2 de dezembro de 2001

O desafio do desenvolvimento sustentável e a cultura da igualdade substantiva

István Mészáros

Monthly Review Volume 53, Number 7 (December 2001)

À memória de Daniel Singer, com quem conversei com frequência sobre a insustentabilidade de nossa ordem de desigualdade estrutural.

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Tradução / Duas proposições intimamente ligadas estão no centro desta intervenção: se o desenvolvimento no futuro não é desenvolvimento sustentável não existirá nenhum desenvolvimento significativo, não importando o quanto ele é urgente; apenas tentativas frustradas para realizar a quadratura do círculo, como as realizadas nas últimas décadas, marcadas por ainda maiores inapreensíveis teorias e práticas de “modernização”, condescendentemente prescritas para o chamado Terceiro Mundo pelos porta-vozes das antigas potências coloniais. Como corolário temos que a busca do desenvolvimento sustentável é inseparável da progressiva realização da igualdade substantiva . Deve também ser sublinhado neste contexto que os obstáculos a superar dificilmente poderiam ser maiores. Visto que até aos nossos dias a cultura da desigualdade substantiva permanece dominante, apesar dos usuais esforços indiferentes para contrariar o impacto devastador da desigualdade social pela institucionalização de alguns mecanismos de estritamente formal igualdade na esfera política.

Bem podemos colocar a questão: o que aconteceu no decurso subsequente do desenvolvimento histórico às nobres ideias proclamadas ao tempo da Revolução Francesa de liberdade, fraternidade e igualdade, e genuinamente defendidas por muitos durante muitos anos? Porque foram descartadas em conjunto, frequentemente com não dissimulado desprezo a fraternidade e a igualdade com a liberdade reduzida ao frágil esqueleto do “democrático direito a votar”, exercida por um número de pessoas cada vez mais céticas e diminutas nos países que se descrevem a eles próprios como “o modelo da democracia”? [1] E isso está longe de constituir todas as más notícias. Pois, como a história do século XX amplamente demonstra, mesmo as fracas medidas de igualdade formal são frequentemente consideradas como insuportáveis luxos para serem praticados, ou abertamente perseguidos por intervenções ditatoriais.

Após mais de um século de promessas de eliminação, ou pelo menos, de redução, a desigualdade através da “taxa progressiva” e de outras medidas (desse modo assegurando as condições de viabilidade social do desenvolvimento), a realidade é de uma ainda maior desigualdade. O fosso tem aumentado não apenas entre o “norte desenvolvido” e o “sul subdesenvolvido” mas também no interior dos países capitalistas avançados. Um recente relatório do Congresso norte-americano (que não pode ser acusado de “inclinação para o campo da esquerda”) admitiu que os ganhos de 1 por cento da população norte-americana excedem agora os de 40 por cento [2] das camadas mais desfavorecidas; número que nas últimas duas décadas duplicou em “apenas” 20%, escandaloso como é, mesmo no seu número mais baixo. Estes desenvolvimentos regressivos caminharam de par com a falsa oposição entre “igualdade de resultados” e “igualdade de oportunidades”, e depois mesmo votado ao abandono com a adulação da (nunca realizada) ideia de “igualdade de oportunidades”. Este resultado não pode ser considerado surpreendente. Por uma vez o “resultado” socialmente desafiante é arbitrariamente eliminado do quadro e substituído pela “oportunidade”, sendo esta ultima desprovida de todo o conteúdo. O termo totalmente vazio de resultados (e pior: negação de resultados), “igualdade” é volvido numa justificação ideológica da negação prática efetiva de todas as reais oportunidades de todos os que delas precisam.

Houve um tempo em que os pensadores progressistas da ascendente burguesia previram otimisticamente que a dominação de um ser humano por outro seria recordado no futuro como um sonho mau. Henry Home, uma grande figura da histórica escola escocesa do Iluminismo, vaticinou que “a Razão, reassumindo a sua autoridade soberana, banirá toda a perseguição, e no próximo século será pensado como estranho que a perseguição tivesse prevalecido entre os seres humanos. Talvez seja mesmo posto em dúvida se alguma vez ela foi realmente colocada em prática”. [3]

Ironicamente, à luz em que as coisas se tornaram, o que parece difícil de acreditar é que os representantes intelectuais da burguesia ascendente alguma vez possam ter raciocinado nestes termos. Um gigante do Iluminismo francês do século XVIII, Denis Diderot, não hesitou em fazer a afirmação radical, “se o trabalhador diário é miserável a nação é miserável”. [4] Igualmente Rousseau, com extremo radicalismo e cortante sarcasmo, descreveu a ordem prevalecente de dominação e subordinação social deste modo: o homem pode ser resumido em poucas palavras: "Tu precisas de mim, porque eu sou rico e tu és pobre. Chegamos então a um acordo. Eu te permitirei ter a honra de me servires, com a condição de me outorgares o pouco que te sobra em troca do sofrimento que terei ao te dirigir.” [5]

No mesmo espírito progressista, o grande filósofo italiano Giambattista Vico insistiu que o culminar do desenvolvimento histórico é “a idade do homem na qual todos se reconhecem como iguais na natureza humana” [6]. E muito tempo antes Thomas Müntzer, o líder Anabatista da revolução camponesa alemã prega no seu panfleto contra Lutero a causa fundamental do avanço do mal social em termos muito tangíveis, diagnosticando-o como o culto da vendibilidade e alienação. Ele conclui o seu discurso dizendo o quanto intolerável era “que todas as criaturas possam ser transformadas em propriedade – os peixes na Água, os pássaros no ar, as plantas na terra.” [7] Isto constituiu uma perspicaz identificação do que foi o desenrolar em todo o seu poder do curso da história nos três séculos seguintes. Como convém à realização paradoxal das antecipações utópicas prematuras, ela oferece, do ponto de vista vantajoso de um capitalismo muito menos estruturado em início de desenvolvimento, uma visão muito mais clara dos perigos que se aproximam do que o que se torna visível para os participantes diretamente envolvidos nas fases mais avançadas. Por uma vez a tendência social da vendibilidade universal triunfa em sintonia com a interna necessidade de formação social do capital, o que aparece a Müntzer como uma violação grosseira da ordem natural das coisas (e, como sabemos, em ultima instância, coloca em perigo a própria existência da humanidade), parece agora natural, inalterável, e aceitável aos pensadores que incondicionalmente se identificam com a ordem social historicamente desenvolvida (e em principio passível de remoção) dos constrangimentos do capital.

Portanto muita coisa se torna opaca e ofuscada pela alteração do ponto histórico em que vemos a história. Mesmo o termo crucial de “liberdade” sofre uma redução ao seu núcleo alienado. Em oposição às restrições políticas da ordem feudal a liberdade é saudada como a conquista do “poder de livremente nos vendermos”, através do pretenso “contrato entre iguais”, enquanto a sepultura material dos constrangimentos sociais da nova ordem são ignorados e mesmo idealizados. Por consequência, o significado original tanto da liberdade como da igualdade é alterado em determinações abstratas e auto-sustentadas [8], tornando a ideia de fraternidade – o terceiro membro de uma nobre aspiração então proclamada – completamente redundante de fato.

2

É o espírito de alienação que deve ser agora confrontado, a menos que estejamos dispostos a resignar-nos à aceitação do status quo e com ele à perspectiva de uma contínua paralisação social e autodestruição final do Homem. Aqueles que são os beneficiários do sistema dominante de desigualdades gritantes entre partes do mundo “desenvolvidas” e “subdesenvolvidas”, não hesitam em impor, com o maior cinismo, as consequências da sua irresponsabilidade ao resto do mundo (como recentemente fizeram ao demarcarem-se do Protocolo de Kyoto e de outros imperativos ambientais). Isto é justificado pela insistência de que os países do “Sul” devam permanecer presos ao seu atual nível de desenvolvimento, de outro modo iriam sofrer de um tratamento “iniquamente preferencial”. Aqui as potências dominantes têm o descaramento de falar em nome da igualdade! Em simultâneo aqueles que beneficiam do sistema recusam ver que a divisão “Norte/Sul” é a maior deficiência estrutural de todo o sistema, afetando cada país, mesmo os deles próprios, mesmo se no momento presente de uma forma menos extrema do que os chamados países do Terceiro-Mundo. Não obstante, a tendência em questão está longe de ser animadora mesmo para os países capitalistas mais avançados. Como ilustração podemos lembrar o alarmante crescimento de crianças pobres na Grã-Bretanha: nas últimas duas décadas, de acordo com as mais recentes estatísticas, o número de crianças vivendo abaixo da linha de pobreza foi multiplicado por três , e continua a aumentar todos os anos.

A dificuldade para nós é que ver estes assuntos numa perspectiva de curto prazo , como os organismos culturais e políticos dominantes necessariamente os colocam, trás com isso a tentação de seguir a “linha da menor resistência”, levando a nenhuma mudança significativa. O argumento associado a este modo de colocar o problema é que “os problemas resolveram-se no passado; eles estão limitados a fazer o mesmo no futuro”. Nada poderia ser mais falacioso do que esta linha de argumentação, precisamente se ela é mais conveniente para os defensores do status quo que não podem enfrentar as contradições explosivas da nossa perigosa situação a longo prazo. Todavia, como investigadores do movimento ecológico continuam a lembrar-nos, o longo prazo não é tão longo como isso, uma vez que as nuvens de uma catástrofe ambiental estão a ficar mais carregadas no horizonte. Fechar os olhos não constitui qualquer solução. Nem devemos permitir sermos enganados pela ilusão de que o perigo de confrontações militares devastadoras pertenceria ao passado, graças aos bons ofícios da “Nova Ordem Mundial”. Os perigos no que concerne a esta matéria são tão grandes como no passado, senão maiores, tendo em conta que nenhuma das contradições e antagonismos fundamentais foi resolvida com a implosão da União Soviética. Os recentes acordos do passado, e o prosseguimento aventureiro do pesadelo da “filha da guerra das estrelas,” com a mais coxa justificação possível de instalação de tais armas “contra estados párias”, representam decididos alertas a este respeito.

Durante muito tempo fomos induzidos a acreditar que todos os nossos problemas seriam felizmente resolvidos através de um “desenvolvimento” e “modernização” socialmente neutra. Era suposto que a tecnologia ultrapassasse todos os obstáculos e dificuldades. Na melhor das hipóteses esta foi uma ilusão imposta àqueles que, não possuindo qualquer papel ativo nas decisões, continuaram a ter esperança de que melhorias nas suas condições de existência seriam uma realidade, como prometido. Através de uma experiência amarga eles vieram a descobrir que a panaceia tecnológica era uma evasão das contradições servida por aqueles que detêm as alavancas do controlo social. A “revolução verde” na agricultura era suposto resolver de uma vez por todas o problema da fome e da má nutrição. Em vez disso, criou corporações monstruosas como a Monsanto, incrementando o seu poder por todo o mundo de tal modo que pesticidas mais poderosos se tornam necessários para a erradicar. Ainda assim, a ideologia do remédio estritamente tecnológico continua a ser propagandeada. Recentemente, alguns governos, incluindo o inglês, começaram a falar sobre a vindoura “revolução industrial verde”, o que quer que isso possa significar. O que é claro, todavia, é que esta nova defesa da panaceia tecnológica é planeada, novamente, como uma fuga às inerradicáveis dimensões sociais e políticas dos cada vez mais intensos perigos ambientais.

