2 de janeiro de 2016

Bernie e seus críticos

Independentemente de ele vencer as prévias desta noite em Iowa, Bernie Sanders proporcionou uma abertura que não podemos desperdiçar.

Nivedita Majumdar


Sam Bartlett / Flickr

Tradução / O impensável está acontecendo. Um autodeclarado socialista não apenas está avançando nas preliminares do Partido Democrata, mas pode até mesmo ganhar.

No entanto, ainda que sua popularidade cresça, ainda que ele traga pautas que nenhum candidato colocou na arena pública em décadas, Bernie Sanders sofre ataques de todos os setores da esquerda. Ele é acusado de não ter propostas econômicas radicais o suficiente, de não dar atenção o suficiente à questão racial, de diminuir as chances de uma mulher ser eleita presidente, de não ser elegível e de potencialmente abrir caminho para a vitória republicana, além de ameaçar os movimentos sociais, atraindo os progressistas para o Partido Democrata.

Não há dúvidas de que alguns aspectos destas críticas são merecidos. Sanders não oferece nada que se aproxime de uma solução abrangente para a miríade de problemas enfrentados pelos pobres e oprimidos, e parte de sua agenda política é efetivamente retrógrada. Contudo, quando colocamos sua candidatura no contexto dos desafios enfrentados pela esquerda, a orientação de seus rivais políticos e o incrível entusiasmo gerado por ele em um clima generalizado de derrota, os ataques da esquerda se tornam mais difíceis de serem justificados.

Algumas são críticas prosaicas. Bernie é apenas um social-democrata. Ele não defende a socialização dos meios de produção e nem busca desconstruir o império norte-americano; em alguns momentos ele não conseguiu demonstrar experiência e empatia com as minorias raciais; e, é claro, seria ótimo se ele fosse uma mulher.

Mas a política é sempre contextual, e nós estamos falando dos Estados Unidos, não da Europa ou da América Latina. Trata-se de um país com uma longa história de anticomunismo, pouca memória sobre o que é política de esquerda organizada e de um ataque contínuo e incessante de três décadas contra a classe trabalhadora. O fato é que hoje, depois de décadas de perda da influência política por parte da esquerda, a campanha de Sanders ressoou entre os trabalhadores de todo o país, não a despeito da palavra "socialismo", mas especificamente por causa dela. Pense um pouco nisso.

É claro que ele não está falando de grandes expropriações. Mas quando foi a última vez que um candidato teve chances de ganhar com base em uma plataforma que defendia o fim dos grandes bancos, o aumento dos impostos sobre os mais ricos e as grandes empresas, a realocação de recursos para o aumento da seguridade social, a criação de um sistema de saúde público universal e de creches púbicas, a oferta de ensino superior gratuito, o gasto de trilhões de dólares em obras públicas, o aumento do salário mínimo para US$15 por hora?

Não é preciso muito para reconhecer que estas ainda estão longe de ser a transformação revolucionária que desejamos ver. Mas o que queremos não está em jogo. O que é notável, contudo, é que até recentemente a visão e as propostas de Sanders também não estavam, e agora ele tem um vasto setor do país agrupado em torno delas.

Bernie, o homem

Feministas liberais como Katha Pollitt e Gloria Steinem argumentaram que Clinton deve ser apoiada, já que sua vitória seria também uma vitória para o movimento feminista. Nenhuma das duas parece ter uma objeção substancial às posições políticas de Bernie.

Em seu artigo na The Nation, "Por que estou preparada e entusiasmada com Hillary", Pollitt cita três motivos para apoiar Hillary Clinton: em primeiro lugar, sua capacidade de ser eleita; em segundo, seria a primeira vez que uma mulher seria presidente dos Estados Unidos; em terceiro, Clinton, diferentemente do "republicano que derrotaria Bernie Sanders", trabalhará no sentido de aumentar a justiça de gênero, particularmente por meio de indicações à Suprema Corte.

O primeiro motivo e o último não são tão diferentes entre si. Ambos provêm da presunção de que Sanders não conseguiria vencer. Se conseguisse, o suposto papel de Hillary indicando juízes progressistas e usando seu poder executivo com finalidades liberais não importaria, já que Sanders faria a mesma coisa, ou algo ainda melhor. Além disso, desde que Pollitt escreveu o artigo, em junho do ano passado, o argumento da elegibilidade entrou em cheque. Muitas pesquisas indicam Bernie vinte pontos à frente dos principais possíveis candidatos republicanos.

