27 de agosto de 2014

Nova rebelião laboral na China

A militância dos trabalhadores mostrou falhas quer no plano econômico da China quer nos sindicatos oficiais do Partido Comunista.

Eli Friedman

Jacobin

Tradução / Durante anos, uma forte aliança entre o capital e os mais baixos níveis do estado chinês significou que as greves eram tratadas ou com repressão policial ou com um sistema de mediação ad hoc entre o sindicato e os funcionários governamentais que se concentrava quase exclusivamente em retomar a produção sem ter em conta os resultados para os trabalhadores.

Mas por volta de 2010, o governo central chinês e as autoridades provinciais de Guangdong não só estavam prontos para procurar um novo modelo de acumulação no delta do Rio das Pérolas como estavam dispostos a (indiretamente) aliar-se aos trabalhadores revoltosos para realizar este objectivo.

Tal aliança, conquanto tenha sido condicional e efémera, surgiu no decurso da greve da Nanhai Honda que, por sua vez, permitiu aos grevistas alcançar ganhos econômicos e começar a desenvolver objetivos políticos. Em grande parte por causa desta pequena abertura política, o carácter do protesto na onda grevista de 2010 mostrou algumas tendências não habituais ( senão mesmo sem precedentes), com significado para o facto de que as exigências tinham uma natureza mais ofensiva do que defensiva.

No entanto, mesmo embora os trabalhadores da Honda tenham tido importantes ganhos econômicos, todos os níveis do estado e dos sindicatos permanecem vigilantes quanto ao desenvolvimento das bases autônomas do poder operário. Embora tenham ocorrido ganhos econômicos na onda grevista de 2010, persiste o desapontamento dos trabalhadores com os sindicatos de empresas ligadas ao estado.

A Explosão na Honda

A cadeia de produção da Honda na China consiste num complicado sistema de propriedade. A empresa mais importante é a Guangzhou Honda, uma aliança (joint venture) a 50% com a Guangzhou Automobile Group Corporation detida pelo estado, onde a maioria das unidades é produzida. Outras fábricas de montagem incluem a Honda Automobile (China) que produz para os mercados estrangeiros e a joint venture Dongfeng Honda localizada em Wuhan.

Estas fábricas são servidas por uma variedade de fabricantes de peças incluindo a Nanhai Honda, totalmente detida por japoneses. Arrancando com a produção em Março de 2007 com um investimento inicial de $98 milhões de dólares americanos, a companhia foi a quarta fábrica de produção de transmissões automáticas integradas da Honda, no mundo. Para além de produzir transmissões, a fábrica também faz eixos de transmissão e barras de ligação para os motores.

Em parte porque a Honda acreditava que era altamente improvável paragens no trabalho na autoritária China, a fábrica Nanhai foi estabelecida como o único fornecedor de diversas peças chave para o funcionamento de toda a China. Produzindo a partir da China em vez de do Japão ou do sudeste asiático, a Honda podia reduzir custos, poupando no transporte e na mão-de-obra.

Em parte por causa da posição chave que a produção automóvel detém na economia, o governo deu primazia a manter boas relações laborais neste sector. Em resultado disso, todas as fábricas de montagem e de produção de peças da Honda em Guangdong, estabeleceram sindicatos. O sindicato na Guangzhou Honda tinha recebido vários prémios oficiais pelo seu bom trabalho e frequentemente recebia a visita de delegações de sindicalistas estrangeiros.

Mas havia limites rígidos até onde mesmo este sindicato modelo podia apoiar os seus trabalhadores. Durante um almoço em Dezembro de 2008 entre o presidente da Guangzhou Honda e dirigentes sindicais dos EUA, a conversa virou-se para a cooperação internacional entre sindicatos do sector automóvel. O presidente do sindicato disse que tinha visitado o Japão antes para trocar opiniões com outros representantes dos sindicatos automóveis e que sentia que tinham muito em comum.

Aludindo às dificuldades que as fábricas automóveis americanas enfrentavam na altura, gracejava que tinha dito ao seu homólogo japonês, “Temos um sindicato forte, como vocês. Mas não queremos ser demasiado fortes; veja só todos os problemas que eles têm nos Estados Unidos!”

De facto, sucedeu que a verdadeira fraqueza do sindicato da fábrica fornecedora de Nanhai tornou impossível que as reivindicações dos trabalhadores fossem ouvidas sem o recurso à greve; não apenas a fábrica de Nanhai, mas, em consequênca, o funcionamento da Honda em toda a China.

Embora os trabalhadores em Nanhai há muito estivessem descontentes com os salários e tivessem discutido entrarem em greve, nenhum dos trabalhadores sabia que Tan Guocheng ia iniciar a greve. Uma semana antes da greve, Tan encontrou-se com quinze trabalhadores do departamento de montagem onde trabalhava; antes, “só tinham tido conversas ocasionais sobre o autocarro (shuttle bus) que estavam a produzir.”

Um trabalhador deste departamento disse que a ideia tinha sido discutida, mas que ninguém a queria liderar. Em entrevistas separadas, trabalhadores de outros departamentos confirmaram que não tinham ouvido nada sobre a greve até ela ter começado. Mas de acordo com Tan, mais de vinte pessoas, a maioria de Hunan, estavam dentro do plano na altura em que ele foi posto a andar.

Na manhã de 17 de Maio, logo que a produção começou à hora habitual, às 7:50, Tan acionou o botão de paragem de emergência e as duas linhas de produção no departamento de montagem foram paradas. Tan e o co-organizador Xiao gritaram para cada linha de montagem: “Os nossos salários são tão baixos, vamos parar o trabalho!”

Para a maioria dos cerca de dois mil trabalhadores da fábrica, esta foi a primeira vez que ouviram falar da greve. Mesmo um trabalhador que era do departamento de montagem e tinha ouvido falar da possibilidade da greve, foi apanhado desprevenido: “Não sabia que a greve ia acontecer… Não estava lá na altura [porque tinha ido à casa de banho] Quando saí da casa de banho vi que não havia ninguém. Fiquei parado a olhar: ‘Que é isto, não se trabalha?’ ”

À medida que os trabalhadores do departamento de montagem se deslocavam através das instalações, gritavam para os seus colegas pararem o trabalho e juntarem-se-lhes para lutarem por salários mais altos. Inicialmente, tiveram digamos que uma recepção fria nos outros sectores e finalmente iniciaram um sit-in em frente da fábrica com apenas cerca de cinquenta trabalhadores.

Mas dada a posição crítica do sector da montagem no processo de produção, os outros departamentos foram forçados a fechar numa questão de horas. Nessa tarde, a direcção tinha colocado caixas de sugestões e suplicado aos trabalhadores que retomassem o trabalho, prometendo-lhes que iriam considerar a sua reivindicação de melhores salários e dar uma resposta completa dentro de quatro dias. Talvez por causa do seu número relativamente pequeno, os grevistas acreditaram na palavra da direcção e a produção foi retomada nesse mesmo dia.

