31 de maio de 2018

A Europa sob Merkel IV: O balanço da impotência

Wolfgang Streeck



Tradução / A Europa, como está organizada – ou desorganizada – na União Europeia (UE), é um estranho monstro político. Consiste, em primeiro lugar, na política interna dos seus estados membros que, com o passar do tempo, se entrelaçaram profundamente. Em segundo lugar, os estados membros, que ainda são estados-nação soberanos, perseguem interesses definidos nacionalmente através de políticas externas nacionais dentro das relações internacionais intra-europeias. Aqui, em terceiro lugar, podem escolher entre confiar numa variedade de instituições supranacionais ou em acordos intergovernamentais entre coligações seletivas de países interessados. Em quarto lugar, desde o início da União Monetária Europeia (UEM), que inclui apenas dezanove dos vinte e oito Estados-Membros da UE, surgiu uma outra arena de relações internacionais europeias, constituída principalmente por instituições intergovernamentais informais, vistas com desconfiança pela UE supranacional. Em quinto lugar, todas estas instituições estão inseridas nas condições geopolíticas e nos interesses geoestratégicos de cada nação, que estão relacionados em particular com os Estados Unidos, por um lado, e com a Rússia, a Europa Oriental, os Balcãs, o Mediterrâneo Oriental e o Médio Oriente, por outro. E sexto, há no fundo do sistema estatal europeu uma batalha contínua pela hegemonia entre os seus dois maiores países membros, a França e a Alemanha – uma batalha que ambos negam existir. Cada um dos dois, a seu modo, considera que a sua pretensão de supremacia europeia é simples e evidentemente justa, a Alemanha tanto assim que nem sequer reconhece as suas ambições enquanto tais (1). Além disso, ambas as possíveis hegemonias estão conscientes de que só podem realizar os seus projetos nacionais incorporando o outro dentro delas, e por isso apresentam as suas aspirações nacionais como projetos de “integração europeia” baseados numa relação especial entre Alemanha e França.

No entanto, desde a crise financeira de 2008, pelo menos, este acordo tem estado numa situação de disfuncionalidade e em crescendo. Os sistemas políticos nacionais estão-se a transformar sob o impacto da integração do mercado internacional e da reação “populista” contra ela. As disparidades económicas entre os países-membros estão a aumentar, com um país em particular, a Alemanha, a colher a maior parte dos benefícios da moeda comum – uma condição impossível de corrigir sob a UEM, tal como está constituída pelo Tratado de Maastricht. Os interesses nacionais no que diz respeito às instituições económicas da União diferem muito entre as diferentes variedades de capitalismo aí reunidas. Embora os conflitos que se seguiram tenham sido, durante algum tempo, encobertos por sucessivas “operações de resgate ” e medidas de emergência, agora parece ter chegado a hora da verdade. O Reino Unido está prestes a partir, alterando o equilíbrio de poder entre os países membros. As pressões para a “reforma” estão a aumentar, mas os Estados-Membros e as instituições supranacionais parecem estar num impasse. O antigo “método comunitário” de adiar decisões críticas parece ter atingido os seus limites; entretanto, os riscos estão a acumular-se.

Este ensaio tenta explicar algumas das complexidades subjacentes ao impasse europeu. Argumenta que a política da Europa está suspensa entre as realidades nacionais e uma ideologia pós-nacional. A Europa sofre de uma negação coletiva do fosso entre as duas realidades, em nome de uma “ideia europeia”. E, à medida que se força para que haja cada vez mais “integração” de diversas sociedades nacionais, o fosso entre a ideologia e a realidade aumenta ainda mais.

A Europa da ideia europeia é um futuro sem passado, atrativamente inocente para um continente carregado de memórias de guerra e de genocídio. No entanto, é também um futuro sem presente: para ser aceitável para os seus diversos constituintes, só pode ser vagamente definido para que todos possam ler nele o que quiserem. As tensões entre a diversidade nacional e a unidade supranacional não podem, portanto, ser abordadas de forma eficaz, uma vez que isso revelaria tanto o vazio da ideologia como os conflitos escondidos debaixo dela.

As crises emergentes devem ser enfrentadas através da improvisação quotidiana, deixando para trás um conjunto opaco e confuso de instituições mal articuladas.

Entretanto, a Europa está dividida por interesses nacionais concorrentes, investida de conteúdos nacionais divergentes e transformada num veículo de ambições nacionais contraditórias, nenhuma das quais pode ser publicamente admitida. Os operadores políticos tornaram-se altamente competentes em substituir o simbolismo sentimental por argumentos públicos sóbrios. O sistema político europeu resultante, ao mesmo tempo que substitui cada vez mais a democracia nacional, tornou-se impenetrável para os cidadãos nacionais – um resultado que dificilmente é acidental. Neste ensaio fazemos uma tentativa de desvendar as muitas convoluções da política europeia e de mostrar como é que a interação crítica entre o nacional e o supranacional está a evoluir na Europa. Conclui que chegou o momento em que a manutenção do status quo europeu deixará de ser suficiente.

Alemanha: O centro em colapso

A Alemanha de Angela Merkel costumava considerar-se um exemplo brilhante de estabilidade política. Mas as mesmas forças de fragmentação e divisão entre e dentro dos campos políticos, que assolaram outras democracias capitalistas, também têm estado presentes na Alemanha, operando subterraneamente e aparecendo sob diversas formas. Na eleição de 24 de setembro de 2017, os dois partidos centrais, CDU/CSU e SPD (União Democrática Cristã/União Social Cristã e Partido Social Democrata), que haviam formado a grande coligação Merkel III e dominado juntos a política alemã desde a década de 1950, ganharam apenas 53,4% dos votos. Desse total, apenas 20,5% foram para o SPD. Isto a comparar-se com 67,2% (SPD 25,7%) quatro anos antes. Em 2005, na eleição que levou a Merkel I (também uma grande coligação), o total de votos combinados foi de 69,4% (SPD 34,2%).

É indicativo da nova volatilidade da política alemã que uma política extremamente hábil como Merkel possa ter interpretado mal o eleitorado em 2017. A política de refugiados de Merkel foi calculada, entre outras coisas, para abrir caminho para uma coligação com os Verdes. (2 ) Em vez disso, esta politica ajudou dois novos partidos, a Alternativa para a Alemanha (AfD) e o Partido Democrata Livre (FDP) (3 ) a sentarem-se no Bundestag, com 12,6% e 10,7% dos votos, respetivamente. Enquanto a AfD é apaixonadamente anti-imigração, o FDP opõe-se à imigração por asilo e defende um regime de imigração orientado para o mercado de trabalho. Depois de que a nova maioria desejada por Merkel com os Verdes não se ter materializado a substituição da grande coligação anterior exigiu que o FDP se juntasse ao governo como um terceiro (ou quarto) parceiro.(4) A nova coligação em potencial passou a ser conhecida coloquialmente como “Jamaica”, referindo-se às cores da bandeira do país e ao código de cores usado para identificar os possíveis partidos da coligação (preto para a DU/CSU, verde para os Verdes e amarelo para o FDP). A Jamaica fracassou em novembro de 2017, após quatro semanas de intensas conversações “exploratórias”, quando o FDP desistiu no último minuto. Aparentemente, isso deveu-se à prática de Merkel de arruinar parceiros de coligação desobedientes nas memórias passadas, reavivadas durante as conversações, com a impressão de que uma profunda e preestabelecida harmonia entre Merkel e os Verdes colocaria os ministros do FDP à margem de um futuro governo conjunto.

A retirada do FDP deixou apenas o SPD como um parceiro de coligação viável para Merkel, mas a resistência dentro do SPD a outra grande coligação foi intensa. O SPD foi o que mais sofreu com a grande coligação de 2013-17 e estava a recuperar-se do seu pior desempenho eleitoral de todos os tempos. Esperando que “Jamaica” se concretize, a liderança do SPD comprometeu-se imediatamente após a eleição para a renovação como partido da oposição. No entanto, essa posição mudou três meses depois, quando o presidente federal, um social-democrata que havia perdido contra Merkel em 2009, lembrou ao SPD a sua “responsabilidade nacional”. Sentindo-se como se a escolha fosse entre a morte e o suicídio, o SPD concordou em dialogar com a CDU/CSU, o que levou duas semanas em janeiro de 2018. Uma convenção do partido em 21 de janeiro aprovou por estreita margem as negociações formais. Duas semanas depois, essas negociações produziram um projeto de acordo de coligação, que teve de ser votado pelos membros do SPD.

Em muitos pontos, o projeto de acordo continha a caligrafia do SPD. Merkel, indiferente como sempre à substância, fez concessões de grande alcance para tornar o acordo aceitável para os membros do SPD. O preço que ela pagou foi ter dado a impressão de que estava apenas preocupada em permanecer no poder. O descontentamento cresceu até mesmo no seu próprio partido quando ela concedeu três dos ministérios mais importantes ao SPD: Finanças, Relações Exteriores e Trabalho. Com o Ministério do Interior a ir para a CSU, restaram apenas departamentos menores para a CDU de Merkel (além da chancelaria, é claro). Durante algum tempo, o partido pareceu cair na sua crise mais profunda desde que Merkel substituiu Helmut Kohl da presidência honorária em 2000.

O SPD também começou a fraturar depois da publicação do projeto de acordo. A oposição a outra grande coligação foi forte, independentemente do resultado das negociações. Muitos temiam que, depois de mais quatro anos sob Merkel, o partido pudesse acabar por ficar atrás da AfD. Enquanto o referendo sobre a adesão ainda estava em curso, Martin Schulz, o infeliz chanceler-candidato e líder inepto do partido desde o início de 2017, foi forçado a demitir-se como líder do partido e de futuro ministro das Relações Exteriores (o cargo que ele mesmo havia reivindicado, depois de ter categoricamente recusado servir num gabinete de Merkel). Pouco depois, Merkel nomeou vários rostos novos, metade dos quais mulheres, para os restantes seis cargos de gabinete da CDU. Isto silenciou, por enquanto, os seus opositores internos do partido. A 4 de Março, foi anunciado que dois terços dos membros do SPD (com uma participação de 78 por cento) tinham votado a favor de outra grande coligação, tendo muitos votado a favor dela por receio de que uma nova eleição geral resultasse noutra derrota ainda mais grave. No dia 14 de março, o Bundestag elegeu Merkel para um quarto mandato como chanceler.( 5 )

Fundamentalmente, o caminho tortuoso para uma grande coligação renovada levantou a questão do futuro de Merkel. Até à onda de imigração de 2015, Merkel tinha dominado no seu partido ainda mais do que Kohl, mudando de direção à vontade, vestindo a CDU com cores esverdeadas e de centro-esquerda, eliminando todos os que poderiam tê-la desafiado para a sucessão. Isso ajudou-a na crise pós-eleitoral quando, após a passagem à reforma do ministro das finanças Wolfgang Schäuble, não restou ninguém que pudesse realisticamente afirmar que lhe sucederia sem o seu consentimento. Ainda assim, após os resultados desastrosos das eleições, o atraso de meio ano na formação de um governo e as difíceis concessões necessárias para formar uma coligação, parece improvável que o seu partido a nomeie para um quinto mandato em 2021. Isto significa que o seu sucessor terá que ser designado no verão de 2020, o mais tardar, para dar tempo suficiente para a campanha. Por outras palavras, aproximadamente no meio do seu quarto mandato, Merkel transformar-se-á numa espécie de pato coxo. Além disso, não só o longo período de formação do governo reduziu a sua vida útil no cargo, como também o calendário eleitoral regional. Nenhuma decisão politicamente difícil pode ser tomada antes das eleições na Baviera em outubro de 2018, certamente não sobre assuntos “europeus”.
Europa alemã

A política nacional alemã é um fator crucial na política da Europa, assim como a Europa é uma poderosa presença interna na Alemanha. O “consenso permissivo” que durante várias décadas permitiu que a integração europeia prosseguisse sem entraves foi mais forte na Alemanha do que em qualquer outro lugar, exceto talvez na Itália. (6) Até hoje, a “Europa ” (7) carrega algo como uma aura sagrada na Alemanha, demasiado elevada para ser ligada a conceitos sujos como o interesse nacional. Os principais sustentáculos do europeísmo alemão são as educadas classes médias e a geração jovem, para quem a Europa representa tudo o que é virtuoso e agradável – de paz, direitos humanos, tolerância e “abertura” para um mercado de trabalho internacional e viagens convenientes através das fronteiras. Refletindo as dificuldades de se identificarem a uma nação alemã depois de 1945, o sentimento pró-europeu alemão há muito tempo considerou evidente que a UE é, em última análise, o navio em que as nações europeias podem abrigar os seus Estados, identidades e interesses separados. Enquanto outros países membros podem ter aderido à UE para restaurar ou preservar a sua soberania nacional, (8) a Alemanha está na UE para se desfazer dela, acreditando firmemente que isso se aplica a todos os outros também.

