversa entre Lula e Dilma. Mas era um barulho menos conveniente: diretamente de Curitiba, Moro rapidamente tomou uma posição contrária, ordenando que as listas fossem colocadas sob sigilo para impedir qualquer especulação. Ainda assim, o alarme havia soado: a Lava Jato poderia sair do controle. Se Dilma tinha que cair, era preciso fazê-lo antes que as listas da Odebrecht pudessem ameaçar seus próprios acusadores. Poucos dias depois, o PMDB anunciara que abandonava o governo e começaria uma contagem de votos a favor do impeachment. Os 3/5 de votos necessários na Câmara dos Deputados, algo que parecia muito difícil de atingir no início das discussões, agora estava mais perto do alcance. A opinião pública passou a perceber a farsa de um Congresso cheio de ladrões, tendo Cunha à sua frente, solenemente derrubando uma presidente por crime de responsabilidade fiscal.

Quais são as chances de Dilma resistir a esse desfecho e as perspectivas caso o impeachment não aconteça? As esperanças do Planalto residem em duas contingências: de que com suficiente apoio no Congresso se possa bloquear o impeachment, oferecendo assim mais ministérios e cargos para partidos menores que não conseguiriam acesso ao governo antes, visando com isso reverter a saída do PMDB; e a outra, de que com muitas manifestações em defesa do governo possam desestimular as grandes manifestações feitas a favor do impeachment. Ambos objetivos exigem o retorno de Lula para Brasília, de onde ele poderia – ainda que lhe seja negado o direito de ocupar formalmente o ministério – informalmente cumprir ambas tarefas que lhe foram atribuídas, ou seja, de aproximar-se de deputados relutantes para o campo governista e de estimular o apoio popular vindo das ruas. Mas o cenário está mudando e isso tudo parece cada vez mais distante. As relações entre Lula e Dilma se fragilizaram desde que ela optou pela austeridade após sua reeleição. Culpando-a pela falta de habilidade política e pela sua recusa em aceitar conselhos, Lula falaria, no âmbito privado, que “ela foi minha Chefe da Casa Civil e ela ainda age como uma, e não como uma presidente”, ou então que “ela é como se fosse a minha filha, que sempre diz pra mim que me ama, mas nunca presta atenção no que eu falo pra ela”. Mas é duvidoso se faria alguma diferença a flexibilidade tática, ainda que importante, diante das dificuldades enfrentadas por ela. Desde o início, sua segunda presidência foi pega em um círculo vicioso de escândalos políticos e indicadores econômicos deteriorados, cuja interação forma um obstáculo nada fácil de superar para recuperar sua autoridade. O problema da Petrobrás, com inúmeras delações, vem gerando demissões em massa de trabalhadores; o mesmo vem acontecendo com as empreiteiras cujos diretores e executivos estão na cadeia. A incerteza sobre onde soprará a Lava Jato tem feito os investidores mais temerosos e deixado o mercado financeiro assustado: em novembro, o chefe do fundo bilionário BTG-Pactual, o maior banco de investimento do continente, a menina dos olhos do Financial Times e do Economist, foi levado algemado para a delegacia. No Congresso, o corte de gastos neoliberal e o aumento tributário proposto pelo governo foi derrubado pelo próprio neoliberal PSDB, buscando criar todo um constrangimento político: o orçamento de 2016 sequer foi aprovado. Mesmo que um virtuoso trabalho de base feito nos corredores do poder possa conseguir colocar temporariamente o impeachment em xeque, ele não conseguiria resolver o temível impasse do atual governo.

A mobilização popular para impedir a saída de Dilma, da forma como está pensada, também tem problemas. Mas isso está conectado diretamente aos legados dos governos do PT. O partido está numa frágil posição para convocar seus beneficiários para defende-lo por pelo menos três razões. A primeira é simplesmente porque se a corrupção fez com que a classe média perdesse a simpatia que o partido antes desfrutou, a austeridade alienou a base de classes populares que tinham conquistado. As manifestações feitas para impedir o impeachment foram, até agora, muito menos impressionantes do que aquelas feitas por aqueles que querem que ele aconteça. Os manifestantes têm sido arregimentados principalmente entre funcionários públicos e sindicatos: os pobres ainda não têm comparecido nessas manifestações. A força rural do Nordeste onde o PT se consolidou estão ainda socialmente dispersos, enquanto as grandes cidades do Sul e Sudeste são as fortalezas da nova direita no momento. Há também a inevitável desmoralização do partido conforme sucessivos escândalos surgem com o seu nome, criando um sentido de culpa coletiva difusa, ainda que não explícita, mas que enfraquece qualquer espírito de luta. E por fim, mas fundamentalmente, na época que Lula chegou ao poder, o partido tornou-se uma máquina eleitoral, financiada principalmente por doações de grandes corporações, ao invés de – como ele era em seu início – pelas doações de membros e simpatizantes, com eles inclusive aderindo passivamente ao nome de seu líder, sem qualquer vontade de construir uma ação coletiva com os eleitores. A mobilização ativa que fez o PT ser uma força nas regiões urbanas e industriais do Brasil tornou-se uma memória distante conforme o partido passou a ganhar força em regiões sem indústrias, enraizadas numa tradição de submissão à autoridade e medo da desordem. Isso foi uma cultura política entendida por Lula e que ele não fez nenhuma tentativa séria de termina-la. Segundo sua própria visão, ele considerava que mudar isso teria um custo potencial alto demais. Para ajudar as massas ele buscou harmonia com as elites, para as quais qualquer polarização vigorosa era um tabu. Em 2002 ele finalmente ganhou a presidência, na sua quarta tentativa, com um slogan de “paz e amor”. Em 2016, diante de um linchamento político, ele ainda seguiu falando essas palavras para uma multidão que esperava por algo mais combativo.