Não é exagero afirmar que no nosso tempo os interesses daqueles que não podem nem imaginar uma alternativa de curto prazo à ordem estabelecida, e a uma singular projeção de correções estritamente tecnológicas compatível com ela, colide diretamente com os interesses da sobrevivência da própria humanidade. No passado, o termo mágico para julgar da saúde do nosso sistema social era crescimento , e mesmo hoje ele permanece o quadro no qual as soluções devem ser encontradas. Interrogações de que tipo de crescimento e para que fim são precisamente as que são evitadas pela glorificação incondicional do crescimento. Este é especialmente o caso já que a realidade do crescimento sem restrições sob as nossas condições de reprodução social é extremamente esbanjadora e levam à acumulação de problemas que as futuras gerações deverão enfrentar – por exemplo, um dia, elas irão ter que enfrentar as consequências da energia nuclear (pacífica e militar). Primo do crescimento, o conceito de desenvolvimento, deve também ser alvo de uma análise crítica. Em tempos ele era acolhido por todos sem hesitação, e teve grande disseminação no chamado mundo subdesenvolvido a receita norte-americana de “modernização e desenvolvimento”. Levou algum tempo até que pudesse ser percebido que existia alguma coisa fatalmente defeituosa no modelo recomendado. Pois se o modelo norte-americano – com o qual 4 por cento da população mundial gasta 25 por cento da energia e recursos estratégicos mundiais, e polui o mundo em cerca de 25 por cento – fosse seguido em todo o lado, sufocaríamos num instante. Daí a necessidade de qualificar todo o desenvolvimento futuro como desenvolvimento sustentável , de modo a construir o conceito com um conteúdo realmente factível e socialmente desejável.

3

O maior desafio do desenvolvimento sustentável, que agora devemos enfrentar, não pode ser devidamente tratado sem a remoção dos constrangimentos paralisantes de caráter adverso do nosso sistema de reprodução. Esta é a razão porque não pode ser evitada a questão da igualdade substantiva no nosso tempo como o foi no passado. Por sustentabilidade significamos o estar realmente no controle dos processos culturais, econômicos e sociais vitais através dos quais os seres humanos não só sobrevivem mas também podem encontrar satisfação, de acordo com os objetivos que colocam a si mesmos, em vez de estarem à mercê de imprevisíveis forças naturais e quase-naturais determinações socioeconômicas. A ordem social existente é edificada no antagonismo estrutural entre o capital e o trabalho, requerendo portanto o exercício de um controle externo sobre todas as forças insubmissas. Adversariedade é o acompanhante necessário de tal sistema, não interessando quão elevados são os desperdícios humanos e econômicos para a sua manutenção.

O imperativo de eliminação de desperdícios está claramente nos nossos horizontes como a maior exigência do desenvolvimento sustentável. A economia a longo prazo deve ir de mãos dadas com um racional e humano propósito de economia , como é próprio ao núcleo do conceito. Mas o caminho de economia racional de modo a regular o nosso processo de reprodução social na base de um controle interno/auto-dirigido, como oposição ao externo/de-cima-para-baixo atualmente prevalecente, é radicalmente incompatível com a desigualdade estrutural e adversariedade.

Nas nossas sociedades as determinações entrincheiradas e garantes de desigualdade material são altamente reforçadas pelo modo como os indivíduos interiorizam o seu “papel na sociedade”, mais ou menos consensualmente resignando à sua categoria de subordinação aos que tomam decisões sobre as suas vidas. Esta cultura foi constituída em paralelo com a formação das novas estruturas de desigualdade do capital, sobre as fundações iníquas do passado. Houve uma interação recíproca entre as estruturas materiais reprodutivas e a dimensão cultural, criando um círculo vicioso que prendeu a esmagadora maioria dos indivíduos no seu estritamente contido domínio de ação. Se consideramos uma alteração qualitativa para o futuro, como devemos, o papel vital do processo cultural não pode ser subestimado. Pois não pode haver uma fuga ao círculo vicioso, a menos que desenvolvamos alguma espécie de interação – mas desta vez numa direção emancipatória – que caracterizou o desenvolvimento social no passado. Nenhuma mudança instantânea pode ser considerada do presente – a longo prazo insustentável – modo de reprodução social para um que não mais carregue tendências destrutivas intrínsecas. O sucesso requer a constituição de uma cultura de igualdade substancial, com o envolvimento ativo de todos, e a consciência da nossa própria partilha de responsabilidade implícita na operação de um tal modo de tomada de decisões sem-adversariedade.

Compreensivelmente, mesmo os maiores e mais iluminados pensadores da burguesia ascendente, como filhos do seu tempo e classe, estavam implicados na criação da longamente estabelecida cultura de desigualdade substantiva. Deixem-me ilustrar este ponto com a luta de Goethe com o significado da fantasia de Fausto, pretendendo representar a busca da humanidade na realização do seu destino. Como sabemos, de acordo com o pacto do insatisfeito Fausto com o Diabo, ele está a um passo de perder a sua aposta (e a sua alma) no momento em que encontra realização e satisfação na vida. E é deste modo que esse momento é saudado por Fausto:

Visse eu esse bulício efervescente,P'ra solo livre pisar com livre gente!A um momento tal então diria:Suspende-te, tu que és tão belo!O rasto dos trabalhos e dos dias,Nem eternidades podem apagá-lo. –Na presciência de tão feliz eventoDesfruto agora do supremo momento.

No entanto, com suprema ironia, Goethe mostra que o grande entusiasmo de Fausto está deslocado. Pois o que ele saúda como o grande trabalho de conquista de terra aos pântanos é os Lémures cavando a sua sepultura. E apenas uma intervenção celeste pode, no fim, salvar Fausto, resgatando a sua alma das garras do Diabo. A grandeza de Goethe é evidente na forma como indica o porquê da busca de Fausto ter que acabar em ironia e insolúvel ambiguidade, mesmo se Goethe não se pôde distanciar da visão do mundo do seu herói, apanhado pela concepção de “desigualdade iluminada”. Este é a súmula da visão faustiana:

Apresso-me a dar corpo ao que pensei,Só a voz do amo efeito produz.Erguei-vos todos, escravos, trabalhai!Fazei que se veja o que imaginei.Tomai a ferramenta, enxada, pá!O planejado tem de ser feito, e já.A clara ordem, o esforço sem detença,Merecem a mais bela recompensa;E se queres consumar a obra ingente,Para mil braços é bastante uma mente.

Claramente a consigna da esmagadora maioria da humanidade para desempenhar o papel de “mãos”, pedir que “Tomai a ferramenta” ao serviço de “uma mente”, e obedecer “a voz do amo” respeitando “A clara ordem, o esforço sem detença”, é absolutamente insustentável a longo prazo, não importando o quanto faz lembrar o atual estado das coisas. Como podemos considerar os seres humanos confinados a tal papel de “P'ra solo livre pisar com livre gente!”? As instruções dadas por Fausto ao capataz sobre o modo de controlar os trabalhadores levam diretamente às atuais formas, refletindo o mesmo espírito insuportável:

- Como puderes,Contrata-me trabalhadores,Prende-os com chicote ou favores,Força-os, e paga o que quiseres!Quero notícias dia a dia, e a tempo,De como vai a escavação do campo.

E que significado podemos nós dar ao “grande plano em favor da humanidade” de Fausto quando sabemos que a ordem social do capital é radicalmente incompatível com o planejamento necessário para a própria sobrevivência da humanidade? Como Mefistófeles descreve a perspectiva que se nos apresenta com brutal realismo:

De que serve tanta coisa criada?O que se cria desfaz-se logo em nada!"Acabou-se!" Qual é disto o sentido?Os “mil braços” ao serviço de “uma mente” não nos oferece, obviamente, nenhuma solução. Nem o místico coro de anjos na última cena do Fausto de Goethe a contrariar a ameaça de Mefistófeles de “O que se cria desfaz-se logo em nada!” [9]

Num tempo diferente Balzac, em uma das suas grandes novelas, Melmoth Reconciled, retoma o tema de Fausto, socorrendo de um modo muito diferente Melmoth/Fausto – que, graças ao seu pacto com o diabo, aproveita de uma saúde ilimitada ao longo da sua vida. Neste caso não há necessidade de intervenção divina. Pelo contrário, a solução é oferecida com extrema ironia e sarcasmo. Melmoth com muita habilidade salva a sua própria alma – quando sente a morte a aproximar-se e quer romper o pacto com o diabo – ao realizar um acordo com outro homem, Castanier, em apuros por desfalque, trocando a sua alma em perigo com este, que não hesita em entrar no negócio que lhe confere saúde ilimitada. E a garantia de Castanier, quando por sua vez chega à ideia de como se escapar do ultimo problema, é através da obtenção de uma outra alma em troca da sua, comprometida com o diabo, continuando de um modo intricado o sarcasmo de Balzac, o que nos leva até ao profético diagnóstico de Thomas Müntzer da alienação usurpadora. Castanier dirige-se ao mercado de títulos, absolutamente convencido que terá êxito em encontrar alguém cuja alma possa obter em troca da dele, dizendo que no mercado de títulos “mesmo o Espírito Santo tem a sua cotação” (O Banco do Espírito Santo do Vaticano na lista dos grandes bancos). [10]

No entanto, é suficiente seguir, nem que seja por uns dias os distúrbios dos mercados de títulos de modo a apercebermos que a solução de Melmoth/Castanier não é mais realista hoje do que a intervenção celestial de Goethe. O nosso desafio histórico de obtenção de condições de um desenvolvimento sustentável deve ser resolvido de um modo muito diferente.

Desprender-nos da cultura da desigualdade substantiva e progressivamente substituí-la por uma alternativa viável é o caminho que necessitamos seguir.

Notas:

1. It is enough to think of two recent examples: (1) the practical disenfranchising of countless millions, due to apathy or manipulation, and the electoral farce witnessed after the last U.S. Presidential election and (2) the lowest ever participation of voters in the June 2001 General Election in Britain, producing a grotesquely inflated parliamentary majority of 169 for the Government party with the votes of less than 25 percent of the electorate. The spokesmen of the winning party, refusing to listen to the British electorate’s clear warning message, boasted that “New Labour” had achieved a “land-slide victory.” Shirley Williams aptly commented that what we were witnessing was not a landslide but a mudslide.
2. David Cay Johnston, “Gap Between Rich and Poor Found Substantially Wider,” New York Times, September 5, 1999.
3. Henry Home (Lord Kames), Loose Hints upon Education, chiefly concerning the Culture of the Heart (Edinburgh & London, 1781), 284.
4. Diderot’s entry on Journalier in the Encyclopédie (emphasis added).
5. Jean-Jacques Rousseau, A Discourse on Political Economy (London: Everyman edition, n.d.), p. 264.
6. Giambattista Vico, The New Science, translated from the third edition (1744) (New York: Doubleday & Co, 1961), 3 (emphasis added).
7. Thomas Müntzer  Hochverursachte Schutzrede und Antwort wider das geistlose, sanftlebende Fleisch zu Wittenberg, welches mit verkehrter Weise durch den Diebstahl der heiligen Schrift die erbärmliche Christenheit also ganz jämmerlich besudelt hat (1524), quoted by Marx in his essay The Jewish Question (emphasis added).
8. In other words, we end up with a double circularity, produced by the most iniquitous actual historical development: “liberty” is defined as (abstractly postulated but in real substance utterly fictitious) “contractual equality,” and “equality” is exhausted in the vague desideratum of a “liberty” to aspire at being granted nothing more than the formally proclaimed but socially nullified “equality of opportunity.”
9. From Part Two, Act 5, of Goethe’s Faust. English translation by Philip Wayne (Harmondsworth, Middlesex: Penguin Classics, 1959). English quotations are taken from pages 267-270 of this volume (emphasis added).
10. The direct inspiration for Balzac’s novella was a long tale by an Irish Anglican clergyman, the descendant of a French Huguenot priest who fled France after the revocation of the Edict of Nantes. This work, by Charles Robert Maturin, the curate of St. Peter’s, Dublin, entitled Melmoth the Wanderer, was first published in Dublin in 1820, and immediately translated into French. (Recent edition by The Folio Society, London, 1993, pp. xvii.+ 506, with an Introduction by Virendra P. Varma.) The big difference is that while Maturin’s wandering Melmoth in the end cannot escape hell, Balzac’s very different way of approaching the Faust legend, with devastating irony and sarcasm, transfers the story on a radically different plane, putting into relief a vital determination of our social order.

Sobre o autor

István MészÁros é autor de Socialism or Barbarism: From the “American Century” to the Crossroads (Monthly Review Press, 2001), e Beyond Capital: Toward a Theory of Transition (Monthly Review Press, 1995).

