30 de janeiro de 2016

O Sistema Clinton

Few have been as adept at exploiting big-money politics as Bill and Hillary Clinton. It is important to consider how they built their powerful donor machine, and what its existence might mean for Hillary Clinton’s future conduct as American president.

Simon Head



Tradução / Em 17 de janeiro, no debate final dos Democratas antes do início da temporada de primárias, Bernie Sanders atacou Hillary Clinton por seus laços financeiros muito íntimos com Wall Street, coisa que Sanders sempre evitou em sua campanha até aquele momento: "Não tomo dinheiro dos grandes bancos... A senhora recebeu mais de $600 mil dólares de Goldman Sachs em honorários por palestras, em um único ano", disse ele. As críticas de Sanders coincidiram com matérias recentes segundo as quais o FBI poderia estar expandindo as investigações sobre mensagens de e-mail de Hillary Clinton, de modo a incluir os contatos dela com grandes doadores, quando servia como secretária de Estado. Mas as maiores questões têm a ver com como Hillary & Bill Clinton construíram sua poderosa máquina de recolher doações em dinheiro, e o que a existência dessa máquina posse vir a significar para a conduta futura de Hillary Clinton se vier a ser eleita presidente dos EUA. O trabalho investigativo aqui desenvolvido, a partir de muitas diferentes fontes, visa a oferecer quadro amplo dos fatos sobre os Clintons, não a endossar qualquer dos candidatos na campanha eleitoral em curso.

É um axioma da política de Washington na era de "Cidadãos Unidos" e Super PACs que empresas e os muito ricos podem direcionar quantias praticamente ilimitadas de dinheiro para eleger candidatos as principais cargos políticos, abrindo caminho assim para favores futuros. Segundo o website de utilidade pública Open Secrets, na campanha de 2016, em outubro, além das contribuições diretas de campanha, Jeb Bush tinha a seu dispor $103 milhões em "dinheiro externo" – grupos como PACs e Super PACs e as chamadas organizações de "dinheiro obscuro" que trabalham para um determinado candidato. Ted Cruz tem $38 milhões desses fundos; Marco Rubio $17 milhões; e Chris Christie $14 milhões.

Mas poucos se revelaram tão usufrutuários dessa política de big-money quanto Bill e Hillary Clinton. Na campanha de 2016, em outubro, Hillary Clinton tinha levantado $20 milhões de dinheiro "externo", além dos $77 milhões em contribuições diretas de campanha – a mais alta arrecadação dentre todos os candidatos até aquele momento. Mas ela e o marido têm outras conexões com grandes doadores, e que tem raízes muito anteriores ao atual ciclo eleitoral. O que em todos os casos chama a atenção no que designo como "O Sistema Clinton" é a escala e a complexidade das conexões envolvidas, o longo tempo ao longo do qual se mantém em operação, a presença do ex-presidente Bill Clinton ao lado de Hillary como sócio votante da empresa, e a magnitude estonteante dos fundos envolvidos.

Escala e complexidade são efeito dos múltiplos canais que conectam dos "Clinton-doadores" e os Clintons-CPFs: há o fluxo de remuneração de 6 dígitos por palestra, paga a Bill e Hillary Clinton, quase todas as palestras oferecidas em grandes empresas e bancos, que renderam à dupla mais de $125 milhões nos 15 anos desde que Bill Clinton deixou a Casa Branca em 2001. Há os pagamentos diretos a campanhas políticas de Hillary Clinton (incluindo para o Senado em 2000 e para a presidência em 2008 e agora em 2016, e que até 30 de setembro de 2015 alcançaram um total de $712,4 milhões, a mais recente compilação de valores feita pela organização Open Secrets. Quatro das principais cinco maiores fontes de dinheiro são grandes bancos: Citigroup Inc, Goldman Sachs, JPMorgan Chase & Co e Morgan Stanley. E a campanha Clinton fixou, como meta, arrecadar $1 bilhão para o Super PAC dela para a eleição de 2016.

Por fim, há os quase $2 bilhões que doadores deram à Fundação Clinton e suas organizações satélites, desde que Bill Clinton deixou a presidência. Pode parecer estranho incluir doações à fundação entre os meios principais pelos quais empresas e super ricos compram seu acesso aos Clintons, à boa vontade do casal e, assim, contam com receber favores futuros em troca. Os fundos da fundação são gastos, principalmente, em causas indiscutivelmente excelentes – há de tudo, desde promover reflorestamento na África e ajudar pequenos sitiantes no Caribe a operar com governos locais e empresas dos EUA para promover bem-estar e boa forma física.

Além disso, nem todos os doadores da Fundação Clinton e suas instituições afiliadas são empresas. A Fundação Bill & Melinda Gates, por exemplo, está entre as que mais contribuem para a Fundação Clinton, com doações que totalizam mais de $25 milhões desde a criação, e com foco especial, para citar um press-release da Fundação Clinton de 2014, numa parceria "para reunir e analisar dados sobre o status da participação de mulheres e meninas em todo o planeta."

Mas entre os maiores contribuidores para a fundação estão muitos dos mesmos doadores que apoiaram as campanhas políticas de Hillary Clinton e que pagaram as tais remunerações de 6 dígitos por palestras. Para esses doadores empresariais, o acesso aos Clintons pode ser tão importante como os objetivos para os quais é usado o dinheiro que eles doam. Segundo análise de fevereiro de 2015 do dinheiro doado à Fundação Clinton, publicada pelo The Washington Post, a indústria de serviços financeiros é a maior doadora dentre todas as empresas doadoras. Outros grandes doadores são empresas de energia e do setor de Defesa, e governos clientes dessas empresas.

Ex-presidentes dos EUA há muito tempo usam fundações de caridade como meio para perpetuador a própria influência e atrair convites para palestras regiamente pagas como lucrativa fonte de renda. Mas os Clintons são únicos, na medida em que fazem render o poder de arrecadar dinheiro de um ex-presidente, Bill Clinton, para financiar a carreira política da mulher dele – sempre com a expectativa, entre os doadores, de que como senadora, secretária de Estado e possível futura presidenta, Hillary Clinton sempre estará em posição da qual poderá retribuir os favores. O encontro anual da Clinton Global Initiative garantiu cenário privilegiado para as transações entre os Clintons e seus benfeitores. Dentre os patrocinadores corporativos das conferências de 2014 e 2015 da "Iniciativa Clinton Global" em Nova York, por exemplo, estavam HSBC, Coca-Cola, Monsanto, Proctor and Gamble, Cisco, PricewaterhouseCoopers, o Grupo Blackstone, Goldman Sachs, Exxon Mobile, Microsoft e Hewlett Packard. Desde que paguem $250 mil dólares ou mais, executivos que mostrem a cara nas reuniões da "Iniciativa Clinton Global" podem usufruir de privilégios considerados especiais, inclusive do maior deles: acesso direto aos Clintons.

Em artigo investigativo para o The New Republic, Alec MacGillis descreveu as reuniões anuais da Iniciativa Clinton Global como complicado negócio de toma-lá-dá-cá, no qual altos executivos de grandes empresas fazem doações para os projetos do casal Clinton (sempre projetos ecológicos ou, mais recentemente, também de promoção da igualdade de gêneros), em troca de acesso aos Clintons, pai, mãe e filha. MacGillis focou-se nas atividades de Douglas Band, ex-servidor de baixo escalão da Casa Branca dos Clintons, e quem nas reuniões da Iniciativa Global Clinton arranjava favores para seleto grupo de altos executivos "metendo-os sobre o palco com os Clintons, relaxando nos procedimentos de revista e autorização de entrada em troca de dinheiro, ou vendendo lugares na foto dos principais participantes com o casal Clinton." Na reunião de 2012 da Iniciativa Clinton Global, foi Muhtar Kent, então presidente da Coca Cola, quem, como noticiou o The New York Times, "conseguiu um dos cobiçados assentos no palco com Mr. Clinton."

Além da Fundação Clinton, remuneração por palestras também são outro interessante meio pelo qual empresas interessadas, como Citicorp e Goldman Sachs podem oferecer apoio aos Clintons sem configurar doações diretas de campanha. Dados extraídos das declarações financeiras anuais dos Clinton, da Fundação Clinton e dos próprios bancos, mostram que, entre 2001 e 2014 Bill Clinton recebeu $1,52 milhões em remuneração por palestras do UBS, $1,35 milhão de Goldman Sachs, $900 mil do Bank of America, $770 mil do Deutsche Bank e $650 mil de Barclays Capital. Desde que deixou o cargo de secretária de Estado em fevereiro de 2013, Hillary vem recebendo dinheiro equivalente, das mesmas fontes. Dos quase $10 milhões que ela recebeu como remuneração por palestras só em 2013, quase $1,6 milhão veio dos maiores bancos de Wall Street, incluindo $675 mil de Goldman Sachs (são os pagamentos a que Bernie Sanders referiu-se, no debate de 17 de janeiro de 2016), e $225 mil de cada um dos seguintes doadores: UBS, Bank of America, Morgan Stanley e Deutsche Bank.

Dentre os traços mais impressionantes e incômodos do Sistema Clinton estão as grandes contribuições que empresas estrangeiras e governos estrangeiros fizeram à Fundação Clinton, além da rapidez com que Bill Clinton aceita remuneração de seis dígitos de alguns deles para palestras, não raras vezes quando os próprios doadores de dinheiro tinham interesse financeiro potencial em decisões a serem tomadas pelo Departamento de Estado de Hillary Clinton. Reportagem de investigação publicada em abril de 2015 por Andrew Perez, David Sirota e Matthew Cunningham-Cook no International Business Times mostra que durante o período de três anos, de outubro de 2009 até dezembro de 2012, durante o qual Hillary Clinton foi secretária de Estado, houve pelo menos 13 ocasiões – ao preço coletivo de $2,5 milhões – nas quais Bill Clinton recebeu pagamentos da ordem dos seis dígitos por palestras em empresas ou grupos financeiros que, segundo os registros do governo federal dos EUA, trabalhavam em lobbies ativos dentro do Departamento de Estado.

Aqueles pagamentos a Bill Clinton em 2010 incluíram: $175 mil da VeriSign Corporation, que fazia lobby dentro do Departamento de Estado em questões de cibersegurança e taxação sobre a Internet; $175 mil da Microsoft, que pressionava o governo na questão dos visas para trabalho de imigrados; $200 mil da SalesForce, empresa que naquele momento pressionava o governo em questões de segurança digital, dentre outras questões. Em 2011, aqueles pagamentos incluíram $200 mil de Goldman Sachs, que fazia lobby na discussão da Lei de Controle do Orçamento; e $200 mil da PhRMA, a associação comercial que representa empresas de drogas e queria garantir leis especiais para proteção ao comércio de novas drogas patenteadas nos EUA, dentro do Tratado da Parceria Trans-Pacífico que então estava sendo negociado.

E em 2012, os pagamentos incluíram: $200 mil da Federação Varejista Nacional, que pressionava o Departamento de Estado para obter leis contra os produtores chineses; $175 mil de BHP Billiton, que queria que o governo Obama protegesse seus interesses de mineração no Gabão; $200 mil da Oracle, a qual, como a Microsoft, queria que o governo Obama emitisse vistos de trabalho e medidas para enfrentar a ciber-espionagem; e $300 mil da Dell Corporation, que pressionava o Departamento de Estado para que protestasse contra tarifas que países europeus haviam imposto aos computadores Dell.