Isto, naturalmente, não significa que o europeísmo alemão não tenha sido (e não seja) orientado por interesses. A adesão à CEE nos anos 50 foi necessária para o ressurgimento da Alemanha Ocidental como Estado soberano. Além disso, a garantia de acesso a um mercado europeu integrado e em constante expansão era e é indispensável para a prosperidade da economia alemã, excessivamente industrializada e exportadora. Hoje, o acesso ao mercado é assegurado pela moeda comum, que também deprime artificialmente a taxa de câmbio das indústrias alemãs que exportam para o resto do mundo. (9) Na consciência pública alemã, no entanto, os interesses materiais alemães na “Europa” são revestidos por uma imagem da UE, incluindo a UEM, como uma “comunidade de valores” (Wertegemeinschaft). Isso ofusca a questão estrutural de como é e deve ser a Europa política e economicamente organizada: como uma zona de livre comércio, uma plataforma de cooperação entre Estados-nação soberanos, uma organização internacional dedicada à “globalização” das economias nacionais, ou um super-Estado supranacional -e como em particular ela deve estar relacionada à democracia nacional. Uma vez que qualquer discussão sobre esta questão poderia minar a “Europa” como um símbolo integrador – acordando cães adormecidos e expondo a superficialidade de um consenso pró-europeu meramente idealista – esta questão é cuidadosamente evitada. Aqui, a inigualável capacidade de Merkel em se exprimir sem nada dizer tem sido inestimável para preservar a aparência “verde” sem pagamento de juros do europeísmo alemão, que é tão atraente para os eleitores da classe média

Um resultado é que, na Alemanha, os interesses nacionais tendem a ser confundidos com os interesses gerais europeus. (10) Enquanto outros países distinguem entre os dois, e muito menos dão primazia aos primeiros, os alemães ficam honestamente perplexos e a distância entre a intriga e a desaprovação moral é curta. Na Alemanha, ser pouco entusiasta da “união cada vez mais estreita dos povos da Europa” (Tratado de Maastricht) é considerado um indicador de um défice moral: veja-se a condenação moral universal da decisão britânica de sair da União Europeia. A afirmação de interesses nacionais face a algo tão sagrado como “a ideia europeia” é considerada como um lapso deplorável num passado desacreditado. Entretanto, a insistência alemã num mercado integrado em que nenhum país pode enganar a indústria alemã desvalorizando a sua moeda não é vista como a defesa de um interesse nacional, mas como o cumprimento de um imperativo moral.

A perspetiva dos interesses nacionais alemães se dissolverem num interesse europeu comum, ou numa “ideia europeia”, é a mais popular entre os Verdes. Mas é também partilhada por uma grande parte dos eleitores e dos membros do SPD, embora o seu número exato não seja claro. Quando Sigmar Gabriel percebeu, no início de 2017, que o SPD estava farto dele como presidente e candidato a chanceler, chamou Martin Schulz, um ex-presidente do Parlamento Europeu que não conseguiu avançar para a presidência da Comissão Europeia, para que este assumisse ambas as posições do SPD. (11) Como Schulz não tinha experiência na política em geral e na política alemã em p, em particular, a ideia, aparentemente, era que o SPD beneficiasse da sua aura “europeia”. Curiosamente, porém, Schulz optou por não fazer campanha pela “Europa” – a conselho da sua equipa, nunca mencionou sequer o assunto – mas sim pela “justiça social”, uma decisão que mais tarde considerou ser um dos seus muitos erros. Provavelmente para corrigir este erro entendido já como tal, Schulz, de repente, defendeu que um “Estados Unidos da Europa” numa convenção do SPD, em 7 de dezembro de 2017, fosse concluído “o mais tardar em 2025″. Os países que não estivessem dispostos a aderir teriam de abandonar a UE. (A frase ” Estados Unidos da Europa” nunca mais apareceu.)

Enquanto isso, as conversações “Jamaica” fracassaram, sobretudo por causa das suspeitas do FDP de que Merkel e os Verdes já tinham chegado a um acordo tácito para oferecer concessões fiscais substanciais à França. (12) Em resposta, e impulsionados pelas suas conexões francesas, Schulz e Gabriel insistiram que o capítulo do acordo de coligação sobre “Europa” deveria vir em primeiro lugar, o que foi celebrado pelos media convencionais como um importante passo em frente.(13) Alegadamente Schulz e o seu antigo camarada de armas, Jean-Claude Juncker, da Comissão Europeia, foram co-autores da parte do acordo relacionada com a Europa, com Merkel, programaticamente agnóstica como sempre, fazendo-o aprovar sem qualquer modificação. A esperança de Schulz, no entanto, de que isso gerasse entusiasmo entre os membros do SPD e outra grande coligação ficou rapidamente desapontada. Quando Schulz, no seu discurso na convenção do Partido em janeiro, mais uma vez falou de que Emmanuel Macron o chamou para lhe pedir que a formação do novo governo fosse acelerada, os delegados riram-se com desprezo, para surpresa dos jornalistas alemães dos principais media pró-europeus.

Passivos a chegarem à data de vencimento

Entre os legados de Merkel III está uma fragmentação sem precedentes do sistema político partidário alemão, com a AfD a estabelecer uma presença considerável no Bundestag, e o FDP a ter um pouco menos. Ambos chegaram a este nível de representação parlamentar após a abertura das fronteiras de Merkel em 2015. Em comparação com outros países, os seis ou sete partidos parlamentares da Alemanha (dependendo de como se conta a CSU) podem não parecer excessivos. Mas dois deles, o AfD e o Die Link, que juntos representam 22% do eleitorado, são tratados como párias pelos outros. Isso exclui-os de qualquer maioria governamental e é uma das razões pelas quais a formação de Merkel IV foi tão difícil. (Na Alemanha Oriental, os dois partidos juntos representam cerca de 40% dos votos.14)

O Parlamento alemão é um órgão potencialmente bastante poderoso, desde que utilize os seus direitos. Sob o domínio de Merkel III, muitas vezes não o fez. No que se refere à “Europa”, em particular, ambos os partidos da oposição, os Verdes e a Esquerda, estavam ansiosos por proteger a sua reputação “pró-europeia”, não sendo demasiado curiosos. Agora, se a AfD aprende as regras parlamentares, isso vai mudar. E se o FDP, enquanto partido liberal, é claramente “pró-europeu”, é também um porta-estandarte da tradição ordoliberal alemã. Este partido não se cansará, portanto, de recordar ao governo os princípios, como os do Tratado de Maastricht, que a Chancelaria pretende subscrever em público, mas que, na prática, foram muitas vezes desprezados. A AfD, por seu lado, sendo clamorosamente anti-imigração, não perderá qualquer oportunidade de exigir o acesso a informações governamentais politicamente sensíveis sobre esta matéria.

Relativamente à Europa, Merkel III alcançou o seu objetivo primordial: salvar o euro como moeda comum. Não se trata de uma conquista menor, dada a contribuição essencial do euro para a prosperidade alemã. Além disso, porém, o legado europeu de Merkel está cheio de responsabilidades potencialmente destrutivas.

O convite súbito, em setembro de 2015, para a entrada de cerca de um milhão de migrantes na Alemanha – e, ipso facto, no espaço Schengen e na União Europeia – serviu as necessidades alemãs, tanto nacionais como internacionais, e foi alargado sem consulta aos parceiros europeus da Alemanha. Internamente, pretendeu-se preparar uma mudança de coligação em 2017, ajudando Merkel a superar a imagem de “rainha do gelo” que ela havia ganho quando, no início de 2015, ela explicou num programa de TV ao vivo para uma refugiada palestina a chorar e que prestes a ser deportada que “não podemos ficar com vocês todos”. A nível internacional, respondeu, “mostrando um rosto amigo”, à controvérsia sobre o último diktat de “austeridade” entregue à Grécia em junho de 2015, que tinha provocado uma onda de desenhos animados por toda a Europa retratando Merkel e Schäuble com uniformes da Wehrmacht adornados com suásticas.

Entre outras coisas, a abertura da fronteira causou uma profunda divisão com a Europa Oriental, que se tornou ainda mais profunda quando países como a Hungria e a Polónia foram posteriormente ameaçados, tanto por Merkel como por Schulz, com um corte nos subsídios da UE, a menos que concordassem em receber uma parte fixa de um número indefinido de novos imigrantes. A política de imigração alemã de 2015 também pode ter sido a última gota no balde a favor da Leave no referendo Brexit de junho de 2016.

Não menos destrutivo foi um outro aspeto da liderança europeia da Alemanha. A política alemã há muito que é caricaturada pelos seus críticos como excessivamente rígida e inflexível, de acordo com os estereótipos da rigidez “teutónica”. Mas isto baseou-se principalmente na retórica de Merkel, do seu partido, do Bundesbank e do Conselho Alemão de Consultores Económicos. O que raramente se notou foi que estes últimos eram igualmente críticos em relação ao governo de Merkel, mas por ser demasiado acomodatício. De facto, Merkel III, depois de uma análise atenta, tinha repetidamente encorajado tacitamente o BCE e a Comissão Europeia a olharem para o outro lado quando, por exemplo, a França excedeu o seu limite da dívida, ou o Estado italiano precisava de refinanciar o seu sistema bancário, contornando de forma “flexível” as regras de Maastricht. (15). Para manter unido o campo político de Merkel, isto não podia ser admitido publicamente. O custo de tal duplicidade era que se tornava possível desencadear o descontentamento popular relativamente à “rigidez” alemã no exterior, às vezes culminando em pedidos de reparação por crimes de guerra alemães, ou em veredictos de tribunais italianos autorizando a apreensão de propriedades do governo alemão, como instalações do Instituto Goethe, na Itália.

Entre as elites europeias, as concessões não reconhecidas de Merkel parecem ter sido apreciadas, pois ajudaram a manter os novos “populistas” fora do poder. Com o tempo, porém, à medida que a situação no Mediterrâneo continuava a deteriorar-se, a permissividade alemã teve de ser complementada com promessas informais de reformas na zona euro, após a renovação do mandato de Merkel. É claro que não há registo público de que tais promessas tenham sido realmente feitas. Mas sem elas é difícil imaginar como as exigências europeias de uma mudança institucional fundamental poderiam ter ficado tão perfeitamente silenciadas durante a campanha eleitoral alemã. A estratégia de Merkel pode ter sido inspirada pela memória de Helmut Kohl, que foi amplamente venerado por ter pago a conta quando não havia outra forma de resolver as tensões entre os Estados-Membros da UE, especialmente as disputas envolvendo a Alemanha. (16) No entanto, como as contas europeias aumentaram em dimensão, especialmente depois da união monetária, a generosidade alemã atingiu os seus limites, e a austeridade de Schäuble sucedeu-se à generosidade de Kohl como a contribuição alemã prototípica para a integração europeia.

O problema fundamental com as promessas da Alemanha de fazer futuras reparações estruturais ao edifício europeu, a expensas da Alemanha, foi e é o facto de estas se terem tornado inevitavelmente cada vez mais irrealistas, tanto do ponto de vista económico como político. Pouco é tão destrutivo nas relações internacionais como expectativas irrealistas, especialmente quando encorajadas por uma negação moralista dos interesses nacionais e pela sua substituição por “valores”. O estilo de liderança pessoal de Merkel – que sempre se baseou num turbilhão de questões através de uma ambiguidade habilmente elaborada e, na maioria das vezes, de um discurso ininteligível – pode tê-la ajudado durante algum tempo. Mas, em última análise, quando os chips estão em baixo, o risco é que a capacidade limitada seja tomada por ser má vontade, e a incapacidade de dar seja vista como falta de vontade de dar. A defesa da ultra posse é excluída quando a desaprovação moral impede um ajustamento realista das expectativas. A distância entre o prometido e o possível torna-se identificada como um problema moral e não como um problema político ou económico, e o desapontamento resulta numa retórica altamente inflamável, emocional e hostil.

Desde a crise do euro depois de 2008, a política europeia de Merkel consistiu em sucessivas soluções de curto prazo para os problemas estruturais, acompanhadas de sinais de soluções estruturais futuras quando as condições políticas na Alemanha eram favoráveis.

A perspetiva de uma coligação com os Verdes foi útil neste contexto, tal como o foram os sociais-democratas como Gabriel e Schulz. O primeiro como ministro dos Negócios Estrangeiros e o segundo como chanceler-candidato tentaram classificar-se entre os eleitores alemães como sendo de espírito europeu, anunciando repetidamente contribuições alemãs mais elevadas para a “Europa”, a serem dadas unilateral e incondicionalmente, e prometendo geralmente um “fim à austeridade” através do aumento do “investimento” de tipo não especificado. Quando Schulz fez saber que tencionava suceder a Gabriel como ministro dos Negócios Estrangeiros, os jornais italianos falaram de forma lírica sobre a perspetiva de um governo alemão “verdadeiramente europeu”. Finalmente, a Alemanha estaria disposta a reciclar o excedente comercial alemão – presumivelmente localizado nas caves do Bundesbank- no sítio onde pertencia legitimamente, na Itália. (17) (Poucos dias depois, Schulz desapareceu no redemoinho pós-eleitoral do SPD).