A 20 de Maio, a direcção, os funcionários governamentais, os funcionários sindicais e os representantes dos trabalhadores iniciaram as negociações. A exigência dos trabalhadores nesta altura era simplesmente aumentar todos os salários em 800 RMB. Entretanto, os grevistas voltaram ao trabalho, embora a produção tenha reduzido muito durante estes dias.

No dia seguinte, as negociações foram interrompidas e a greve continuou. No fim de semana, os organizadores continuaram a fazer contactos e o número de grevistas em frente da fábrica subiu para cima de 300. A 22 de Maio a direcção anunciou que Tan e Xiao, os líderes iniciais da greve, tinham sido despedidos.

Mas com esta tentativa de repressão apenas lhes saiu o tiro pela culatra, porque no dia seguinte a greve ficou mais forte. Agora, preocupados com o seu sustento, os trabalhadores cobriam os rostos com máscaras cirúrgicas, mas continuaram a resistir.

Ao longo deste processo, o sindicato da empresa alternou entre a passividade e a hostilidade. Os trabalhadores queixaram-se que durante a sessão de negociação, o representante do sindicato não disse nada e apenas se limitou a observar. Quando a greve começou, uma equipa de investigadores do departamento laboral do distrito e o sindicato foram enviados para a fábrica.

Não deixando dúvidas quanto ao lado em que estavam da luta, os funcionários anunciaram: “De acordo com as normas relevantes, não encontrámos nada que configure que a fábrica esteja a violar quaisquer leis.”

Um trabalhador que foi seleccionado como representante estava muito desapontado com o comportamento do presidente do sindicato da empresa, Wu Youhe, na primeira ronda de negociações:

[O presidente do sindicato da empresa] convidou um advogado [para a primeira ronda de negociações]. O advogado disse que a nossa greve é ilegal. Ele [O presidente do sindicato] não tinha opiniões próprias e não tomava decisões. Perguntava sempre ao director geral o que havia de fazer. No fundo, ele é presidente e não é controlado pela companhia; tem o seu poder. Mas para ele, tudo tinha de passar pelo director geral e ajudava o director geral a refutar aquilo que nós dizíamos.

A 24 de Maio, os representantes dos trabalhadores foram convencidos a voltar à mesa das negociações numa sessão presidida pelo presidente do sindicato de empresa. Continuando a tentar servir como intermediário, o presidente do sindicato tentou persuadir os trabalhadores a aceitar a oferta da direcção de um aumento de 55 RMB no subsídio de alimentação – muito longe dos 800 RMB que eles reivindicavam.

Esta ineficácia não estava perdida nos trabalhadores, comentando um grevista: “O sindicato disse que defendia os nossos interesses. Disseram que nós, empregados, podíamos entregar-lhes quaisquer reivindicações, que eles as transmitiriam à direcção e que resolveriam as nossas questões. Mas não fizeram nada disso. “

Os grevistas recusaram a oferta da direcção a 24 de Maio e a situação subiu de tom. A 25 de Maio as coisas ficaram muito mais tensas quando todas as quatro fábricas de montagem da Honda na China estavam completamente paradas por causa da falta de peças.

Contando originalmente com uma força de trabalho disciplinada, a Honda só tinha um fornecedor de transmissões no país e todas as quatro fábricas de montagem na China estavam altamente dependentes da Nanhai. Calcula-se que as perdas diárias combinadas das cinco fábricas foram de 240 milhões RMB.

A direcção cedeu, produzindo uma segunda oferta de aumentos salariais a 26 de Maio. Esta proposta apontava para o aumento dos salários dos trabalhadores habituais em cerca de 200 RMB por mês e 155 em subsídios para despesas e um aumento do salário de 477 para contratados que estivessem na fábrica há mais de três meses. Mas os trabalhadores também rejeitaram esta oferta e a greve continuou.

Neste ponto, os trabalhadores formalizaram as suas reivindicações. A acrescentar à primeira exigência de aumento de salários para todos os trabalhadores em 800 RMB, reivindicavam também que os trabalhadores despedidos fossem readmitidos, que não houvesse castigos contra os grevistas e que o sindicato da empresa fosse “reorganizado” (chongzheng). De acordo com alguns grevistas, a exigência de reorganização do sindicato provinha do que tinham visto do falhanço do sindicato em representar activamente os trabalhadores nas anteriores reuniões de negociação.

Com as perdas a subirem, a direcção ficou desesperada e fez o máximo para tentar quebrar a luta e a unidade dos grevistas. O ataque mais directo foi a 28 de Maio quando os directores tentaram forçar os trabalhadores a assinar um compromisso de que “nunca mais iriam dirigir, organizar ou participar em diminuição da produção, paragens no trabalho ou greves.”

Mas esta táctica produziu o efeito contrário na medida em que praticamente ninguém concordou em assiná-lo. Um trabalhador disse: “logo que o vi [o acordo] deitei-o fora. Não vamos assiná-lo.” Um grupo de trabalhadoras disse que “ninguém mexeu uma mão.” Quando lhe perguntaram se tinham medo de recusar a exigência da direcção, uma trabalhadora insistiu: “Ninguém estava com medo! Quem havia de estar? Se eles quiserem despedir-nos, então vão ter que despedir-nos a todas!”

A greve estava a entrar numa fase decisiva. Provavelmente já a greve mais longa alguma vez feita por trabalhadores imigrantes na era da reforma, a situação tinha-se tornado uma crise política para o estado local. Apesar dos crescentes custos económicos e políticos, os acontecimentos de 31 de Maio apanharam toda a gente de surpresa.

O Sindicato como fura greves

Quando os trabalhadores chegaram à fábrica nessa manhã, foram informados que cada secção teria reuniões para discutir a resolução da greve. Quando os trabalhadores esperavam em várias salas do principal edifício da administração, apareceu um grande contingente de carrinhas e autocarros.

Os veículos tinham dúzias de homens, todos eles com chapéus amarelos e com emblemas onde se lia “Federação de Sindicatos de Shishan”, que é a organização sindical imediatamente subordinada do ramo do sindicato da empresa.

Pouco depois, o departamento de montagem, fundamental para reanimar a produção, encontrou-se com o director geral da fábrica e fez uma nova oferta para um aumento salarial. Embora ainda insatisfeitos com a nova oferta da direcção, os trabalhadores foram persuadidos a voltar às suas linhas de montagem. Começaram a surgir indicações de que a unidade dos grevistas se desmoronava, pois alguns departamentos começaram a ligar as suas linhas de montagem. Indivíduos do sindicato dispersaram-se por cada um dos departamentos e encorajaram os trabalhadores a retomar imediatamente a produção.

Quando alguns trabalhadores do departamento de montagem se deslocaram para regressar à área em frente da fábrica onde se tinham manifestado durante as duas últimas semanas, surgiu um confronto com o grupo do sindicato. Tal como foi confirmado de múltiplas fontes independentes, o pessoal do sindicato começou a filmar os trabalhadores e exigiu que regressassem à fábrica e parassem com a greve.