Durante o mandato de Hillary como secretária de Estado, empresas da Defesa nos EUA e seus clientes além-mar também contribuíram com de $54 a $141 milhões para a Clinton Foundation. (A Fundação só divulga uma faixa de valores dentro da qual se inserem os doadores privados; por isso só se pode ter estimativas de contribuição mínima e contribuição máxima.) No mesmo período, essas empresas de defesa dos EUA e seus clientes governamentais no exterior também pagaram um total de US $ 625.000 para Bill Clinton em honorários de palestras.

Em março de 2011, por exemplo, Bill Clinton recebeu $175 mil, da Fundação Kuwait America, para aparecer como convidado de honra e principal orador no jantar anual de gala da organização, em Washington. Entre os patrocinadores estavam a Boeing e o governo do Kuwait, por meio de sua embaixada Washington. Pouco antes, o Departamento de Estado de Hillary Clinton autorizara negócio de $693 milhões, para fornecer ao Kwait aeronaves Globemaster de transporte militar fabricadas pela Boeing. Como secretária de Estado, Hillary Clinton tinha, por lei, o dever de decidir quais os negócios de venda de armas a governos estrangeiros não agrediam interesses nacionais dos EUA.

Além disso, pesquisas mais aprofundadas feitas por Sirota e Perez para o International Business Times e baseadas em dados distribuídos pela própria Clinton Foundation e pelo governo dos EUA, durante o mandato de Hillary na Secretaria de Estado a secretária autorizou vendas comerciais de armas no total de $165 bilhões para vinte países que haviam feito doações para a Clinton Foundation. Dentre eles, os governos de Arábia Saudita, Omã, Qatar, Argélia, Kuwait e Emirados Árabes Unidos, todos esses com registros de graves agressões a direitos humanos que o próprio Departamento de Estado de Hillary criticava publicamente. Durante os anos de Hillary Clinton como secretária de Estado, as vendas de armas a governos estrangeiros que haviam feito doações à Clinton Foundation foram praticamente o dobro do total de vendas feitas àqueles mesmos países durante o segundo mandato de George W. Bush. E houve também um adicional de $151 bilhões em armas vendidas a 16 nações que haviam doado dinheiro à Clinton Foundation; eram negócios organizados pelo Pentágono, mas que só podiam ser concluídos se autorizados formalmente por Hillary Clinton, secretária de Estado. Esses, totalizaram quase 1,5 vezes a mais que as correspondentes vendas feitas durante o segundo mandato de Bush.

Dentre as amizades mais importantes e lucrativas que os Clintons fizeram mediante a Fundação Clinton e suas Iniciativas Globais Clinton, está o bilionário da indústria da energia do Canadá Frank Giustra. Grande doador da fundação durante anos, Giustra tornou-se membro da diretoria e desde 2007 é copatrocinador da Iniciativa Clinton-Giustra de Crescimento Sustentável. Em troca, a influência política de Clinton e seus contatos pessoais com chefes de estado em todo o mundo são de máxima serventia para promover os interesses empresariais de Giustra. Em setembro de 2005, Bill Clinton e Giustra viajaram a Almaty, capital do Cazaquistão, para se reunirem com o presidente Nursultan Nazarbayev. No encontro, Clinton disse a Nazarbayev que ele apoiaria a candidatura do Cazaquistão à presidência da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). A OSCE é um corpo internacional cuja missão é verificar, dentre outras coisas, a lisura de eleições entre os estados membros. Segundo as mais diferentes fontes, dentre as quais a BBC, The Washington Post e o The New York Times, Nazarbayev aspirava àquela posição para o Cazaquistão, sobretudo como uma marca de respeitabilidade europeia diplomática para seu país e ele próprio.

O apoio de Clinton à candidatura do Cazaquistão foi realmente bizarro, dado que o Cazaquistão sempre esteve listado pela Transparência Internacional entre os países mais corruptos do mundo, lado a lado com Paquistão, Bielorrússia e Honduras. Para Freedom Houseem New York, o Cazaquistão é "não livre", com Nazarbayev vencendo eleições presidenciais sempre com mais 90% dos votos. Pois mesmo assim, em carta de dezembro de 2005, depois de uma daquelas eleições unânimes, Bill Clinton escreveu: "Reconhecer que o próprio trabalho recebe nota máxima, é das mais importantes recompensas que se pode ter na vida". Não se sabe ainda que influência teve, se é que teve alguma, o apoio de Bill Clinton, nos esforços do Cazaquistão para chegar à presidência da OSCE, mas fato é que, em 2007, depois de receber pleno apoio do delegado dos EUA, o Cazaquistão foi eleito presidente da OSCE, posição que assumiu em 2010.

Razões possíveis para o apoio de Clinton começam a surgir com mais clareza quando se examinam as atividades de Frank Giustra. Em artigo para o The New York Times, datado de 31 de janeiro de 2008, Jo Becker e Don Van Natta, Jr., oferecem provas detalhadas de que Nazarbayev jogou toda sua influência a favor de Giustra e contra concorrentes mais bem qualificados, numa concorrência para explorar minas de urânio no Cazaquistão no valor de $350 milhões. Em entrevista ao Times, Moukhtar Dzakishev, então presidente da estatal nuclear do Cazaquistão Kazatomprom, confirmou que Giustra encontrara-se com Nazarbayev em Almaty, que Giustra informou o ditador sobre os negócios que tentava fazer com a Kazatomprom, e ouviu dele, como resposta que "Muito bom. Faça isso." O negócio foi fechado 48 horas depois da partida de Clinton, de Almaty. Depois dessa bem-sucedida visita à Ásia Central, Giustra doou $31 milhões à Clinton Foundation. E em junho de 2008 fez mais uma doação de $100 milhões à Fundação.

Em entrevista a David Remnick para um perfil da pós-presidência de Clinton, que New Yorker preparava em setembro de 2006, Giustra falou de como os laços que mantinha com Clinton podiam operar a seu serviço e a favor de seus interesses. Com Bill Clinton naquele momento embarcado num jato de propriedade de Giustra a caminho de uma jornada pelo continente africano ("o avião tem bancos de couro e sala de reuniões presidencial", segundo o The New Yorker), Giustra disse a Remnick que "quase todas as minhas fichas estão apostadas em Bill Clinton. É uma marca, marca de prestígio mundial, e ele pode fazer coisas e pedir que outros façam coisas como nenhuma outra pessoa."

A conexão Clinton-Giustra tornou-se ainda mais importante na Colômbia, onde a partir de 2005 Bill Clinton conseguiu vários encontros entre Giustra e o então presidente Álvaro Uribe, dos quais frequentemente Clinton participou. Giustra já era conhecido na Colômbia como fundador e acionista da Pacific Rubiales, petroleira colombiana constituída em 2003. Em 2007, segundo o The Wall Street Journal, Bill Clinton convidou Uribe e Giustra para se reunirem a ele na casa dos Clintons em Chappaqua, Nova York.

Aquelas reuniões eram o meio pelo qual Giustra influenciava Uribe e todo o seu governo a favor da Pacific Rubiales, num momento em que o governo Uribe tentava por fim ao monopólio da empresa nacional de petróleo, Ecopetrol, e para abrir o setor a investidores estrangeiros. Aqueles contatos parecem ter dado frutos para Giustra. Em 2007, Pacific Rubiales assinou negócio de $300 milhões com a Ecopetrol para construir 250 km de oleodutos entre as províncias de Meta e Casanare na região central da Colômbia. No mesmo ano, Pacific Rubiales passou a controlar o campo de petróleo Rubiales, o maior da Colômbia.

Uribe foi interlocutor bem singular para Clinton e Giustra. O presidente da Colômbia havia sido definido pelo governo George W. Bush como aliado crucial na Guerra às Drogas, na qual a Colômbia era frequentemente citada como história de sucesso. Mesmo assim, Uribe e seus aliados políticos mantinham conexões já duradouras com cartéis colombianos ativos no tráfico de drogas. Um relatório de inteligência de 1991, feito pela Agência de Inteligência da Defesa dos EUA e tornado público em agosto de 2004, descrevia Uribe como "um político e senador colombiano dedicado à colaboração com o Cartel de Medellín em níveis elevados do governo... Uribe era ligado a uma empresa envolvida em atividades de narcóticos nos Estados Unidos... [Ele] trabalhou para o cartel de Medellín" e é "amigo pessoal de Pablo Escobar Gaviria", o antigo traficante de drogas.

Um relatório de 2011 sobre eventos de 2010 da ONG Human Rights Watch oferece provas detalhadas de que Uribe arrastava com ele esse passado envenenado no momento em que negociava com Clinton e Giustra. O relatório refere-se ao governo do presidente Uribe como "eivado de escândalos em torno de execuções extrajudiciais executadas pelo exército, um processo de desmobilização paramilitar muito questionado e abusos em geral cometidos pelo serviço nacional de inteligência," que participara de vigilância ilegal sobre atividades de defensores de direitos humanos, jornalistas, políticos e juízes da Suprema Corte. Hillary Clinton foi informada sobre essas violações de direitos humanos quando, como secretária de Estado reuniu-se com Bill Clinton, Giustra e Uribe durante viagem a Bogotá, em junho de 2010. Em mensagem de e-mail que a embaixada do EUA em Bogotá enviou à secretária Clinton, o deputado Jim McGovern de Massachusetts alertava que "enquanto estiver na Colômbia, a coisa mais importante que a Secretária tem a fazer é evitar qualquer elogio muito efusivo dirigido ao presidente Álvaro Uribe."

Hillary Clinton escolheu ignorar o alerta. Falando a Uribe, no principal discurso de toda a visita, Hilary descreveu-o como "parceiro essencial dos EUA" cujo "compromisso com construir instituições democráticas fortes na Colômbia" deixaria "um legado de grande progresso que será avaliado em termos históricos". Durante a visita, Hillary também afirmou apoio a um acordo de livre comércio EUA-Colômbia, do qual Giustra e outros investidores ricos muito se beneficiariam. Isto inverteu sua oposição anterior ao acordo durante sua campanha para Presidente em 2008, em razão do desrespeito aos direitos humanos na Colômbia, especialmente a respeito dos direitos dos sindicatos.

A partir do acordo com Giustra, houve muitas reclamações contra o tratamento aos empregados dos campos de petróleo da Pacific Rubiales na Colômbia, com várias greves e processos movidos por grupos de defesa dos trabalhadores. Em um discurso em agosto de 2011 no Senado da Colômbia, Jorge Robledo, líder do partido Polo Democrático Alternativo (social-democrata) no Senado da Colômbia descreveu os alojamentos para empregados da Pacific Rubiales como "semelhantes a campos de concentração", com turnos de trabalho que não raro excediam 16 horas diárias, durante várias semanas, instalações sanitárias inadequadas e mais de um empregado por cama; e com a empresa terceirizando instalações e contratação de empregados para dificultar a sindicalização e o pagamento de pensões e assistência à saúde. (Em abril de 2015, Peter Volk, conselheiro geral da Pacific Rubiales, negou estas alegações, dizendo que a empresa "respeita os direitos dos seus trabalhadores e exige de empresas que prestam serviços a ela para também fazê-lo.")