Expectativas como estas fazem parte do difícil legado europeu de Merkel e do seu parceiro da coligação SPD, que terá agora de ser resolvido de forma dolorosa. Após a saída de Schulz, a nova estrela do SPD tornou-se um Olaf Scholz, nomeado ministro das Finanças e representante do SPD no gabinete como vice-chanceler. Scholz, ao contrário de Schulz, é um político experiente, que foi ministro do Trabalho em Berlim e foi prefeito de Hamburgo (um Lander segundo a Constituição alemã). Um social-democrata conservador do ponto de vista orçamental, Scholz foi um dos gestores da Agenda 2010 de Schröder. Apesar de conhecer em primeira mão os problemas que os Länder e as comunidades locais têm para equilibrar os seus orçamentos, Scholz apoia vigorosamente o “travão da dívida” que a Alemanha impôs a si própria, tanto a nível nacional como dos Länder. No entanto, após o desaparecimento de Schulz, a imprensa europeia optou por se entusiasmar com Scholz – acreditando que, seja com Schulz ou com Scholz, o SPD no governo manteria a sua retórica sobre as responsabilidades alemãs na “absorção de choques” na Europa, “investimento” e “solidariedade”.

Este artigo foi originalmente publicado em American Affairs Volume II, Número 2 (verão de 2018): 162-92.

Notas

1 Herfried Münkler, Macht in der Mitte: Die neuen Aufgaben Deutschlands in Europa (Hamburg: Körber-Stiftung, 2015).

2 Esta foi uma segunda tentativa depois da “viragem da energia” (Energiewende) após o desastre de Fukushima Daiichi de 2011. Surpreendentemente, em 2013, isso não foi suficiente para fazer com que a ala esquerda dos Verdes renunciasse aos planos de reforma orçamental como condição para aderir ao governo. Desde então, e por causa disso, a ala centrista dos Verdes ganhou vantagem

3 O FDP regressou após a sua experiência de quase morte em 2013, quando, como parceiro menor de Merkel por quatro anos, não conseguiu, com 4,8%, ultrapassar o limite de 5%.

4 A CDU e a CSU são formalmente duas entidades políticas separadas. Mas a CSU apresenta candidatos apenas na Baviera e a CDU apenas fora da Baviera, o que os torna, no seu calão, “partidos irmãos”. Desde a década de 1950, a CSU tem governado o Land da Baviera, quase sempre com maioria absoluta. Em parte, isso é devido à sua presença distinta no nível federal, onde representa agressivamente os interesses e sentimentos bávaros, se necessário, em conflito com a própria CDU. Com efeito, isto contém quaisquer tendências separatistas que ainda possam existir na Baviera.

5 Dos 399 votos combinados da CDU/CSU e do SPD, Merkel recebeu 364, uma diferença de 35 e apenas 9 mais do que o necessário para a maioria absoluta exigida.

6 Leon N. Lindberg and Stuart A. Scheingold, Europe’s Would-Be Polity: Patterns of Change in the European Community (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1970).

7 Qualquer distinção entre a Europa, o continente e a “Europa” como forma idealizada da União Europeia é algo que os acérrimos defensores desta última fazem tudo o que podem para ofuscar.

8 Alan Milward, The European Rescue of the Nation-State (London: Routledge, 1992).

9 Fritz W. Scharpf, “Forced Structural Convergence in the Eurozone—Or a Differentiated European Monetary Community,” MPIfG Discussion Paper 16/15, Max Planck Institute for the Study of Societies, Cologne (2016).

10 A este respeito, se em nenhum outro mais, a política interna alemã assemelha-se à de um país (potencialmente) hegemónico. O mesmo se aplica, naturalmente, à França – só que os franceses imaginam os interesses europeus como idênticos aos interesses franceses, enquanto os alemães imaginam os interesses europeus como negando ou substituindo todos os interesses nacionais, incluindo os alemães. Enquanto ambos os lados se abstiverem tacitamente de levantar a questão, os dois conceitos podem coexistir mais ou menos confortavelmente.

11 Sobre isto e na consequente campanha eleitoral veja-se: Markus Feldenkirchen, Die Schulz-Story: Ein Jahr zwischen Höhenflug und Absturz (München: Deutsche Verlags-Anstalt, 2018).

12 Note-se que Macron tinha alegadamente declarado antes das eleições que, “se o FDP entrar no governo alemão, eu estarei morto.” Mais sobre isso veja-se abaixo.

13 Ambos trabalharam arduamente durante todo o ano para melhorar a sua imagem, encontrando-se com Macron e almoçando ocasionalmente com o filósofo Jürgen Habermas, pelo menos uma vez em conjunto com o próprio Macron. Gabriel chegou ao ponto de declarar Macron um social-democrata, e Habermas fez saber que Macron estava prestes a abolir “a trágica divisão entre direita e esquerda na política francesa”. Quando o SPD se preparava para afastar Gabriel como ministro dos Negócios Estrangeiros, Habermas exigiu, num artigo de um jornal semanal, Die Zeit, que ele fosse mantido no cargo, por causa do seu europeísmo visionário. Sobre as artimanhas de Gabriel, ver Feldenkirchen, Die Schulz-Story (2018).

14 O rendimento per capita da Alemanha Oriental tem sido durante muitos anos cerca de três quartos da média alemã, apesar das transferências financeiras anuais em torno de 4% do PIB alemão. As implicações da persistência obstinada da desigualdade regional, mesmo num estado federal como a Alemanha, para a política e a economia da zona do euro raramente são discutidas. Ver Wolfgang Streeck e Lea Elsässer, “Desunião monetária”: The Domestic Politics of Euroland”, Max Planck Institute for the Study of Societies, Colónia (2014), Documento de reflexão 14-17.

15 Johannes Becker and Clemens Fuest, “Deutschlands Rolle in der EU: Planloser Hegemon. Ein Gastbeitrag,” Frankfurter Allgemeine Zeitung, December 13, 2016.

16 Ver o pagamento da parte de leão dos custos da política agrícola comum (PAC) feito pela Alemanha que beneficiou principalmente a França, em troca da abertura dos mercados para o seu sector transformador.

17 Podemos suspeitar que isso foi, em grande parte, para impedir uma maioria anti-euro nas eleições italianas que se aproximavam. Se assim foi, falhou de forma espetacular. Veja abaixo.

Os idosos são mais conservadores porque os pobres não sobrevivem para se tornarem idosos

As pessoas pobres muitas vezes não sobrevivem para se tornarem idosos que votam

Por Ed Kilgore, colunista político do Intelligencer desde 2015

New York Magazine

Votar não é uma coisa fácil se você é velho, doente e pobre. Foto: Emile Wamsteker/Bloomberg via Getty Images

Tradução / Uma das realidades permanentes da nossa era política é uma grande divisão geracional ancorada, pela direita, por idosos desproporcionalmente conservadores e, pela esquerda, por millennials e pós-millenials desproporcionalmente progressistas. Isso geralmente é avaliado como um fenômeno perfeitamente normal, até inevitável: pessoas jovens são aventureiras, abertas a novas maneiras de pensamento e não investiram intensamente seu tempo no status quo, enquanto a terceira idade já testou pontos de vista, possui ativos que quer proteger e um crescente medo do desconhecido.

Existe alguma verdade nestes estereótipos, apesar de diferentes grupos de jovens no passado terem sido muito mais conservadores que os atuais, e, em termos culturais, pessoas mais velhas terem sido às vezes tão progressistas (ou até mais) que seus filhos e netos (por exemplo a famosa Grande Geração, que em sua maioria cresceu na Grande Depressão Norte-Americana, era persistentemente democrata politicamente).

Mas é importante notar que algumas separações geracionais em comportamento político são dirigidas pela demografia. É bem entendido que millennials são significantemente mais diversos que as gerações anteriores. Contudo, há outro fator direcionando a relativa homogeneidade dos mais antigos: pessoas mais pobres são muitas vezes acometidas por doenças crônicas e sucumbem em morte prematura. Um novo estudo acadêmico destacado pelo blog Washington Post's Monkey Cage explica:

A participação política dos pobres é, em geral, mais baixa por causa da pobreza, má saúde e muitos outros fatores, mas milhões de americanos empobrecidos em todo o país também morrem prematuramente. Por exemplo, em 2015, uma pesquisa financiada pelos Instituto Nacional de Administração da Saúde e da Seguridade Social revelou que, desde 1990, no último quartel dos americanos com menor escolaridade, a expectativa de vida estagnou ou diminuiu. Isso ocorre para mais de 40 milhões de pessoas.

Adicione a esta tendência negativa o fato de que a mortalidade entre os mais pobres aumenta na meia idade – que é quando cidadãos geralmente se envolvem em política. O desaparecimento prematuro dos pobres, então, ocorre precisamente no momento em que deles seria esperado alcançar seu ‘pico participativo’ na sociedade. Mas eles não vivem o suficiente para alcançar este marco.

Como pessoas brancas sofrem proporcionalmente menos de pobreza que não-brancos, eles tendem a viver mais e em melhores condições de saúde, o que proporciona maior possibilidade de ativismo civil e político. O grupo racial demográfico mais tendente à esquerda, os negros norte-americanos, progrediu recentemente em reduzir esta lacuna entre as expectativas de vida com os brancos, contudo ainda está atrasado em duração de vida e saúde, como o estudo de 2017 do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) mostra:

Para negros de 18 a 64 anos, os dados mostraram que eles estavam em maior risco de morte prematura que os brancos.

Essas descobertas são consistentes em sua generalidade com relatórios anteriores, que usam o termo ‘declive’, sugerindo que negros experienciam envelhecimento e declínio em condições de saúde prematuramente quando comparados a brancos, e que esse declínio se acumula durante toda a vida e, potencialmente, em gerações futuras. Isso acontece como uma consequência de complicadores psicossociais, econômicos e ambientais.” disse Leandris Liburd, diretor do Escritório de Equidade de Saúde de Minorias do CDC.

Como o autor do novo estudo discute na nota do Monkey Cage, disparidades de idade e expectativa de vida podem ser autoperpetuadoras.

Desigualdade nos Estados Unidos, em outras palavras, não é apenas o resultado de diferenças econômicas. Saúde também tem um potencial considerável em atrapalhar os mais pobres. Socioeconomia, longevidade e participação política se reforçam mutuamente, fazendo com que, para norte-americanos pobres, seja especialmente difícil ganhar influência política.

Então não é apenas uma questão de pessoas naturalmente crescendo e se tornando conservadoras no processo. É também uma questão de que as pessoas mais ricas – e mais conservadoras, sobrevivem em taxas maiores e por mais tempo.

A política de refino, derivados e preços da Petrobras, uma comédia de erros

Economistas liberais tentam simplificar causas da greve dos caminhoneiros

Rodrigo Leão e William Nozaki

Folha de S.Paulo


Os economistas liberais têm o hábito de submeter realidades complexas criando verdades simplificadoras, como no atual diagnóstico da greve dos caminhoneiros. Para eles, o estopim da atual greve (ou locaute) seria fruto do aumento dos impostos ou até mesmo uma decorrência do excesso de oferta de caminhões.

Causa estranheza o primeiro argumento, dado que o último aumento de impostos na gasolina e no diesel ocorreu há aproximadamente um ano. Segundo o relatório do Ministério de Minas e Energia de março deste ano, entre os países da OCDE e América do Sul, o preço do óleo diesel no Brasil, excluindo os impostos, é mais baixo somente do que o praticado no Uruguai, Argentina e Japão (que não são grandes produtores de petróleo).

Quando incluídos os tributos, o diesel no Brasil é mais barato do que em dez países, entre eles França e Reino Unido. Seria difícil, portanto, creditar aos impostos a recente elevação do preço.

O argumento lançado por Samuel Pessôa, nesta Folha, comete de uma só vez pelo menos quatro erros: (i) deixa de observar a heterogeneidade do movimento dos caminhoneiros e trata a questão como se o problema pudesse ser reduzido ao número de caminhões; (ii) ignora que essa compressão das margens ocorre desde o início da crise em 2015; (iii) omite o papel da atual política de desmonte da Petrobras como se a petrolífera brasileira não tivesse responsabilidade na crise de preços dos combustíveis; (iv) com isso desloca a interpretação do setor de petróleo para o setor de transporte, invertendo causa e consequência.

A se seguir o raciocínio do autor, os proprietários de veículos são os responsáveis pelo aumento da gasolina e as donas de casa, provavelmente, responsáveis pela elevação do preço do gás de cozinha. Mas, então, por que as manifestações eclodiram apenas agora?

Os argumentos apontados acima visam tergiversar sobre o assunto e não se atentam ao cerne do problema: a política de refino dos derivados da Petrobras.

A atual subutilização do parque de refino da Petrobras reduziu a sua capacidade de utilização de 87%, em março de 2015, para 68% em março de 2018, tornando o país incapaz de atender sua própria demanda interna. Entre 2015 e 2018, a venda de derivados no mercado interno se reduziu de 2,5 milhões para 2,3 milhões de barris por dia, ao passo que a produção de derivados da estatal caiu de 1,9 milhão para 1,6 milhão de barris por dia.

Considerando que a atual capacidade do parque de refino brasileiro é de 2,4 milhões de barris por dia, o uso pleno da capacidade de produção seria capaz para atender grande parte do mercado interno. Em vez disso, opta-se por recorrer às importações e reduzir artificialmente o uso de refinarias.