Assim, só resta o argumento em prol de uma presidente mulher, compartilhado por Steinem, que propôs a bizarra teoria de que a razão pela qual mulheres liberais se opõem a Clinton é a inveja. Enquanto fazia campanha para Hillary Clinton em 2008, Steinem chegou à conclusão de que mulheres brancas de alto nível educacional frequentemente viviam em "casamentos precários e desiguais", de modo que sentiam inveja de Clinton porque "seus maridos não compartilham o poder com elas".

Steinem sequer considera a hipótese de que estas mulheres podem estar se opondo a Hillary por seu militarismo, suas políticas para a imigração ou porque ela hesita quanto à questão do aborto, ou em razão do desastroso impacto de sua "reforma" na assistência social sobre mulheres da classe trabalhadora.

Pollitt e Steinem são progressistas de longa data, e estão conscientes do contraste político entre Clinton e Sanders. Para elas, este contraste é menos importante do que a missão de tornar uma mulher presidente. O que elas nos pedem é que nos empolguemos com a ideia de eleger uma candidata com uma agenda corporativa.

Sim, "símbolos importam", como nos lembra Pollitt, mas neste caso eles assumem prioridade sobre questões substanciais, com consequências diretas para as vidas de mulheres da classe trabalhadora. Estas posições evidenciam uma cegueira voluntária quanto aos efeitos da política de Clinton sobre questões de classe, tudo em nome do feminismo.

Bernie, o reducionista-classista

As críticas a Sanders por sua suposta desatenção às questões raciais foram muitas, mas ele respondeu a elas mais cuidadosa e extensamente do que qualquer outro candidato. O mais recente ataque veio de Ta-Nehisi Coates, que critica Sanders por sua recusa em apoiar as reparações raciais, defendendo, em vez disso, transformações estruturais sem caráter racial.

Coates baseia seu argumento em um apelo moral pela reparação, sem sequer se dar ao trabalho de explicar o motivo pelo qual algo como o pagamento de indenizações únicas resolveria os problemas do racismo institucionalizado ou como isso seria mais eficaz em melhorar a condição dos americanos negros do que as reformas defendidas por Sanders.

Coates desqualifica as iniciativas de Sanders, como o aumento do salário mínimo e a oferta de ensino superior gratuito, afirmando acreditar que o racismo institucionalizado garantirá que pessoas brancas serão sempre os beneficiários primários de qualquer iniciativa de caráter universal.

Este é um argumento terrivelmente enviesado. Ele ignora o fato de que a grande maioria dos trabalhadores que deixariam a pobreza por meio do aumento do salário mínimo seriam negros e latinos. Coates também não dá atenção aos estudos que mostram que a diferença de salários entre negros e brancos diminui à medida que o nível educacional aumenta, o que diminui os privilégios da população branca, mas que a diferença de salários entre pessoas com ensino superior incompleto e completo, entre a população negra, cresce muito mais do que entre a população branca. Isso significa que os benefícios do ensino superior gratuito seriam enormes e particularmente significativos para negros de classe baixa.

A popularidade, contudo, da crítica de Coates a Sanders é inacreditável. Coates fala em nome de uma ideologia política para a qual as questões de classe são apenas um desvio do foco principal, as questões de raça, para a qual a política racial não se mistura com a política de classe, não são vistas como elementos complementares na luta por justiça social. Mas não se engane, o que Coates defende não é uma visão específica da política racial, mas também uma visão bastante específica da política de classe.

Bernie, o moderado

Não é tão surpreendente que Sanders esteja sendo atacado por pessoas próximas ao Partido Democrata tradicional, liberais que acreditam que ele está excessivamente preocupado com as dinâmicas de classe. O que é genuinamente intrigante é a resposta de alguns radicais. Eles rejeitam Bernie não porque ele não seja diferente de Hillary Clinton, mas sim porque ele não é diferente o suficiente, não é de esquerda o suficiente. Querem que ele seja mais radical em sua restruturação da economia, e questionam, com razão, suas declarações sobre política externa.

Perguntam-se, antes de tudo, por que um socialista verdadeiro concorreria pelo Partido Democrata. Não é esse o partido no qual os movimentos sociais ingressam para morrer? Eles temem que ativistas comprometidos sejam levados a se filiar ao Partido Democrata. Preocupam-se com a possibilidade de que, se Sanders ganhar, não será ou não conseguirá ser tão diferente dos outros democratas, causando o dano adicional de desmobilizar toda uma geração de jovens com tendências esquerdistas.

O problema com tal análise não é que ela esteja errada, mas que vários aspectos dela são, na verdade, apolíticos. O ponto não é se Bernie pode ou não ser criticado por suas posições quanto à economia e a política externa. É claro que ele pode. A questão é, em vez disso, se sua campanha oferece à esquerda a abertura necessária para colocar suas pautas políticas pelas margens. Deveríamos estar empolgados com as possibilidades levantadas por um candidato presidencial que captura a imaginação de dezenas de milhares de norte-americanos atacando as elites e seu sistema político.