Rapidamente se criou uma situação de tensão que em breve deu azo a um confronto físico durante o qual vários trabalhadores foram agredidos por indivíduos do sindicato. Isto enfureceu os trabalhadores e uma greve que parecia estar a perder gás rapidamente ganhou força.

Trabalhadores de outros departamentos que tinham retomado a produção correram para o local logo que tiveram notícias da violência e rapidamente se juntou uma grande multidão. Ocorreu um novo confronto físico e, desta vez, o lado do sindicato foi ainda mais violento do que antes, com vários trabalhadores a sofrer ligeiros ferimentos. Os agressores regressaram rapidamente aos seus veículos e recusaram-se a sair.

Neste ponto, o governo decidiu que as coisas tinham ido longe demais e tomou medidas para resolver o conflito. A polícia anti-motim foi chamada, embora nunca se tenha envolvido com os trabalhadores. Além disso, as autoridades fizeram um cordão de protecção exterior à fábrica de modo a impedir a entrada a quem quer que fosse. Quaisquer que fossem as agências governamentais que tivessem apoiado a greve pacífica não estavam interessadas em mais confrontos violentos nem na possibilidade de que os grevistas pudessem deixar os campos da produção.

É certo que a maior parte dos que vinham substituir os grevistas não eram de facto funcionários sindicais. A primeira coisa referida por muitos trabalhadores foi que parecia absurdo que a federação ao nível municipal com apenas alguns membros pagos pudesse recrutar tantos funcionários de outras sucursais sindicais. Um trabalhador envolvido na contenda disse que alguns dos furagreves (todos homens) tinham brincos e tatuagens, coisas que os funcionários sindicais dificilmente exibiriam.

Mas se a maior parte dos capangas não eram de facto funcionários sindicais, não se pode, no entanto, negar que a federação sindical do distrito teve um papel na organização dos furagreves uma questão que se tornou óbvia numa carta que escreveu aos trabalhadores. Um trabalhador especializado do departamento de montagem foi frontal na sua apreciação: “Claro que foi ideia do sindicato. Quem mais podia ter tido tão estúpida ideia? Só os sindicatos chineses podiam ter pensado nisto.” Não é, contudo, claro até que ponto a federação sindical estava a agir a pedido da direcção ou se estava a executar uma acção independente.

Quando os trabalhadores receberam no dia seguinte uma carta aberta das Federações dos Sindicatos do Município de Shishan e do Distrito de Nanhai, os dirigentes sindicais locais deram uma desculpa morna e não denunciaram a violência que tinha ocorrido no dia anterior, nem tentaram negar que tinham organizado os furagreves:

Ontem, o sindicato participou em reuniões de mediação entre os trabalhadores e a direcção da Honda. Porque uma parte dos empregados da Honda recusou regressar ao trabalho, a produção da fábrica foi severamente reduzida. No processo de discussão com cerca de quarenta empregados, a certa altura ocorreram alguns malentendidos e desacordos verbais de ambas as partes. 
Devido ao estado emocional impulsivo de alguns dos empregados, ocorreu um conflito físico entre alguns empregados e representantes do sindicato. Este incidente deixou uma impressão negativa nos empregados. Uma parte destes empregados, depois de terem sabido do incidente, parece terem interpretado erradamente as acções do sindicato como estando ao lado da direcção. O incidente de ontem deixou-nos completamente chocados. Se as pessoas sentem que alguns dos métodos usados no incidente de ontem foram um pouco difíceis de aceitar, pedimos desculpas. 
O comportamento do acima mencionado grupo de perto de quarenta trabalhadores já prejudicou os interesses da maioria dos empregados. Além disso, tal comportamento prejudica a produção da fábrica. O facto de o sindicato se ter levantado e admoestado estes trabalhadores fá-lo totalmente pelo interesse da maioria dos empregados. É responsabilidade do sindicato! 
Seria insensato que os trabalhadores procedessem de modo a irem contra os seus próprios interesses e de outros, por actos impulsivos. Alguns empregados estão preocupados que os seus representantes, que querem defendê-los e participar em discussões com a direcção,venham a ter mais tarde represálias por parte da direcção. Trata-se de um malentendido.

A carta prosseguiu admoestando os trabalhadores por recusarem aceitar a oferta que a direcção tinha feito. Numa última tentativa para controlar os estragos, terminava dizendo, “Por favor, confiem no sindicato. Confiem em cada nível de funcionários do partido e do governo. Iremos sem dúvida alguma defender a justiça.”

A carta das federações dos sindicatos de Shishan e Nanhai não agradou aos grevistas. Como afirmou um trabalhador activista, “A carta de desculpas dos sindicatos não foi nenhuma carta de pedido de desculpas e por isso nós ficámos muito zangados.”

Uma carta aberta dos representantes dos trabalhadores que apareceu dois dias depois da carta de desculpas do sindicato foi desafiadora: “O sindicato deve proteger os direitos colectivos e os interesses dos trabalhadores e conduzi-los na greve. Mas até agora, têm andado à procura de desculpas para a violência do sindicato contra os trabalhadores em greve e nós condenamos isso violentamente.”

Ainda, a carta continuava exprimindo “extrema raiva” por o sindicato reclamar que tinha sido o grande trabalho do sindicato que tinha levado a direcção a aumentar a sua oferta de aumentos salariais, contestando que estes tinham “sido ganhos com o sangue e suor dos trabalhadores em greve enfrentando pressões extremas.” As relações entre os grevistas e o sindicato ao nível do município não podiam ter sido piores e certamente elevaram a tensão do drama a decorrer.

Resolução

Enquanto que a táctica do sindicato ao nível do município não conseguiu quebrar o impasse, os níveis mais altos do sindicato e do Partido foram muito mais compreensivos com os grevistas. Ouvi por parte da liderança do GZFTU que o secretário do Partido Guangdong Wang Yang apoiava a greve e as exigências salariais dos trabalhadores e mesmo que havia apoio no governo central.

O Departamento de Propaganda Central não emitiu uma nota de proibição senão a 29 de Maio, quase duas semanas após os confrontos, numa altura em que a onda grevista se tinha espalhado a outras fábricas. Mas isto era uma indicação que o governo central tinha vontade de que se desenvolvesse mais pressão sobre a direcção, na medida em que é raro que se faça a cobertura de greves durante tanto tempo. O presidente deputado do GDFTU, Kong Xianghong, desempenhou um papel activo nas negociações e apoiou as reivindicações salariais. Sobretudo depois do confronto entre o sindicato de Shishan e os trabalhadores, as autoridades a nível provincial estavam desejosas em resolver rapidamente o conflito.

De modo a encontrarem uma resolução ordeira, as várias agências governamentais que se tinham envolvido na greve exigiram que os trabalhadores escolhessem representantes. Embora tivesse sido seleccionado precipitadamente um conjunto de negociadores para a primeira ronda de negociações, os grevistas tinham ficado relutantes em arranjar representantes, sobretudo depois de os dois homens que tinham iniciado a greve terem sido despedidos.