Tal descompasso entre partir para o ataque e o discurso de responsabilidade é uma marca comum de um padrão que, desde a virada do século, vem distinguindo a política do Brasil em relação à América Latina. O país não é o único que viu um conflito de classes se tornar uma crise. Mas em nenhum lugar isso foi tão unilateral como no Brasil. Mesmo quando Lula estava no auge de seu prestígio enquanto estava na presidência, sempre houve uma assimetria entre as políticas moderadas e comodistas do PT e a hostilidade de uma classe média enragé e da mídia contra ele. Nos últimos dezoito meses, essa expressão de abominação unilateral se tornou ainda mais violenta. Um vereador do PMDB no interior de São Paulo falou publicamente que Lula deveria ser morto como uma cobra, tendo que pisar em sua cabeça. No Rio Grande do Sul, no Sul do país, uma pediatra se recusou a atender uma criança de um ano porque a mãe era uma petista, e foi absolvida de infração ética pelo Conselho Regional de Medicina e pela Associação de Médicos. O juiz do Supremo Tribunal, Teori Zavascki, responsável por ter repreendido Moro, foi presenteado com uma série de faixas e cartazes que o chamavam de “traidor” e “pilantra do PT”, enquanto manifestantes cantavam sua canção símbolo que fala que o “capitalismo veio pra ficar”. Conforme aproxima-se do Dia D do impeachment, os militantes fanáticos vêm recebendo endereços de deputados indecisos ao redor do país e intimidando-os, acampando em frente de suas casas. Meticulosamente deve-se dizer que o mercado de ações vem mantendo um ritmo: ele subiu quando Lula foi preso, caiu quando ele foi feito ministro e subiu novamente quando a sua posse foi impedida.

Um golpe teatral (um coup de théâtre) ainda é possível, com uma virada de eventos salvando Dilma no último minuto, mesmo que não pareça que isso irá acontecer. A maior probabilidade é de que se forme um regime liderado pelo vice-presidente que a abandonou, o veterano sepulcral do PMDB – comparado com o mordomo de um filme de terror – Michel Temer. De fala mansa e cerimonioso, ele preparou o caminho alguns meses atrás, criando um programa para deixar claro que o país estaria seguro assim que ele assumisse. Seu pacote trata-se de um plano de estabilização convencional, agilizando privatizações, reforma da previdência e abolindo os gastos mandatórios constitucionais em saúde e educação, acompanhados de promessas de cuidar dos menos afortunados. Se Dilma sofrer o impeachment, tendo uma maioria de 3/5 do Congresso lhe apoiando, Temer não teria nenhum problema em formar um governo de coalizão junto com PMDB, PSDB e uma grande quantidade de partidos nanicos, colocando uma pitada de tecnocratas em ministérios centrais. Já que tal combinação poderia passar uma série de leis, às quais Dilma não pode, e isso garantiria o retorno da confiança do mercado, isso certamente traria melhorias aos indicadores econômicos feitos pelos mercados financeiros, não importa o quanto isso custaria aos pobres. Mas dada a conjuntura global adversa e a teimosa baixa taxa de investimentos que persiste no Brasil desde o fim da Ditadura, é difícil ver qualquer alívio para o país num horizonte futuro.