Segundo estimativas do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep), o custo de produção dos derivados no Brasil —cerca de US$ 40 a 45 o barril— é bem mais baixo que o atual preço do petróleo internacional, cerca de US$ 70. Sendo assim, por que abrir mão do uso do parque de refino para importar os derivados no mercado externo?

Ao contrário do que afirma Samuel Pessôa, isso daria mais flexibilidade à gestão dos preços da estatal brasileira, fazendo ajustes mais graduais no preço, levando-se em conta as mudanças no mercado interno.

No entanto, o colunista trata o Brasil como uma economia dependente das importações de gasolina e diesel e que, portanto, o preço doméstico dos derivados deveria seguir “fielmente” as variações dos preços internacionais. Tudo se passa como se o parque de refino nacional não tivesse participação nesse processo.

No Brasil, o debate sobre a industrialização, a segurança energética e a necessidade de autossuficiência no abastecimento nacional de combustíveis continua mais atual do que nunca, ao contrário do que propõe os liberais que, submersos numa comédia de erros, continuam colocando as ideias fora do lugar.

Sobre os autores

Rodrigo Leão

Economista, pesquisador-visitante do Núcleo de Estudos de Conjuntura da UFBA e diretor-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep)

William Nozaki

Cientista político, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e diretor-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep)

27 de maio de 2018

A democracia liberal está em crise. Mas... sabemos o que é isso?

Para abordar o futuro do liberalismo e da democracia, devemos pensar claramente sobre os termos. Isso significa olhar para o passado

Helena Rosenblatt

The Guardian

"O despotismo de Napoleão confirmou as primeiras apreensões dos liberais sobre a democracia". Fotografia: Belas artes / © Rmn-GP (Castelo de Versalhes)

Há 25 anos, Fareed Zakaria alertou contra uma nova e crescente ameaça: o aumento da "democracia ilegal" em todo o mundo. Os governos eleitos democraticamente estavam desrespeitando rotineiramente os princípios liberais, violando abertamente o estado de direito e privando seus cidadãos de direitos e liberdades básicas.

Hoje, muitos acreditam que estamos no precipício de uma crise existencial. A democracia liberal está "mais perto do colapso do que podemos acreditar", escreve Ed Luce, do Financial Times. Em um novo livro, a ex-secretária de Estado Madeleine Albright até alerta para um renascimento do fascismo.

Existe um consenso crescente de que a própria democracia americana está em risco. O índice da Economist classifica os Estados Unidos como uma "democracia imperfeita". Existe um perigo: os americanos estão se tornando complacentes com a democracia, perdendo o interesse em seus ideais tradicionais. O liberalismo falhou, escreve Patrick Deneen. O problema, diz David Brooks, do New York Times, é que os liberais esqueceram como defender seus "valores democráticos liberais". Eles devem voltar aos primeiros princípios; eles devem se lembrar "do cânone da democracia liberal".

O problema é que realmente não sabemos o que é democracia liberal. Uma série de livros, artigos e textos de opinião falam sobre seu desaparecimento, mas seus autores falam para si mesmos ou para seus círculos, porque estão usando definições diferentes do termo. Ed Luce define liberalismo de uma maneira, David Brooks de outra e Patrick Deneen de outra. Como podemos ter uma discussão adequada sobre democracia liberal quando não estamos falando da mesma coisa?

O problema envolve mais do que semântica. A confusão de termos leva a um pensamento confuso. Isso prejudica a compreensão dos liberais sobre seus próprios princípios e enfraquece sua política. Seus oponentes exploram facilmente as ambiguidades verbais. Já é mais do que tempo de esclarecermos o que significa o termo "democracia liberal" e o que ela significa. Para isso, precisamos entender sua história.

Um erro comum é confundir liberalismo com democracia. Os dois conceitos não são sinônimos. Durante a maior parte de sua história, eles nem foram compatíveis. Desde a época dos gregos antigos, "democracia" significa "governo do povo". Alguns interpretaram isso como participação política direta de todos os cidadãos do sexo masculino. Outros o consideraram um sistema representativo baseado no sufrágio de todos os cidadãos do sexo masculino. De qualquer forma, no século XIX, a maioria dos liberais era hostil à própria ideia de democracia, que eles associaram ao caos e ao domínio da máfia. É difícil encontrar um liberal entusiasmado com a democracia durante o auge do que é freqüentemente chamado de "liberalismo clássico". De fato, não seria errado dizer que o liberalismo foi originalmente inventado para conter a democracia.

Certamente, os fundadores do liberalismo não eram democratas. Benjamin Constant defendeu rigorosas qualificações de propriedade para que se pudesse votar e ocupar cargos públicos. A revolução francesa provou a liberais como ele que o povo estava totalmente despreparado para os direitos políticos. As pessoas eram ignorantes, irracionais e propensas à violência. Sob sua pressão, o estado de direito havia sido suspenso, “inimigos do povo” guilhotinados, direitos pisoteados. A fase mais democrática da revolução também foi a mais sangrenta.

O despotismo de Napoleão, que foi legitimado repetidamente por plebiscitos baseados no sufrágio universal masculino, apenas confirmou as apreensões dos liberais sobre a democracia. A popularidade do imperador demonstrou em termos inequívocos que os cidadãos franceses tinham uma predileção doentia por governantes autoritários e eram fatalmente suscetíveis à propaganda. Novas palavras foram inventadas para nomear seu regime pseudo-democrático. Alguns o chamavam de "despotismo democrático". Outros usaram os termos "Bonapartismo" ou "Cesarismo". Constant chamou de "usurpação". Os "usurpadores" são constantemente compelidos a justificar suas posições, então usam mentiras e propaganda para fabricar apoio. Eles formam alianças com autoridades religiosas para sustentar seus regimes. Eles levam seus países a guerras inúteis para distrair as pessoas de sua traição, enquanto aumentam seu próprio poder, enchem seus próprios bolsos e enriquecem seus amigos. O pior de tudo é que eles corrompem seu povo, compelindo-o a participar de suas mentiras.

Alexis de Tocqueville também tinha profundas dúvidas sobre a democracia. Duas revoluções francesas adicionais, uma em 1830 e a outra em 1848, seguidas por outro Napoleão, o deprimiram bastante. Mais uma vez, provou que as massas eram presas fáceis de demagogos e pretensos ditadores que atendiam seus instintos mais baixos. A democracia promoveu uma forma perniciosa do individualismo, outra palavra para egoísmo no léxico de Tocqueville.

Os primeiros liberais, como Constant e Tocqueville, passaram muito tempo pensando em como combater os perigos da democracia. Limites tiveram que ser colocados na soberania do povo, no estado de direito e nos direitos individuais garantidos. Mas boas leis nunca seriam suficientes, já que um homem forte popular poderia facilmente pervertê-las ou simplesmente ignorá-las. A sobrevivência das democracias liberais exigia uma cidadania politicamente educada. Constant viajou pela França instruindo os cidadãos franceses sobre os princípios de sua constituição, seus direitos e deveres. Ele publicou artigos e discursos proferidos com o mesmo propósito. Lutou bravamente pela liberdade de imprensa.

Ambos também acreditavam que a sobrevivência de uma democracia liberal dependia de certos valores morais. Exigia espírito público e senso de comunidade. Tocqueville pensou profundamente em promover a "moralidade pública" e a "virtude pública". Constant agonizou com a complacência política, apatia moral e egoísmo que via ao seu redor. Somente os ditadores lucravam com tais vícios.

Como combater a degradação moral? Eles também pensaram nisso. O compromisso das elites de espírito público era essencial. "As classes esclarecidas" e os "homens bem-intencionados" devem ser os "missionários da verdade", escreveu Constant. Eles devem redobrar seus esforços para combater o cinismo que estava afastando as pessoas do bem público. Como disse Tocqueville, era essencial "educar a democracia". E este, disse, era "o primeiro dever imposto aos dirigentes da sociedade hoje".

É um triste sinal dos tempos que tais declarações soem tão ingênuas ou vazias hoje. A verdade é que ainda temos muito a aprender com os fundadores do liberalismo, que também viveram uma crise existencial. Eles sabiam da tendência que as democracias têm de se tornar iliberais. Prestemos atenção às suas lições.

Helena Rosenblatt é professora de história no Graduate Center da City University of New York. Ela é a autora do livro a ser publicado em breve, The Lost History of Liberalism: From Ancient Rome to the Twenty-First Century.

23 de maio de 2018

Mike Davis sobre os crimes do socialismo e do capitalismo

Ouvimos por décadas que o socialismo tem uma contagem de corpos. Mas como isso se compara ao capitalismo? Mike Davis discute Stalin, Mao e os impressionantes holocaustos do auge do século XIX do capitalismo.

Uma entrevista com
Mike Davis

Entrevistado por
Meagan Day


O governo chinês envia oficiais para o interior durante o Grande Salto Adiante. Foto: Wikimedia Commons.

Tradução / A onda eleitoral que vem desde 2018 deu à esquerda socialista dos EUA uma audiência muito maior do que estávamos acostumados. Não apenas ganhamos uma audiência extraordinariamente ampla para nossas ideias políticas, como também assustamos nossos oponentes ideológicos e, como resultado, conseguimos dar uma boa conferida em seu arsenal retórico.

Muitos dos seus argumentos são familiares. Há décadas, um dos métodos mais populares na tentativa de minar os socialistas tem sido a apelação às atrocidades que aconteceram na Rússia de Stalin e na China de Mao. Episódios aterrorizantes como a Grande Fome Chinesa e a fome soviética sob Stalin são usados como prova de que o socialismo nunca poderia funcionar e é perigoso demais para tentar, portanto, estaríamos melhor com o capitalismo.

O livro de Mike Davis, Holocaustos coloniais, complica ainda mais essa história. O capitalismo acumula um enorme número de mortos. Se a fome for o critério usado para medir a adequação de um sistema econômico global, os capitalistas têm muito a responder.

Meagan Day da Jacobin conversou com Davis sobre as diferenças entre os crimes históricos do capitalismo e os do socialismo, e como falar sobre elas em uma era de capitalismo cada vez mais selvagem — com novas aberturas para a esquerda socialista.

Me conte sobre as fomes na Índia na década de 1870.

Mike Davis

A incorporação do grandes campesinatos de subsistência do sul e leste da Ásia foi absolutamente cataclísmica. A história diferiu de um lugar para outro, mas o número final de mortes foi enorme. A Índia é o exemplo mais dramático, em parte porque ocorreu sob a supervisão do liberalismo britânico.

Na altura da década de 1870, os britânicos já haviam patrocinado um grande desenvolvimento de canais e ferrovias na Índia, projetados para transportar produtos de exportação das regiões agrícolas do interior à costa. Também foram pioneiros na irrigação em larga escala no cultivo de algodão, algo que se tornou urgente durante a Guerra Civil dos EUA e a resultante fome do algodão.

Os britânicos diziam que, graças às ferrovias, era impossível haver fome na Índia. Anteriormente, a Índia havia passado por períodos de fome severa, embora, como a China, sempre tivesse sido de certo modo compensada por boas colheitas provenientes de outras regiões do país.

Então, os britânicos alegavam que, agora que tinham ferrovias, os grãos seriam certamente transferidos das regiões excedentes para as regiões afetadas pela seca ou por inundações. O que aconteceu em 1876, quando houve duas falhas de monção seguidas e a fome atingiu o oeste e o sul da Índia, foi que, na verdade, as ferrovias foram usadas para levar os grãos para fora das regiões de fome. Como o mercado doméstico de grãos havia sido amplamente privatizado, os comerciantes tiravam os grãos das regiões de fome e os estocavam nos centros ferroviários até os preços subirem para faturar uma boa nota.

No nível da vila e do município, séculos de combate à seca levaram a sistemas locais de armazenamento de água, pequenos reservatórios e semelhantes, que eram gerenciados através das relações paternalistas da vila, com a nobreza local responsável pela manutenção. Assim, durante a dinastia Mughal [1526-1857], embora a fome tenha ocorrido, não foi nada comparável à escala gigantesca do século XIX.

Quando os britânicos chegaram, ignoraram completamente o armazenamento local de água. Eles deslocaram grande parte da nobreza local, claro, e comerciantes e agiotas muitas vezes tomavam o poder no nível da aldeia, comprando grãos e exportando colheitas baratas para vendê-las por mais caro. Quando a fome aconteceu, eles estavam mais interessados em tentar lucrar com os grãos do que em ajudar os camponeses famintos.

Juntamente a isso, havia a fanática e dogmática crença inglesa de que nada poderia interferir na operação do mercado. A fome deveria ser aliviada através do mercado. Foi a mesma política aplicada na Irlanda na década de 1840, que levou diretamente à fome e à morte de cerca de um quinto da população irlandesa. Numa época em que a Irlanda estava exportando gado e cavalos, as pessoas no oeste do país eram forçadas ao canibalismo.

Foi apenas com relutância, e devido a críticos radicais dentro do governo britânico na Índia, que esse alívio foi fornecido. Mas as pessoas precisavam trabalhar para ser alimentadas. Os ingleses escolheram o mais árduo dos sistemas, que exigia que as pessoas caminhassem até os locais de socorro, geralmente projetos de construção de ferrovias ou escavações de canais que requeriam trabalho pesado.