Minha própria resposta a Sanders é, em parte, advinda de minha formação política, que se deu em um contexto muito diferente. Como estudante e ativista na Índia, eu fazia parte de uma organização de esquerda eleita para liderar a agremiação estudantil de minha universidade. Nossa organização começou como um corpo insurgente dentro de um campus tradicionalmente direitista. Nossos números eram pequenos, e nossa política definitivamente nos tornava extremistas. Mas estávamos comprometidos com a organização e o crescimento.

Olhando para o passado, especialmente em contraste com a esquerda radical dos Estados Unidos, eu agora vejo que a mentalidade política que tomamos como algo dado surgiu em um contexto mais amplo, no qual a esquerda era ainda um ator significativo. Nós entendíamos, é claro, que fazer parte da esquerda exigia que fizéssemos um sacrifício adicional, que estivéssemos sempre aperfeiçoando nossas análises políticas a fim de podermos enfrentar nossos adversários mais poderosos. Mas também sabíamos que ser político significava envolver números grandes, e que era necessário que continuássemos sendo relevantes e eficazes. Sabíamos que, precisamente por sermos a esquerda, precisávamos ser relevantes.

Aparentemente, décadas de isolamento fizeram com que a extrema esquerda nos EUA se esquecesse de um dos princípios cardinais da política: que ela exige, fundamentalmente, que você se envolva em um trabalho com as massas, e não que lide apenas com pequenos grupos de ativistas de opinião semelhante à sua.

A campanha de Sanders deveria ser bem-vinda pela esquerda radical porque ela nos fornece uma oportunidade espetacular para a organização. Centenas de milhares de pessoas estão participando de encontros e comícios porque ele despertou uma grande revolta contra a classe dominante. Essas pessoas só estão comparecendo porque estão inspiradas por seu discurso contra a captura corporativa dos poderes políticos, sua crítica cada vez mais profunda contra o sistema carcerário, e sua convocação de uma mobilização da classe trabalhadora. Ele tornou a palavra "socialismo" parte do léxico político pela primeira vez em décadas.

Se você é um organizador, você sabe que as palavras importam, as ideias importam, a transformação do senso comum importa. Eu ouvi críticas que sugeriam que sua campanha não levaria a muita coisa, já que não está baseada em uma organização política profunda. Mas ainda assim, não é melhor isso do que nada? E a organização política mais profunda, uma tarefa que a esquerda terá de assumir, já não começa melhor quando tem como base uma campanha anticorporativa?

Partes da esquerda radical rejeita Sanders tanto porque ele pode perder, quanto porque ele pode ganhar. Se ele perder e apoiar Hillary, terá levado centenas de milhares a apoiar o Partido Democrata, acreditam eles. Se ganhar, estará amordaçado pela política do establishment e, portanto, não será diferente dos demais democratas.

Se Sanders ganhar, será essencial para a esquerda fazer com que ele cumpra suas promessas e tentar levá-lo ainda mais a esquerda. E se ele perder nas primárias, não duvido que vá tentar conduzir seus apoiadores a passar a apoiar Hillary. Mas será que isso realmente levará tantos socialistas ao Partido Democrata? Quem são estes ativistas tão facilmente enganados?

É claro, alguns acompanharão Sanders. Mas temos de ser realistas aqui. A esquerda, da forma como é hoje, é tão pequena, tão marginal, que o maior desafio que ela enfrenta não é a possibilidade de perder alguns membros para os Democratas, mas sim o de crescer até um ponto em que, de fato, passe a fazer alguma diferença, tendo algum peso para além dos campi universitários e de pequenos sindicatos.

Ao se envolver com a campanha, ativistas de esquerda poderão se ligar a centenas de americanos da classe trabalhadora que sentem repulsa pela forma como o mundo corporativo se apossou dos Estados Unidos, e que não abominam a ideia do socialismo. Esta é uma oportunidade inestimável para crescer e até mesmo aprender. Mas só é possível por meio do envolvimento.

Precisamos entender que, em última instância, isto não é tanto sobre Sanders. É sobre o impulso político criado por sua campanha, e as possibilidades que vêm com ele. A campanha eleitoral anticorporativa e pró-trabalhadores de Sanders atraiu milhões, contra todos os revéses. A esquerda pode rejeitar ou escolher se aproveitar desta abertura, isto é o que definirá sua trajetória ao longo dos próximos anos.

Colaboador

Nivedita Majumdar é professora associada de inglês no John Jay College. Ela é secretária do Professional Staff Congress, do corpo docente e do sindicato de funcionários da CUNY.

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