Esta relutância em negociar era inaceitável para o estado o que levou a que Zeng Qinghong, delegado do Congresso Nacional do Povo e membro da Guangzhou Automotive CEO viesse falar com os trabalhadores. Através de amáveis e paternalistas métodos de persuasão, Zeng Qinghong convenceu os grevistas a escolher representantes e iniciar uma retoma condicional da produção.

Na sua carta aberta, os representantes dos trabalhadores disseram que se a direcção não respondesse às suas reivindicações dentro de três dias, a greve iria continuar. Além disso, a carta também afirmava que “os representantes negociais não aceitarão nada menos do que as exigências acima referidas sem a autorização de uma assembleia geral de trabalhadores.” Finalmente, as negociações começaram no terceiro dia.

A 4 de Junho, aos representantes dos trabalhadores juntou-se Chang Kai, um muito conhecido erudito especialista em trabalho, de Pequim, que serviu como seu advogado. As negociações estenderam-se pela noite dentro e finalmente foi firmado um acordo.

Os trabalhadores habituais iriam receber aumentos salariais de aproximadamente 500 RMB, pelo que os seus salários mensais iriam ficar acima dos 2,000 RMB. Os eventuais com baixos salários que trabalhavam ao lado dos trabalhadores habituais viram os seus salários aumentados em mais de 70% para mais de 600 RMB. Um aumento salarial tão grande em resposta a greves foi algo sem precedentes na China e pode deixar uma importante marca nas lutas que estão para vir.

19 de agosto de 2014

O novo nacionalismo japonês

O orgulho nacionalista e a economia neoliberal, propagandeados pelo primeiro-ministro Shinzo Abe prometem apenas uma fuga barata aos problemas do Japão.

Kristin Surak

Jacobin

Kiyoshi Ota / Reuters

Tradução / Pouco depois de voltar ao poder em 2013, o primeiro-ministro Shinzo Abe declarou triunfalmente em discurso público: "O Japão está de volta!". A partir de então, com o incitamento do capital global, tem feito muito para o provar.

Comandando a terceira maior economia do mundo está, finalmente, um homem capaz de levar a privatização e a desregulamentação para além das diferenças entre fações e reiniciar o crescimento — uma tarefa tão heroica que a The Economist estampou a sua capa com o primeiro-ministro com cara de sabujo à guisa de Super-homem.

É um valente regresso para um ministro que, após menos de um ano em exercício e à sombra do escândalo, sai em 2007 usando a desculpa, não muito empedernida, de sofrer de diarreia incapacitante. Nem os observadores especialistas sobre o Japão esperavam que Abe assumisse a nomeação do Partido Liberal Democrata no Outono de 2012.

Nobutaka Machimura garantiu o maior número de votos dentro da Dieta (parlamento japonês) e Shigeru Ishiba conquistou o voto local. Mas depois de as eleições passarem a um segundo turno quase sem precedentes, negociatas internas colocaram Abe no topo — e deixaram-no com uns favores a pagar.

A "Abenomia" é parte desse pacote, combinando num potente cocktail várias exigências de longa data da classe dominante. Os gigantes da exportação receberam uma saudada queda do iene de 77 para 100 JPY por dólar, os burocratas da finança finalmente conseguiram um aumento no imposto sobre vendas de 5 para 8%, as grandes empresas e os bancos saborearam dinheiro recém impresso e de seguida aplaudiram a desregulamentação do mercado de trabalho.

A injeção de adrenalina na economia em coma pareceu funcionar no primeiro ano: o PIB passou dum crescimento negativo a 1,3% no início de 2013; entre as empresas, as velhas insígnias afixaram lucros. The Economist e o Financial Times foram saltando como líderes de claque ao longo das linhas em ligeira subida da inflação ao atingir os 1,5%. Parecia que a enorme economia do Japão estava novamente pronta para ser mungida pelos lucros.

A emissão de dinheiro e os gastos públicos podem criar bolhas assim, mas não podem sustentá-las, e os retornos da Abenomia já estão a provar-se curtos e concentrados nas mãos de interesses entrincheirados. Os bancos estão em expansão — a companhia financeira Nomura, por exemplo, triplicou os lucros — a indústria, especialmente a automóvel, comportou-se bem. Contudo os lucros não têm sido reinvestidos em aumentos salariais, e os salários caem enquanto os preços aumentam.

No segundo trimestre deste ano, o PIB contraiu uns exorbitantes 6,8%, varrendo todos os ganhos econômicos do primeiro trimestre quando os consumidores armazenaram mercadorias, antecipando o novo imposto sobre vendas. Os apologistas alegam que um inferior limiar de base só vai facilitar o anúncio do crescimento no outono.

Se a Abenomia garante o legado a um primeiro-ministro anteriormente falhado, marcará uma mudança real nos objetivos de Abe? Além duma duvidosa economia do lado da oferta, pouco distingue o seu primeiro mandato do segundo. Falar de "arco de liberdade e prosperidade" para proteger a livre iniciativa nos EUA, Japão, Austrália e Índia (sem chinês, por favor) deu em negociações secretas sobre a parceria Transpacífica destinada a realizar o mesmo.

O seu êxito de vendas nacional de 2006 Em direção a um belo país está novamente a voar das prateleiras, reembalado com pouca imaginação como Em direção a um novo país. Não surpreende que ele ainda rejeite o pedido de desculpas de 1995 pela agressão imperial, apresentado pelo primeiro-ministro socialista Tomiichi Murayama no quinquagésimo aniversário do fim da guerra, normalmente entendido como a posição oficial do governo. Na sua primeira passagem pelo governo, Abe tentou rever todos os documentos fundamentais de garantias no país — a Constituição, a Lei de Bases do Ensino e o tratado de segurança Amplo com os Estados Unidos — com um êxito parcial.

Agora é a oportunidade de retomar onde ficou. E basta olhar as revisões que propôs à Constituição para ver onde isto vai dar.

Longe vão os nobres ideais democráticos do preâmbulo — hinos à "preservação da paz e banimento da tirania e da escravidão, da opressão e intolerância por todos os tempos na terra” — trocados por um começo mais musculado: "O Japão é um país com uma longa história e cultura única e um imperador como símbolo unificador da nação". O que segue são adaptações para quase todos os 103 artigos do documento que iriam expandir grandemente o escopo para o estado de emergência, iriam transformar as nominais Forças de Autodefesa num exército de pleno direito e subordinar as liberdades de expressão, de imprensa e de associação à manutenção da ordem pública.

Mas grandes escolhas se erguem no caminho da alteração do documento fundador do país. Abe precisa de uma super-maioria em ambas as câmaras da Dieta e do apoio de um público relutante para ganhar um referendo. Portanto uma mudança silenciosa, incremental tem sido a abordagem preferida. O seu vice-primeiro-ministro Taro Aso fez do delinear da estratégia um pesadelo para as relações públicas, ao elogiar os nazistas por substituírem a Constituição de Weimar sem que ninguém percebesse e sugeriu que o Japão poderia aprender com o exemplo.