Este artigo é baseado em uma palestra proferida na "Cúpula sobre Dívida Social e Integração da América Latina" dos Parlamentos Latino-Americanos, realizada em Caracas, Venezuela, de 10 a 13 de julho de 2001.

15 de novembro de 2001

A luta contra a fraseologia revolucionária e a refundação marxista e comunista

Domenico Losurdo


Tradução / Na extraordinária personalidade e atividade de Lênin, existe um aspecto escassamente estudado mas que apresenta uma dimensão ao mesmo tempo teórica e pedagógica: a luta contra a “frase revolucionária”, altissonante e oca. Todo movimento que queira pensar e agir politicamente, sem “embalar-se nas palavras, nas declamações e nas exclamações”, deve desvencilhar-se dela e permanecer em constante vigilância contra ela¹. O problema se coloca de forma particularmente aguda para as classes populares que, por causa de sua subordinação social, não têm nenhuma experiência de gestão do poder e, ademais, não pretendem limitar-se a administrar o existente, mas aspiram a modificá-lo profundamente. Esta ambição é legítima e justa, mas implícito nela encontra-se um grave risco: em situações complexas e difíceis, à ação política e à análise concreta da situação concreta que constitui seu pressuposto inelutável, tende-se a substituir a efusão sentimental e emotiva ou, pior ainda, o gesto estetizante de quem contrapõe a excelência de suas intenções ao difícil e tortuoso empenho na transformação do real.

Não por acaso foi no período imediatamente posterior à revolução de Outubro que Lênin se empenhou, de modo particular, na luta contra a “frase revolucionária”. Era necessário levar em conta que o quadro político estava radicalmente mudado. Entretanto, “a ‘fraseologia revolucionária’ consiste na repetição das palavras de ordem revolucionárias, sem considerar as circunstâncias objetivas no momento de uma reviravolta dos acontecimentos”. A situação em que se encontrava o novo poder soviético era bastante difícil, repentinamente assaltado pela agressão imperialista, além daquela da Vendéia reacionária. Como enfrentar o ataque de forças avassaladoras? Qual inimigo devia ser considerado o mais perigoso? E quais compromissos podiam resultar úteis ou indispensáveis à causa da salvação do poder soviético? Mas “os heróis da ‘fraseologia revolucionária’ desdenham essa tática”. Na prática, a “fraseologia revolucionária” é uma palavra de ordem que exprime tão-somente “sentimento, cólera, indignação”².

Após a queda do “socialismo real” e a ascensão triunfante dos EUA como única superpotência planetária, os comunistas são chamados a desenvolver um novo reconhecimento do terreno no plano nacional e internacional. Pode então ser útil uma análise das “frases revolucionárias” mais difundidas que, numa análise atenta, revelam-se freqüentemente como novos ecos dos lugares comuns da ideologia burguesa.

1. Os “novos Hitler”: de um Estado pária ao outro

Nos últimos tempos, assistiu-se a um espetáculo extraordinário, com a formação de uma gigantesca frente unida mundial contra o “novo Hitler”, representado pelo líder de um partido que passou a fazer parte do governo austríaco: é o governador da Caríntia (Áustria), Jürg Haider, uma espécie de Bossi³ ao molho local.

A formação política dirigida por ele é um típico produto da globalização capitalista: goza das vantagens decorrentes da possibilidade, para os países industrializados mais avançados, de exportar mercadorias para o mundo todo, mas olha com horror a outra face da medalha do mercado global, a mobilidade da força de trabalho em escala planetária e a conseqüente corrente migratória de uma massa de desesperados que busca fugir do subdesenvolvimento e da fome. Como sempre, nesses casos, juntamente com a atitude racista perante os recém-chegados ou os que se amontoam às portas, manifesta-se o revisionismo, através da tentativa de repor em discussão ou de liquidar a gigantesca onda revolucionária que, enraizada no Outubro bolchevique, investiu contra o colonialismo e o racismo, submergindo o fascismo e o nazismo, isto é, os regimes empenhados em perpetuar e radicalizar ao extremo o domínio ocidental, branco e ariano. Estamos em presença de processos ideológicos e políticos que, com diversas modalidades, encontram sua expressão em personagens como Haider, Bossi, Le Pen (4).

Não se trata tão-somente da Europa. Nos confins meridionais dos Estados Unidos, um muro propriamente dito impede o acesso dos imigrantes provenientes do México, ao mesmo tempo em que se avolumam as vozes que lamentam os efeitos de aviltamento e de desnaturamento da autenticidade americana e anglo-saxã provocados pelo fluxo de latinos. Numa difusa ideologia reacionária, os latinos tendem a ser amalgamados com os negros. Esses, desde sempre relegados ao segmento inferior do mercado de trabalho, continuam a ser alvo de preconceitos e de estereótipos: libelos e livros “respeitáveis” esforçam-se em demonstrar “cientificamente” a inferioridade intelectual dos negros e a reabilitar a Confederação secessionista e escravagista cuja bandeira é, até hoje, no Sul dos EUA, desfraldada orgulhosamente pelos herdeiros dos ex-proprietários de escravos para ulterior humilhação das vítimas do Holocausto negro e de seus descendentes.

Impõem-se a vigilância e a luta contra esses movimentos e essas tendências, e reconheça-se aos comunistas austríacos o mérito de colocar-se à frente das manifestações populares de protesto contra Haider. Isso significa que devemos reconhecer à União Européia o direito de interferir nos assuntos internos da Áustria? Em que direção se fará valer esse precedente? Ao analisar o desenvolvimento político em curso na República Checa, a imprensa estadunidense deixa escapar algumas indicações: “Faltam ainda dois anos para as próximas eleições, mas se o Partido Comunista, que dobrou seus sufrágios nesses últimos dois anos, continuar a crescer”, após a Áustria de Haider, um outro Estado “pária” deverá ser enfrentado pela União Européia (5).

Nesse ponto, as dúvidas deveriam aumentar: não é suspeita a atual campanha que põe em mira um país, a Áustria, que se recusou a participar, de modo direto ou indireto, da guerra contra a Iugoslávia e que não participa nem pretende participar da Otan? Somos reconduzidos à trágica realidade da guerra nos Bálcãs: é ali que está em curso uma limpeza étnica, da qual são protagonistas os próprios países e governos que, hoje, dilaceram suas vestes por causa de Haider. Sem jamais pôr em surdina a luta contra a xenofobia, uma esquerda digna desse nome deveria estar muito atenta para não se colocar a reboque dos açougueiros de Washington e das diversas capitais européias.

E, no entanto...

2. Da guerra civil revolucionária às guerras de liberação e de defesa nacional

Para compreender a enésima manifestação de subordinação da esquerda e sua permanente incapacidade de elaborar uma estratégia autônoma, convém refletir sobre a história do movimento comunista internacional, acompanhada como uma sombra por uma fraqueza de fundo, teórica e política: a tendência a fazer apelo à analogia ao invés da análise concreta de uma situação concreta. A Revolução de Outubro estourou a partir da transformação da guerra imperialista em guerra civil revolucionária: Lênin desmascara o caráter mistificador das palavras de ordem de defesa da pátria e apela para que, em cada realidade nacional, os comunistas se empenhem em primeiro lugar na derrota de seus próprios países e de seus próprios governos. Foi na crista dessas gigantescas lutas que surgiu a Terceira Internacional. Inegáveis e enormes são seus méritos históricos, mas, com o passar do tempo, acabou vacilante e exaurida, sem ter elaborado uma estratégia à altura da situação radicalmente nova que se tinha criado. Revelou-se difusa e tenaz a tendência de pensar a nova onda revolucionária que tomava corpo com base nos moldes que tinham aberto a via à Rússia soviética; examinava-se o horizonte em busca da nova guerra imperialista a ser transformada, mais uma vez e segundo um modelo já consolidado, em guerra civil revolucionária.

Não se levava em conta que, justamente em virtude de sua vitória, os bolcheviques tinham tornado improvável ou impossível a repetição mecânica da experiência anterior. Ao contrário, Lênin estava consciente da mudança de rumos: “A partir de outubro de 1917, nos tornamos todos defensistas, partidários da defesa da pátria” (6). A própria existência da Rússia soviética, resultado da revolução vitoriosa, representava a erupção de um elemento completamente ausente do primeiro conflito mundial: em cada país, os comunistas deviam levá-lo em conta se quisessem proceder à análise concreta da guerra concreta.

Mas não era somente a existência de um país empenhado na construção do socialismo que conferia uma natureza e um significado novo às crises bélicas que iam se avolumando. Não se pode perder de vista o fato de que, junto ao apelo para a transformação da guerra imperialista em guerra revolucionária, os bolcheviques lançaram também um apelo aos escravos das colônias para que rompessem suas correntes e, portanto, conduzissem guerras de libertação nacional contra a dominação imperialista das grandes potências. O nazi-fascismo apresentou-se como um movimento de reação, e de reação extrema, também perante esse segundo apelo. Às vésperas do início oficial da segunda guerra mundial, antes mesmo da agressão contra a Polônia e a URSS, a Alemanha nazista desmembrava a Checoslováquia e declarava de forma explícita que a Boêmia-Morávia era um “protetorado” do Terceiro Reich: a linguagem e as instituições da tradição colonial eram explicitamente reivindicadas e seu âmbito de aplicação estendido até a Europa oriental. Foi lá que Hitler pretendeu edificar “as Índias alemãs”, dizimando a população local, apropriando-se de suas terras e transformando os sobreviventes em força de trabalho servil para a “raça dos senhores”.

Isso significa que, desde o início, o segundo conflito mundial apresentava características radicalmente distintas do primeiro: não se tratava mais de transformar a guerra imperialista em guerra civil revolucionária; a luta contra o imperialismo entrelaçava-se estreitamente ao apoio às guerras de libertação nacional dos povos atingidos pela nova leva de expansão colonial e à guerra pela defesa da União Soviética. Por fim, os comunistas alemães, italianos e japoneses lutavam sim pela derrota de seus respectivos governos e países, mas também – e isso era uma mudança radical em relação ao período de 1914-18 – pela vitória da guerra de defesa e de independência nacional da URSS, da Iugoslávia, da Albânia, da China. Para citar apenas um exemplo, pensemos nos soldados italianos enviados aos Bálcãs pelo governo fascista, que se alistaram nas fileiras dos “partisans” iugoslavos e albaneses, empenhados numa guerra de libertação nacional.

O movimento comunista se dá conta dessas mudanças radicais, sobretudo a partir do VII Congresso da Internacional (1935). É um complexo processo de aprendizagem que ocorre em condições dramáticas, enquanto se tornam cada vez mais ameaçadores os perigos da guerra e do fascismo. Às dificuldades da situação objetiva agregam-se fatores subjetivos: inexperiência, erros e crimes decorrentes da transformação, por responsabilidade de todos, das contradições no seio do povo em contradições antagonistas. Permanece o fato de que a nova vaga revolucionária começa a desenvolver-se quando, abandonando o jogo das analogias, o movimento comunista procede à análise concreta da situação concreta. Os poucos (Bordiga, Trotsky etc.) que continuam a agitar nostalgicamente a palavra de ordem de transformação da guerra imperialista em guerra civil revolucionária revelam-se, em realidade, prisioneiros de uma “frase” e acabam separando-se do corpo do movimento comunista.

A nova estratégia encontra sua máxima expressão em dois acontecimentos épicos: a Longa Marcha dos comunistas chineses que, liderados por Mao Zedong, atravessam milhares de quilômetros em condições bastante difíceis, para colocar-se à frente da guerra de defesa nacional contra o imperialismo japonês e o apelo de Stalin aos povos da União Soviética para que se unissem na Grande Guerra Patriótica contra as hordas hitlerianas. É assim que se desenvolve, após a Revolução de Outubro, uma segunda gigantesca vaga revolucionária: o campo socialista conhece uma enorme expansão, enquanto o alargamento das revoluções anticoloniais parece fazer vacilar o imperialismo.