As pessoas eram compelidas a caminhar quarenta, cinquenta, às vezes sessenta quilômetros de suas casas, e morriam como moscas nos canteiros de obras e ao longo do caminho. Eles já estavam malnutridos, e a expectativa de que pudessem percorrer essa grande distância e ainda fazer trabalho pesado simplesmente condenava essas pessoas. Era muito similar aos sistemas de trabalho coagido ou forçado nas colônias africanas, ou ao praticado pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial, no qual judeus e muitos outros literalmente trabalhavam até a morte.

Além disso, havia a questão do papel da Índia no Império Britânico — era absolutamente crucial para a economia britânica do século XIX. A Grã-Bretanha tinha um déficit comercial em outras partes do mundo, mas conseguia compensá-lo com exportações indianas.

E foi a própria Índia que pagou pelo exército indiano, permitindo que os britânicos enviassem grandes corpos de tropas para a Ásia, África e, eventualmente, durante a Primeira Guerra Mundial, para a própria Europa, sem precisar manter um grande exército. O exército profissional britânico era muito pequeno. Foi a Índia que forneceu a vantagem crucial.

Então, essa era uma forma de tributação. A receita era tirada das aldeias sem qualquer compensação na forma de investimento no armazenamento local de água, ferramentas agrícolas ou educação. Comparemos isso com a Tailândia, que investiu de maneira impressionante no ensino fundamental no mesmo período — um dos motivos pelo quais o país conseguiu escapar do colonialismo.

A combinação de todas essas coisas — mercado privado de grãos, um sistema relutante e destrutivo de alívio, e o fato de as aldeias terem deixado de possuir a mesma infraestrutura e recursos — levou a uma fome que foi exacerbada pela seca, matando entre oito e doze milhões de pessoas.

E então a mesma coisa aconteceu no final da década de 1890, em uma escala maior ou tão grande quanto a primeira vez. O filho de Nathaniel Hawthorne foi um dos repórteres estadunidenses no local. Ele fez relatos muito detalhados de como a política britânica, sua dependência dos mercados e sua relutância em prestar alívio às pessoas — simplesmente levando comida aos locais onde as pessoas estavam passando fome — condenaram, mais uma vez, milhões de pessoas.

Devido à fome nas décadas de 1870 e 1890, o crescimento populacional caiu tanto em algumas regiões da Índia que só foi recuperado após independência do país em 1948, depois da Segunda Guerra Mundial. A Índia sempre é retratada como um país fervilhante, mas esses foram desastres em grande escala. Regionalmente, tais desastres foram equivalentes, em termos de perda populacional e destruição de recursos produtivos, à era da Peste Negra na Europa Medieval, e até mesmo às invasões mongóis.

Mas eles ocorreram sob a supervisão da nação industrial mais poderosa da modernidade e por meio de suas políticas deliberadas. A modernização, paga pelos indianos com seus próprios impostos, pouco ou nada fez pelos cidadãos indianos comuns. Na verdade, teve o efeito perverso de favorecer um mercado especulativo de grãos, transformando um evento ambiental em uma fome que causou a morte em massa.

O mesmo evento ambiental, uma flutuação dos ventos e temperaturas da superfície no Oceano Pacífico conhecida como El Niño, levou a uma fome na China na mesma época, a partir de 1876. Essa fome também matou milhões, na mesma quantidade de tempo e em uma área geográfica menor.

Holocaustos coloniais inclui algumas descrições arrepiantes dessa fome. Por exemplo, a inanição fez com que o povo chinês roubasse por desespero; as autoridades trancaram esses ladrões famintos dentro de “gaiolas de angústia”, onde iam lentamente morrendo de fome. Pessoas emaciadas eram devoradas vivas por cães. A carne humana era vendida abertamente nas ruas. Pais trocavam filhos com outro casal faminto, por não suportarem matar e comer os seus.


O que aconteceu para causar essa fome?
Mike Davis

A China era absolutamente excepcional no século XVIII. Além de ser a maior sociedade do mundo, era a única em que o direito à vida dos camponeses era mais ou menos garantido pelo Estado.

Assim como a Índia, a China costumava ter uma região com excesso de grãos, enquanto outra tinha déficit. O sul da China é frequentemente vítima de inundações, mas a maioria dos problemas ambientais na China está concentrada no norte, na bacia do Rio Amarelo. Para lidar com essa disparidade, os chineses construíram algo que provavelmente tenha exigido um esforço de construção ainda maior do que a Grande Muralha. Estou falando do Grande Canal.

O Grande Canal conectou a China Central, o Yangtze, ao norte da China, a bacia do Rio Amarelo. E isso significava que, em tempos difíceis no norte, o arroz podia ser trazido do sul. E se o sul estivesse com problemas, milho e trigo poderiam ser enviados do norte.

No século XVIII, o transporte de grãos impediu que várias secas de larga escala se transformassem em fomes com milhões de vítimas potenciais. Os chineses fizeram o oposto dos britânicos na Índia. Se os britânicos faziam pessoas famintas caminharem por quilômetros até os locais de trabalho, os chineses insistiam que todos ficassem em casa, e tinham um sistema sofisticado de socorro das pessoas onde quer que estivessem, sem necessidade de trabalho.

Em segundo lugar, todos os municípios da China tinham um depósito de grãos. Uma das tarefas mais importantes do mandarim local era manter os celeiros cheios e impedir que os grãos fossem roubados ou vendidos e assim por diante. Os celeiros chineses eram tão impressionantes que, séculos mais tarde, durante o New Deal estadunidense, o vice-presidente de Roosevelt, Henry Wallace, propôs a ideia de um “celeiro permanente” inspirado no sistema chinês.

No geral, a China do século XVIII tinha o serviço público mais eficaz do mundo. Era único em sua capacidade de lidar com eventos ambientais de grande escala e aliviar a fome. Nos países europeus, esse não foi o caso. No início do século XVIII, dois milhões de franceses morreram de fome e o Estado era quase inteiramente passivo. E na década de 1840, é claro, os irlandeses sofreram com a fome, apesar dos grãos abundantes que poderiam ter sido usados no seu alívio.

Então a China foi realmente excepcional. Mas as coisas começaram a mudar com as guerras do ópio e a extração de concessões pelos países europeus. O sistema começou a se fragmentar. Os mandarins locais muitas vezes se corrompiam e vendiam os celeiros. A China na década de 1860 passou por três guerras civis, a maior das quais — a Rebelião Taiping — é provavelmente a mais sangrenta da história mundial.

A China foi colocada em uma imensa crise, e uma das vítimas da crise foi a manutenção do Grande Canal. Os rebeldes tomaram parte dele, basicamente havia piratas no Grande Canal. Os estoques dos celeiros começaram a desaparecer. O impacto do imperialismo na China contribuiu centralmente para a desintegração das capacidades estatais e das infraestruturas e políticas que tinham aliviado a fome no século XVIII de forma tão dramática, quase espetacular.

O número de mortos foi particularmente concentrado nas províncias austrais do norte da China, que sofreram uma quase total ausência de chuvas. Essas regiões eram de difícil acesso. Imediatamente após o início da seca, descobriu-se que os celeiros estavam vazios.

Em alguns condados, esse foi literalmente um evento de extinção. Estamos falando da fome de mais de três quartos e até 90% da população em alguns municípios. Normalmente, com a fome, populações inteiras se deslocam. Mas, neste caso, as pessoas estavam tão enfraquecidas — e qualquer destino a uma distância concebível a pé também havia sido afetado pela fome — que não tiveram escolha. Essas pessoas foram basicamente imobilizadas e começaram a morrer como moscas.

Como na Índia, houve outra fome na China na década de 1890. Mais uma vez, naquela parte da China, a população não recuperou o nível demográfico de antes da fome até a Revolução Chinesa.

Estudos demonstram que parte da razão do campesinato chinês ter apoiado e se unido aos comunistas foi o fato de Estados governados por líderes militares, e o governo nacional unificado que se seguiu, terem sido totalmente incapazes de administrar extremos ambientais. Controlar rios e mover grãos se tornou uma espécie de marca da legitimidade de governos e dinastias na China.

Houve, outra vez, uma fome terrível em plena Segunda Guerra Mundial. Os comunistas foram muito ativos no seu combate, o que lhes conquistou respeito e legitimidade. Então, quando em 1949 a República Popular foi estabelecida, ela recebeu uma base de apoio muito ampla — não apenas por sua oposição aos japoneses, ou pelas reformas agrárias propostas, mas também por ter prometido acabar definitivamente com a fome na China.

Este era o mandato da República Popular. E o que aconteceu no final da década de 1950 não foi, de modo algum, uma tentativa deliberada de provocar a fome de uma classe ou região, como pode ter sido parcialmente o caso de Stalin na Ucrânia. No no entanto, foi absolutamente criminoso.

Um dos principais generais chineses foi deposto quando se atreveu a confrontar Mao sobre a fome no Comitê Central. Mao aparentemente negou que houvesse fome. Isso se enquadra no domínio da responsabilidade criminal, da mesma forma que os britânicos foram criminalmente responsáveis pelas fomes das décadas de 1870 e 1890.

Como a disseminação global do capitalismo exacerbou a fome e a guerra?
Mike Davis

Marx abordou isso de maneira mais eloquente na seção sobre acumulação primitiva no Volume I do Capital. Os alicerces do capitalismo são a escravidão; o colonialismo; o confisco ou a apropriação da propriedade individual e das terras comunais do campesinato europeu; a extinção dos povos nativos, a fim de abrir novas áreas para a produção global de grãos; e assim por diante.

Na década de 1870, depois de Marx, ocorreu a derrota final dos índios das planícies nos Estados Unidos, que repentinamente disponibilizou enormes pradarias para o cultivo de trigo. E isso só aconteceu às custas da aniquilação dos povos nativos.

Quase todas as etapas do crescimento desse sistema envolveram algum processo de expropriação violenta, trabalho forçado ou desalojamento. Sem mencionar o fato de os níveis incomparáveis de riqueza criados na revolução industrial terem acompanhado a pauperização dos operários e a criação de cidades industriais mortais, em que as pessoas morreriam de tuberculose e doenças ocupacionais.

Há um famoso debate entre os socialistas sobre a acumulação primitiva ser integral ou constitutiva do capitalismo moderno. Alguns negam, acham que foi apenas um prefácio sangrento do capitalismo. Mas Rosa Luxemburgo, em sua obra-prima A Acumulação Capital, insiste que a acumulação primitiva é integral e que deve continuar abrindo e criando novos mercados e fontes de trabalho. Entre os pensadores contemporâneos, David Harvey compartilha a posição de Luxemburgo.

De qualquer forma, temos que reconhecer o papel contínuo do trabalho forçado e não-livre no sistema capitalista mundial. A crença de que tenha acabado com a emancipação das pessoas escravizadas no hemisfério ocidental é totalmente equivocada.

A segunda questão a se considerar é a guerra. Sempre houve um debate sobre a necessidade ou não de guerras para a reprodução do mercado mundial. Algumas pessoas enxergaram o “fim da história” há vinte, vinte e cinco anos e disseram: “Não, a guerra não é necessária. Já superamos tudo isso, é só olhar para a União Europeia”. Bem, o veredicto parece pender para o outro lado.

As guerras do século XX foram geradas pela competição por mercados e recursos, também alimentadas por muitos outros fatores. A Primeira Guerra Mundial pode ter começado quase por acidente, mas todas as condições para uma colisão de poderes já existiam, e muitas pessoas já sabiam que a guerra era inevitável devido à demanda por terras e mercados e pelo controle do comércio — essa competição tendo ocorrido no final do período de hegemonia britânica na economia global.

Então, todos esses processos — a expropriação original dos agricultores; a incorporação do grande campesinato não-europeu no sistema global; economias industriais inicialmente baseadas em níveis de exploração que não apenas tiraram oportunidades culturais ou de vida social das pessoas, mas as destruíram por meio do excesso de trabalho e de doenças; enormes guerras imperiais; e, é claro, o legado de tudo isso: uma posição de dependência da qual muitas economias coloniais nunca se recuperaram — são violência sistêmica.

Acontecimentos como a fome na Ucrânia, os expurgos na União Soviética em 1937-8, a fome do Grande Salto Adiante e o Khmer Vermelho são crimes políticos. E é claro que muitos socialistas contestariam a ocorrência deles sob o socialismo. O stalinismo foi um tipo de reação Termidoriana que acabou custando possivelmente tantas vidas comunistas quanto as tiradas por Hitler na Europa Central e Oriental.

Há uma violência sistêmica e inevitável incorporada no mercado mundial e no capitalismo global. Uma sociedade socialista não foi construída por ninguém — quando falamos da Rússia de Stalin e da China de Mao, estamos falando de sociedades em transição. Mas, nessas sociedades em transição, não havia uma lógica sistêmica similar para a violência, a lógica era política. A lógica dizia respeito ao poder do estado.