A folha corrida do Sistema Clinton levanta graves questões sobre o que poderia ser uma presidência à Hillary Clinton, no que tenha a ver com a crescente influência política de grandes corporações empresariais e bancos de Wall Street. O presidente a ser eleito terá de enfrenar questões econômicas e sociais críticas, inclusive a estagnação da renda da classe média, os furos na legislação que permite que os aplicadores em fundos hedge e outros super ricos paguem menos impostos que a maioria dos americanos médios, e os custos exorbitantes da educação superior. Além disso, há a questão de aprofundar reformas de Wall Street e do sistema bancário, para impedir que se repitam comportamentos que trouxeram a Grande Recessão de 2007-2008.

Até aqui, Hillary Clinton tem se recusado a se comprometer com uma reapresentação para votação no Congresso da Lei Glass-Steagall da era da Depressão, que Bill Clinton ordenou que fosse rejeitada em 1999, seguindo o parecer de Democratas com laços muito íntimos com Wall Street, incluindo Robert Rubin e Larry Summers. A reabilitação da Lei Glass-Steagall – que está na plataforma de Bernie Sanders – impediria bancos de especularem em derivativos financeiros, principal causa do crash de 2007-2008. Com tantos e tão destacados bancos de Wall Street aparecendo nas listas de apoiadores dos Clintons, é possível crer que Hillary promoverá qualquer reforma nos bancos, que avance além da modesta Lei Dodd-Frank, de 2010?

Sobre o autor

Simon Head is a Senior Research Fellow at the Institute for Public Knowledge at New York University, and Director of Programs for the New York Review of Books Foundation. He is the author of Mindless: Why Smarter Machines Are Making Dumber Humans (2014).

27 de janeiro de 2016

A América já não é socialista?

Não, o socialismo não é apenas mais governo - trata-se de propriedade e controle democráticos.

Chris Maisano

Jacobin

Phil Wrigglesworth

Tradução / Se você passa algum tempo em redes sociais, provavelmente já deu de cara com memes pretendendo mostrar o quanto os Estados Unidos já são socialistas, listando toda uma série de programas governamentais, serviços e agências. Há muitas variações sobre esse tema, mas o meu favorito lista não menos que 55 programas alegadamente socialistas que só têm em comum o fato de que é o Tio Sam quem os executa.

Alguns atendem diretamente necessidades sociais e envolvem alguma medida de redistribuição de renda (bibliotecas públicas, programas de bem-estar social, programas de reforço alimentar, previdência, vales-alimentação). Alguns parecem jogados no meio sem nenhuma boa razão (Alertas sobre desaparecidos? A Casa Branca?). Outros são atividades operacionais básicas que qualquer governo moderno, independente de sua orientação ideológica, executaria (o Censo, os departamentos de bombeiros, remoção de lixo e neve, esgotos, iluminação pública). E outros ainda envolvem o vasto aparato de coerção e força (os departamentos de polícia, o FBI, a CIA, as Forças Armadas, as cortes de Justiça, prisões, etc).

Com todas as virtudes de Bernie Sanders, sua campanha para presidente tem apenas engrossado a névoa de confusão ideológica. Em uma parada de campanha no ano passado, ele endossou o pensamento por trás dos mais simplistas desses memes: “Quando você vai a uma biblioteca pública, quando você liga para os bombeiros ou o departamento de polícia, para o que você pensa que está ligando? Estas são instituições socialistas.” Por essa lógica qualquer tipo de projeto coletivo mantido por impostos e realizado através de ação governamental é socialismo.

Não é difícil ver o problema com essa linha de raciocínio. Em um país tão profundamente e reflexivamente anti-estatista como os Estados Unidos, a identificação de ‘socialismo’ com ‘governo’ é talvez a pior estratégica retórica que a esquerda poderia adotar. “Gosta do DMV? Então você vai amar o Socialismo!“ não é um slogan que vai converter muita gente. Mais importante, misturar toda ação governamental com socialismo nos força a defender muitas das formas de ação estatal mais censuráveis, incluindo aquelas que nós preferiríamos abolir em uma sociedade livre e justa.

Uma coisa é identificar bibliotecas públicas com socialismo. Elas operam de acordo com princípios democráticos de acesso e distribuição, fornecendo serviços para todos, independente da capacidade de cada um para pagar. Elas seriam uma das instituições mais importantes em qualquer sociedade socialista digna do nome. Mas incluir a polícia é uma coisa bem diferente. Se as forças responsáveis por matar Sandra Bland, Eric Garner, e Rekia Boyd exemplificam o socialismo em ação, então nenhuma pessoa que deseja liberdade e justiça deveria ser socialista.

A ideia de que qualquer ação governamental é sinônimo de socialismo tem implicações políticas e estratégicas enormes. Afinal de contas, se o nosso país já fosse pelo menos parcialmente socialista, então tudo o que nós teríamos de fazer seria continuar expandindo gradativamente o governo. Nós não precisaríamos mudar o propósito de nenhum programa existente, nem reformar as estruturas administrativas das agências governamentais.

E por que todos esses programas alegadamente socialistas foram conquistados sem desafiar fundamentalmente a propriedade privada, não haveria necessidade de uma confrontação decisiva com os proprietários de capital e seus aliados políticos. Tudo o que nós teríamos de fazer seria eleger políticos simpatizantes para cargos públicos e deixar que eles legislassem o nosso caminho para ainda mais socialismo.

Acadêmicos que vivem de estudar política muitas vezes caem nessa armadilha. Ao simplesmente olhar o tamanho do governo em termos de gastos gerais, muitos argumentam que os EUA estão se tornando cada vez mais socialistas, quer a gente queira ou não. Em sua visão as principais reformas sociais vão acontecer de qualquer maneira, com uma multidão passiva vindo apoiar esses programas de sucesso apenas depois que eles tenham sido legislados por políticos e implementados por burocratas.

O investimento governamental em programas sociais e outras atividades pode muito bem aumentar nas próximas décadas por causa do envelhecimento da população, a crise climática, e outros desenvolvimentos. Mas o volume absoluto de gastos nos diz muito pouco sobre a valência política da ação governamental. Questões chaves sobre aquela atividade estatal sempre precisam ser levantadas: ela reforça ou enfraquece o poder daqueles que possuem capital? Ela aumenta a nossa subordinação à disciplina do mercado ou nos oferece mais liberdade de suas demandas?

Tem havido um certo número de iniciativas governamentais de larga-escala desde os anos 80, mesmo durante períodos de dominância política dos republicanos. Mas muitos dos maiores programas das últimas décadas não fazem nada para fortalecer o poder dos trabalhadores.

O “Earned Income Tax Credit” (EITC) tem trazido um alívio muito necessitado pelos trabalhadores pobres, mas também serve como um subsídio indireto para empregadores de baixo-salário. O “Medicare Part D” oferece subsídios para aposentados com baixa renda, mas é amplamente reconhecido como um presente custoso para a indústria farmacêutica.

O Obamacare tem aumentado a cobertura por convênios de saúde, parcialmente através da (contestada) expansão do Medicaid. Mas o mandato individual serve apenas para aprofundar a mercantilização, adicionando milhões de estadunidenses no sistema de saúde privado, movido pelo lucro. O plano de estímulo de 2009 provavelmente salvou o país de outra Grande Depressão, mas foi inadequado para a escala da crise e pesou na direção de cortes de impostos para negócios que simplesmente embolsaram o dinheiro ao invés de contratar novos trabalhadores. A lista segue em frente.

Por que isso acontece? Primeiro, os ricos e poderosos investem pesado em atividades políticas para promover seus interesses e bloquear reformas progressistas. No final do ano passado, as contribuições de apenas 158 famílias e das companhias que elas possuem (atordoantes 176 milhões de dólares) compunham cerca da metade de todo o financiamento da corrida presidencial de 2016. Através de seus gastos políticos e da influência que isso compra, eles têm sido capazes de moldar os impostos e outras políticas para seu próprio benefício, uma vantagem reforçada por decisões judiciais favoráveis (como por exemplo o caso Citizens United) e atividades de lobby.

De acordo com um famoso estudo de 2014 por dois cientistas políticos, a dominação política dos ricos é agora tão pronunciada que os cidadãos médios exercem “cerca de zero” influência sobre a elaboração de políticas governamentais.

As classes média e alta também mantém os postos mais importantes no governo, sejam eleitos ou indicados. Eles compartilham de um conjunto comum de ideias e valores que tendem a proteger o status quo e reprimir qualquer desafio maior ao sistema, particularmente aqueles vindo da classe trabalhadora e da esquerda.

Estas formas diretas de influência não são o único jeito pelo qual interesses poderosos moldam a ação governamental. Afinal de contas, governos dependem de um nível minimamente robusto de atividade econômica para financiar a si mesmos. A receita fiscal e o financiamento da dívida com que contam os governos estão diretamente relacionados com o estado da economia capitalista e suas taxas de crescimento e lucratividade. Se o nível da atividade econômica encolhe – talvez por que os capitalistas estão descontentes sobre uma nova legislação que beneficia os trabalhadores – o Estado se encontrará cada vez mais em dificuldade para financiar as suas atividades. Isso, por sua vez, leva a uma queda em sua legitimidade e em seus nível de apoio popular.

Como a atividade econômica é significantemente determinada pelas decisões de investimento de capitalistas privados, essas forças podem essencialmente vetar políticas governamentais que eles pensam ser contra seus interesses. Frequentemente, se os capitalistas não são induzidos a fazer investimentos através de subsídios de negócios e outros incentivos, eles simplesmente se recusarão a investir.

Consequentemente, existe uma forte tendência para os políticos e burocratas alinharem suas decisões políticas com os interesses dos capitalistas no setor privado. Preservar a “confiança dos negócios” é uma restrição fundamental na formação de políticas, e é uma das principais razões por que a ação governamental é tão frequentemente favorável aos interesses capitalistas. É assim também que eles conseguem misturar os seus próprios interesses com um maior interesse “público” ou “nacional” – sob um sistema capitalista, existe alguma verdade em suas reivindicações.

Na ausência de organização popular e militância, a ação governamental fará muito pouco para alterar o equilíbrio de poder para longe do Capital e na direção do Trabalho, ou para reduzir a submissão ao Mercado ao invés de aprofundá-la. Enquanto as estruturas fundamentais da Economia permanecerem as mesmas, a ação do Estado beneficiará desproporcionalmente os interesses capitalistas às custas de todo o resto da população.

Isso não significa que reformas progressistas nunca podem ser conquistadas sob o capitalismo, ou que o governo é completamente imune à pressão pública. Entretanto, tais reformas só tem sido conquistadas com o apoio de lutas de massa em ação direta contra os empregadores.

Simplesmente eleger políticos para o gabinete ou assistir o governo se expandir por seu próprio ímpeto nunca foi e nunca será suficiente. Poder econômico é poder político, e sob o capitalismo os proprietários de capital sempre terão a capacidade de debilitar a democracia popular – não importa quem esteja no Congresso ou na Casa Branca.

Conquistar o poder governamental e usá-lo para quebrar o domínio da classe capitalista é uma condição necessária para iniciar a transição para o socialismo. Um governo conduzido por um partido socialista (ou uma coalizão de partidos de esquerda e da classe trabalhadora) se moveria para trazer as principais indústrias e empresas da economia sob alguma forma de controle social. Mas só isso não seria suficiente. As experiências amargas do século XX nos ensinaram que o socialismo não vai promover a causa da liberdade humana se as estruturas políticas e administrativas do governo não forem democratizadas por completo.