A promessa de ressuscitar a economia em coma põe a imprensa e a população em transe, enquanto a audiência está a olhar para o lado, Abe faz incursões com as propostas menos populares.

No mês passado o seu gabinete proclamou que a Constituição não exclui a legítima defesa coletiva — apesar de um artigo que declara impassivelmente "[O] povo japonês renuncia para sempre à guerra como direito soberano da nação e à ameaça ou uso de força como meio de resolução de disputas internacionais."

Os EUA vêm há anos pressionando o Japão a relaxar a sua interpretação do artigo 9º e a manter-se "ombro a ombro" com as tropas — um apelo que Abe e os nacionalistas só têm a agradecer muito por seguirem. Diz-se da nova leitura, de forma bem incrédula, que habilita o Japão a vir em auxílio do exército dos EUA caso fique sob ataque.

O antigo alto funcionário do ministério das Relações Exteriores, Ukeru Magosaki, descreveu-a como uma transformação efetiva das Forças de Autodefesa japonesas em "mercenários ao serviço dos Estados Unidos". Se não é a primeira leitura revista — uma FA foi criada e enviada mesmo para o esterior em missões de apoio das Nações Unidas — é a primeira a vir não do judiciário mas do executivo.

Um princípio base do constitucionalismo é o de que nenhuma agência está acima do seu poder. Em princípio, a mudança vem através da reinterpretação gradual da parte de tribunais ou de procedimentos de alteração formal, não das recomendações de listas de peritos nomeadas pelo primeiro-ministro. Mas para Abe, tais questiúnculas só estorvam uma liderança firme.

A abordagem de cima para baixo é uma marca que Abe brandiu com gosto dezembro último na aprovação rápida de uma arrasadora nova lei do segredo de Estado. Aprovada como protegendo o interesse nacional contra fugas para a comunicação, a lei vai muito além das preocupações habituais com espionagem e terrorismo. Na verdade, é acima de tudo uma lei contra pessoas que façam denúncias públicas, dando a um repórter cinco anos de prisão e à sua fonte dez se expuserem a corrupção, ameaças à saúde pública e mesmo problemas ambiente que sejam designados como "segredo".

Mas tais temores podem estar a diminuir à medida que vozes críticas na comunicação social se abatem sob a pressão vinda de cima. Baixas recentes incluem alguns dos jornalistas mais argumentativos e críticos da energia nuclear e do tratamento incorreto dado ao desastre de Fukushima: o comentador da Empresa de Radiodifusão do Japão (NHK) Toru Nakakita, o apresentador da NHK Jun Hori e o locutor do Sistema de Radiodifusão de Tóquio (TBS) Takashi Uesugi.

Certamente que o novo chefe da NHK, Katsuo Momii, não chora a perda. O empresário selecionado por Abe para dirigir a fonte de notícias de televisão mais popular do Japão aceitou a nomeação, declarando sem corar, "se o governo vai para a direita, nós não podemos ir para a esquerda". É sem grande surpresa que a cobertura pela NHK da interpretação revista do artigo 9º não incluiu notícias do homem que se ateou fogo em protesto contra a lei numa das zonas mais movimentadas de Tóquio.

O orgulho nacionalista que Abe e outros divulgam promete apenas uma fuga barata aos problemas que desconjuntam o país. O Japão é agora um dos membros mais desiguais da OCDE, com taxas de pobreza — um em cada seis já não se aguentam acima da linha — atrás apenas dos EUA e do México. Um terço das pessoas que trabalham estão com contratos de curto prazo ou a tempo parcial, com o emprego para a vida da geração do "baby boom" a significar que as taxas para os jovens são muito mais altas.

Com muito da rede do Estado social ligada ao trabalho regular, o que lhes sobra? Com um pouco de sorte, mais do que a postura nacionalista de Abe oferece.

Sobre o autor

Kristin Surak é professora universitária e pesquisadora de política japonesa na Escola de Estudos Orientais da Universidade de Londres.

15 de agosto de 2014

A economia da militarização da polícia

A crise da dívida da justiça-criminal é apenas um dos muitos afluentes que alimentam o rio de raiva profunda por causa dos tiroteios da polícia.

Sarah Stillman


Créditos: Jeff Roberson/AP.

Duas batalhas cruciais eclodiram em Ferguson, Missouri, essa semana. A primeira começou com a onda de tristeza e fúria popular, depois que um jovem de 18 anos, Michael Brown, foi morto por um policial em Canfield Court, no subúrbio de St. Louis, às 14h15min, sábado passado (9 e agosto de 2014). Depois, começou a ação dos policiais nas primeiras rodadas de manifestações públicas. Os policiais saíram às ruas com uma frota de blindados, rifles de ataque, bombas de gás lacrimogêneo, o que reintroduziu na consciência coletiva a expressão “militarização da polícia civil” (como já se devia esperar; quem duvide, deve ler Radley Balko, "The Rise of the Warrior Cop: The Militarization of America's Police Forces").

Num momento, vê-se um jovem com uma marca de tiro de bala de borracha entre os olhos; momento seguinte, três policiais com armas enormes atiram contra outro homem negro, que tem as mãos erguidas. Na quinta-feira (14 de agosto de 2014), Jelani Cobb publicou  potente relato  do que se via nas calçadas e lares, em Ferguson. Cobb perguntava sobre "... as questões econômicas e de aplicação da lei interconectadas naqueles protestos", entre as quais, por exemplo, as custas processuais e multas que muita gente em Ferguson tem de pagar, e que com frequência começam com infrações menores até que se convertem "elas mesmas, em violações sempre crescentes". Temos gente aqui que é procurada por causa de multas de trânsito, obrigada a viver praticamente como prisioneiro dentro da própria casa. Não podem sair de casa, porque serão presos por causa daquelas dívidas. "Em alguns casos, as pessoas até tinham empregos, mas decidiram que o risco de serem presos não compensava a tentativa de se deslocar para fora do seu bairro, disse a Cobb, Malik Ahmed, presidente de uma organização chamada “Better Family Life”.

A crise das dívidas com a justiça criminal é um dos muitos afluentes que alimentaram o rio caudaloso da fúria profunda que tomou conta de Ferguson. Mas é afluente importante – tanto porque é problema que se vê em todos os cantos da região, como, também, porque é problema que facilmente desaparece de cena ante o espetáculo dos tanques e canhões giratórios. No início desse ano, passei seis meses acompanhando o crescimento do valor de custas e multas nos tribunais nos Estados Unidos, que acontece pela proliferação de taxas e multas aplicadas a quaisquer pequenas infrações – e que é parte de um movimento crescente na direção do que tenho chamado de “indústria da justiça custeada pelo infrator”. Empresas privadas de cobrança são contratadas, em alguns estados, para cobrar multas não pagas. (Na maioria dos casos, é tática usada contra os mais pobres, que tenham multas de tráfego não quitadas). As reportagens que estão chegando de Ferguson levantam questões sobre como a militarização da polícia e a coerção econômica pelos órgãos da justiça, alimentaram fúria que, hoje, já é difícil de controlar.