3. O “novo Hitler” e o Anticristo

Infelizmente, no rastro dessas grandes vitórias, aparece novamente o jogo vão das analogias. O movimento comunista segue com apaixonada atenção a evolução da bolsa em Wall Street, à espera de uma reedição da grande crise de 1929. Esta crise tinha acelerado a ascensão do fascismo e agravado as contradições entre as grandes potências imperialistas, que depois se dirimiram no segundo conflito mundial. Um ano antes de sua morte, em 1952, Stalin retoma a tese da absoluta inevitabilidade da guerra entre os países imperialistas. Esses, como em 1939, se enfrentariam sanguinariamente entre si, antes de envolver na guerra a União Soviética e o campo socialista. Como se pode constatar, a terceira vaga revolucionária é pensada sobre o modelo da segunda, da mesma forma que por tanto tempo a segunda vaga revolucionária tinha sido pensada sobre o modelo da primeira.

Na realidade, a própria gigantesca extensão do campo socialista freava o desenvolvimento das contradições entre as diversas potências capitalistas. Os EUA conseguem unificá-las sob sua hegemonia e não somente no plano militar. Uma série de organismos econômicos internacionais, por um lado, asseguram o controle de Washington sobre seus aliados e, por outro lado, buscam controlar a dinâmica que tinha levado à catástrofe de 1929.

O movimento comunista revelou-se bastante relutante em despedir-se de suas grandiosas memórias históricas e do jogo de analogias relacionadas a elas. Até os grupos oriundos de 1968 não se cansaram de invocar a “Nova Resistência” e os “novos partisans”. Era amplamente difundida a visão de que a crise empurrava a burguesia a percorrer novamente o caminho do fascismo; só que, dessa vez, o movimento de luta pela recuperação da democracia iria aprofundar-se, derrubando o capitalismo, de uma vez por todas. Que fique claro: não faltaram os golpes de Estado nem as tentativas de golpes de Estado. Mesmo assim, as ditaduras militares, que não devem ser confundidas com o fascismo propriamente dito, foram pensadas como sendo, no máximo, soluções provisórias, etapas intermediárias rumo à realização da Nova Ordem Internacional que, hoje, com o desaparecimento do “campo socialista” e as angústias que isso provocou, vai se delineando, como veremos, com grande clareza.

Não faz sentido, então, perscrutar o horizonte em busca de indícios que anunciem o “novo Hitler”. Daria no mesmo aguardar a chegada do Anticristo. Num caso e no outro, trata-se de uma representação religiosa: a reedição do Mal absoluto é o pressuposto do triunfo total e absoluto do Bem. Na realidade, as hordas hitlerianas, retidas e ignominiosamente derrotadas em Stalingrado, para serem depois rechaçadas pelo heróico Exército Vermelho até a capitulação final do Terceiro Reich, não ressurgirão de suas cinzas. O movimento comunista contribuiu de forma decisiva à liquidação do nazismo, até no plano ideológico. Ainda nos anos 30, o termo “racismo” tinha uma conotação não necessariamente negativa; a esta pretensa “ciência” faziam referência, bem além da Alemanha, diversos “cientistas” do mundo capitalista. Com a derrota do Terceiro Reich, tudo mudou.

Uma nova mudança radical interveio com o desabamento do campo socialista. Se durante os anos da guerra fria havia duas capitais (Washington e Moscou) em áspera concorrência uma com a outra, tentando rotular tal ou qual inimigo de “novo Hitler”, esse poder de excomunhão está agora, exclusiva e infelizmente, nas mãos de Washington. Assim, depois de Saddam e de Milosevic, Haider torna-se o “novo Hitler”! Por sorte sua, a Áustria ainda não foi golpeada pelas bombas e pelos embargos que devastaram e continuam devastando o Iraque e a Iugoslávia. Por conseguinte, uma esquerda que continua a cultivar o jogo das analogias, mirando o horizonte em busca do nazismo ressurgido e ressurgente, não somente se move num espaço histórico imaginário, mas contribui a reforçar ainda mais a hegemonia do Santo Papa ... sediado em Washington e dispondo, ao mesmo tempo, do poder de excomunhão e da capacidade de aniquilamento nuclear.

Cossutta (7) dá um pouco de pena quando, como se fosse um Dimitrov ou Togliatti redivivos, posa de líder de uma renascida frente popular em luta contra um impreciso perigo fascista. No entanto, seu partido faz parte de um governo que, nos Bálcãs, se manchou e continua a se manchar de infâmias tais que só encontram precedentes na conduta de Mussolini. Mas é necessário reconhecer que, perante o caso Haider, em nome de enfrentar o improvável Hitler da Caríntia, até Il Manifesto e alguns expoentes do PCF e da Rifondazione Comunista mostraram-se dispostos a constituir uma frente única com Jospin e com os outros responsáveis da guerra dos Bálcãs e da limpeza étnica contra os sérvios ainda em curso no Kosovo.

4. O belo Thaci, Lady Killer e a frase “trotskista”

Se Cossutta, em particular, brinca de representar Dimitrov ou Togliatti, certos grupos ¨trotskistas¨ se obstinam, por sua vez, a assumir o papel de Lênin e Trotski: assim, seu cavalo de batalha é a ¨autodeterminação¨. Entretanto, ao agitar palavras de ordem, parecem não querer nem mesmo interrogar-se sobre as colossais transformações entrementes verificadas. A partir da Revolução de Outubro, o movimento de emancipação dos povos em condições coloniais e semicoloniais conheceu grandes vitórias: Estados de antiga civilização conquistaram uma real independência, não mais uma meramente formal (pensemos na China e na Pérsia); novos Estados nacionais se constituíram, libertando-se do jugo das grandes potências imperiais, que continuaram a manifestar sua natureza agressiva e suas ambições de dominação, em novas condições. Constrangidas a reconhecer a independência dos países que se subtraíram a seu controle, buscam agora desagregá-los, apelando para as rivalidades étnicas e tribais. Esta é uma velha manobra. Os países de independência recente – freqüentemente com fronteiras incertas, mal-desenhadas ou arbitrárias – não carregam uma consolidada história unitária em seus ombros. Por si só, a herança colonial é um terreno fértil para o surgimento de movimentos separatistas e secessionistas, que são facilmente dominados pelo imperialismo. “Donde o reiterado e no mais das vezes inócuo convite aos chefes desses novos Estados a superar o ‘tribalismo’, o ‘localismo’, ou quaisquer outras forças desagregadoras tidas como responsáveis pela incapacidade dos novos habitantes da República X de sentirem-se, em primeiro lugar, cidadãos da pátria X, ao invés de pertencentes a esta ou aquela coletividade” (8).

O conflito que se desenrolou no Congo, entre o fim dos anos 50 e o início dos anos 60 foi, nesse sentido, exemplar. Constrangida a conceder a independência, a Bélgica logo se empenha em promover a secessão do Katanga. Não era em nome da autodeterminação que o Congo (aliás, como toda a África) tinha reivindicado e continuava a reivindicar a independência? Então, esse mesmo princípio deveria valer inclusive para as ricas regiões mineiras controladas pela Union Minière. Para a ocasião, encontrou-se rapidamente um “revolucionário” pronto a agitar esta bandeira: tratava-se de Moisés Tchombe, filho do primeiro milionário negro do Katanga. Secessionistas e forças coloniais capturaram Lumumba, dirigente do Movimento Nacional Congolês, que se inspirava “em um programa unitário, progressista e intertribal”. Culpado, portanto, de oporse à secessão e à “autodeterminação” das ricas regiões às quais os colonialistas não tinham intenção de renunciar, acabou sendo massacrado (9).

Para completar, o domínio colonial deixou seus rastros: no plano econômico acentuou a desigualdade de desenvolvimento entre as diversas regiões, enquanto que a presença hegemônica, em todos os níveis, das grandes potências e a política de engenharia étnica por elas implementada acentuam a fragmentação cultural, lingüística e religiosa. Novamente, espreita-se o surgimento de tendências secessionistas de todos os tipos, regularmente alimentadas pelas ex-potências coloniais. Quando tomou Hong Kong da China, a Grã Bretanha não pensou decerto em autodeterminação, nem se lembrou desse princípio nos longos anos em que exerceu seu domínio. Mas, eis que às vésperas da devolução de Hong Kong à sua mãe pátria, o governador enviado por Londres, Chris Patten, um conservador, tem uma espécie de iluminação e de improvisada conversão: faz um apelo aos habitantes de Hong Kong para que façam valer seu direito à “autodeterminação”... contra a mãe pátria, permanecendo assim na órbita do Império britânico.

Considerações análogas valem para Taiwan. Quando, no início do ano de 1947, o Kuomintang, em fuga da China continental e do vitorioso Exército Popular, desencadeia contra os habitantes de Taiwan uma terrível repressão que provoca cerca de 10 mil mortes (10), os Estados Unidos evitaram muito bem evocar o direito à autodeterminação para os habitantes da ilha. Pelo contrário, procuram por todos os meios impor a idéia de que o governo de Chiang Kaishek era o governo legítimo não só de Taiwan mas de toda a China. O grande país asiático deveria portanto permanecer unido sob o controle de Chiang Kaishek, reduzido a simples proconsul do soberano imperial de Washington. À medida que se dissipam os sonhos de reconquista do continente e se torna mais forte a aspiração do povo chinês de conseguir a plena integridade territorial e a plena independência, pondo fim ao trágico capítulo da história colonial, eis que os presidentes estadunidenses conhecem uma iluminação e uma conversão similares às de Chris Patten: também começam a acariciar essa idéia de “autodeterminação”. Incoerência? Nada disso: a “autodeterminação” é a continuação da política imperial por outros meios. Se efetivamente não é possível pôr as mãos na China em seu conjunto, então convém assegurar-se do controle de Hong Kong ou de Taiwan.

Também foi assim nos Bálcãs. O diktat de Rambouillet previa para a Otan o controle absoluto da Iugoslávia inteira; uma heróica resistência fez falhar este plano. Mas eis as manobras para também impor, além de Kosovo, a “autodeterminação” de Montenegro e, possivelmente, de outras regiões. O imperialismo revela uma férrea coerência. Ao contrário, há certos grupos “trotskistas” que dão prova de um total distanciamento da realidade: acreditam ser discípulos fiéis e coerentes de Lênin e de Trotsky e não percebem que estão transformando uma grande palavra de ordem revolucionária em uma “frase”. Ocorre, pois, que enquanto estão desgastando as mãos de tanto aplaudir o princípio de autodeterminação, os heróis da “frase” olham com frieza ou com hostilidade as lutas concretas pela autodeterminação que se desenrolam sob seus olhos e que têm como protagonistas a Iugoslávia e a China. Por outro lado, esses heróis, embora tomem suas distâncias dos bombardeios, acabam por assimilar alguns motivos da ideologia da guerra da Otan, isto é, de uma aliança que, com sua nova doutrina, pôs de forma explícita em suas bandeiras o cancelamento da soberania e do Estado nacional e, portanto, do próprio direito à autodeterminação.

Ao falar dos grupos ¨trotskistas¨, venho sistematicamente empregando as aspas, pois apesar dos graves erros cometidos no decurso de um complexo e trágico processo de aprendizagem que envolveu todo o grupo dirigente oriundo da Revolução de Outubro e o movimento comunista, o grande revolucionário russo não sonharia jamais em conferir uma legitimidade revolucionária à UCK e ao belo Thaci, o chefe mafioso, filho dileto da OTAN, e, sobretudo, à Albright, a Lady Killer do imperialismo americano.

Assim, embora empenhados em representar, no âmbito do jogo das analogias, personagens históricos bastante diversos entre si, Cossutta e seus imitadores involuntários, por um lado, e os grupos “trotskistas”, por outro lado, correm o risco de se colocar a reboque daquele que é hoje o pior inimigo tanto do princípio de igualdade entre os povos e etnias quanto do princípio de autodeterminação.