Há uma exceção: em países muito subdesenvolvidos, existe realmente uma contradição entre o desenvolvimento industrial urbano e o meio rural. Na sociedade em ruínas herdada pelos bolcheviques, os camponeses tinham poucas razões para produzir alimentos para as cidades, a menos que recebessem de volta as coisas de que precisavam, especialmente os meios de produção necessários para tornar a agricultura mais produtiva. Esse relacionamento acabou, e Stalin o enfrentou, em última instância, por meio de coação e violência maciças. Então, pode-se dizer que há uma violência sistêmica inerente às sociedades em transição que cresce principalmente a partir dessa contradição.

Mais do que isso. No caso histórico específico da União Soviética, a sociedade foi parcialmente destruída em 1921 — após a Primeira Guerra Mundial, uma guerra civil matou um milhão de soldados do Exército Vermelho, e outros milhões foram mortos pela fome e por doenças. A Rússia era uma carcaça de si mesma. Essa foi a justificativa dos bolcheviques para permanecer no poder a todo custo. E quando isso aconteceu, eles se afastaram do caminho que sempre fora previsto para a criação de uma sociedade mais justa e igualitária.

E, é claro, os boicotes econômicos, as intervenções e as guerras travadas contra a União Soviética também foram fatores importantes na violência interna e na metamorfose do regime em uma ditadura.

De certa forma, o caso da China é mais de partir o coração. Isso porque a revolução, na minha cabeça, funcionou na década de 1950. Cooperativas eram obviamente o caminho certo. A China, ao contrário da União Soviética nos seus primórdios, tinha um grande estado industrial em que se apoiar: a própria União Soviética. E a fome do Grande Salto Adiante nunca deveria ter ocorrido, principalmente sob a vigilância de pessoas que chegaram ao poder prometendo, entre outras coisas, garantir o direito à vida da população rural chinesa.

Não há como negar. Certamente foi culpa de Mao Tsé-tung e do Partido Comunista Chinês. Mas se foi culpa do socialismo, é outra questão.

Bem, a resposta dos oponentes ideológicos do socialismo seria que o abuso de poder é inevitável no socialismo. E certamente admitirão um certo grau de desigualdade inevitável e talvez até de violência no capitalismo. Mas, para eles, a razão pela qual o capitalismo é superior ao socialismo é que essa desigualdade e violência sistêmica seria preferível ao abuso do poder político. Como devemos responder a eles?
Mike Davis

A equação entre capitalismo e democracia é tênue, na melhor das hipóteses. A democracia liberal é amplamente produto da luta histórica dos movimentos trabalhistas e sufragistas. Ao mesmo tempo, a história da América do Sul mostra que o capitalismo está mais frequentemente associado à ditadura e ao regime oligárquico, e não à democracia. Então precisamos questionar essa equação fundamentalmente.

Em segundo lugar, deixe-me colocar desta forma: Digamos que você seja cristão. Vocês é católico ou evangélico? Apoia a Inquisição ou a resistência não-violenta?

O socialismo tem tão pouca definição que precisamos voltar à posição que eu acho que os Socialistas Democráticos da América têm, e sobre a qual são muito eloquentes. É necessário dar um passo para trás e perguntar: qual é a nossa tradição? Estamos falando de democracia socialista. Estamos falando da necessidade de alocação democrática de recursos e tomada democrática de grandes decisões econômicas, que só podem acontecer quando a propriedade social em grande escala for democratizada e administrada pela sociedade.

Dois dos pontos mais importantes a serem enfatizados pelos socialistas são a natureza sistêmica e inevitável da violência política e econômica na sociedade capitalista e, em segundo lugar, recuar contra a fusão do socialismo com o stalinismo e o maoísmo. Nos Estados Unidos, há muita falta de conhecimento sobre a social-democracia no norte da Europa e, dentro do campo mais revolucionário, sobre as centenas de milhares de pessoas que morreram tentando impedir que os Estados fundados pela luta revolucionária se tornassem ditaduras.

Precisamos apontar para os sucessos do socialismo, incluindo os avanços dos social-democratas. Liberal ou revolucionária, a esquerda sempre foi muito ruim em destacar os avanços da social-democracia. Como alguém de extrema esquerda, entendo as razões para isso. A social-democracia vê a desigualdade econômica como o problema. A desigualdade econômica não é o problema, é um reflexo da falta de poder dentro da macroeconomia. Em última análise, o capital encontrará uma maneira de contornar a social-democracia.

No entanto, esta é uma nova era. Agora temos um capitalismo muito mais selvagem. Os parâmetros políticos são outros.

O que realmente ganhou força nos Estados Unidos foi a defesa, por Bernie Sanders, da retomada da Declaração de Direitos Econômicos aderida por Franklin D. Roosevelt no final da sua campanha de 1944. Se olharmos para o programa da coalizão de Sanders, veremos que é por isso que estão lutando. Essas são demandas verdadeiramente social-democratas, envolvendo algum grau de redistribuição de riqueza. Eu não os chamaria de socialistas ou revolucionários porque não desafiam o poder econômico em suas raízes. Foi sobre essa base que o Partido Democrata tentou se renovar na década de 1940 e em meados da década de 1960.

Mas quando o New Deal foi abandonado, deixando de ser um programa sério do Partido Democrata, as demandas por cidadania econômica passaram a ser consideradas muito mais radicais. Consequentemente, passaram a exigir grupos constituintes muito mais radicais em sua defesa do que na época em que pareciam ser mais compatíveis com o modelo existente do capitalismo estadunidense e seu contrato social.

Agora temos um novo tipo de capitalismo, e essas demandas têm um peso muito mais radical. E graças a elas, é possível falar mais uma vez sobre o socialismo — e, em grande parte, libertá-lo do fardo do passado, da má associação e identificação errônea com o stalinismo e com o abuso de poder político.

Sobre os autores

Mike Davis Autor de vários livros, entre eles Planeta favela e Cidade de quartzo (Boitempo).

Meagan Day faz parte da equipe de articulistas da Jacobin. She is the coauthor of Bigger than Bernie: How We Go from the Sanders Campaign to Democratic Socialism.

Descobrindo Xangai em Paris

O Pequeno Livro Vermelho de Mao uniu estudantes radicais com guerrilheiros do Terceiro Mundo.

David Broder




Tradução / Uma década após as revoltas em Paris, o jornalista e filósofo Régis Debray deu um veredicto fulminante sobre como o maoísmo havia afetado grande parte da extrema esquerda da França em maio de 1968. Em seu zombeteiro artigo intitulado “Modesta contribuição para os ritos e cerimônias do décimo aniversário”, Debray ridicularizou os radicais de 68 que haviam procurado no presidente Mao Tsé-Tung um socialismo anti-burocrático e emancipatório. Entretanto, o “grande timoneiro” foi certamente um guia inusitado para a rebelião desses militantes contra o conservadorismo francês.

Os “pró-chineses” de 68 destruíram a velha França e a velha esquerda apenas para chegarem ao liberalismo. Para Debray, essa rota contorcida para a modernidade capitalista parecia um viajante do passado cujos mapas da Índia o haviam levado às Américas: esses modernos Colombus pensavam “que estavam descobrindo a China em Paris, quando na verdade estavam pousando na Califórnia. Suas velas foram levadas pelo vento do oeste, mas eles estavam sendo guiando pelo Pequeno Livro Vermelho que dizia o contrário”.

Durante os movimentos de 1968, aquele livro de citações de Mao Tsé-Tung tinha de fato desfrutado de uma curiosa proeminência na extrema esquerda ocidental e nos movimentos anti-imperialistas e de resistência. Com mais de um bilhão de cópias impressas, suas 427 citações e aforismos foram uma bússola política para uma nova camada de militantes e, em sua onipresença, um ponto de referência simbólico que parecia abrigar um novo mundo.

Publicado em 2014, no quinquagésimo aniversário de sua primeira impressão, O Pequeno Livro Vermelho de Mao: Uma História Global (editado por Alexander C. Cook) examina em diversos textos o sucesso extraordinário de uma variedade de contextos nacionais. Incluindo não apenas o radicalismo de esquerda ocidental, mas as lutas anticoloniais, os países do Bloco Oriental e seus usos na República Popular da China, seus capítulos são uma visão fascinante do período de 68 e do imaginário em que o pensamento de Mao se enraizou.

Contradição

Isso talvez seja mais claramente ilustrado no capítulo de Julian Bourg sobre a influência francesa do Pequeno Livro Vermelho. O prestígio que o Partido Comunista Francês (PCF) havia construído durante a Resistência na Segunda Guerra Mundial já havia começado a declinar na década de 1960, especialmente para aqueles que apoiavam a revolução na Argélia. A China de Mao, que começou a se separar da União Soviética no final dos anos 1950, tornou-se um ponto de referência alternativo para aqueles que acusavam o PCF de conservadorismo.

O Pequeno Livro Vermelho, que apareceu pela primeira vez na França em 1966, apelou a uma sensibilidade leninista dura e ortodoxa, mas também ao chamado maoísmo “anti-hierárquico” (mais tarde, “espontaneista”) da esquerda proletária. Os estudantes em torno de Louis Althusser foram essenciais para a formação deste último tipo de maoísmo francês e, apesar de sua falta de destaque nas próprias revoltas de maio, depois de 1968 eles formaram uma das tendências dominantes da nova esquerda dissidente.

Essa sensibilidade, presente em várias organizações, foi um fenômeno intelectual, mas também se concentrou na organização de grupos como trabalhadores rurais, imigrantes e prisioneiros, relativamente marginais à própria concepção do PCF sobre a classe trabalhadora ou o povo francês. A veneração da juventude, renovação e “estudo” do Pequeno Livro Vermelho atraiu os jovens militantes no centro desta tendência, imortalizada no filme de Jean-Luc Godard, La Chinoise [A chinesa].

Enquanto a descrição de Godard para seus súditos como “Robinsons cuja sexta-feira é o marxismo” sugere uma imagem de viajantes rebeldes, Bourg aponta para um uso mais teorizado do trabalho de Mao. A chave foi o uso mais amplo da dialética de Mao por Althusser para atacar a ortodoxia comunista obsoleta. No entanto, é difícil evitar a conclusão de que o Pequeno Livro Vermelho é em si profundamente esquemático, não menos em sua pretensão de resumir e substituir os insights de todo o marxismo anterior.

Apesar de toda a depreciação do monolitismo soviético pelos maoístas, o livro é surpreendentemente chocante. Podemos até dizer que no Ocidente a evidente alienação cultural das citações era parte de seu brilho, a adoção de uma linguagem de um novo mundo. Sua elisão de nação e classe, e seus esforços para contrapor a “fé no povo” e os “revisionistas” e “cães correndo”, criaram um sistema binário simplista que podia ser aplicado à luta política em todo o mundo.

Denunciando vigorosamente o dogmatismo soviético em nome do próprio Mao, Elizabeth McGuire descreve um incidente de 1967 no mausoléu de Lenin, onde turistas chineses segurando cópias do livro começaram a cantar as citações, para espanto dos espectadores soviéticos, antes de supostamente provocar uma briga. Isso foi seguido por confrontos físicos na embaixada soviética em Pequim e na embaixada chinesa na Alemanha Oriental, onde o livro foi igualmente reprimido.

Durante a Revolução Cultural de 1966-1976, carregar o livro e ser capaz de citá-lo foi um desafio à ortodoxia soviética. No entanto, também foi um objeto de conflito de facções dentro da própria China. Com a morte de seu organizador, Lin Biao, em 1971, e do próprio Mao, em 1976, o livro caiu em descrédito.

No final da década de 1970, o Pequeno Livro Vermelho foi retirado das estantes de livros na República Popular, condenado como uma distorção do Pensamento de Mao Tsé-Tung. Com o refluxo dos movimentos estudantis que floresceram em 1968 e a reconciliação de Mao com Richard Nixon, seu apelo também havia desaparecido no Ocidente. Isso e a virada do mercado da China em 1978, foi um trauma psicológico para aqueles que haviam investido suas esperanças em um poderoso livro anti-sistêmico.

Anti-imperialismo

A teoria dos Três Mundos de Mao identificou a União Soviética como uma grande potência “social-imperialista” ao lado dos Estados Unidos como uma barreira para a revolução global. O “capitalismo de estado” da URSS após a morte de Stalin foi identificado com sua aceitação conservadora da coexistência pacífica com o Ocidente, com Moscou hesitante ou totalmente relutante em apoiar os movimentos anticoloniais da década de 1960.

Embora a União Soviética e os Partidos Comunistas aliados a ela tenham feito grandes avanços após a Segunda Guerra Mundial, após a morte de Stalin, seu avanço foi menos notável. O reconhecimento de Nikita Khrushchev dos crimes de seu predecessor, e a supressão da revolta húngara em 1956, minou a unidade e o idealismo do movimento comunista, e a Revolução Cubana de 1959 deixou claro que novos centros de prestígio revolucionário estavam em ascensão.

No imaginário maoísta, a China estava na vanguarda da revolta do Terceiro Mundo contra a ordem global do pós-guerra. Este foi um elemento do apelo do maoísmo entre a extrema esquerda europeia e a norte-americana, e em particular aqueles que olhavam para a Argélia e o Vietnã como evidência da possibilidade de derrubar as linhas divisórias estabelecidas da Guerra Fria. Para Lin Biao, o Pequeno Livro Vermelho foi uma “bomba atômica” capaz de explodir o velho mundo.