O Missouri foi dos primeiros estados a permitir a ação de empresas privadas de cobrança, no final dos anos 1980, e desde então seguiu a tendência nacional de permitir que custas processuais e multas cresçam muito rapidamente. Agora, em grande parte dos Estados Unidos, o que começa como simples multa por excesso de velocidade pode, se você não conseguir pagar, converter-se numa dívida impagável, que não para de crescer, aumentada, se você não comparecer ao tribunal, por taxas de busca e prisão. (Não raras vezes, o não pagamento acontece não só por falta de meios mas também porque o devedor já não vive no endereço para onde a notificação é enviada, e não a recebe). "O que mais se vê nos Estados Unidos é gente empobrecida, rotineiramente mandada para a cadeia por custas, impostos, taxas ou multas que não conseguem pagar", disse Alec Karakatsanis, cofundador de “Equal Justice Under Law”, organização sem fins lucrativos de defesa de direitos civis, que começou a denunciar essa prática em cortes municipais. São multas que crescem como bola de neve quando as multas não pagas são entregues, para cobrança, a empresas privadas, porque essas empresas acrescentam suas próprias taxas “de supervisão”. O que acontece em muitos bairros pobres dos Estados Unidos, quando alguém atrasa seus pagamentos? Muito frequentemente, a polícia bate à porta e leva o devedor para a prisão.

Daí em diante, a bola de neve só cresce. Ser preso tem impacto muito grave na vida de pessoas que já estão à beira da pobreza. Já perderam o emprego, já perderam a guarda dos filhos, estão atrasados no pagamento da hipoteca da própria casa, diz Sara Zampieren, do Southern Poverty Law Center. Tudo isso somado, o efeito é “devastador”. Enquanto permanecem na prisão, as “multas de usuários” só se acumulam. De tal modo que quando você sai da cadeia, nem por isso está livre. Uma recente pesquisa feita pela National Public Radio mostrou que pelo menos em 43 estados dos EUA os réus podem ser cobrados pelo trabalho do Defensor Público – um serviço ao qual todos os americanos têm direito garantido pela Constituição; e em pelo menos 41 estados nos EUA, os prisioneiros podem ser cobrados por “casa e comida” durante o tempo que permaneçam em detenção e prisão.

Agora, as polícias militarizadas dos Estados Unidos têm ferramentas muito visíveis à disposição delas; várias dessas ferramentas estiveram nas manchetes essa semana: metralhadoras, óculos para visão noturna, veículos blindados e, ao que parece, uma quantidade ilimitada de munição. Mas essa arma econômica da militarização policial é quase sempre muito menos visível, e a “justiça custeada pelo infrator” é parte desse sub-arsenal. Os medos dos quais Cobb e Ahmed falam – dívidas cobradas por tribunais e polícias, e gente que, por causa dessas dívidas tem medo de sair de dentro de casa – são ingredientes da força que se viu ativada nos protestos e tumultos das ruas do Missouri. O medo dos devedores altera toda a vida diária – será que conseguem ir à padaria ou levar uma criança à escola, sem serem presos? "Esse medo impede as pessoas que tenham problemas, de chamar a polícia, e tira da polícia a capacidade para fazer o que se espera que policiais façam – ajudar as pessoas nas comunidades a responder a emergências", disse Karakatsanis. É situação que corrói a confiança das comunidades e mata qualquer possibilidade de cooperação entre os agentes da lei e a própria comunidade.

No Alabama, “Equal Justice Under Law” impetrou uma ação conjunta contra a cidade de Montgomery, em nome de pequenos infratores que foram encarcerados por dívida; a ação está suspensa, e a cidade refutou as acusações, mas, diz Karakatsanis, pelo menos 35 pessoas foram libertadas da prisão, onde estavam por dívidas, desde o início da ação. (Um juiz já emitiu uma sentença preliminar a favor dos devedores). Mais frequentemente porém, os devedores que levam o problema aos tribunais não obtêm qualquer tipo de resultado favorável. Muitas vezes, essas dificuldades só fazem aumentar o ressentimento dos cidadãos e a desconfiança geral em relação a qualquer autoridade “pública”.

Há muitos anos, quando estava integrada às tropas em Kandahar, Afeganistão, passei muitas horas com uma unidade cuja tarefa era aplicar um conjunto de treinamentos chamados “Commander’s Guide to Money as a Weapons System”. Esse treinamento instrui os soldados a usar ferramentas econômicas para promover objetivos militares, e havia um alerta impresso nas páginas iniciais de um dos manuais que eles usavam: "Soldados combatentes e seus comandos devem cuidar para que suas ações sejam defensáveis ante Comissões de Inquérito do Congresso e não gerem problemas para o Departamento de Defesa." Quanto a isso, o militarismo “real” tem pelo menos uma vantagem sobre o militarismo policial doméstico, pelo menos no plano doutrinário – entre militares “reais” o princípio é o investimento genuíno nas comunidades, cuja confiança os militares esperam conquistar, para influenciar. Não surpreende que seja “teoria” sempre complicada de aplicar (que muito frequentemente falhou terrivelmente), mas, pelo menos em teoria, é de longe muito melhor que policiais ou militares abrindo caminho à bala em áreas civis. Nos Estados Unidos, dentro de casa, as equipes SWAT continuam a detonar as proverbiais linhas de força.

É um sinal de esperança que o novo comandante de polícia de Ferguson, Capitão Ron Johnson, da Patrulha Rodoviária Estadual do Missouri (criado em Ferguson), pareça ter imediatamente entendido essa questão, ao assumir o cargo na quinta-feira (14 de agosto de 2014). "Todos queremos justiça. Todos queremos respostas", disse ele à Associated Press, "é pessoalmente importante para mim conseguirmos romper esse ciclo de violência."

Ao considerar a militarização da polícia, o lado econômico do fenômeno também deve ser considerado. A conexão pode não ser óbvia para quem jamais teve cortado o fornecimento de gás ou de energia elétrica da própria casa. Mas essas forças operam juntas – o gás cortado e as multas não pagas; o armamento e as intimações para “pagamento imediato” – o que agride uma vasta lista de direitos fundamentais que parecem, como em Ferguson e em outros locais, já terem virado fumaça.

14 de agosto de 2014

Em defesa das revoltas de Ferguson

Os manifestantes em Ferguson não são nem irracionais nem apolíticos. Eles estão chamando a atenção para as suas necessidades básicas, não alcançadas.

Robert Stephens II

Jacobin

Créditos: Stanley Wolfson/Library of Congress.