5. O Führer e o aspirante a soberano planetário de Washington

Longe de estarem ultrapassados, as ambições e os sonhos de domínio planetário têm assumido, em nossos dias, uma configuração ainda mais nítida. Nesse sentido, se existe algo que possa fazer pensar no Terceiro Reich, na visão de Hitler destinado a durar ao menos mil anos, é a Nova Ordem Internacional sob hegemonia dos EUA, titular, segundo a arrogante e visionária reivindicação de Clinton de uma “missão” planetária, absolutamente “sem tempo de duração definida”. Entende-se então que Washington se recuse a pronunciar qualquer autocrítica por Hiroshima e Nagasaki. Todavia, são numerosos os reconhecidos estudiosos americanos que falam a esse propósito de “holocausto”, de forma a compará-lo explicitamente com o “holocausto” consumado pelos nazistas. Mas os EUA estão decididos a reivindicar seu “direito” ao aniquilamento nuclear das populações civis dos países inimigos, com o olhar voltado não somente ao passado, mas também ao presente e ao futuro. É por isso que recusam obstinadamente comprometer-se a não empregar em primeiro lugar a arma atômica. Todos os povos do mundo devem ter claro que Hiroshima e Nagasaki podem tranqüilamente se repetir cada vez que Washington julgar oportuno.

Junto com a ameaça de holocausto, os Estados Unidos fazem, igualmente, reemergir a terrível realidade dos campos de concentração. O que são efetivamente os embargos senão uma versão pós-moderna dos campos de concentração? Em uma época de globalização, não é mais necessário deportar um povo; basta bloquear o fluxo de comida e remédios; mormente se, com alguns bombardeios “inteligentes”, consegue-se destruir aquedutos, redes de esgoto e infra-estruturas sanitárias, como aconteceu precisamente no Iraque e na Iugoslávia.

Mas as analogias com o Terceiro Reich não param aqui. Ontem como hoje, os autoproclamados senhores do universo consideram que o direito internacional nada mais é que um pedaço de papel: nada valem a soberania nacional nem as normas que deveriam regulamentar os conflitos armados. Por ocasião da guerra do Golfo, os EUA não hesitaram em “exterminar os iraquianos já fugitivos e desarmados” (11); ou mais precisamente a exterminá-los “depois do cessar-fogo” (12). De forma ainda mais soberana, manifestou-se o desprezo ao direito internacional por ocasião das expedições punitivas contra a Iugoslávia: testemunhas disso são os projéteis de urânio, as bombas de fragmentação, a execução, por meio do bombardeio da TV sérvia, dos jornalistas considerados politicamente incorretos pela Otan.

Os EUA se reservam o direito de fazer em pedaços, a seu bel-prazer, esse ou aquele país, por exemplo, proclamando no Iraque as no fly zones e bombardeando sistematicamente até aqueles que ousam apontar o radar contra os aviões invasores. A partir de Washington, uma espécie de tribunal mafioso secreto pronuncia condenações à morte desse ou daquele chefe de Estado. Um artigo do “International Herald Tribune” anuncia jubilante: a CIA separou somas enormes “para encontrar um general ou um coronel que enfie uma bala no cérebro de Saddam” (13).

Independentemente desse ou daquele crime singular, somos levados a pensar no Terceiro Reich por uma questão política central. O gigantesco processo de emancipação dos povos das condições coloniais ou semicoloniais, posto em marcha pela Revolução de Outubro, esbarrou em duas grandes correntes contra-revolucionárias: se a primeira é representada pelo nazismo, a segunda, agora, toma a forma da nova doutrina da Otan. Assim, volta a ser de atualidade o princípio clássico de legitimação das guerras coloniais: sinônimo de civilização, o Ocidente, dirigido pelos EUA, tem o direito e o dever de difundi-la aos quatro cantos da terra, livrando-se dos bárbaros que poderiam entravar essa marcha triunfal. Por fim, a ideologia cara ao nazismo, que celebrava os alemães como o “povo dos senhores”, destinado pela natureza e pela providência a exercer a hegemonia mundial continua a mostrar-se vital no imperialismo dos EUA: para dar apenas um exemplo, Kissinger não hesitou em declarar que “a liderança mundial é inerente ao poder e aos valores americanos”.

Não restam dúvidas: se quisermos recorrer ao jogo das analogias, a semelhança com o Führer pertence ao aspirante a soberano planetário instalado em Washington. Todavia, seria enganar-se ver em Clinton um “novo Hitler”. Não se trata tanto de estabelecer uma hierarquia dos horrores. Certamente, no âmbito dessa hierarquia, um lugar eminente deve ser reservado a um indivíduo que, por meio do embargo, condenou um povo inteiro à dizimação e o condena não mais no curso de um conflito de vida ou de morte, mas com toda a tranqüilidade; sem correr nenhum perigo nem pessoalmente nem para os países que representa; a frio, até de forma alegre, entre uma sarabanda sexual e outra.

6. “Filantropia 5% política da canhoneira”

Se, levando em conta os distintos contextos históricos e geopolíticos, Clinton não resulta menos repugnante que Hitler no plano moral, permanece entretanto o fato de serem profundamente diversas a tradição política e ideológica que pesa sobre os ombros dos dois personagens, o contexto histórico em que agem, as táticas e as palavras de ordem a que fazem apelo. Ao contrário daquele nazista, o imperialismo americano não aspira hoje ao controle político direto de suas colônias e semicolônias. Em vez disso, busca transformar o mundo inteiro em um “mercado livre” e em uma “democracia” entendida como “livre mercado político” aberto às mercadorias e aos “valores” made in USA. Para realizar tais objetivos considera, de forma convergente, por um lado, a promoção das rivalidades étnicas e dos movimentos separatistas e, por outro lado, as campanhas pelos “direitos humanos”. Aos olhos de Washington, um partido político fortemente organizado é tão intolerável quanto uma economia florescente e autônoma com uma tecnologia nacional (a China Popular representa um tapa na cara sob ambos os pontos de vista). Os países que podem constituir um obstáculo para sua marcha rumo à hegemonia mundial devem ser desmembrados e escancarados à superpotência econômica, multimediática, cultural e política do imperialismo americano. Na sombra, está pronto a intervir de forma direta, desencadeando “guerras humanitárias”, monstruoso aparato militar de destruição e de morte.

Mais do que no regime nazista, o atual imperialismo americano faz pensar no imperialismo britânico que, com sua expansão, se sentia empenhado em “tornar as guerras impossíveis e promover os melhores interesses da humanidade”. É Cecil Rhodes quem se exprime assim, e sintetiza a filosofia do Império britânico da seguinte forma: “filantropia 5%” (14); em que “filantropia” é sinônimo de “direitos humanos” e o percentual de 5% indica os lucros que a burguesia capitalista inglesa realizava ou se propunha a realizar mediante as conquistas coloniais e a agitação da bandeira dos “direitos humanos”. Vejamos agora de que modo um jornalista estadunidense descreve e celebra a globalização: essa serve para exportar, em primeiro lugar “os produtos, a tecnologia, as idéias, os valores e o estilo do capitalismo americano”. Os EUA podem assim consolidar e estender sua hegemonia “seja estabilizando o mundo militarmente, seja democratizando-o econômica e politicamente”; em particular “para demover a China” devem saber combinar, naturalmente, “canhoneiras, comércio e investimentos na Internet” às palavras de ordem de “democratização” econômica e política (15). A fórmula cara a Rhodes, o bardo do imperialismo britânico, pode assim ser reformulada com maior precisão e franqueza: “filantropia (ou melhor, direitos humanos) 5% política de canhoneiras”. As canhoneiras são essenciais para estimular o processo de globalização: o jornalista já citado convida Israel a não fazer nenhuma concessão sobre o Golan “enquanto não se ver a Síria entrar no mundo” e começar a “privatizar e desregulamentar” (16). Por outro lado, nota-se que, aos olhos da OTAN, um dos mais graves crimes de Belgrado foi sua recusa em “adotar o modelo neoliberal imposto pela globalização” (17).

Há, portanto, uma férrea unidade nessa fórmula “filantropia 5% política das canhoneiras”. É a esquerda que não consegue entendê-la. Condena as “guerras humanitárias” mas apóia a oposição a Milosevic, ainda que, se tomasse o poder, essa “oposição”, profusamente paga por Washington e pelo Ocidente em seu conjunto, escancararia o país às mercadorias e à hegemonia cultural e política dos EUA e da Otan, que acabaria por estender-se mais ainda, englobando a própria Sérvia, e alcançando todos os objetivos em vista dos quais a “guerra humanitária” foi desencadeada. Na imprensa americana, é possível ler denúncias que falam dos EUA como um país em que domina a “plutocracia”, na qual as instituições são controladas pela riqueza, enquanto o “resto do povo é deixado de fora” de qualquer possibilidade de influir nas escolhas políticas (18). Entretanto, uma certa esquerda, que observa com pavor o avanço do mercado global e o desmantelamento dos direitos econômicos e sociais, depois se junta às campanhas pela “democracia”, como se a plutocracia de Washington não representasse papel algum nessas campanhas e como se o triunfo do mercado político não andasse pari passo com o triunfo do mercado econômico.

A confusão é total: quantos artigos apareceram e aparecem no Manifesto convidando o Ocidente a ser ainda mais intransigente em suas campanhas pelos “direitos humanos” na China? Presenciamos assim o singular espetáculo de um “diário comunista” que apela a todas as potências capitalistas para que desencadeiem uma guerra, por hora somente “fria”, contra a República fundada por Mao Zedong e ainda dirigida pelo Partido Comunista.

Na estratégia do imperialismo, a cruzada “filantrópica” pelos “direitos humanos” é o primeiro passo de uma escalada que, através das represálias comerciais e depois do embargo mais ou menos total, conduz posteriormente à verdadeira e real agressão militar. Mas uma certa esquerda se põe a campo por um pedaço dessa infernal escalada e se agita sem compostura – para pular fora somente quando começa a perceber o cheiro de queimado e o fragor das bombas.

7. O perigo principal

Por falta de uma análise concreta da situação concreta, a esquerda se revela incapaz de elaborar uma estratégia autônoma. Perde de vista o inimigo principal. A Haider se critica justamente a tentativa de reabilitação parcial da Waffen SS (até em seu interior, haveria pessoas “respeitáveis”); mas é necessário não esquecer que, em 1985, foi o próprio presidente dos EUA, Reagan, que rendeu homenagem no cemitério de Ritburg, juntamente com Kohl, a esse corpo militar que, mesmo não se confundindo com as SS propriamente ditas, não deixou de constituir um instrumento essencial da política infame do Terceiro Reich. Foram, pois, Washington e Bonn que primeiro se empenharam nessa operação revisionista sem preconceitos.

Mas voltemos ao presente. Enquanto se rasgavam as vestes pelo caso Haider, os EUA, de acordo com seus aliados europeus, conduziam em Kosovo uma horrível limpeza étnica. Já em agosto do ano passado, a Human Rights Watch de Nova Iorque calculava que “a partir da chegada das tropas da Otan, em meados de junho, mais de 164 mil sérvios fugiram de Kosovo”; outros, cerca de 200, não tiveram essa possibilidade: caíram vítimas de atentados ou de massacres (19). Qualquer um que ouse falar em público em sérvio atrai ou arrisca atrair para si “uma sumária sentença de morte” (20).

A UCK não é a única responsável. Lançando mão de um gracioso eufemismo, as sempre insuspeitáveis fontes americanas reconhecem que “a proteção dos civis sérvios e dos lugares santos não estava em posição preeminente na escala de prioridades” das tropas de ocupação. De fato, o general Jackson considerava que sua tarefa se tornaria mais ágil “se tivessem permanecido menos sérvios” (21). Ao mesmo tempo, em Kosovo, as portas ficaram “escancaradas aos novos imigrantes da Albânia” (22). Portanto, uma limpeza étnica dentro das normas. Visto o sucesso das operações, por que bloquear as fronteiras ora controladas pela Otan? Com efeito, a UCK estende-se para além dessas fronteiras, em Presevo; tem agora um novo nome e novos uniformes, “um misto entre o dos alemães e o dos americanos” e “se exercita” até com armamentos pesados, em território sérvio, sob os olhares benevolentes das tropas dos EUA (23). Já há promessas de um relançamento em grande estilo da “guerra humanitária”.