Tal descrição refletia tanto o orgulho chinês, na medida em que buscava alcançar tecnologicamente as potências mais estabelecidas, quanto o que poderia ser gentilmente chamado de uma ideia levemente desequilibrada de catástrofe produzindo redenção. No entanto, o comentário de Lin indicou apropriadamente o radicalismo político anticolonial de inspiração maoísta do período de 68, variando de guerrilhas anti-imperialistas na África, Ásia e América Latina até mesmo o coração do império.

Nos Estados Unidos, o Pequeno Livro Vermelho foi amplamente lido pelos militantes do Partido dos Panteras Negras e nos círculos anti-imperialistas. Huey Newton conhecia bem o trabalho anterior de Mao e, com Bobby Seale, promoveu a venda do livro como forma de financiar o partido. Sua mensagem de “servir ao povo” foi evidentemente refletida no próprio ativismo comunitário dos Panteras e, junto com gente como Frantz Fanon, serviu como contraponto a um cânone socialista eurocêntrico.

Bill Mullen ilustra claramente seu papel na visão dos Panteras: tanto um “projeto” de longo prazo quanto uma obra cujas verdades simples permitiam que fosse usado como um “cheque em branco”. Uma militante de Detroit, Grace Lee Boggs, criticou o transplante superficial de Mao pelos Panteras Negras da Costa Oeste para o contexto dos Estados Unidos. Ainda assim, ela combinou isso com um foco clássico maoísta na primazia do estudo, integrando o pensamento de Mao, Lenin e Amílcar Cabral em uma nova política anti-imperialista.

Para Mullen, o Pequeno Livro Vermelho era tanto “um símbolo para um sonho superdimensionado e itinerante – uma revolução bem-sucedida ao estilo chinês na América” e “um prisma para a irreconciliabilidade desse sonho com o imperialismo capitalista dos EUA”. No entanto, com o declínio da esquerda de 68 e com a virada capitalista da própria China, o maoísmo deixou sua marca de uma forma cultural distorcida, especialmente através da aplicação da “autocrítica” e “conscientização” maoísta nos movimentos mais radicais.

Marketing

Hoje, os slogans dos Panteras Negras são elogiados por exposições de arte kitsch, mas a força de sua mensagem foi entorpecida pelos fabricantes de pôsteres e camisetas. É claro que isso é parte de uma recuperação mais geral do mainstream de 68: a revolta contracultural que acabou sendo venerada como nada além de legal.

Embora qualquer caracterização de 68 deva explorar o silenciamento da politização mais aguda que moldou este período, podemos apontar uma contradição que já estava presente nos usos do Pequeno Livro Vermelho no final dos anos 1960. Ele usa a noção do livro como “emblema” para sugerir que, para muitos, o livro de Mao era mais um acessório de moda do que um texto a ser compreendido.

Isso é melhor resumido em uma anedota de 1968 em que a polícia de Freiburg tentou impor uma taxa de venda de livros, estudantes alemães rebeldes responderam oferecendo o livrinho vermelho de graça junto com um tomate custando dois marcos. Assim como o tomate, o livro era munição – para ser jogado.

Nesse sentido, o Pequeno Livro Vermelho ocupava uma posição incomum entre ser um artigo de fé sério e uma “provocação” irônica. Seus usos eram tão variados quanto generalizados, um único livro onipresente no qual os militantes projetavam todos os tipos de crenças. À medida que as velhas ortodoxias desmoronavam, o livro com a força de uma “bomba atômica” unia uma revolta transcontinental. No entanto, em última análise, as citações de Mao não forneceram um mapa fácil para um novo mundo no ocidente.

Sobre o autor

David Broder é historiador do comunismo francês e italiano. Ele está atualmente escrevendo um livro sobre a crise da democracia italiana no período pós-Guerra Fria.

A versão americana do capitalismo é incompatível com a democracia

Para restaurar nossa democracia depois de Trump, precisaremos reduzir as desigualdades materiais que corroíam a soberania popular muito antes de sua ascensão

Por Eric Levitz, redator do Intelligencer que cobre política e economia

New York Magazine

Democracy na América. Photo: Mark Makela/Getty Images

Tradução / A democracia americana não vai bem; sobre isso, os detratores do Presidente Trump conseguem concordar.

Mas quando se trata de identificar os sintomas da nossa república, de dar nome à sua doença e prescrever uma receita, as diferentes facções da “resistência” produzem diagnósticos divergentes.

Um grupo – formado por estudiosos de política comparativa, analistas liberais e conservadores do grupo NeverTrump – mantém os olhos fixos em Donald Trump. Eles veem a covardia moral de uma elite de republicanos que se recusou a negar a nomeação de um demagogo iliberal, a abandoná-lo nas eleições gerais, ou a deixar as investigações sobre sua campanha prosseguirem sem impedimentos. Eles apenas observam um presidente que ataca implacavelmente a independência da polícia federal, a legitimidade da mídia adversária e a veracidade dos resultados eleitorais oficiais – e uma base conservadora que acredita nas mentiras de Trump. E, pulsando logo abaixo, eles discernem a ascensão de um hiperpartidarismo que está levando as autoridades eleitas de cada partido a extirpar restrições informais a sua autoridade – e os eleitores de cada partido a acreditar que o outro lado não tem legitimidade no poder.

Nessas queixas, o movimento pela democracia (como meu colega Jonathan Chait chamou) vê todos os sinais reveladores de um caso grave de erosão de normas. As democracias não podem viver apenas de leis; elas também exigem a adesão a algumas regras informais que corrigem as falhas inevitáveis %u20B%u20B de qualquer Constituição e protegem contra a ameaça de líderes carismáticos concentrarem poder. Assim, para curar nossa república e imunizá-la contra futuras cepas do mesmo vírus, vários pensadores liberais fizeram um apelo pela formação de coalizões bipartidárias, unidas em defesa das normas democráticas e do estado de direito. Em sua opinião, a ameaça que Trump representa é tão grave e única que ideólogos de ambos os lados devem agora, em vez de focar em vencer batalhas políticas, priorizar a manutenção de uma ordem baseada na lei, a fim de garantir a liberdade de resolver democraticamente tais disputas no futuro.

Mas há uma segunda opinião.

Vários pensadores social-democratas (e/ou socialistas democráticos), examinando o paciente a alguns passos à esquerda do movimento pela democracia, voltaram seus olhos para um conjunto diferente de sintomas. Eles veem os legisladores estaduais e federais que rotineiramente cortam impostos sobre os ricos, e serviços para os pobres, desafiando os desejos de seus constituintes; veem agências reguladoras servindo como campos de treinamento para as empresas que deveriam controlar; veem uma Suprema Corte que não para de expandir os direitos das empresas e de restringir os das organizações de trabalhadores; um sistema de justiça criminal que não processa banqueiros que lavam dinheiro das drogas, mas atribui penas de prisão perpétua a pequenos traficantes de crack; um banco central que tem recursos para salvar grupos financeiros, mas não para salvar os cidadãos que eles exploram; um Pentágono que pode travar guerras de trilhões de dólares que exacerbam os problemas que deveriam resolver – e ainda é recompensado %u20B%u20Bcom um aumento de orçamento – quando o Departamento de Habitação pede aos trabalhadores pobres que paguem um aluguel maior por moradias piores; e, fervilhando por baixo de todas essas falhas e disparidades na distribuição da tão vasta riqueza privada, os super-ricos da nação têm hoje 15 anos de expectativa de vida a mais do que os pobres.

Os social-democratas veem nessas condições sinistras um caso clássico de capitalismo maligno. Democracias não podem sobreviver só de normas. Quando os mercados não são regulados – e quando os trabalhadores estão desorganizados – o setor corporativo, como um tumor cancerígeno, se expande até dominar a política e a sociedade civil. Uma parcela cada vez maior de ganhos econômicos se concentra em cada vez menos mãos, enquanto diminuem as barreiras para que a riqueza privada se converta em poder público. Os políticos não mais obedecem às preferências e necessidades populares. Os eleitores perdem a fé nas eleições – e então, surge um homem forte pronto a dizer que ele, sozinho, pode consertar o país.

Tudo isso contraindica a prescrição do movimento democrático: se a verdadeira doença da nossa república é o seu sistema econômico desigual, a doença não será curada por coalizões pluriideológicas. Muito pelo contrário: é necessário um movimento que mobilize os trabalhadores em número suficiente para que sejam capazes de exigir um novo acordo do capital. Assim, se a intelligentsia liberal deseja salvar a democracia americana, deve dedicar a maior parte de suas energias para conceber como esse movimento pode ser criado – e que mudanças o movimento deve operar na economia política da nação, uma vez que assuma o poder.

Por que esse debate importa

É importante não exagerar a divisão entre liberais "normcore" e esquerdistas "radicais". Jedediah Purdy, o professor de direito da Duke University que escreveu uma crítica muito discutida sobre os primeiros, condenou as mentiras (que desafiam normas) de Trump sobre a fraude eleitoral, que chamou de terrível ameaça à "autonomia" nos Estados Unidos. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, cujo livro How Democracies Die [Como morrem as democracias] é a bíblia do centro “normie” (normal), argumentam que “tratar a desigualdade econômica” pode ajudar a vacinar os EUA contra futuros demagogos populistas. Ambos os lados reconhecem que tanto a tendência do nosso sistema econômico de concentrar riqueza no topo quanto o ataque de Trump às normas democráticas são problemas sérios; eles apenas discordam sobre qual dos problemas é a ameaça mais fundamental à democracia americana hoje.

Mas há riscos reais nessa disputa. Além das implicações acima mencionadas, sobre como a oposição anti-Trump deve se organizar, pode haver conflito entre o objetivo de preservar as normas e o de redistribuir o poder econômico.

Digamos que Chuck Schumer se torne líder da maioria no Senado no ano que vem. Se a restauração das normas for o objetivo primordial, ele terá que implorar a sua bancada para confirmar o nome de quaisquer candidatos judiciais convencionalmente qualificados apresentados pelo presidente; mas se a prioridade for o combate ao poder corporativo descontrolado, ele precisará matar essas indicações, para manter as vagas abertas para futuros juízes pró-trabalhadores. Da mesma forma, se os democratas conseguirem o controle total em 2020 (ou 2024, ou 2028), o fim da obstrução será, quase certamente, um pré-requisito para qualquer grande reforma redistributiva. E se Trump for capaz de nomear vários juízes da Suprema Corte – dando início a uma “era neo-Lochner”, com uma maioria de extrema-direita do tribunal vetando sistematicamente a legislação progressista (como aconteceu na votação do Affordable Care Act), será então imprescindível para os progressistas saber se a ameaça mais fundamental à democracia é a erosão das normas ou a desigualdade econômica.

Onde a esquerda acerta

Em sua crítica aos principais pensadores do movimento pela democracia, Jedediah Purdy argumenta que suas várias análises da crise política americana compartilham um defeito fundamental: nenhum deles questiona se a versão do capitalismo que emergiu nos Estados Unidos na esteira da crise da estagflação do fim dos anos 1970 – um capitalismo caracterizado, entre outras coisas, por sindicatos fracos, concentração empresarial, baixo crescimento e alta desigualdade – é “compatível com a democracia”.

Purdy sugere que não é. E ele está certo.

Existem dois argumentos diferentes para essa posição. Primeiro, há a hipótese de que os fracassos do capitalismo sejam, em grande parte, responsáveis %u20B%u20Bpela crescente popularidade do populismo iliberal em todo o Ocidente e, portanto, reformar nosso sistema econômico é a melhor maneira de proteger as normas democráticas fundamentais de futuros ataques.

Muitos se opõem a esse argumento apontando para as evidências abundantes de que o apoio a Trump teve raízes em uma reação racial e cultural, não em "ansiedade econômica". E é difícil acreditar que os níveis relativamente altos de imigração dos EUA – e a erosão das hierarquias raciais e de gênero – não gerassem certa reação, mesmo na melhor das circunstâncias econômicas. Mas essa objeção não é decisiva. Por um lado, há evidências científicas tanto histórica quanto social de que, em tempos de incerteza econômica, as pessoas ficam mais inclinadas para os tipos de ressentimentos culturais que Trump explorou e cultivou. Quando os seres humanos sentem que a base de sua autoestima e status social está ameaçada – como é frequentemente o caso de trabalhadores em regiões em processo de desindustrialização – eles tendem a se tornar cada vez mais desconfiados da diversidade, mais abertos a ideias extremistas e mais defensivos do status dos grupos de identidade social a que pertencem.

De maneira mais crítica, a afirmação de que a crise atual tem raízes econômicas não repousa na psicanálise do proletariado Trumpiano. Nas quatro décadas desde a crise da estagflação – que marcou uma curva acentuada para a direita na política e na economia das democracias ocidentais – a participação dos trabalhadores americanos nos ganhos de produtividade desabou; a taxa de sindicalização no setor privado do país despencou; a disparidade entre a riqueza de famílias ricas e pobres explodiu; e a classe média tornou-se dependente de crescente endividamento para financiar suas casas, automóveis e a educação dos filhos.