No fim de semana de 9 de agosto a polícia em Ferguson, Missouri, assassinou o adolescente negro Michael Brown. Enquanto os detalhes ainda estão a chegar a conta-gotas, o que está claro é que durante um confronto com um carro patrulha perto da casa da sua avó, um policial disparou e matou o adolescente desarmado no meio da rua. As testemunhas dizem que Brown corria afastando-se do polícia e que tinha as mãos levantadas precisamente antes do policial disparar contra ele.

Ferguson é uma cidade com uma grande concentração de população negra sob o controle de instituições predominantemente brancas. O assassinato imediatamente tocou uma corda sensível. Manifestações e protestos irromperam e as pessoas tomaram as ruas, o que poderá eventualmente culminar numa revolta. As multidões oscilavam desde pessoas que faziam vigília transportando velas no lugar da morte de Brown até outras que queimavam estabelecimentos comerciais e lançavam cocktails molotov durante os confrontos com a polícia. Como chegamos até aqui?

Longe de ser uma multidão violenta e sem cérebro, as pessoas de Ferguson atravessaram um processo de elevação do seu nível de consciência política que as levou à insurreição. Um vídeo mostra vários agitadores políticos a falar entre a multidão, convertendo a raiva momentânea em unidade política. Um orador em particular, um jovem negro, oferece uma convincente análise política que denuncia a injustiça da brutalidade policial como um subproduto da desordem econômica da comunidade.

“Continuamos a dar o nosso dinheiro a esses meninos brancos que estão nos seus complexos residenciais, e não podemos obter justiça. Nem respeito. Eles estão dispostos a atacar-te se não pagas uma fatura. ... É normal que estejamos fartos.”

As revoltas, como outras formas de ação política, podem construir solidariedade. Podem criar fortes sentimentos de identidade comum. A indignação que eclodiu em Ferguson atraiu rapidamente as pessoas pertencentes dos meios marginais de toda a região. Mais do que um fato que lhe tire legitimidade, a presença destas pessoas “de fora” reflete o poder magnético do momento político.

Desde o início, as manifestações contra a polícia que precederam as revoltas tiveram uma clara dinâmica “nós contra eles”. Num ponto da manifestação, uma mulher com uma câmara diz: “Onde estão os rufias? Onde estão os gangues de rua quando precisamos de todos?” e então as pessoas começam a apelar aos diversas gangues de rua para abandonarem a violência do “negro contra negro” e a se unirem na luta contra a opressão. A comunidade estava unida e preparada para empreender ação. A polícia era o problema, e tinha que ser parada.

Smith identifica o que muitos que se auto-proclamam como anti-racistas e esquerdistas não compreendem, que o racismo não é uma questão moral ou de carácter. Ele reconhece que o ordenamento econômico facilita e beneficia da opressão racial, e é por isso que procura vias para interferir nesse processo e o alterar. Esta análise não é somente mais real do que a que normalmente é dada pela esquerda, mas além disso intervir com base nela é a única forma para erradicar a hierarquia racial que está tão arraigada.

A multidão que se congregava não era nem irracional nem apolítica. Tentavam utilizar a sua oportunidade para abordar as suas necessidades políticas que iam mais além. Sabiam que a violência interracial na comunidade era não só uma das suas preocupações, e que na maioria dos casos quem perpetrava ações violentas eram os próprios meninos, primos, amigos e vizinhos da comunidade. Ainda que muitos argumentem que a população negra não se preocupa com a violência nas suas comunidades, os apelos que se fizeram para que os gangues de rua se unissem demonstra que os levantamentos anti-policiais abrem oportunidades únicas para unir as pessoas em formas que pugnam por resolver questões de fundo como a violência dos gangues.

Depois da insurreição, os participantes continuaram a debater sobre o levantamento em termos políticos. Deandre Smith, que estava presente no fogo da loja da QuikTrip, disse às notícias locais: “acho que estão demasiado preocupados sobre o que acontece nas suas lojas, comércios e tudo isso. Mas não estão preocupados com o assassinato.” Um segundo homem acrescenta: “Eu simplesmente acho que o que aconteceu foi necessário para demonstrar à polícia que eles não controlam tudo”. Smith conclui: “não acho que tenha sido suficiente.”

Numa segunda entrevista, desta vez com Kim Bell do St. Louis Post-Dispatch, Smith ampliou a sua opinião sobre as revoltas como uma estratégia política viável.

“Isto é exatamente o que se supõe que tem que se passar quando uma injustiça acontece na tua comunidade... Eu estava aqui fora com a comunidade, é tudo o que posso dizer... Para dizer a verdade, não acho que isto tenha acabado. Acho que o que receberam foi uma lição do que significa contra-atacar, no próprio St. Louis, o último estado a abolir a escravatura. Por acaso acham que ainda ostentam o poder sobre certas coisas? Eu acho que assim pensam. 
Eles obtêm dinheiro da seguinte maneira: negócios e impostos, com a polícia parando as pessoas e multando-as, levando-os a julgamento, encarcerando-as, é assim que eles fazem dinheiro em St. Louis. Tudo gira à volta do dinheiro em St. Louis. De modo que quando alguém trava esse fluxo de rendimentos eles tem tudo organizado. ... "nós vamos comer, vocês vão passar fome", gentrificação. Vai tu própria a um bairro e vê se és capaz de suportar a fome. ... Isto não vai passar aqui, não em St. Louis.”

O que costuma acontecer quando ocorrem acontecimentos como a rebelião de Ferguson, é que pessoas bem intencionadas se apressam a condenar os participantes. No mínimo, acusam as revoltas como não produtivas e oportunistas, umas quantas maçãs podem podem apodrecer o resto da cesta. Esta atitude é precisamente a que Deandre Smith criticava na sua primeira entrevista. Muitos dos detratores, alguns dos quais também são negros, tentam vigiar estas comunidades com “políticas respeitáveis”, um apelo a que as pessoas oprimidas se mostrem a si próprias em formas que sejam aceitáveis para a classe dominante num esforço para conseguir créditos políticos.

Tal como o cientista Frederick Harris escreveu num artigo este ano:

"O que começou como uma filosofia promulgada pelas elites negras para “elevar a raça”, mediante a qual se deviam corrigir os traços “maus” da população negra pobre, evoluiu agora para uma que se converteu num dos traços distintivos da política na era Obama, uma filosofia de governo que se centra no controle do comportamento da população negra abandonada, no quadro de uma sociedade que é 'vendida' como repleta de oportunidades. 
Mas a política da respeitabilidade ficou retratada como uma estratégia emancipadora que abandona os debates sobre as forças estruturais que entravam a mobilidade social da população negra e da classe operária."

Enquanto as revoltas com frequência galvanizam os acontecimentos dentro de uma comunidade, com o potencial de desencadear uma energia política concentrada em dinâmicas e direções imprevisíveis, as obsoletas políticas da respeitabilidade conduzem apenas a mais marginalização e desestruturação. Bem, é possível não estar de acordo com a utilidade da insurreição. Mas a forma com que as comunidades reagem à opressão tem de ser debatida em termos políticos e não simplesmente desprezada.