Inerte e ridícula é a espera de um “novo Hitler”, mas a permanente barbárie do imperialismo exige, desde já, uma estratégia coerente e uma resposta à altura da situação.

Notas:

(1) Vladimir I. Lênin, “Sulla frase revolucionaria”. In: Vladimir I. Lênin, Opere Complete. Roma, Editori Reuniti. 1955. v. XXVII, p. 6. Texto de 21 de fevereiro de 1918

(2) Vladimir I. Lênin, op. cit., p. 4 e 6.

(3) Chefe neofascista italiano (nota da edição brasileira).

(4) Chefe neofascista francês (nota da edição brasileira).

(5) Peter Finn. “Czech Communists Talk of a Comeback”. In: International Herald Tribune, 21 de fevereiro de 2000, p. 8.

(6) Vladimir I. Lenin. “Rapporto suIla guerra e la pace”. In: Opere Complete. 1955. v. XXVII, p. 64. Texto de 7 de março de 1918.

(7) Ex-presidente da república italiana, trafegando entre a direita e o centro, Francesco Cossutta, durante o primeiro semestre de 1998, operou uma manobra para apoiar o governo de centro-esquerda de Prodi, numa operação destinada a deslocá-lo para o centro, de maneira a garantir apoio aos bombardeios imperial-humanitários contra a Sérvia (nota da edição brasileira).

(8) Eric J. Hobsbawm. Nazione and Nazionalismo dal 1780. Programma, mito, realtà. Turim, Einaudi. 1991. Ver p. 202.

(9) Enzo Santarelli. Storia sociale neI mondo contemporaneo. Dalla Comune de Parigi ai nostri giorni. Milão, Feltrinelli. 1982. p. 511-2.

(10) Michael. A. Lutzker. “The precarious peace: China, the United States, and the Quermoy-Matsu Crisis, 1954-1955, 1958”. In: Joan R. Challinor and Roberto L. Beisner (orgs.). Arms At Rest. Peacemaking and Peacekeeping in American History. Nova Iorque, Greenwood Press. 1987. p. 178.

(11) Giorgio Bocca. “Dimenticare Hitler”. In: La Repubblica, 6 de fevereiro de 1992.

(12) Corriere della Sera, 9 de maio de 1991.

(13) Jinn Hoagland. “As Clinton Withtraws, Saddam Survives Unchallenged”. In: International Herald Tribune, 2 de março de 2000. p.6.

(14) Basil Williams. Cecil Rhodes. Londres, Constable and Company Ltd. 1921. p. 50-1.

(15) Thomas L. Friedman. “On Key Foreign Policy Issues, The Differences Are Narrowing”. In: International Herald Tribune de 11-12 de março de 2000. p. 8.

(16) Thomas L. Friedman. “Wait for Syria to Joint the World”. In: International Herald Tribune, de 6 de dezembro de 1999. p. 8.

(17) Ignacio Ramonet. “Le gâchis”. In: Le Monde Diplomatique, maio de 1999. p. 1 e 3.

(18) William Pfaff, “Money Politics Is Winning the American Election”. In: International HeraId Tribune de 11-12 de março de 2000. p. 8.

(19) Malcolm Fraser. “Western Policy Toward Serbia Has Been Biased”. In: International Herald Tribune de 22 de dezembro de 1999. p. 6.

(20) Peter Fïnn. “Empty Hospitals Shows Depth of Kosovo Hate”. In: International Herald Tribune de 25- 26 de março de 2000. p. 7.

(21) Steven Erlanger. “Divided Mitrovica Damages Hopes for Peace in Kosovo”. In: International Herald Tribune de 28 de fevereiro de 2000. p. 8.

(22) Massimo Nava. “Serbia, neIla vaIlata deI Presevo dove cova l’odio di un’altra guerra”. In: Corriere della Sera de 29 de março de 2000. p. 1 e 13.

(23) Steven Erlanger. “AIbanians Train Inside Serbia as GIs Watch”. In: International Herald Tribune de 31 de março de 2000. p. 4.

30 de setembro de 2001

Luzes de Klieg e magnólias

James McPherson


The Reel Civil War
366 págs., US$ 27,50
de Bruce Chadwick. Ed. Knopf (Estados Unidos).

"Para aprender história, nada melhor do que um bom filme de Hollywood." Assim dizia o guia ao estudo escolar do filme "Shenandoah" (1965), de Andrew McLaglen, sobre a Guerra Civil. Embora o filme relatasse a história de uma família no vale do Shenandoah, no Estado de Virgínia, foi rodado no Oregon, para ultraje de muitos habitantes da Virgínia. Quando questionado sobre o local escolhido, o diretor declarou: "Não existe lugar mais parecido com a Virgínia do que o Oregon".

Para Bruce Chadwick, esse comentário é uma metáfora que explica o grau de precisão da maioria dos 800 filmes sobre a época da Guerra Civil feitos desde 1903: eles têm tanta semelhança com a realidade histórica quanto o Oregon tem com a Virgínia. Mais de 600 desses filmes datam da era do cinema mudo, principalmente os anos de 1908-16, em torno das comemorações do 50º aniversário da guerra. Com poucas exceções, eram curtas feitos em um ou dois rolos. A grande exceção foi "O Nascimento de uma Nação" (1915), um enorme avanço técnico e artístico, que confirmou a fama de D.W. Griffith como um dos mais importantes diretores de todos os tempos.
Em "The Reel Civil War", Chadwick, que leciona história e cinema na Universidade Rutgers, analisa em profundidade o tratamento dado por Hollywood à Guerra Civil. Ele apresenta argumentos convincentes para retratar "O Nascimento de uma Nação" como o exemplo paradigmático de como o cinema perpetuou mitos sobre o conflito, pelo menos até a década de 1960 -mostrando um Sul feito de luar e magnólias, mansões com pilares brancos, lindas mulheres, homens gentis e escravos felizes, mundo esse que foi destruído por uma guerra na qual os brancos do Sul perderam tudo exceto sua honra, mas lutaram heroicamente para superar a espoliação posterior por políticos oportunistas vindos do Norte e seus ignorantes peões negros. Uma geração mais tarde, "E o Vento Levou" se tornaria o segundo grande exemplo da versão romantizada do Sul criada por Hollywood.
A maioria dos filmes sobre a Guerra Civil, nos diz Chadwick, representou o Sul como o lado oprimido e injustiçado, fadado à derrota diante do contingente e dos recursos maiores do Norte industrializado, mas lutando com honra contra sua derrota. Em muitos casos o lado dos confederados é visto como vítima, deixando subentendido que o Norte foi o agressor. Quase nunca se menciona a realidade histórica -que foram os confederados que iniciaram a guerra, ao disparar contra Fort Sumter.
O tema principal de muitos desses filmes é a reconciliação entre brancos do Norte e do Sul após a guerra, reconciliação essa frequentemente selada por um casamento (no caso de "O Nascimento de uma Nação", dois casamentos) entre noivo e noiva que estavam em lados opostos durante a guerra. Ou, de maneira condizente com o tema da "guerra entre irmãos" subjacente a muitos desses filmes, são dois irmãos (ou, ainda, pai e filho) que se reconciliam e voltam a fazer parte de uma só família, grande e feliz.
Esses filmes mostram os dois lados lutando corajosamente pelo que acreditavam ser certo. O fato de que a Confederação tenha combatido pela escravidão e a destruição dos Estados Unidos como país unido não pode ser mencionado, já que isso atrapalharia a reconciliação.
Quando aparecem escravos nesses filmes, eles ou são crioulos despreocupados e confiantes na sorte ou amas-de-leite obesas. Enquanto isso, os escravos libertos são retratados como selvagens agressivos ou parvos idiotas. "O Nascimento de uma Nação" foi o pior, nesse aspecto. O retrato que fez da Ku Klux Klan como um agrupamento de cavaleiros brancos que salvou o Sul das bestas negras inspirou a fundação da segunda Klan, uma força poderosa a favor da intolerância na década de 1920.
"O Nascimento de uma Nação" foi um dos maiores sucessos de bilheteria de todos os tempos, tendo sido visto por 200 milhões de pessoas nos Estados Unidos e no exterior, entre 1915 e 1946. Chadwick exagera muito pouco quando o descreve como "um filme abertamente racista que caluniou os negros americanos de maneira pública e notória, ajudando a criar uma divisão racial que perduraria por gerações".
Além disso, diz ele, "as impressões digitais de "O Nascimento de uma Nação" estão presentes por toda a parte em "E o Vento Levou'". Uma colegial de Atlanta assistiu ao filme de Griffith uma dúzia de vezes e encenou sua própria peça amadora baseada nele; o nome dela era Margaret Mitchell. O relato fascinante que Chadwick faz de como o livro de Mitchell virou filme mostra que a maioria das cenas sobre uma Ku Klux Klan nobre e negros libertos malévolos foram cortadas pelo produtor, David O. Selznick.
Os capítulos finais do livro, sobre as décadas passadas desde "E o Vento Levou", tendem a perder um pouco do foco. Programas de televisão e minisséries recebem tanta atenção quanto filmes -em alguns casos, até mais. Mesmo o musical da Broadway "The Civil War", de 1999, ganha espaço maior do que um filme legítimo sobre a Guerra Civil como "Sublime Tentação" ("Friendly Persuasion", 1956), que Chadwick descreve como "um dos melhores filmes da época". Outros filmes feitos no pós-Segunda Guerra, como "The Horse Soldiers", são discutidos em poucas linhas. Um dos melhores, "Glória de um Covarde" ("Red Badge of Courage", 1951), merece apenas dois parágrafos, enquanto "Raízes" ("Roots"), que não foi nem filme nem algo que tratasse em primeiro lugar da Guerra Civil, ganha um capítulo inteiro. Certamente, ''Roots'' ajudou a derrubar o mito vitimizado do Sul, e Chadwick sugere que ele pavimentou o caminho para ''Glory'', que recebe tratamento extensivo. Suspeita-se, no entanto, que "Glória" teria sido criada mesmo que o fenômeno "Raízes" nunca tivesse ocorrido.

Chadwick também permitiu que sua tese sobre o viés pró-sul dos filmes da Guerra Civil o levasse a algumas distorções próprias. O romance de Michael Shaara "The Killer Angels", no qual o filme "Gettysburg" foi baseado, não foi "escrito do ponto de vista do Sul". E a famosa cena de Atlanta queimando em "E o Vento Levou...'' foi o resultado de os confederados atearem fogo a tudo de valor militar quando evacuaram a cidade, não uma consequência do incêndio criminoso ianque - um erro que Chadwick compartilha com talvez 99 em cada 100 espectadores. Ainda assim, o leitor não deve deixar que esses e alguns outros erros menores ou o trocadilho ruim do título do livro diminuam as virtudes genuínas desse livro esclarecedor.
James M. McPherson é professor de história na Universidade Princeton e autor de "Battle Cry of Freedom - The Civil War Era" (ed. Ballantine).

17 de setembro de 2001

O fim da sociedade aberta?

Terror na América - Frances Stonor Saunders sobre como a CIA tem a ganhar com a sua própria mudança

Frances Stonor Saunders

New Statesman

O ataque foi inesperado, brutalmente rápido, e "surpreendeu-nos como uma gigantesca bola de fogo dissonante na noite de nossa falsa segurança". Assim escreveu o diplomata americano David Bruce ao relembrar o ataque a Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941. Sua memória medonha foi revivida nesta semana, quando as torres do World Trade Center explodiram em chamas.

A comparação feita por comentadores entre os dois eventos alcançou um impacto imediato e óbvio: ambas as agressões foram de tal magnitude que ficaram gravadas na consciência nacional e sacudiram o país de sua inocência cultural (na América, a inocência cultural pode ser perdida, logo recuperada e depois perdida de novo).

Mas Pearl Harbor tinha outra lição surpreende a ser conferida. Apenas alguns meses antes do ataque aéreo japonês, o presidente Roosevelt havia se queixado de que "os informes dispersos que chegavam à sua mesa eram irremediavelmente confusos". Pearl Harbor iria fazer com que os custos desta confusão ficassem dolorosamente evidentes.