Aqui é onde a contínua mobilização popular fora (e, se necessário, contra) estruturas políticas formais se torna absolutamente crucial. Para resistir à inevitável reação das forças capitalistas e conservadoras, uma transição socialista precisaria atrair apoio popular massivo e participação direta nos assuntos do governo.

Isso ocasionaria não apenas a criação de corpos democráticos diretos que substituíssem ou complementassem instituições representativas como o Congresso, mas também um exame dramático das agências estatais e das estruturas administrativas. Tal expansão de poder popular seria necessária tanto para expulsar o pessoal comprometido com o velho regime como para transformar as burocracias frequentemente alienantes e repressivas que atualmente administram os serviços públicos.

Escolas públicas, departamentos de bem-estar social, agências de planejamento, cortes, e todas as outras agências governamentais convidariam os trabalhadores e beneficiários para participar no projeto e na implementação desses serviços. Sindicatos do setor público poderiam exercer um papel chave nesse esforço, organizando tanto os fornecedores quanto os usuários de serviços públicos para transformar radicalmente as estruturas administrativas do governo.

Apenas sob estas condições a atividade governamental seria sinônimo de Socialismo Democrático. Ao invés de colocar um conceito abstrato de “governo” contra as forças do capital, nós deveríamos começar o árduo trabalho de conceber e construir novas instituições que possam fazer um governo do povo, pelo povo e para o povo uma realidade.

Colaboradora

Chris Maisano is a Jacobin contributing editor and a member of Democratic Socialists of America.

22 de janeiro de 2016

Stuart Hall: Gramsci e nós

Stuart Hall


Neste dia, em 1891, um dos marxistas mais influentes do século 21, Antonio Gramsci, nasceu na pequena cidade de Ales na Sardenha. A obra de Gramsci transformou o modo como pensamos sobre um marxismo político. Considerando que a Revolução Russa ocorreu na "atrasadA" Rússia, e como tal era tanto uma revolução contra o "antigo regime", como contra o capital, Gramsci tentou lutar com a questão de como construir um movimento revolucionário nas áreas desenvolvidas da Europa Ocidental. Em particular, foi o seu desenvolvimento do conceito de "hegemonia", que viria a ser o mais influente. Neste texto, do grande Stuart Hall e publicado no The Hard Road to Renewal, Hall tenta expandir essas idéias de Gramsci para analisar a "modernização regressiva" de Thatcher. Em uma época em que muitos estão abordando a questão de como construir uma nova esquerda moderna, Gramsci e Hall são tão relevantes como sempre.

Esta não é uma exposição abrangente das idéias de Antonio Gramsci, nem um relato sistemático da situação política na Grã-Bretanha hoje. É tentativa para pensar alto sobre alguns dos dilemas que mais perplexidade geram em toda a Esquerda, à luz – sob o ponto de vista – do trabalho de Gramsci. Não estou dizendo que, em qualquer sentido simples, Gramsci teria as respostas ou ofereceria a chave para resolver nossas dificuldades correntes. Bem diferente disso, creio firmemente que se trata de que nós mesmos temos de pensar de modo Gramsciano os nossos problemas. Não devemos usar Gramsci (como por tanto tempo abusamos de Marx) como profeta do Velho Testamento que, no momento certo, nos presenteará com a citação mais apropriada para nosso máximo consolo. Não podemos arrancar esse "Sardo" de sua formação política única e específica, teletransportá-lo para o final do século 20 e pedir-lhe que resolva para nós os nossos problemas: especialmente porque o cerne do pensamento dele sempre foi recusar esse transplante leviano de generalizações, de uma conjuntura, nação ou época, para outra.

Da leitura de Gramsci, o que realmente transformou meu modo de pensar sobre política, é a questão que brota de seus Cadernos do Cárcere. Se você considera os textos clássicos de Marx e Lênin, você é levado a esperar um desenvolvimento revolucionário histórico de época, do final da I Guerra Mundial em diante. E vários eventos oferecem provas consideráveis de que esse desenvolvimento estava acontecendo. Gramsci pertence àquele "momento proletário". Aconteceu em Turim nos anos 1920, e em outros locais onde pessoas como Gramsci, em contato com a vanguarda da classe trabalhadora industrial – naquele momento, na linha de frente da produção moderna – acreditavam que bastaria que gerentes e políticos saíssem da frente, e aquela classe de proletários poderia governar o mundo, tomar as fábricas, apropriar-se da maquinaria da sociedade, transformá-la materialmente e administrá-la economicamente, socialmente, culturalmente, tecnicamente. A verdade sobre os anos 1920 é que o momento proletário desapareceu quase imediatamente. Pouco antes e pouco depois da I Guerra Mundial, realmente já parecia que sob a liderança daquela classe o mundo não estava sendo transformado como a Rússia fora transformada em 1917 pela Revolução Soviética. Esse foi o momento da perspectiva proletária, para ver a história. O que chamei de "a questão de Gramsci nos Cadernos" emerge daquele momento, com o reconhecimento de que a história não estava andando naquela direção, sobretudo não nas sociedades capitalistas avançadas da Europa Ocidental. Gramsci teve de enfrentar o revide e o fracasso: a certeza de que tal momento, tendo passado, nunca mais voltaria sob aquela mesma velha forma. Gramsci, aqui, se viu cara a cara com o próprio caráter revolucionário da história. Quando uma conjuntura se desenrola, não há "voltar atrás". A história muda de marcha. O terreno muda. Está-se num novo momento. E é preciso obedecer, "violentamente", com todo o "pessimismo do intelecto" às ordens de cada um, à "disciplina da conjuntura".

Além disso (e aí está uma das principais razões pelas quais essa ideia é tão pertinente ao que vivemos hoje), teve de enfrentar também a capacidade da Direita – especificamente, do fascismo europeu –, para hegemonizar aquela derrota.

Ali estava uma inversão do projeto revolucionário, uma nova conjuntura histórica, um momento no qual a Direita, não a Esquerda, conseguia dominar. Esse é momento de crise total para a Esquerda, quando todos os pontos de referência, as previsões, foram reduzidas a cacos. O universo político, como você conheceu e no qual habitou, colapsa.

Não quero dizer que a Esquerda na Grã-Bretanha esteja em momento exatamente igual a esse; mas, sim, espero que todos reconheçam alguns traços impressionantemente semelhantes, porque é a similaridade entre essas duas situações que torna a questão chave de Cadernos do Cárcere tão seminalmente importante para nos ajudar a compreender qual é nossa condição hoje. Gramsci nos dá, não as ferramentas para resolver o enigma, mas os meios pelos quais propor os tipos certos de perguntas sobre a política dos anos 1980 e 1990. E o faz encaminhando nossa atenção, sem fuga possível, para o que é específico e diferente sobre esse momento. Gramcsi sempre insiste em dedicar toda a atenção à diferença. Aí está uma lição que a Esquerda britânica ainda terá de aprender. Tendemos a pensar que a Direita nem sempre está presente e ativa, conosco; mas que é sempre exatamente a mesma: mesmos interesses, pensando os mesmos pensamentos. Estamos atravessando a transformação do Conservadorismo Britânico – sua adaptação parcial ao mundo moderno, mediante as "revoluções" neoliberal e monetarista. O thatcherismo reconstruiu o Conservadorismo e o Partido Conservador. Os comerciantes pequeno-burgueses estão agora no poder, não as classes do tiro-ao-pombo, de caça & pesca. E, por mais que essas transformações estejam modificando o terreno da luta política bem diante de nossos olhos, mesmo assim pensamos que as diferenças não têm qualquer efeito sobre coisa alguma. E ainda soa muito "de Esquerda" dizer que a velha classe governante continua(ria) a governar do mesmo velho modo de antes.

Gramsci, por outro lado, sabia que diferença e especificidade importam e são decisivas. Assim sendo, em vez de perguntar "o que Gramsci diria sobre o tatcherismo?" temos simplesmente de prestar atenção à fascinação que a noção de diferença causava a Gramsci, a questão da especificidade de uma dada conjuntura histórica: como forças diferentes se unem, conjunturalmente, para criar o novo terreno, sobre o qual têm de crescer uma formação política diferente. Essa é a intuição que Gramsci nos oferece sobre a natureza da vida política, a partir da qual podemos encontrar um fio-guia.

Quero dizer o que penso que sejam "as lições de Gramsci", em primeiro lugar em relação ao tatcherismo e ao projeto da Nova Direita; e, segundo, em termos da crise da Esquerda. Aqui, apresento só as linhas mais gerais do que entendo por "tatcherismo". O que estou tentando discutir é a abertura, a partir de meados dos anos 1970, de um novo projeto na Direita. "Projeto", nesse caso, não significa (como Gramsci alertou) algum tipo de conspiração. Quando falo de "projeto", falo da construção de uma nova agenda na política britânica. Mrs. Thatcher sempre visou, não a algum tipo de curta vitória eleitoral, mas a um longo período histórico no exercício do poder. Essa ocupação do poder pela Direita nunca visou simplesmente a comandar os aparelhos do Estado. Na verdade, o projeto foi organizado, nos estágios iniciais, em oposição ao Estado, que o "thatchterista" via como profundamente corrompido pelo estado do bem-estar e pelo keynesianismo, que teria ajudado a corromper o povo britânico. O thatcherismo ganhou vida no confronto contra o velho estado de bem-estar keynesiano, com "estatismo" social-democrata, o qual, na visão dos tatcheristas, havia dominado os anos 1960. O projeto tatcherista foi transformar o Estado para assim reestruturar a sociedade: descentralizar, deslocalizar, toda a formação pós-guerra; reverter a cultura política que havia formado a base do acordo político – o compromisso histórico entre trabalho e capital – vigente a partir de 1945.

Essa reversão aspirava a ser muito profunda: uma reversão das regras fundamentais do acordo político, das alianças sociais que serviam de substrato àquele acordo e dos valores que lhe haviam garantido popularidade. Não estou falando de atitudes e valores das pessoas que escrevem livros. Falo das ideias do povo que simplesmente, na vida de todos os dias, tem de calcular como sobreviver, como cuidar da família e dos dependentes mais próximos.

Refiro-me a isso, quando digo que o tatcherismo visou a uma reversão no senso comum. O "senso comum" do povo inglês fora construído em torno da noção de que a última guerra erigira uma barreira entre os 'tempos difíceis' dos anos 1930 e 'hoje'; que o estado do bem-estar viera para ficar; que nunca mais voltaríamos a usar o critério dos mercados como medida das carências das pessoas, das necessidades da sociedade. Sempre teria de haver alguma força institucional adicional, incremental – o Estado, representando o interesse geral da sociedade – para lutar contra, para modificar o mercado. Sei perfeitamente que o socialismo não foi inaugurado em 1945. Estou falando sobre a base da social-democracia do bem-estar, que foi vendida ao povo como se fosse conquista garantida, e que formaria o terreno concreto, real, sobre o qual teria de ser erigido qualquer socialismo que merecesse ostentar esse título. O tatcherismo foi projeto para combater contra, para contestar precisamente aquele projeto e, sempre que possível, desmantelá-lo e implantar algo de novo no lugar dele.  O tatcherismo entrou no campo político para uma disputa histórica, não só por poder, mas pela consagração da autoridade popular, vale dizer, pela hegemonia.