Politicamente também a estabilidade não estaria garantida. Uma questão óbvia que surge é se será que o choque do impeachment irá sufocar o que resta do espírito de luta daqueles que apoiam Dilma, ou o contrário, ou seja, que isso provoque uma resistência ainda mais feroz contra as elites do país. Ambas alternativas não são fáceis para a fileira dos vitoriosos – se eles de fato conseguirem o impeachment da presidenta. Um juiz do Supremo Tribunal Federal ordenou que Cunha também colocasse em votação o impeachment de Temer, usando da mesma referência legal do impeachment da Dilma, já que quando ela estava fora do país, ele também assinou os decretos de responsabilidade fiscal que são atribuídos a ela – algo que pegaria desprevenido aqueles que querem derrubá-la e esperam instalar Temer como presidente rapidamente. Caso esse ataque seja evitado, outro curioso problema se avizinha. Ainda está pendente no Supremo Tribunal Eleitoral uma acusação de que a campanha de 2014 de Dilma e Temer violaram o regulamento eleitoral, uma acusação trazida pelo PSDB quando ainda esperava forçar uma situação de novas eleições. Se levada adiante, a ação derrubaria ambos. O processo não pode mais ser retirado e seria um constrangimento se o impeachment de Dilma fosse concretizado e Temer tomasse o poder. Mas desde que Gilmar Mendes torne-se presidente do Supremo em maio, a Justiça brasileira provavelmente superará essa questão sem dificuldade. Mas, claro, uma interrogação maior surge sobre qual o impacto subsequente que a Lava Jato poderia ter sobre os deputados pró-impeachment. Acelerar o procedimento do impeachment serviu para desviar os olhares da opinião pública sobre a lista da Odebrecht. Mas essas listas podem ser apagadas da consciência da população após o impeachment? Dentro de suas fileiras, toda a classe política está em risco. Será que a justiça brasileira também poderia minimizar essa dificuldade, nos interesses, digamos, de uma reconciliação nacional?

Que o Partido dos Trabalhadores tenha se juntado, por uma transformação ocorrida internamente, às deformadas fileiras do resto da fauna política brasileira – PMDB, PSDB, PP e o restante da corja – não pode ser negado. Até agora, dois presidentes do partido, dois tesoureiros, um presidente e um vice-presidente da Câmara dos Deputados e o líder do partido no Senado foram todos presos, afundados na lama da corrupção que desconhece fronteiras políticas. De forma emblemática, o último dos notáveis e com a delação mais volumosa, o senador Delcídio do Amaral era um refugiado do PSDB, uma importante engrenagem do partido de FHC nas operações da Petrobrás. Mais da metade do Congresso está na lista de pagamento das empreiteiras, cujas doações financiam suas campanhas eleitorais. A degradação do sistema político se tornou tão evidente que no outono passado o STF – que está longe de ser algum tipo de areópago da integridade imparcial – finalmente decidiu que o financiamento privado de campanha era matéria inconstitucional e proibiu as empresas de doarem para as campanhas. O Congresso imediatamente reagiu com emendas constitucionais para permitir as doações, mas o assunto segue congelado na Câmara. Se confirmada a decisão do Supremo sem ser driblada, a decisão permitirá uma espécie de revolução no funcionamento da democracia brasileira: a única coisa inequivocamente positiva em meio a toda essa crise.

O Partido dos Trabalhadores acreditou, durante determinado período, que ele poderia se valer da ordem institucional brasileira para beneficiar os pobres sem prejudicar os ricos – e até mesmo contando com a ajuda deles. E de fato houve benefícios aos pobres, tal como eles se propuseram. Mas uma vez aceito o preço de entrar num sistema político moribundo, a porta para voltarem atrás fechou-se. O próprio partido passou a definhar, tornando-se um enclave do Estado, sem qualquer autocrítica ou direção estratégica, tão cego que chegou a ostracizar André Singer, seu melhor pensador, para colocar uma mistura de marqueteiros e relações públicas, tornando-se tão insensíveis que passaram a conceber o lucro, não importa de onde viesse, como condição para o poder político. Suas conquistas ainda permanecerão. Mas se o partido terá o mesmo destino, isso é uma questão em aberto. Na América do Sul, um ciclo está chegando ao fim. Por uma década e meia, sem a pressão direta dos Estados Unidos, fortalecidos pelo boom das commodities, e amparando-se em grandes reservas de tradição popular, o continente foi a única parte do mundo em que movimentos sociais rebeldes coexistiram com governos heterodoxos. No despertar de 2008, há agora cada vez mais desses movimentos. Mas não há mais nenhum desses governos. Uma exceção global está chegando ao seu fim e sem nenhum sinal de mudança positiva no horizonte.

Nota:

[1] André Singer escreveu a principal análise sobre esse conjunto de medidas e seu desenrolar no artigo "Cutucando onças com varas curtas" (Novos Estudos 102, jul. de 2015), um ensaio que pode ser lido como um epílogo de seu estudo sobre a trajetória do PT, Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador (2012), que investiga a mudança do seu eleitorado após 2005, conforme ele perdera o apoio das classes médias e passou a ganhar a confiança dos pobres, que antigamente, com medo de desordem, votavam contra o partido. Numa combinação de sobriedade crítica e lealdade ao PT, Singer é talvez seu mais preparado intelectual – e talvez possa se argumentar que seja o mais impressionante pensador social de sua geração na América Latina. Secretário de comunicação de Lula durante o primeiro mandato, desde que ele se tornou professor universitário acabou sendo mentalmente descartado pelo PT, que não demonstrara nenhum interesse sobre o seu trabalho.

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