Durante as duas décadas anteriores de isolamento, os recursos da América para coletar e analisar informações sobre os governos e os exércitos de outros países haviam diminuído. A "inteligência", como tal, estava em mãos de departamentos militares que contavam com seus próprios e estreitos campos de interesses. Dentro do Serviço Exterior do Departamento de Estado (State Department Foreign Service) os diplomatas haviam retornado a seu estilo habitual, conversar com os ministros das Relações Exteriores e outros embaixadores para obter informações.

Uma consequência direta de Pearl Harbor foi a criação de una agência central de inteligência. William "Will Bill" Donovan foi o arquiteto e diretor do chamado Escritório de Estudos Estratégicos (OSS, Office of Strategic Services). Donovan destacou que a primeira preocupação da América deveria ser a defesa contra inimigos estrangeiros. O mandato, declarou seu vice (e futuro diretor da CIA) Allen Dulles, era "limpar o mundo de bandidos".

Em tempos de guerra, o Escritório de Serviços Estratégicos teve um bom desempenho, e no final de 1944, William Donovan, a pedido de Roosevelt, apresentou um memorando secreto que definia a criação de um serviço de inteligência permanente. O informe foi vazado para a imprensa pelo incansável inimigo da OSS, o diretor do FBI, Edgar J. Hoover. Sua tática foi bem sucedida. Seguiu-se um alvoroço no Congresso, e a Casa Branca ordenou que todo o assunto fosse postergado. Uma semana depois, o presidente morreu. Seu sucessor, Harry Truman, não queria fazer parte de uma Gestapo "em tempos de paz", e emitiu uma ordem de dissolução do OSS.

Depois de uma intensa campanha de William Donovan, Truman finalmente cedeu e criou o Grupo Central de Inteligência (Central Intelligence Group) em 22 de janeiro de 1946. Como o próprio nome sugere, "inteligencia" seria a função básica da agência. A Divisão de Inteligência era, e ainda é, responsável por recolher, analisar e avaliar a informação procedente de todas as fontes, assim como por elaborar relatórios de inteligência sobre qualquer país, pessoa ou situação para o presidente e para o Conselho de Segurança Nacional, o principal grupo consultivo do presidente sobre política exterior e de defesa. Toda a informação - militar, política, econômica, científica ou industrial - é grão para o moinho desta divisão. É organizado por seções geográficas servidas por especialistas residentes de quase todas as profissões e disciplinas.

Mas que inteligência neste super campus produziu ao longo dos anos? Em junho de 1950, as forças comunistas do Norte invadiram a Coréia do Sul. AA CIA não conseguiu adquirir qualquer aviso prévio desta agressão. Mais recentemente, ela não conseguiu alertar sobre o sequestro e destruição do voo 103 da Pan Am, ou os ataques a embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia. Talvez tenha estado ocupada demais instalando uma sucessão de regimes militares repressores liderados por neonazistas (Grécia, 1949), monarquistas ultraconservadores (Irã, 1953), ditadores com esquadrões da morte (Guatemala, 1954) ou pro-falangistas (Líbano, 1959), ao mesmo tempo que também apoiava decididamente regimes racistas tais como o Governo da África do Sul (recentes revelações demonstram que foi a CIA a primeira que entregou Nelson Mandela à policia sul-africana para que o encarcerasse). Além disso, e infringindo seu próprio estatuto, que proíbe a atividade em solo doméstico, espionou e assediou dezenas de milhares de cidadãos americanos.

Mergulhada por denúncias sucessivas de seus fracassos espetaculares, e desorientado pelo fim da guerra fria para cuja luta inicialmente havia sido criada - e cujo desenlace também não conseguiu prever -, a CIA tem lutado para manter sua credibilidade no Congresso. "Como Dorothy Parker e as coisas que ela disse, a CIA obtêm reconhecimento ou acusações tanto pelo que faz como por muitas coisas que nem sequer pensou em fazer", um agente da CIA reclamou uma vez. Pelo que deixou de pensar, agora certamente cabeças vão rolar nos mais altos níveis do incompetente serviço de inteligência da América (e isso inclui o ciumento irmão mais velho da CIA, o FBI)

Perguntado durante uma entrevista do Pentágono, na terça à tarde, se o Governo tinha qualquer ideia de que esse tipo de ataque pudesse contra alvos americano pudesse ocorrer, Donald Rumsfeld, secretário de defesa dos EUA, respondeu laconicamente: "Não discutimos questões de inteligência". Exatamente. "Sigilo", escreveu Malcolm Muggeridge em O Bosque Infernal "é tão essencial à inteligência como parâmetros e incenso para a missa..., e deve ser mantido a toda custa, independentemente se serve ou não para algo". Os civis americanos pagaram um preço alto pelo secreto que custeiam com seus salários. Civis americanos pagaram um preço muito pesado para o sigilo financiada por seus cheques de pagamento. Se as persianas estão caindo sobre a sociedade aberta, é melhor que compense.

Frances Stonor Saunders é autora de Quem pagou a conta? A CIA na guerra fria da cultura (Record, R$ 79,00)

12 de setembro de 2001

Medo e repugnância na América

Hunter S. Thompson



Foi logo após o amanhecer em Woody Creek, Colorado, quando o primeiro avião atingiu o World Trade Center em Nova York na terça-feira de manhã e, como de costume, eu estava escrevendo sobre esportes. Mas não por muito tempo. O futebol parecia de repente irrelevante, em comparação com as cenas de destruição e devastação total saindo de Nova York na TV.

Até a ESPN transmitia notícias de guerra. Foi o pior desastre da história dos Estados Unidos, incluindo Pearl Harbor, o terremoto de San Francisco e provavelmente a Batalha de Antietam em 1862, quando 23.000 foram abatidos em um dia.

A batalha do World Trade Center durou cerca de 99 minutos e custou 20.000 vidas em duas horas (de acordo com estimativas não oficiais a partir da meia-noite de terça-feira). Os números finais, incluindo os do supostamente inexpugnável Pentágono, do outro lado do rio Potomac, vindos de Washington, provavelmente serão maiores. Qualquer coisa que mata 300 bombeiros treinados em duas horas é um desastre de ordem mundial.

E não foi mesmo Bombas que causou este enorme dano. Nenhum míssil nuclear foi lançado de qualquer solo estrangeiro, nenhum bombardeiro inimigo voou sobre Nova York e Washington para provocar a morte de inocentes americanos. Não. Foram quatro aviões comerciais.

Eles foram os primeiros vôos do dia da American e United Airlines, pilotados por cidadãos qualificados e leais aos EUA, e não havia nada de suspeito sobre eles quando eles decolaram de Newark, NJ, e Dulles em DC e Logan em Boston em vôos rotineiros de cross-country para a Costa Oeste com tanques de combustível totalmente cheios - que em breve explodiriam com o impacto e destruiriam completamente as mundialmente famosas Torres Gêmeas do World Trade Center de Manhattan. Estrondo! Estrondo! Bem desse jeito.

As torres se foram agora, reduzidas a escombros sangrentos, junto com todas as esperanças de Paz em Nosso Tempo, nos Estados Unidos ou em qualquer outro país. Não se engane: estamos em guerra agora - com alguém - e ficaremos em guerra com esse inimigo misterioso pelo resto de nossas vidas.

Será uma Guerra Religiosa, uma espécie de Jihad Cristã, alimentado pelo ódio religioso e liderado por fanáticos impiedosos de ambos os lados. Será guerrilha em uma escala global, sem linhas de frente e sem inimigo identificável. Osama bin Laden pode ser um primitivo "testa de ferro" - ou mesmo estar morto, pelo que sabemos -, mas quem jogou esses aviões a jato All-American carregados com combustível All-American nas Torres Gêmeas e no Pentágono fez isso com frieza e precisão arrepiante. O segundo foi uma bala certeira. Diretamente no meio do arranha-céu.

Nada - mesmo o sistema de defesa de mísseis "Star Wars", de US $ 350 bilhões, de George Bush - poderia ter evitado o ataque de terça-feira, e não custou quase nada. Menos de 20 soldados suicidas desarmados de algum país aparentemente primitivo em algum lugar do outro lado do mundo derrubaram o World Trade Center e metade do Pentágono com três ataques rápidos e sem custo em um dia. A eficiência era aterrorizante.

Vamos punir alguém por este ataque, mas quem ou o que será explodido por causa disso é difícil de dizer. Talvez o Afeganistão, talvez o Paquistão ou o Iraque, ou possivelmente todos os três ao mesmo tempo. Quem sabe? Nem mesmo os Generais, no que resta do Pentágono ou dos jornais de Nova York que pedem a guerra, parecem saber quem o fez ou onde procurá-los.

Esta vai ser uma guerra muito cara, e a vitória não é garantida - para ninguém, e certamente não para qualquer um tão confundido quanto George W. Bush. Tudo o que ele sabe é que seu pai começou a guerra há muito tempo, e que ele, o atrevido filho-presidente, foi escolhido pelo Destino e pela indústria global de petróleo para terminá-la agora. Ele declarará uma Emergência de Segurança Nacional e reprimirá Duro a Todos, não importa onde eles vivam ou por quê. Se os culpados não levantarem as mãos e confessarem, ele e os Generais o farão pela força.

Boa sorte. Ele está em um trabalho profundamente difícil - armado como ele é com nenhuma inteligência militar credível, sem testemunhas e apenas o fantasma de Bin Laden a culpar pela tragédia.

Está bem. São 24 horas mais tarde agora, e não estamos recebendo muita informação sobre os Cinco Ws desta coisa.

Os números do Pentágono são desconcertantes, como se a Censura Militar já tivesse sido imposta aos meios de comunicação. É ominoso. A única notícia na TV vem de vítimas em prantos e especuladores ignorantes.

A venda está colocada. Línguas Soltas Afundam Navios. Não diga nada que possa dar ajuda ao Inimigo.

Sobre o autor

Dr. Hunter S. Thompson's books include Hell's Angels, Fear and Loathing in Las Vegas, Fear and Loathing on the Campaign Trail '72, The Proud Highway, Better Than Sex and The Rum Diary. His new book, Fear and Loathing in America, has just been released. A regular contributor to various national and international publications, Thompson now lives in a fortified compound near Aspen, Colo. His column, "Hey, Rube," appears each Monday on Page 2.

16 de agosto de 2001

A ocupação é a atrocidade

O que os palestinos precisam agora é uma liderança unida que toma posições e planos de ação em massa, projetadas para não voltar a Oslo, mas para avançar com a resistência e libertação.

Edward Said


Um tanque israelense (parcialmente obscurecido) destrói uma casa palestina em Gaza em retaliação a dois ataques suicidas a bomba em agosto de 2001.

Tradução / Nos Estados Unidos, onde Israel tem sua principal base política, e de quem recebeu mais de 92 bilhões de dólares em ajuda desde 1967, o atentado a bomba de quinta-feira num restaurante de Jerusalém e o desastre de segunda-feira em Haifa, ambos acontecimentos que tiveram um terrível custo humano, são rapidamente explicados dentro de um quadro já familiar: Arafat não fez o suficiente para controlar seus terroristas; extremistas suicidas islâmicos estão em toda a parte, fazendo mal a “nós” e aos nossos principais aliados, impulsionados por puro ódio; Israel, portanto, deve defender sua segurança. Um indivíduo ponderado poderá acrescentar: essas pessoas têm lutado incansavelmente por milhares de anos, de qualquer forma; a violência deve parar; os dois lados têm sofrido demais, embora a maneira como os palestinos mandam seus filhos para a batalha seja outro sinal do quanto Israel tem tido de aguentar. E então, exasperado, mas ainda assim moderado, Israel invade Jenin, cidade sem fortificações nem defesas, com tratores e tanques, destruindo vários edifícios, entre os quais os da polícia da Autoridade Palestina. Depois manda seus propagandistas dizerem que era uma mensagem para Arafat controlar seus terroristas. Enquanto isso, Arafat e seu círculo estão suplicando pela proteção norte-americana, sem dúvida se esquecendo de que Israel é o aliado que goza da maior proteção dos Estados Unidos e que tudo que vai conseguir, pela enésima vez, é apenas uma ordem para parar a violência.