É um projeto – e isso sempre infalivelmente confunde a Esquerda – que é simultaneamente progressista e regressista. É regressista porque, em alguns aspectos cruciais, nos arrasta para trás. Qualquer um que defendesse, diante do povo britânico no final do século 20, a ideia de que o melhor futuro possível seria todos voltarem a ser, pela segunda vez, "Vitorianos Eminentes", estaria inevitavelmente empurrando os britânicos, inevitavelmente, para trás. O projeto tatcherista é profundamente regressista, antiquado, arcaizante

Mas não o subestimemos. O tatcherismo é também um projeto de 'modernização'. É uma modalidade de modernização regressista. Porque, ao mesmo tempo, o tatcherismo tinha seu olhar transfixado num dos fatos históricos mais profundos da formação social britânica: que a formação social britânica jamais, na verdade, chegou realmente à era da moderna civilização burguesa. Jamais fez essa passagem para a modernidade. Jamais institucionalizou, em sentido próprio, a civilização e as estruturas do capitalismo avançado – o que Gramsci chamou de "fordismo". A formação social britânica jamais transformou suas velhas estrutura industriais e políticas. Jamais se tornou uma potência da segunda revolução capitalista-industrial, no sentido em que o fizeram os EUA, e, por outra via (a via "prussiana"), também a Alemanha e o Japão. A Grã-Bretanha jamais passou por essa profunda transformação, a qual, no final do século 19, reconstruiu ambos, o capitalismo e as classes trabalhadoras. Consequentemente, Mrs. Thatcher sabe que não há projeto político sério na Grã-Bretanha hoje, que não tenha a ver também com construir uma política e uma imagem da 'cara' que a "modernidade" deverá ter para os britânicos. E o tatcherismo, à sua maneira ativamente regressista, confiando sempre no passado, olhando para trás, para glórias passadas, em vez de olhar para uma nova época à frente, inaugurou o projeto da modernização reacionária.


Nada mais crucial, a esse respeito, que a ideia de Gramsci de que cada crise é também um momento de reconstrução; que não há destruição que não seja também reconstrução; que, historicamente, nada é desmantelado sem o correspondente esforço para pôr outra coisa 'nova' no lugar: que toda e qualquer forma de poder não exclui, apenas, mas também produz alguma coisa. Essa é concepção inteiramente nova de crise e poder. Quando a Esquerda fala de crise, todos vemos o capitalismo em desintegração, e nós em marcha, para assumir o comando. Absolutamente não entendemos que a disrupção do funcionamento normal da velha ordem econômica, social, cultural é a oportunidade para reorganizar de modos novos, de reestruturar e reformatar, de modernizar e avançar. Sendo necessário, é claro, ao custo de deixar que vastos números de pessoas – no nordeste, no noroeste, no País de Gales e na Escócia, nas comunidades de mineiros e nas áreas industriais devastadas, nas cidades do interior e por toda a parte, – tenham de ser encaminhadas à lata de lixo da história. Essa é a "lei" da modernização capitalista: desenvolvimento desigual, desorganização organizada.

Confrontados com essa perigosa nova formação política, a tentação é sempre, ideologicamente, desmontá-la, forçá-la a parar, sempre perguntando a pergunta marxista clássica: quem essa formação realmente representa? Mas em geral, quando a Esquerda propõe à moda antiga essa velha pergunta marxista clássica, não estamos de fato perguntando coisa alguma: estamos fazendo uma 'declaração' histórica. Já conhecemos a resposta. É claro que a Direita representa a ocupação do Estado pelo capital, que nada é além de instrumento dela. Escritores burgueses produzem romances burgueses. O Partido Conservador é a classe dominante entronizada pelo voto, etc., etc. Isso é o marxismo convertido em teoria do óbvio. A pergunta não encaminha qualquer novo conhecimento: nada além do sabido e ressabido. Há aí uma espécie de jogo, teoria política tratada como brincadeira de ligue os pontos. De fato, a razão pela qual temos de perguntar "Quem é representado por aquela nova formação?" é que realmente não conhecemos a resposta.

É realmente difícil de dizer, em formulação simples, quem, afinal, é representado pelo tatcherismo. Aí está o espantoso fenômeno de uma ideologia pequeno-burguesa que 'representa' e está ajudando a reconstruir ambos: o capital nacional e o capital internacional. Mas, enquanto vai 'representando' o capital empresarial, aquela ideologia vai conquistando o consentimento de porções muito substanciais das classes subordinadas e dominadas. Que diabo de natureza tem essa ideologia que pode subsumir nela mesma tão vasta faixa de posições e interesses diferentes, e que parece representar um pouco de tudo e todos – inclusive muitos dos que aqui estão, a ler o que escrevo! Porque – e que ninguém se engane quanto a isso – um pedacinho de cada um de nós e de nós todos está também em algum lugar, dentro do projeto tatcherista. Claro, não estamos 100% comprometidos. Mas vez ou outra – sábados pela manhã, por exemplo – vamos à loja Sainsbury e ali somos um pedacinho de tatcherista. Como dar conta de uma ideologia que não tem coerência e que nos fala agora num dos ouvidos, e também do vendedor utilitarista, de mercado, que nos fala no outro ouvido, com voz de respeitável patriarca (homem, claro) burguês? Como esses dois repertórios operam juntos? Todos somos tomados de perplexidade ante a natureza contraditória do tatcherismo. À nossa moda intelectual, pensamos que o mundo colapsará por efeito de uma contradição lógica – é a ilusão do intelectual –, que a ideologia teria de ser coerente, cada pedacinho dela absolutamente em harmonia com o todo, como um ensaio filosófico. Quando, de fato, todo o propósito do que Gramsci chamava de "uma ideologia orgânica" (quer dizer, historicamente efetiva) é que ela articula numa configuração diferentes sujeitos, diferentes identidades, diferentes projetos, diferentes aspirações. Uma "ideologia orgânica" não reflete: ela constrói, da diferença, uma 'unidade'.

Vivemos às voltas com o projeto tatcherista, não desde 1983 ou 1979, como reza a doutrina oficial, mas desde 1975. 1975 é o climatério da política britânica. Primeiro, a subida do petróleo. Segundo, o início da crise capitalista. Terceiro, a transformação do moderno conservadorismo, pela ascensão da liderança tatcherista. Foi o momento da virada, quando, como dizia Gramsci, fatores nacionais e internacionais alinham-se. Não começou com a vitória eleitoral de Mrs. Thatcher, porque política não é questão apenas eleitoral. Caiu como um soco, em 1975, direto no plexo solar político de Callaghan. Quebrou ao meio a já rachada bengala de Callaghan. Uma das metades permanece avuncular, paternalista, social-conservadora. A outra metade põe-se a dançar por nova música. Uma das vozes de sereia, cantando novos cantos ao ouvido dele, é o genro, Peter Jay, um dos arquitetos do monetarismo, em sua função de missionário como editor de economia do The Times. Ele primeiro viu as novas forças de mercado, o novo consumidor soberano, assomando ao topo da colina como os Marines. E, exaltado ante essas intimações que o futuro lhe fazia, o velho abriu a boca. E diz o quê? Que os beijos acabaram-se. Acabou a festa. O jogo acabou. A social-democracia está acabada. Estado de bem-estar, nunca mais. Não temos dinheiro para isso. Estamos pagando demais a nós mesmos, excesso de empregos com salários exagerados, tempo demais, sobrando, descansando no balanço.

Pode-se até ver a psique inglesa colapsando sob o peso de tantos prazeres ilícitos em que se refestelara – a permissividade, o consumo, os bens. Tudo falso, só espuma e purpurina. Os árabes explodiram tudo aquilo. Agora, temos de pensar de outro modo. Thatcher fala dessa "nova rota". E fala também de outra coisa, profunda na psique britânica: o masoquismo. A carência em que os ingleses parecem viver, a ânsia para levar uma palmada da babá e ser mandado para a cama sem o doce. A conta segundo a qual cada bom verão tem de ser pago por 20 invernos terríveis. O espírito de Dunquerque – quanto pior nossa situação, mas bem nos comportamos. Thatcher não nos prometeu sociedade de desperdício. Disse "tempos de ferro"; costas contra a parede; mexam-se, ao trabalho. cavem, não parem de cavar. Firmem-se nas velhas verdades, já provadas no tempo, a sabedoria da 'Old England'. A família manteve coesa a sociedade: vivam para a família. Mandem as mulheres de volta para a lavoura. Os homens, que partam para a Fronteira Noroeste. Tempos duros – até que depois, muito depois, os Velhos Bons Tempos voltarão. E Thatcher pediu aos britânicos muito tempo – não um, mas dois e três mandatos. Ao final, disse ela, conseguirei redefinir a nação, e de tal modo que vocês, mais uma vez, pela primeira vez desde que o Império começou a decair ladeira abaixo, sentirão o que é ser parte da Grã-Bretanha Ilimitada. Vocês conseguirão, mais uma vez, mandar nossos rapazes 'para lá', hastear a bandeira, dar boas-vindas à frota. A Bretanha voltará a ser Grande, mais uma vez. Em minha avaliação, as pessoas não votam a favor do tatcherismo porque creiam em entrelinhas ou em referências sinuosas. Ninguém em perfeito juízo supõe que a Grã-Bretanha viva hoje em economia próspera, maravilhosa, bem-sucedida. Mas o tatcherismo, como ideologia, fala diretamente aos medos, às ansiedades, às identidades perdidas, de um povo. Ele nos convida a pensar sobre política, em imagens. Dirige-se a nossas fantasias coletivas, à Grã-Bretanha como comunidade imaginada, ao imaginário social. Mrs. Thatcher dominou perfeitamente aquele idioma – enquanto a Esquerda, obcecadamente, luta para arrastar a conversa sempre em torno de 'nossas políticas'.

É projeto histórico barulhento, essa modernização regressiva da Grã-Bretanha, para atrair as pessoas comuns, não porque sejam burras, estúpidas, ou porque tenham sido cegados pela falsa consciência. Nossa posição de classe ou o 'modo de produção' não garantem qualquer aval ao caráter político de nossas ideias. Por isso, a Direita consegue construir uma política que fala diretamente à experiência do povo, e escapa ao que Gramsci chamou de "natureza necessariamente fragmentada e contraditória do senso-comum". Aquelas políticas da Direita encontram eco em algumas das aspirações de todos e, em determinadas circunstâncias, podem reformatá-las como temas subordinados, num projeto histórico que hegemoniza o que nós – erradamente – nos habituamos a entender como interesses necessários de classe dos mais pobres. Gramsci é um dos primeiros marxistas modernos a reconhecer que os interesses não são dados, mas têm de ser construídos politicamente e ideologicamente.

Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci nos alerta para o fato de que uma crise não é evento não mediado, surgido do nada, mas é um processo: pode durar muito tempo, e pode ser resolvida de várias e diferentes maneiras: por restauração, por reconstrução ou por transformismo passivo. Às vezes mais estáveis, às vezes mais instáveis; mas num sentido profundo, as instituições britânicas, a economia britânica, a sociedade e a cultura britânica estão em profunda crise social durante praticamente todo o século 20.