E nesse mesmo período, a confiança social, o engajamento cívico, a participação eleitoral e a confiança nas instituições públicas diminuíram significativamente nos EUA. Há motivos para ver esses últimos indicadores como desdobramentos dos anteriores: nos anos que antecederam a eleição de Trump, as pesquisas de opinião repetidamente apontaram larga maioria da população americana dizendo que a economia da nação era "manipulada" contra eles. Em novembro de 2015, uma pesquisa do Public Religion Research Institute (PRRI) mostrou que 64% dos americanos concordavam com a afirmação: meu “voto não faz diferença diante da influência dos indivíduos ricos e das grandes empresas no processo eleitoral”. Um ano depois, 75% dos eleitores que votaram antecipadamente nas eleições de 2016 disseram à Reuters/Ipsos que buscavam um "líder forte que possa tirar o país das mãos dos ricos e poderosos".

O que quer que dissesse o coração dos eleitores marginais de Trump, um país onde a maioria dos cidadãos acredita que as eleições não importam, porque os poderosos controlam a política, está pronto para o populismo autoritário.

E os EUA não são a única nação a ver um aumento na desigualdade – e na desconfiança em relação à democracia – desde o fim dos anos 1970. É uma tendência comum à maior parte da Europa Ocidental, onde também coincide com o crescente apoio a partidos políticos iliberais e extremistas. Como Caleb Crain observa no The New Yorker, o período de alto crescimento e distribuição relativamente equitativa dos ganhos de produtividade que prevaleceu no pós-guerra fomentou um clima político visivelmente diferente: nas três décadas após a Segunda Guerra Mundial, nenhum político populista (definido como “antielite, autoritário e nativista”) chegou ao poder em qualquer nação ocidental avançada, enquanto uma “parcela de votos muito menor do que antes ou depois ia para partidos extremistas”.

Há evidências consideráveis, então, de que uma distribuição mais equitativa do poder econômico reduziria o apoio popular a políticos e partidos extremistas nos EUA. É lamentável que a América tenha elegido um demagogo iliberal em 2016 – mas muito bom que ele seja especialmente impopular, incompetente e preguiçoso; se não tomarmos medidas para melhorar as condições que levaram à sua eleição, podemos ter menos sorte na próxima vez.

O segundo (e, a meu ver, o mais consistente) argumento da acusação de Purdy sobre o capitalismo contemporâneo não se apoia em afirmações especulativas sobre o futuro de nossa democracia, mas em uma avaliação crítica de seu passado. Simplificando: tornar a América “já grande” de novo não basta para tornar a nação verdadeiramente democrática. Mesmo que o capitalismo americano não representasse uma ameaça à sobrevivência da atual ordem política, continuaria sendo um obstáculo intransponível para que milhões e milhões de cidadãos dos EUA tenham assegurado o direito de realmente participar de seu próprio governo.

Nos Estados Unidos do presidente Obama, empresas e indivíduos ricos investiram quantias recordes de dinheiro para influenciar a política americana; as preferências políticas da elite econômica se sobrepuseram com frequência às dos cidadãos americanos comuns; quase seis milhões de cidadãos dos EUA perderam o direito de votar por terem cometido crime federal; e a taxa de participação eleitoral do país (sempre aberrantemente baixa) atingiu o nível mais baixo dos últimos 70 anos nas eleições de meio de mandato de 2014.

Nem todos estes obstáculos à soberania popular têm raízes apenas na economia. Mas os mais alarmantes %u20B%u20Be consequentes têm.

Não é preciso acreditar que o capitalismo, como tal, é incompatível com a democracia para aceitar que certo princípio de igualdade econômica é pré-requisito para a última. Na realidade, é improvável que qualquer defensor genuíno da democracia acredite que não exista tal princípio.

Imagine um EUA em que 99,9% dos cidadãos tivessem que trabalhar 70 horas por semana apenas para manter suas famílias abrigadas e alimentadas (e ainda assim, com dificuldade). Imagine que esses cidadãos raramente soubessem exatamente quais seriam seus horários de trabalho e, portanto, tivessem que renegociar constantemente os arranjos de cuidados com os filhos – e tudo isso representassem uma enorme pressão sobre sua saúde mental e suas relações pessoais, deixando-os sem tempo e energia necessários para acompanhar as notícias, ou participar de organizações comunitárias ou de reuniões da prefeitura, ou para votar no meio de uma terça-feira.

Você diria que o sistema econômico de tal nação é compatível com a democracia?

Se não, então como um sistema que condena uma porcentagem menor – mas ainda substancial – da população a essas condições é compatível com a democracia?

Por que o movimento pela democracia não pode ser não ideológico

Mas é possível aceitar todas as alegações da esquerda sobre a incompatibilidade do capitalismo contemporâneo com a democracia e ainda ver o ataque de Trump às normas democráticas como a ameaça mais urgente à nossa república. Afinal, algumas normas são realmente mais fundamentais para a democracia liberal do que qualquer política dos sonhos de um social-democrata: proibir autoridades eleitas de contestar resultados eleitorais, de encorajar a violência política ou de usar as forças policiais contra opositores é mais indispensável à democracia do que a reforma trabalhista ou a assistência médica universal (sem tais proibições, as forças reacionárias terão pouca dificuldade em reverter essas reformas de esquerda, de qualquer forma).

Mas a conclusão não é que os defensores da democracia devam concentrar suas energias na defesa das proibições, em vez de se organizar para garantir as reformas de esquerda. A prescrição do movimento pela democracia pode ser apropriada para um momento de crise democrática aguda. O dia em que o presidente transformar o Ritz-Carlton D.C. em uma prisão provisória para os intelectuais do #Resistance e do NeverTrump; ou anunciar o adiamento das eleições de meio de mandato; ou detiver indefinidamente Robert Mueller como suspeito de terrorismo será um dia para grandes coalizões em defesa de nossa ordem constitucional. Fora de tal contexto, no entanto, é difícil imaginar – meramente como questão prática – como um movimento de massas pode ser mobilizado em defesa de algo abstrato como normas processuais. De modo geral, os americanos comuns estão mais preocupados em fazer suas contas caberem em seus salários do que em forçar Mitch McConnell a permitir uma votação de legislação para proteger a independência do conselho especial.

Essa realidade se reflete na estratégia do Partido Democrata para a eleição da metade do mandato presidencial. Candidatos democratas à eleição ao Congresso em distritos disputados falam muito mais sobre o ataque do Partido Republicano ao Medicaid do que dos ataques de Donald Trump contra Robert Mueller. O Comitê de Campanha Congressional Democrata não é uma vanguarda socialista; não está instruindo seus candidatos a concentrar munição contra a injustiça econômica – em vez de violações de normas – porque deseja lançar as bases para um movimento que desafie o capitalismo. Está fazendo isso porque quer que os democratas controlem a Câmara. Assim, se o objetivo primordial for salvaguardar nossa ordem constitucional contra Trump no curto prazo – ou tornar nosso sistema econômico mais compatível com a democracia no longo prazo – a estratégia de organização da esquerda continua mais viável: um movimento de oposição centrado em um apelo por mudanças econômicas progressistas é mais provável de entusiasmar do que um baseado em um compromisso não ideológico com normas processuais.

Isso resolve uma disputa entre o centro “normcore” e a esquerda “radical”. Mas não resolve seu ponto de discórdia mais profundo: o que fazer quando uma norma democrática genuinamente importante se torna um obstáculo intransponível para uma reforma econômica progressista.

O difícil caso do "cenário neo-Lochner"

Esta não é uma hipótese selvagem, mas uma circunstância encontrada na última vez em que os fracassos do nosso sistema econômico provocaram dúvidas generalizadas sobre a sustentabilidade da democracia liberal.

Franklin Roosevelt assumiu a presidência em um momento de depressão econômica sem precedentes, quando a aparente impotência das democracias liberais em restaurar a prosperidade impulsionava movimentos políticos fascistas (e populistas iliberais) – muitas vezes ao poder absoluto. Na opinião de muitos observadores contemporâneos, mudanças radicais na estrutura da economia política dos Estados Unidos não foram apenas necessárias para melhorar o bem-estar social e aumentar a participação democrática, mas para evitar cair em um governo autoritário.

Roosevelt deu início às reformas – algumas delas vitais e libertadoras, outras mal imprudentes e contraproducentes. Mas o simples fato de as instituições políticas americanas organizarem uma resposta tão inédita e abrangente quanto a própria crise ajudou a restaurar um grau de confiança na viabilidade do modelo democrático liberal. Em 1936, os eleitores americanos recompensaram Roosevelt com a maior votação popular que qualquer candidato presidencial havia recebido em mais de um século.

Mas a Suprema Corte não ficou tão impressionada com o desempenho de FDR. Em 1935 e 1936, o tribunal derrubou leis devidamente promulgadas com uma frequência sem paralelo em sua história. Num tempo em que a sobrevivência de nossa democracia parecia exigir a construção de uma nova ordem econômica, um establishment conservador desacreditado e derrotado usava seu poder residual no Judiciário para impedir mudanças progressistas. O presidente decidiu que tempos atípicos pediam medidas atípicas.

Em seu livro, Levitsky e Ziblatt classificam o esquema de “court-packing” de Roosevelt (o presidente tentou aumentar o número de juízes na Suprema Corte para alterar a correlação de forças, mas foi derrotado) como um perigoso ataque à norma vital de um judiciário apolítico – e apresentam a oposição bipartidária ao plano de Roosevelt como uma afirmação dos ideais democráticos liberais de nossa nação. A norma que Roosevelt tentou violar é uma importante salvaguarda contra o colapso democrático: se um governo iliberal unificado pudesse personalizar sua Suprema Corte, esse regime poderia revogar ostensivamente os direitos civis de grupos minoritários vulneráveis %u20B%u20Be restringir o acesso ao voto para se consolidar no poder.

Mas a análise de Levitsky e Ziblatt levanta duas questões urgentes: uma nação onde cinco juízes não eleitos rotineiramente vetam leis populares devidamente promulgadas – que visam redistribuir o poder econômico em um momento de desemprego em massa e desnutrição – ainda é um regime democrático? E se for – ou seja, se a "democracia" não supuser que as pessoas comuns possam escolher como os recursos da sociedade serão distribuídos e os mercados organizados – por quanto tempo se pode razoavelmente esperar que uma população materialmente privada mantenha alguma reverência pela democracia?

Os autores fazem acenos a essas tensões, mas nunca as abordam diretamente. Levitsky e Ziblatt não explicitam por que manter uma Suprema Corte com nove membros era mais importante do que preservar o Segundo New Deal. Em vez disso, sugerem que as elites, de forma ágil, pouparam os EUA dessa escolha difícil ao colocar a preservação das normas acima da convicção ideológica:

Vale notar que a própria Suprema Corte desempenhou um papel importante na derrota do plano de Roosevelt. Em um movimento descrito como um "recuo magistral" para preservar a integridade da Suprema Corte, a Corte anteriormente anti-New Deal rapidamente voltou atrás em uma série de decisões... incluindo a Lei Nacional de Relações Trabalhistas e a legislação de Seguridade Social de Roosevelt. Com o programa New Deal em terreno constitucional mais seguro, os democratas liberais no Congresso puderam se opor mais facilmente ao plano do presidente para o tribunal.

No entanto, o que os autores celebram nesta passagem é justamente a politização do Judiciário que eles se propõem a condenar. Na verdade, se você inclinar a cabeça para a esquerda, o relato dos autores passa a parecer uma prova das virtudes de se priorizar a justiça econômica sobre a preservação de normas: um presidente “populista” organizou um ataque frontal à independência do judiciário; a Suprema Corte respondeu alterando sua jurisprudência para atender às demandas do presidente; e os EUA foram em frente para salvar o modelo democrático liberal de governo dos mais sérios desafios que já havia enfrentado.

Certamente, a causa da mudança jurisprudencial do juiz Owen Roberts é contestada; a reação política à proposta de mudanças na corte atrapalhou a aprovação de outras reformas; e, embora não houvesse como sabê-lo então, aposentadorias e reeleições acabaram permitindo que Roosevelt nomeasse um tribunal pró-New Deal pelos meios normais. Meu objetivo ao destacar as tensões na narrativa de Levitsky e Ziblatt não é dizer que a resposta correta para um cenário neo-Lochner seja óbvia. É dizer o contrário: os riscos de minar a independência judicial são consideráveis; como também são os riscos de permitir que uma Suprema Corte reacionária frustre mudanças econômicas progressistas (um futuro governo democrata pode ser poupado de uma depressão global, mas será confrontado com uma crise ecológica global que não será resolvida sem reformas redistributivas e reguladoras que não vão agradar Neil Gorsuch).

Pode haver uma argumentação convincente contra a violação de normas liberais fundamentais, mesmo em tais circunstâncias. Mas, se os pensadores de centro-esquerda quiserem lançar mão desta argumentação, terão que lidar com os insights de seus críticos radicais – e com as inúmeras maneiras pelas quais a atual ordem econômica dos EUA é incompatível com o modo como as democracias florescem.

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