O fato é que Israel praticamente já ganhou a guerra de propaganda nos Estados Unidos, país onde está para colocar vários milhões de dólares numa campanha de relações públicas (usando astros como Zubin Mehta, Yitzhak Pearlman e Amos Oz) para melhorar ainda mais sua imagem. Mas consideremos o que Israel conseguiu com sua guerra implacável contra o indefeso, basicamente desarmado e mal conduzido povo palestino. A disparidade de poder é tão grande que dá vontade de chorar. Equipados com o poder aéreo mais moderno, não só produzido como presenteado gratuitamente pelos Estados Unidos, os israelenses possuem helicópteros com canhoneiras, mísseis, incontáveis tanques e uma marinha excelente, assim como um serviço de inteligência extremamente eficiente. Ou seja, Israel é uma potência nuclear abusando de um povo sem tanques, artilharia, força aérea (sua única e patética pista de decolagem em Gaza é controlada por Israel), marinha ou exército: nenhuma das instituições de um Estado moderno. A contínua e estarrecedora história dos trinta e quatro anos de ocupação militar de terra palestina ilegalmente conquistada (a segunda mais longa da história moderna) tem se apagado da memória pública quase em toda a parte, assim como a destruição da sociedade palestina em 1948 e a expulsão de 68% da população local, da qual 4,5 milhões de pessoas continuam vivendo como refugiados nos dias de hoje. Por trás das resmas de propaganda, as características evidentes da pressão diária de Israel, por várias décadas, sobre um povo que tem como maior pecado por acaso estar vivendo lá, no meio de seu caminho, são chocantemente perceptíveis em seu sadismo desumano. O confinamento fantasticamente cruel de 1,3 milhão de pessoas, apertadas como sardinhas humanas na Faixa de Gaza, além dos quase 2 milhões de residentes palestinos da Cisjordânia, não tem paralelos nos anais do apartheid ou do colonialismo. Caças F-16 nunca foram usados para bombardear lares sul-africanos. Mas são usados contra as cidades e vilarejos palestinos. Todas as entradas e saídas são controladas por Israel (Gaza está completamente cercada por uma cerca de arame farpado), que também detém todo o fornecimento de água. Dividida em aproximadamente sessenta e três cantões não contíguos, completamente cercada e sitiada por tropas israelenses, pontuada por cento e quarenta assentamentos (muitos deles construídos durante o governo Ehud Barak), com uma rede de estradas própria, de acesso proibido aos “não judeus”, como são chamados os árabes, juntamente com outros epítetos depreciativos, como ladrões, cobras, baratas e gafanhotos, os palestinos sob ocupação, agora, foram reduzidos a 60% de desemprego e uma taxa de pobreza de 50% (metade das pessoas de Gaza e da Cisjordânia vive com menos de dois dólares por dia); eles não podem viajar de um lugar para outro; são obrigados a esperar em longas filas em postos de controle israelenses, que detêm e humilham os idosos, os doentes, os estudantes e os religiosos por horas a fio; cento e cinquenta mil de suas oliveiras e árvores cítricas foram arrancadas como punição; duas mil de suas casas, demolidas; muitos hectares de suas terras foram destruídos ou expropriados para servirem de assentamentos militares.

Desde que a Intifada da Al-Aqsa começou, no final do último setembro [de 2000], 609 palestinos foram assassinados (quatro vezes mais que as mortes de israelenses) e 15 mil feridos (doze vezes mais que do outro lado). Os assassinatos regulares realizados pelo exército israelense foram de supostos terroristas escolhidos indiscriminadamente. Na maior parte das vezes, mataram civis inocentes como moscas. Na última semana, 14 palestinos foram assassinados pelas forças israelenses que usavam mísseis e canhoneiras de helicópteros; os palestinos assassinados, portanto, foram “impedidos” de matar israelenses no futuro, apesar de, nessa ocasião, pelo menos duas crianças e cinco inocentes também terem perdido a vida, para não dizer nada sobre outros tantos civis feridos e diversos edifícios destruídos – parte do efeito colateral, de alguma forma aceitável para os israelenses. Sem nome nem rosto, as vítimas palestinas diárias de Israel raramente são mencionadas nos noticiários americanos, apesar de – por razões que eu simplesmente não consigo entender – Arafat ainda estar esperando que os americanos resgatem a si e ao seu regime em desintegração.

E isso não é tudo. O plano de Israel não é apenas manter a terra e povoá-la com colonos armados assassinos que, protegidos pelo exército, levam a destruição aos pomares, às crianças em idade escolar e aos lares palestinos; o projeto israelense é, como afirmou a pesquisadora americana Sara Roy, fazer regredir a sociedade palestina, tornar a vida impossível para a população local, com o objetivo de obrigar os palestinos a sair, a desistir de sua terra de alguma forma ou a fazer algo insano, como explodir a si mesmos. Desde 1967, líderes foram presos e deportados pelo regime de ocupação de Israel, pequenos negócios e fazendas tornaram-se inviáveis, ao serem confiscadas e simplesmente destruídas, estudantes foram impedidos de estudar, universidades foram fechadas (em meados dos anos 1980, as universidades palestinas na Cisjordânia foram fechadas por quatro anos). Nenhum agricultor ou empresário palestino pode exportar diretamente a um país árabe; seus produtos devem passar por Israel. Impostos também são pagos ao Estado israelense. Depois que o processo de paz de Oslo começou, em 1993, a ocupação foi simplesmente remodelada: apenas 18% da terra foi entregue à Autoridade Palestina liderada por Arafat, uma organização corrupta e similar ao governo Vichy, já que sua função parece ter sido somente a de policiar e cobrar impostos de seu povo para o agrado de Israel. Após oito infrutíferos e miseráveis anos desde as negociações de Oslo, arquitetadas por uma equipe americana de antigos lobistas israelenses, como Martin Indyk e Dennis Ross, Israel continua a controlar as terras, a ocupação apresentada mais eficientemente e a frase “processo de paz” criou uma aura de consagração que permite mais abusos, mais assentamentos, mais prisões e mais sofrimento palestino que antes. Incluindo um leste de Jerusalém “judaizado”, com a Orient House ocupada e seu conteúdo saqueado (como havia feito com os arquivos da OLP em Beirute, em 1982, Israel roubou os registros, títulos de terra, mapas valiosos do local), o governo israelense implantou não menos de 400 mil colonos em solo palestino. Chamá-los de espreitadores e bandidos não é um exagero.

Vale a pena lembrar que duas semanas após a visita desnecessariamente arrogante de Sharon a Haram Al-Sharif, em Jerusalém, em 28 de setembro, acompanhado de mil soldados e seguranças fornecidos pelo primeiro-ministro Barak, Israel foi condenado unanimemente por essa ação pelo Conselho de Segurança da ONU. Depois, como até mesmo uma criança poderia ter previsto, a rebelião anticolonial irrompeu, tendo como suas primeiras vítimas oito palestinos assassinados. Sharon foi levado ao poder essencialmente para “subjugar” os palestinos, dar-lhes uma lição, livrar-se deles. Seu histórico como matador de árabes data de trinta anos, antes dos massacres de Sabra e Shatila, supervisionados por suas forças em 1982 e pelos quais foi indiciado numa corte belga. Ainda assim, Arafat quer negociar com ele e chegar, talvez, a um arranjo cômodo para salvaguardar a própria Autoridade sob seu comando, que Sharon sistematicamente está desmantelando, destruindo, arrasando.

Mas ele tampouco é um bobo. A cada ato de resistência palestina, suas forças aumentavam a pressão um pouco mais, apertando cada vez mais o cerco; tomando mais terra; tornando um hábito incursões mais profundas e em maior número, em cidades palestinas como Jenin e Ramallah; cortando mais suprimentos; abertamente assassinando líderes palestinos; tornando a vida mais intolerável; redefinindo os termos das ações do seu governo, que certa vez fez “concessões generosas” enquanto “defendia” a si mesmo; que “previne” o terrorismo; que dá “segurança” a certas áreas; que “restabelece” o controle; e assim por diante. Ao mesmo tempo, ele e seus lacaios atacam e desumanizam Arafat, chegando a ponto de dizer que ele é um “arquiterrorista” (apesar de ele literalmente não poder se mover sem a permissão de Israel), e que “nós” não estamos em nenhuma guerra contra o povo palestino. Que dádiva para aquele povo! Com tal “comedimento”, por que uma invasão maciça, cuidadosamente divulgada para aterrorizar os palestinos ainda mais sadicamente, seria necessária? Israel sabe que pode retomar seus edifícios à vontade (como mostram o roubo em grande escala da Orient House de Jerusalém, assim como o de mais nove outros edifícios, escritórios, bibliotecas e arquivos, lá e em Abu Dis), da mesma maneira pela qual quase já eliminou os palestinos como povo.

Essa é a verdadeira história da pretensa “vitimização” de Israel, construída há vários meses com cuidado premeditado e má intenção. A linguagem foi separada da realidade. Não tenham pena dos inaptos governos árabes que não podem e não farão nada para deter Israel: tenham pena do povo que carrega as feridas na pele e no corpo descarnado de seus filhos, alguns dos quais acreditam no martírio como a única saída. E Israel, presa numa campanha sem futuro, agredindo a torto e a direito, sem piedade? Como disse, em 1925, James Cousins, o poeta e crítico irlandês, o colonizador está nas garras de “preocupações falsas e egoístas, que impedem que dê atenção à evolução natural de seu próprio gênio nacional, e o desvia do caminho de aberta retidão para tortuosos atalhos do pensamento, discurso e ação desonestos, na defesa artificial de uma falsa posição”. Todos os colonizadores seguiram esse caminho, sem nada aprender e sem nada que os detenha. No final, quando os israelenses deram as costas a vinte e dois anos de ocupação do Líbano, saíram de seu território, deixando para trás um povo exausto e mutilado. Se o objetivo era atender às aspirações dos judeus, por que exigiu tantas vítimas de outro povo que não tinha absolutamente nada a ver com a perseguição e o exílio judeu?

Com Arafat e companhia no comando, não há esperança. O que faz esse homem, grotescamente se refugiando no Vaticano, em Lagos e em outros lugares distintos, pleiteando, sem dignidade nem inteligência, por observadores imaginários, por ajuda árabe, por apoio internacional, em vez de ficar com seu povo, tentando ajudá-lo com suprimentos médicos, medidas para levantar seu moral e agindo como uma verdadeira liderança? O que precisamos é de uma liderança unificada, com pessoas que estejam na região, que estejam de fato resistindo, que estejam realmente com o povo e que façam parte do povo e não de burocratas gordos, que fumam charutos, que querem seus acordos de negócios preservados, que seus passes VIP sejam renovados e que perderam todo traço de decência ou credibilidade. Uma liderança unificada que tome posição e planeje ações destinadas não a promover um retorno a Oslo (pode-se imaginar a loucura dessa ideia?), mas a ir em frente com a resistência e a libertação, em vez de confundir as pessoas com conversas sobre negociações e o estúpido Plano Mitchell.

Arafat está acabado: por que não admitimos que ele não pode nem liderar, nem planejar, nem fazer nada que faça diferença, exceto para ele próprio e seus amigos de Oslo, que se beneficiaram materialmente da miséria de seu povo? Todas as pesquisas mostram que sua presença impede que qualquer avanço se torne possível. Precisamos de uma liderança unificada para tomar decisões e não simplesmente para se humilhar diante do papa e do estúpido George W. Bush, mesmo que os israelenses estejam matando nosso heroico povo impunemente. Um líder deve liderar a resistência, refletir as realidades na área, responder às necessidades de seu povo, planejar, pensar, se expor aos mesmos perigos e dificuldades que todos vivenciam. Lutar pela libertação da ocupação israelense é a posição de todo palestino que tem algum valor: Oslo não pode ser reconstituído ou reelaborado, como Arafat e companhia poderiam querer. O tempo acabou para eles, e o quanto antes fizerem as malas e se forem, melhor será para todos.

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