Gramsci chama nossa atenção para a evidência de que crises orgânicas dessa ordem surgem, não apenas no domínio político e em áreas tradicionais da vida industrial e econômica, não simplesmente na luta de classes, no sentido antigo; mas em vastas séries de políticas, debates sobre questões fundamentais de ordem sexual, moral e intelectual, numa crise nas relações de representação política e partidos – em enorme lista de questões que na primeira instância não parecem de modo algum articuladas necessariamente com a política em sentido estrito. Isso é o que Gramsci chama de crise de autoridade, que é não é nada mais que a crise de hegemonia ou crise geral do estado Viemos modelando a tal 'crise de autoridade' na vida social e na cultura da Grã-Bretanha desde meados dos anos 1960. Nos anos 1960, a crise da sociedade inglesa foi marcada por muitos debates e lutas em torno de novos pontos de antagonismo, que pareceram, à primeira vista, muito distanciados do tradicional núcleo duro da política britânica. A Esquerda muitas vezes apenas esperou pacientemente que os velhos ritmos da luta de classe voltassem a imperar, quando, de fato, as próprias formas da 'luta de classe' estavam sendo transformadas. Só se consegue entender essa diversificação nas lutas sociais à luz do que Gramsci ensina, quando insiste em que, nas sociedades modernas, a hegemonia tem de ser construída, contestada, disputada e afinal ganha em muitos diferentes campos, enquanto as estruturas do Estado moderno vão se tornando cada vez mais complexas e proliferam os pontos de antagonismo social.

Assim, uma das coisas mais importantes que Gramsci fez por nós foi nos dar nos uma concepção profundamente expandida da própria política, e, assim, também do poder e da autoridade. Não se pode, depois de Gramsci, regredir ao velho sentido estreito da política eleitoral ou política partidária, nem ao que se entendia como ocupar o poder do Estado, como campos da política moderna. Gramsci compreende que política é campo muito mais vasto; e que, especialmente em sociedades como essas que conhecemos, os pontos nos quais se constitui o poder serão sempre os mais variados. Estamos vivendo o momento da máxima proliferação dos locais de poder e de antagonismo na sociedade moderna. A transição para essa nova fase, para Gramsci, é decisiva. Na nova fase, já estão diretamente inscritas na agenda política as questões de liderança moral e intelectual, o papel educacional e formativo do Estado, as "trincheiras e fortalezas" da sociedade civil, a questão crucial do consentimento das massas e a criação de um novo tipo ou nível de civilização, uma nova cultura. Passa a haver clara linha divisória entre a fórmula da "Revolução Permanente" e a fórmula da "hegemonia civil". O mundo de Gramcsi encontra o nosso sobre um fio de navalha, entre a guerra de movimento e a guerra de posições.

Isso não quer dizer, como algumas pessoas interpretam Gramsci, que, portanto, o Estado não importa mais O Estado é sem dúvida absolutamente central para articular as diferentes áreas de contestação, os diferentes pontos de antagonismo, num regime de governo. O momento quando se obtém suficiente poder para organizar um projeto político central é decisivo, porque então se pode usar o Estado para planejar, apressar, incitar, solicitar e punir, para dar forma comum a vários sítios de poder e alcançar que consintam num único regime. Esse é o momento do "populismo autoritário" –, com o thatcherismo simultaneamente 'acima' (no Estado) e 'abaixo' (usufruindo do consentimento do povo).

Mas nem nesse momento Mrs. Thatcher comete o erro de supor que o Estado capitalista teria um só e unificado caráter político. Ela está plenamente consciente de que, por mais que o Estado capitalista seja articulado para assegurar condições históricas, de longo prazo, para a acumulação de capital e a lucratividade, e ainda que seja o guardião de determinado tipo de civilização e cultura burguesa e patriarcal, o Estado capitalista é, e continua a ser, arena de contestação e disputa. E isso significará que o thatcherismo é, afinal, simplesmente a 'expressão' da classe dominante? Claro que Gramsci sempre garante o lugar central às questões de classe, alianças de classes, luta de classes. Gramcsi diverge de versões clássicas do marxismo no quesito 'refletir' ou 'expressar'. Gramcsi não vê a política como arena que simplesmente reflete identidades políticas coletivas já unificadas, formas já constituídas de luta. A política, para ele, não é esfera dependente: é onde as forças e as relações, na economia, na sociedade, na cultura, têm de ser trabalhadas ativamente para produzir formas particulares de poder, formas de dominação. É a produção da política – política como produção. Essa concepção vê a política como fundamentalmente contingente, fundamentalmente sem fim pré-decidido. Não há lei da história que prediga qual tem de ser, inevitavelmente, o resultado de uma luta política. A política depende das relações de forças num dado momento. A história não está à espera nas coxias, para apanhar nossos erros e convertê-los em inevitáveis sucessos. Você perde porque você perde porque você perde.

O 'bom senso' do povo existe, mas é apenas o começo, não o fim, da política. Ele não garante nada. Na verdade, ele disse, "novas concepções têm uma posição extremamente instável entre as massas populares". Não há sujeito unitário de história. O sujeito é necessariamente dividido, um conjunto: metade Idade da Pedra, outra metade contendo "princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia". Tudo isso luta dentro das cabeças e dos corações das pessoas, para chegar a um modo de se articularem, todas elas, politicamente. Claro, é possível recrutá-las para projetos políticos muito diferentes.

Especialmente hoje, vivemos numa era na qual as velhas identidades políticas estão colapsando. Não podemos imaginar que o socialismo apareça hoje como imagem daquele sujeito uno, indiviso, singular, que nos habituamos a chamar de O Homem Socialista. Esse Homem Socialista, uma só mentalidade, um só conjunto de interesses, um só projeto, morreu. E já foi tarde. Quem precisaria 'dele' hoje, ou daquele investimento num específico período histórico, com 'seu' específico senso de masculinidade, contendo 'sua' identidade num específico conjunto de relações familiares, uma só e específica identidade sexual? Quem precisa 'dele' como identidade singular, se se vê a grande diversidade de seres humanos e culturas étnicas que habitam nosso mundo que entra no século 21? Esse 'ele' está morto: acabou. Gramsci já tinha os olhos postos num mundo que se ia tornando mais e mais complexo ali, diante dele. Viu que as modernas identidades culturais se pluralizavam, que emergiam entre as linhas de desenvolvimento histórico desigual. E propôs a pergunta crucialmente decisiva: quais as formas políticas mediante as quais pode ser construída uma nova ordem cultural, feita dessa "multiplicidade de desejos dispersos, desses alvos heterogêneos"? Dado que as pessoas são realmente isso, dado que não há lei que faça surgir e dê vida e realidade a algum socialismo, poderemos nós encontrar formas de organização, formas de identidade, formas de arregimentação, concepções sociais, que se mantenham conectadas à vida dos mais pobres e, ao mesmo tempo, a transformem e a renovem? Em todos os casos, teremos o que conseguirmos construir: o socialismo não nos será entregue em algum tipo de porta-giratória da história, por algum deux ex machina.

Gramsci sempre insistiu que hegemonia não é exclusivamente fenômeno ideológico. Não pode haver hegemonia sem o núcleo decisivo da economia. Por outro lado, que ninguém caia na arapuca do velho economicismo mecanicista, de crer que, se você controlar a economia, trará à vida todo o resto do universo. A natureza do poder no mundo moderno é que ele também é construído em relação a questões políticas, morais, intelectuais, culturais, ideológicas, sexuais. A questão da hegemonia é sempre a questão de uma nova ordem cultural. A questão que desafiava Gramsci em relação à Itália, nos desafia hoje em relação à Grã-Bretanha: qual a natureza dessa nova civilização? Hegemonia não é um estado de graça aí instalado para todo o sempre. Não é uma formação que incorpora todos. A noção de "bloco histórico" é exatamente, precisamente diferente do que se entende como uma classe dominante estabilizada, pacificada, homogênea.

A noção de "bloco histórico" implica concepção diferente de como as forças e os movimentos sociais, na diversidade deles, podem ser articuladas num conjunto de alianças estratégicas. Para construir uma nova ordem cultural, não é preciso refletir um coletivo já formado, mas modelar um novo coletivo, inaugurar um novo projeto histórico.

Falei até aqui sobre Gramsci à luz do thatcherismo: usando Gramsci para compreender a natureza e a profundidade do desafio que o tatcherismo e a nova Direita impõem à esquerda, à vida e à política dos britânicos. Mas, ao mesmo tempo, inevitavelmente, falei também sobre a Esquerda. Ou talvez, dizendo melhor, não falei de Esquerda alguma, porque a Esquerda, na sua modalidade trabalhista organizada, não parece ter sequer alguma mínima ideia do muito que é indispensável reunir para ter um novo projeto histórico. Parece que a Esquerda absolutamente não compreende a natureza necessariamente contraditória de sujeitos humanos, de identidades sociais. Parece que não consegue compreender a política como uma produção. Não vê que é possível conectar-se com os sentimentos comuns e as experiências ordinárias que as pessoas conhecem na vida de todos os dias, e, ao mesmo tempo, articulá-las progressistamente, numa forma mais moderna e mais avançada de consciência social. A Esquerda não está ativamente buscando e trabalhando sobre a enorme diversidade das forças sociais ativas em nossa sociedade. Ela não vê que está inscrito na própria natureza da moderna civilização capitalista fazer proliferar os centros de poder e, assim, trazer mais e mais áreas da vida, para dentro do antagonismo social. Não reconhece que as identidades que as pessoas carregam dentro da cabeça – as subjetividades, a vida cultural, a vida sexual, a vida familiar, a identidade cultural, a saúde, o corpo – tudo se tornou massivamente politizado.

Absolutamente não acredito, por exemplo, que a atual liderança do Partido Trabalhista compreenda que o seu destino político depende de se conseguirá ou não construir uma política, nos próximos 20 anos, capaz de fazer frente não a um, mas a diversos e diferentes pontos de antagonismo dentro da sociedade; de unificar todos, preservadas as diferenças, num mesmo projeto comum. Não me parece que tenham percebido que a capacidade do Partido Trabalhista para crescer como força política depende absolutamente da capacidade que tenha para integrar as energias populares de movimentos muito diferentes; de movimentos fora do Partido que o Partido não soube – não pôde – integrar ao jogo e, portanto, o Partido não consegue administrar. O Trabalhismo inglês ainda vive concepção de política inteiramente burocrática. Se a palavra de ordem não brota da boca da liderança Trabalhista, com certeza haveria ali algo de subversivo. Se a política energiza as massas para que desenvolvam novas demandas, seria sinal 'certo' de que os nativos estão agitados. Então, é hora de demitir ou depor ou espancar uma meia dúzia. E os cidadãos são obrigados a voltar àquela ficção, ao 'eleitor tradicional dos Trabalhistas: àquela noção pacificada, Fabiana de política, segundo a qual as massas jogam os especialistas à força para dentro do poder, e então os especialistas fazem algo pelas massas... mas só depois, muito depois. A concepção hidráulica de política.

Essa concepção burocrática de política nada tem a ver com mobilizar uma variedade de forças populares. Não tem qualquer concepção de como as pessoas ganham poderes ao fazer alguma coisa: antes de tudo, em relação aos seus próprios problemas; além disso, o poder para expandir as próprias capacidades e ambições políticas, de tal modo que começam a pensar novamente sobre como seria mandar no mundo... As políticas desses burocratas da política deixaram de ter qualquer conexão com a mais moderna de todas as resoluções - a decisão de aprofundar a vida democrática.

Sem aprofundar a participação popular na vida nacional-cultural, as pessoas comuns não têm a experiência de realmente mandar em alguma coisa, dentro da própria vida. Temos de readquirir a noção de que a política é o meio para expandir as capacidades populares, as capacidades das pessoas comuns. Para fazer isso, o próprio socialismo tem de falar diretamente às pessoas as quais ele quer empoderar, em palavras que pertencem às próprias pessoas, como pessoas comuns do século 20.

Você vai ter notado que não falo sobre se o Partido Trabalhista fez bem, nessa ou naquela política, numa ou noutra questão. Estou falando sobre a concepção total de política: a capacidade para capturar em nossa imaginação política as vastas escolhas históricas que estão aí, hoje, diante do povo britânico. Estou falando de novas concepções da própria nação: ou será que você ainda crê que a Grã-Bretanha poderia avançar para o século 21, com aquela concepção de ser 'inglês' constituída integralmente da longa e desastrosa marcha imperialista da Grã-Bretanha pelo planeta? Se você ainda pensa assim, então você não entendeu a profunda transformação cultural indispensável para refazer "o inglês". E esse tipo de transformação cultural é, precisamente, do que o socialismo trata, hoje.

Em minha opinião, qualquer partido de Esquerda, por mais que seja centrado no governo, em vencer eleições, tem diante dele, precisamente, esse tipo de decisão. O motivo pelo qual não sou otimista quanto ao "partido de massas da classe trabalhadora", mesmo que entenda a natureza da escolha histórica que tem diante dele, é, precisamente, porque suspeito que o Partido Trabalhista britânico ainda acredite que haveria algum espaço para insistir no velho jogo keynesiano, velho, econômico-corporativo, desenvolvimentista. Ele ainda supõe que poderia que poderia voltar para uma migalha de keynesianismo aqui, um pouco mais de Estado do bem-estar ali, uma pitada daquela velha ideia fabiana... Verdade é que, embora não seja dado a visões cataclísmicas do futuro, honestamente acredito que aquela alternativa já não exista, que está fechada, exauriu-se. Ninguém mais acredita naquilo. As condições materiais que levaram àquilo tudo sumiram. O povo britânico comum não elegerá quem lhe fale desse passadismo, porque já aprendeu, na própria carne, que a vida já não é daquele jeito. O que o thatcherismo propõe à sua maneira radical não é para onde podemos voltar, mas por qual rota temos de seguir avante. À nossa frente há uma escolha histórica: capitular ao futuro neoliberal conservador regressista, ou inventar outro modo de imaginar.

Nem se preocupem com Mrs. Thatcher pessoalmente; ela se aposentará e se recolherá em Dulwich. Mas há muitos, toda uma terceira, uma quarta e uma quinta geração de thatcheristas, a postos, perfilados, secos, unidos ombro a ombro numa muralha, à espera de tomar o lugar dela. Estão convencidos de que o socialismo está a um pequeno passo de distância de ser extinto para sempre. Para eles, somos como dinossauros, pensam que pertencemos a uma era remota. Para eles, com o lento mas firme declínio do socialismo, nascerá uma nova era; e eles, esses 'novos' homens literalmente 'de posses', possessivos, nesse sentido, estarão no comando. Essa gente sonha com alcançar poder cultural real. E o Partido dos Trabalhadores, com sua conversinha mole, de não sacuda o bote, de não provoque, as pesquisas eleitorais hão de subir, o povo sabe que somos 'éticos'... ele, na verdade, só têm diante de si uma escolha: ou se torna historicamente irrelevante ou se põe a esboçar uma forma inteiramente nova de civilização.

Não digo "socialismo", como palavra sem sentido que anda hoje em tantas bocas, como se dissesse que teríamos de repor nos trilhos o mesmo velho programa de antes. Falo aqui sobre uma renovação de todo o projeto socialista, no contexto da moderna vida social e cultural. Falo de alterar as relações de forças – não para que a Utopia seja instalada e tome posse na manhã seguinte, depois das eleições gerais, mas para que as tendências comecem a mover-se na direção oposta. Quem precisa de um paraíso socialista onde todos concordem com todos, onde todos sejam exatamente o mesmo? Deus nos livre! Falo de um lugar onde possamos afinal começar a discussão histórica sobre que novo tipo de civilização teremos de criar. Será possível que as imensas novas capacidades materiais, culturais e tecnológicas, que ultrapassam em muito até os sonhos mais visionários de Marx, e que temos hoje realmente já nas mãos, serão todas elas politicamente hegemonizadas pela modernização reacionária do thatcherismo? Ou podemos tomar todos esses meios de produzir história, de produzir novos sujeitos humanos, e lançá-los na direção de uma nova cultura? Essa é a escolha diante da qual está a Esquerda.

"Temos de destacar" – Gramsci escreveu –, "a importância que os partidos políticos têm no mundo moderno, para elaborar e difundir concepções de mundo, porque essencialmente o que fazem é extrair a ética e a política correspondentes e atuar como se fossem um 'laboratório' histórico daquelas concepções."

19 de janeiro de 2016

O recuo dos intelectuais

Ellen Meiksins Wood via um grande perigo na relutância dos intelectuais de hoje em criticar o capitalismo.

Ellen Meiksins Wood



A morte de Ellen Wood em 14 de janeiro representa uma imensa perda para os socialistas em todos os cantos. Como contribuinte frequente do Socialist Register desde seu primeiro ensaio em 1980, coeditora especial do volume de 1995 Porquê Não Capitalismo, e membro do coletivo editorial do Register de 1996 a 2009, a profundidade de seu comprometimento com o socialismo, originalidade teórica e percepção acurada podem ser medidas desse excerto de seu ensaio sobre "Os usos e abusos da 'sociedade civil'".

- Leo Panitch

Tradução / Vivemos em tempos curiosos. Justamente quando intelectuais da esquerda no ocidente têm a rara oportunidade de fazer algo útil, se não realmente histórico, eles - ou grandes porções deles - estão em pleno recuo. Justamente quando reformadores na União Soviética e no Leste Europeu buscam no capitalismo ocidental paradigmas de sucessos econômicos e políticos, muitos de nós parecer abdicar do papel tradicional da esquerda ocidental como crítica do capitalismo. Justamente quando mais do que nunca precisamos de um Karl Marx que revele o funcionamento interno do sistema capitalista, ou de um Friedrich Engels que exponha a feia realidade "no chão", o que temos é um exército de "pós-marxistas" cuja principal função é, aparentemente, afastar conceitualmente o problema do capitalismo.

A despeito da diversidade corrente de tendências teóricas na esquerda e seus variados meios de dissolver conceitualmente o capitalismo, elas frequentemente compartilham um conceito especialmente útil: "sociedade civil". Embora sejam construtivos seus usos em defesa das liberdades humanas contra a opressão estatal, ou em decifrar um terreno de práticas sociais, instituições e relações negligenciado pela "velha" esquerda marxista, "sociedade civil" está agora perigando se tornar um álibi para o capitalismo.

A concepção de Gramsci de "sociedade civil" pretendia ser, sem ambiguidade, uma arma contra o capitalismo, não uma acomodação a ele. A despeito do apelo à sua autoridade, que se tornou uma necessidade básica para o "novo revisionismo", o conceito em sua utilização corrente não mais tem esse inequívoco intento anticapitalista. Ele adquiriu agora todo um novo rol de significados e consequências, algumas muito positivas para os projetos emancipatórios da esquerda, outras bastante distante disso.

Os dois impulsos contrários podem ser resumidos deste modo: o novo conceito de sociedade civil sinaliza que a esquerda aprendeu as lições do liberalismo sobre o perigo da opressão estatal, mas nós parecemos estar esquecendo as lições que outrora aprendemos da tradição socialista acerca da opressão da sociedade civil. Por um lado, os defensores da sociedade civil estão fortalecendo nossa defesa de instituições não-estatais e relações contrárias ao poder do estado; por outro lado, eles tendem a enfraquecer nossa resistência às coerções do capitalismo.

A "sociedade civil" deu à propriedade privada e seus possuidores um comando sobre as pessoas e suas vidas cotidianas, um poder sem a quem responsabilizar, que muitos dos velhos estados tirânicos teriam invejado. Aquelas atividades e experiências que não são abrangidas pela estrutura de comando imediato da iniciativa capitalista, ou pelo poder político do capital, são reguladas pelos ditames do mercado, a necessidade de competição e lucratividade.

Mesmo quando o mercado não é, como comumente ocorre nas sociedades capitalistas avançadas, meramente um instrumento de poder para conglomerados gigantes e corporações multinacionais, ele ainda é uma força coercitiva, capaz de sujeitar todos os valores, atividades e relações humanas a seus imperativos. Nenhum déspota antigo poderia ter esperado penetrar as vidas pessoais de seus súditos – suas escolhas, preferências e relacionamentos - nos mais abrangentes e menores detalhes, não apenas no local de trabalho mas em cada canto de suas vidas.

Coerção, em outras palavras, tem sido não apenas uma desordem da "sociedade civi", mas um de seus princípios constitutivos. A realidade histórica tende a minar as distinções simples requeridas pelas teorias correntes que nos pedem para tratar a sociedade civil como, ao menos em princípio, a esfera da liberdade e da ação voluntária, a antítese do princípio coercitivo irredutível que pertence intrinsecamente ao estado.

Essas teorias, é claro, reconhecem que a sociedade civil não é um reino da perfeita liberdade e democracia. Ela é, por exemplo, marcada pela opressão na família, nas relações de gênero, no local de trabalho, por atitudes racistas, homofobia, e assim por diante. Mas essas opressões são tratadas como disfunções na sociedade civil. Em princípio, a coerção pertence ao estado enquanto a sociedade civil é onde a liberdade está enraizada, e a emancipação humana, de acordo com esses argumentos, consiste na autonomia da sociedade civil, sua expansão e enriquecimento, sua liberação do estado e sua proteção pela democracia formal.

O que tende a desaparecer de vista, novamente, são as relações de exploração e dominação que irredutivelmente constituem a sociedade civil, não apenas como alguma desordem estranha e corrigível, mas como a própria essência, a estrutura particular de dominação e coerção que é específica ao capitalismo como uma totalidade sistemática.

O que é alarmante nesses desenvolvimentos teóricos não é que eles violam algum preconceito doutrinário marxista no que diz respeito ao status privilegiado da classe. É óbvio, todo o objeto de tal exercício é pôr de escanteio a classe, dissolvê-la em categorias genéricas que lhe neguem qualquer status privilegiado, ou mesmo qualquer relevância política em absoluto. Mas esse não é o problema real.

O problema é que teorias que não diferenciam - e, sim, "privilegiam", se isso significa atribuir prioridades causais ou explicativas - entre variadas instituições sociais e "identidades" não podem lidar criticamente com o capitalismo em absoluto. A consequência de tais procedimentos é varrer a questão como um todo para baixo do tapete.

E para onde quer que vá o capitalismo, para lá vai a ideia socialista. O socialista é a alternativa específica ao capitalismo. Sem capitalismo, não temos qualquer necessidade do socialismo; podemos nos contentar com conceitos bem difusos e indeterminados de democracia que não se oponham especificamente a qualquer sistema identificável de relações sociais, em verdade, nós nem reconhecemos qualquer sistema assim. O que nos resta então é uma pluralidade fragmentada de opressões e uma pluralidade fragmentada de lutas emancipatórias.

Aqui está outra ironia: o que clama ser um projeto mais universalista do que o socialismo tradicional é na verdade muito menos. Ao invés do projeto universalista do socialista e a política integrativa da luta contra a exploração de classe, nós temos uma pluralidade de lutas particulares essencialmente desconectadas.

Isso é coisa séria. O capitalismo é constituído pela exploração de classe, mas o capitalismo é mais do que apenas um sistema de opressão de classe. É um implacável processo totalizante que molda nossas vidas em cada aspecto concebível, e todos lugares, não apenas na relativa opulência do norte capitalista.

Entre outras coisas, e mesmo pondo de lado o puro poder do capital, ele sujeita toda a vida social aos requisitos abstratos do mercado, através da mercantilização da vida em todos seus aspectos. Isso ridiculariza nossas aspirações a autonomia, liberdade de escolha e autogoverno democrático. Para socialistas, é moral e politicamente inaceitável seguir uma linha de raciocínio que torna invisível tal sistema, ou o reduz a uma de muitas realidades fragmentadas, justamente em um momento em que o sistema é mais difundido, mais global do que nunca.

Essa substituição do socialismo por um conceito indeterminado de democracia, ou a dissolução de relações sociais diversas e diferentes no interior de categorias genéricas como "identidade" ou "diferença", ou concepções frouxas da "sociedade civil", representa uma rendição ao capitalismo e suas mistificações ideológicas.

Certamente tenhamos diversidade, diferença e pluralismo; mas não esse tipo de pluralismo indiferenciado e desestruturado. O que precisamos é de um pluralismo que de fato reconheça diversidade e diferença - e isso significa não apenas pluralidade ou multiplicidade.

Isso significa um pluralismo que também reconheça realidades históricas, que não negue a unidade sistêmica do capitalismo, que possa nos dizer a diferença entre relações constitutivas do capitalismo e outras desigualdades e opressões com diferentes relações com o capitalismo, um diferente lugar na lógica sistêmica do capitalismo e, por conseguinte, um diferente papel nas lutas contra ele.

O projeto socialista deveria ser enriquecido pelos recursos e visões dos novos movimentos sociais, não empobrecido recorrendo-se a eles como uma desculpa para desintegrar as lutas contra o capitalismo. Nós não devemos confundir o respeito pela pluralidade das experiências humanas e lutas sociais com uma completa dissolução da causalidade histórica, onde não há nada senão diversidade, diferença e contingência, sem estruturas unificadoras, sem processo lógico, sem capitalismo e, portanto, nenhuma negação a ele, nenhum projeto universal de emancipação humana.

Colaborador

Ellen Meiksins Wood é autora de A Origem do Capitalismo, entre muitos outros títulos.

In Memoriam: Ellen Meiksins Wood (1942-2016)

Leo Panitch

Socialist Register

A morte de Ellen Wood em 14 de janeiro representa uma imensa perda para os socialistas em todos os cantos. Como contribuinte frequente do Socialist Register desde seu primeiro ensaio em 1980, coeditora especial do volume de 1995 Porquê Não Capitalismo, e membro do coletivo editorial do Socialist Register de 1996 a 2009, a profundidade de seu comprometimento com o socialismo, originalidade teórica e percepção acurada podem ser medidas por esse excerto de seu ensaio sobre “Os usos e abusos da ‘sociedade civil’” do Socialist Register de 1990: O Recuo dos Intelectuais.

Vivemos em tempos curiosos. Justamente quando intelectuais da esquerda no ocidente têm a rara oportunidade de fazer algo útil, se não realmente histórico, eles – ou grandes porções deles – estão em pleno recuo. Justamente quando reformadores na União Soviética e no Leste Europeu buscam no capitalismo ocidental paradigmas de sucessos econômicos e políticos, muitos de nós parecem abdicar do papel tradicional da esquerda ocidental como crítica do capitalismo. Justamente quando mais do que nunca precisamos de um Karl Marx que revele o funcionamento interno do sistema capitalista, ou de um Friedrich Engels que exponha a feia realidade “no chão”, o que temos é um exército de “pós-marxistas” cuja principal função é, aparentemente, afastar conceitualmente o problema do capitalismo. A despeito da diversidade corrente de tendências teóricas na esquerda e seus variados meios de dissolver conceitualmente o capitalismo, elas frequentemente compartilham um conceito especialmente útil: “sociedade civil”... Embora sejam construtivos seus usos em defesa das liberdades humanas contra a opressão estatal, ou em decifrar um terreno de práticas sociais, instituições e relações negligenciado pela “velha” esquerda marxista, “sociedade civil” está agora perigando se tornar um álibi para o capitalismo... 
A concepção de Gramsci de “sociedade civil” pretendia ser, sem ambiguidade, uma arma contra o capitalismo, não uma acomodação a ele. A despeito do apelo à sua autoridade, que se tornou uma necessidade básica para o “novo revisionismo”, o conceito em sua utilização corrente não mais tem esse inequívoco intento anticapitalista. Ele adquiriu agora todo um novo rol de significados e consequências, algumas muito positivas para os projetos emancipatórios da esquerda, outras bastante distante disso. Os dois impulsos contrários podem ser resumidos deste modo: o novo conceito de sociedade civil sinaliza que a esquerda aprendeu as lições do liberalismo sobre o perigo da opressão estatal, mas nós parecemos estar esquecendo as lições que outrora aprendemos da tradição socialista acerca da opressão da sociedade civil. Por um lado, os defensores da sociedade civil estão fortalecendo nossa defesa de instituições não-estatais e relações contrárias ao poder do estado; por outro lado, eles tendem a enfraquecer nossa resistência às coerções do capitalismo. 
A “sociedade civil” deu à propriedade privada e seus possuidores um comando sobre as pessoas e suas vidas cotidianas, um poder sem a quem responsabilizar, que muitos dos velhos estados tirânicos teriam invejado. Aquelas atividades e experiências que não são abrangidas pela estrutura de comando imediato da iniciativa capitalista, ou pelo poder político do capital, são reguladas pelos ditames do mercado, a necessidade de competição e lucratividade. Mesmo quando o mercado não é, como comumente ocorre nas sociedades capitalistas avançadas, meramente um instrumento de poder para conglomerados gigantes e corporações multinacionais, ele ainda é uma força coercitiva, capaz de sujeitar todos os valores, atividades e relações humanas a seus imperativos. Nenhum déspota antigo poderia ter esperado penetrar as vidas pessoais de seus súditos – suas escolhas, preferências e relacionamentos – nos mais abrangentes e menores detalhes, não apenas no local de trabalho mas em cada canto de suas vidas. Coerção, em outras palavras, tem sido não apenas uma desordem da “sociedade civil”, mas um de seus princípios constitutivos. 
A realidade histórica tende a minar as distinções simples requeridas pelas teorias correntes que nos pedem para tratar a sociedade civil como, ao menos em princípio, a esfera da liberdade e da ação voluntária, a antítese do princípio coercitivo irredutível que pertence intrinsecamente ao estado. Essas teorias, é claro, reconhecem que a sociedade civil não é um reino da perfeita liberdade e democracia. Ela é, por exemplo, marcada pela opressão na família, nas relações de gênero, no local de trabalho, por atitudes racistas, homofobia, e assim por diante. Mas essas opressões são tratadas como disfunções na sociedade civil. Em princípio, a coerção pertence ao estado enquanto a sociedade civil é onde a liberdade está enraizada, e a emancipação humana, de acordo com esses argumentos, consiste na autonomia da sociedade civil, sua expansão e enriquecimento, sua liberação do estado e sua proteção pela democracia formal. O que tende a desaparecer de vista, novamente, são as relações de exploração e dominação que irredutivelmente constituem a sociedade civil, não apenas como alguma desordem estranha e corrigível, mas como a própria essência, a estrutura particular de dominação e coerção que é específica ao capitalismo como uma totalidade sistemática... 
O que é alarmante nesses desenvolvimentos teóricos não é que eles violam algum preconceito doutrinário marxista no que diz respeito ao status privilegiado da classe. É óbvio, todo o objeto de tal exercício é pôr de escanteio a classe, dissolvê-la em categorias genéricas que lhe neguem qualquer status privilegiado, ou mesmo qualquer relevância política em absoluto. Mas esse não é o problema real. O problema é que teorias que não diferenciam – e, sim, “privilegiam”, se isso significa atribuir prioridades causais ou explicativas – entre variadas instituições sociais e “identidades” não podem lidar criticamente com o capitalismo em absoluto. A consequência de tais procedimentos é varrer a questão como um todo para baixo do tapete. E para onde quer que vá o capitalismo, para lá vai a ideia socialista. O socialista é a alternativa específica ao capitalismo. Sem capitalismo, não temos qualquer necessidade do socialismo; podemos nos contentar com conceitos bem difusos e indeterminados de democracia que não se oponham especificamente a qualquer sistema identificável de relações sociais, em verdade, nós nem reconhecemos qualquer sistema assim. O que nos resta então é uma pluralidade fragmentada de opressões e uma pluralidade fragmentada de lutas emancipatórias. Aqui está outra ironia: o que clama ser um projeto mais universalista do que o socialismo tradicional é na verdade muito menos. Ao invés do projeto universalista do socialista e a política integrativa da luta contra a exploração de classe, nós temos uma pluralidade de lutas particulares essencialmente desconectadas. 
Isso é coisa séria. O capitalismo é constituído pela exploração de classe, mas o capitalismo é mais do que apenas um sistema de opressão de classe. É um implacável processo totalizante que molda nossas vidas em cada aspecto concebível, e todos lugares, não apenas na relativa opulência do norte capitalista. Entre outras coisas, e mesmo pondo de lado o puro poder do capital, ele sujeita toda a vida social aos requisitos abstratos do mercado, através da mercantilização da vida em todos seus aspectos. Isso ridiculariza nossas aspirações a autonomia, liberdade de escolha e autogoverno democrático. Para socialistas, é moral e politicamente inaceitável seguir uma linha de raciocínio que torna invisível tal sistema, ou o reduz a uma de muitas realidades fragmentadas, justamente em um momento em que o sistema é mais difundido, mais global do que nunca. 
Essa substituição do socialismo por um conceito indeterminado de democracia, ou a dissolução de relações sociais diversas e diferentes no interior de categorias genéricas como “identidade” ou “diferença”, ou concepções frouxas da “sociedade civil”, representa uma rendição ao capitalismo e suas mistificações ideológicas. Certamente tenhamos diversidade, diferença e pluralismo; mas não esse tipo de pluralismo indiferenciado e desestruturado. O que precisamos é de um pluralismo que de fato reconheça diversidade e diferença – e isso significa não apenas pluralidade ou multiplicidade. Isso significa um pluralismo que também reconheça realidades históricas, que não negue a unidade sistêmica do capitalismo, que possa nos dizer a diferença entre relações constitutivas do capitalismo e outras desigualdades e opressões com diferentes relações com o capitalismo, um diferente lugar na lógica sistêmica do capitalismo e, por conseguinte, um diferente papel nas lutas contra ele. O projeto socialista deveria ser enriquecido pelos recursos e visões dos novos movimentos sociais, não empobrecido recorrendo-se a eles como uma desculpa para desintegrar as lutas contra o capitalismo. Nós não devemos confundir o respeito pela pluralidade das experiências humanas e lutas sociais com uma completa dissolução da causalidade histórica, onde não há nada senão diversidade, diferença e contingência, sem estruturas unificadoras, sem processo lógico, sem capitalismo e, portanto, nenhuma negação a ele, nenhum projeto universal de emancipação humana.

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