Vivemos num contexto de supremacia branca e de capitalismo neoliberal onde as políticas racialmente neutras estão a ser utilizadas para manter a exploração de classe e a hierarquia racial, e qualquer tentativa de abordar o racismo é recusada ou ignorada. Estas políticas só intensificam a desestruturação econômica e a pobreza e são aqueles que vivem nas margens da sociedade que as experimentam.

O que tanto os entrevistados nas notícias locais, como as pessoas que se amontoavam no lugar onde morreu Brown pareciam entender, é que o que é preciso é desmontar a interação que existe entre a opressão racial e o capitalismo. Sentiam que uma manifestação ou qualquer outra forma aceitável de indignação não atendia às suas necessidades políticas, e não se equivocavam.

13 de agosto de 2014

A economia política do Ebola

O ebola é um problema que não vai ser resolvido porque não é lucrativo fazê-lo.

Leigh Phillips

Jacobin

Joseph Ferdinand Keppler / Library of Congress

Tradução / The Onion, como sempre, está em cima da questão com a sua “cobertura” do pior surto registrado de ebola e primeiro na África Ocidental, que infecta cerca de 1779 pessoas e que mata pelo menos 961. “Peritos: vacina do ebola pelo menos em 50 brancos”, lê-se no cabeçalho das breves de 31 de julho de 2014.

A nossa rápida explicação é que se as pessoas infectadas com ebola fossem brancas o problema seria resolvido. Mas o papel do mercado - quer na recusa das empresas farmacêuticas em investir na pesquisa, quer nas condições no terreno criadas por políticas neoliberais que exacerbam e até encorajam estes surtos – não é referido.

O racismo é certamente um fator. Jeremy Farrar, um especialista em doenças infecciosas e diretor da Wellcome Trust, uma das maiores organizações benevolentes de pesquisa medicinais, disse à Toronto Star: “Imaginem uma região do Canadá, da América ou da Europa em que ocorresse a morte de 450 pessoas em consequência de uma febre hemorrágica viral. Seria simplesmente inaceitável – e é inaceitável na África Ocidental.”

Ele mencionou o caso de uma vacina do ebola desenvolvida pelo Canadá que foi fornecida numa situação de utilização de emergência a um pesquisador alemão em 2009 após um acidente no laboratório. “Moveram-se os céus e a terra para apoiar um técnico de laboratório alemão. Por que é que aqui diferente? Porque se trata da África Ocidental?”

Mas o ebola é um problema que não está a ser resolvido porque quase não se arranja dinheiro para tal. É uma doença não lucrativa.

Morreram cerca de 2400 pessoas desde que o ebola foi identificado pela primeira vez em 1976. As principais empresas farmacêuticas sabem que o mercado para lutar contra o ebola é diminuto enquanto que os custos para desenvolver o tratamento são significativos. Numa base meramente quantitativa, alguns poderiam alertar (talvez com razão) contra o direcionar em demasia para esta doença que mata muito menos gente do que, por exemplo, a malária (morreram 300 mil desde o começo da epidemia do ebola) ou a tuberculose (600 mil).

No entanto, as restrições econômicas que atrasam os progressos no desenvolvimento do tratamento do ebola também explicam por que as empresas farmacêuticas resistem em desenvolver o tratamento dessas doenças assim como de muitas outras.

Na última década viu-se um enorme avanço na pesquisa das terapias para o ebola, geralmente no setor público ou em pequenas empresas biotecnológicas com significativo financiamento público, com uma variedade de opções de tratamento em cima da mesa incluindo produtos com base em ácidos nucleicos, terapias de anticorpos e uma série de vacinas candidatas – cinco das quais protegeram com sucesso primatas não humanos contra o ebola.

Anthony Fauci, o diretor do National Institute of Allergy and Infectious Diseases, tem dito nos últimos dias na imprensa a todos os que o quiserem ouvir, que uma vacina do ebola estaria muito próxima – se não fossem os gananciosos interesses corporativos.

“Temos estado a trabalhar na nossa própria vacina do ebola, mas nunca conseguiríamos nenhuma aquisição por parte das empresas,” disse à USA Today.
“Temos uma candidata, colocamo-la em macacos e parece boa, mas o incentivo por parte das empresas farmacêuticas para desenvolver uma vacina que trata pequenas epidemias de trinta em trinta ou de quarenta em quarenta anos... bem, não é lá grande incentivo!”, disse à Scientific American.

Quase todos os que estão familiarizados com a questão dizem que o know-how existe. Só que as epidemias são tão raras e afetam tão poucas pessoas para que valha a pena, isto é, que seja lucrativo, para as empresas farmacêuticas desenvolvê-la.

“Estas epidemias afetam as comunidades mais pobres do planeta. Embora criem uma incrível agitação, são acontecimentos relativamente raros,” disse à Vox Daniel Bausch, o diretor do emergente departamento de infecções da Naval Medical Research Unit Six (NAMRU-6), um laboratório de investigação biomédica em Lima, no Peru. “Assim, se se olhar para o interesse das empresas farmacêuticas, não há um grande entusiasmo em levar um medicamento do ebola pelas fases um, dois e três de uma experiência e fazer uma vacina do ebola que talvez umas poucas dezenas ou centenas de milhares de pessoas venham a usar.”

John Ashton, presidente da Faculdade de Saúde Pública do Reino Unido, escreveu um vivo artigo de opinião no Independent acusando “o escândalo do desinteresse da indústria farmacêutica em investir na pesquisa em produzir tratamentos e vacinas, algo que ela se recusa em fazer porque os números envolvidos são, segundo as suas palavras, tão pequenos que não justificam o investimento. É a falência moral do capitalismo a agir na ausência de uma moldura ética e social”, concluiu.

Esta situação não é única para o ebola. Durante trinta anos, as grandes empresas farmacêuticas recusaram-se a fazer investigação em novas classes de antibióticos. Devido a este “vazio de descobertas” os clínicos preveem que dentro de vinte anos fiquemos totalmente sem medicamentos eficazes contra infecções de rotina. Muitas técnicas e intervenções médicas introduzidas desde os anos 40 dependem de um fundamento de proteção antimicrobiana. Os ganhos em expectativas de vida que a humanidade experimentou durante este tempo dependem de muitas coisas, mas certamente não teriam sido possíveis sem os antibióticos. Antes do seu desenvolvimento, as infecções com bactérias eram uma das causas de morte mais comuns.

Em abril, a Organização Mundial de Saúde emitiu pela primeira vez um relatório referindo a resistência aos micróbios em todo o mundo, encontrando “níveis alarmantes” de resistência bacteriana. “Esta séria ameaça já não é uma predição para o futuro, mas está a acontecer neste momento em todas as regiões do mundo e tem o potencial para afetar toda a gente, de qualquer idade, em qualquer país,” avisou o corpo de saúde das Nações Unidas.

A razão disto é simples, como as próprias companhias admitem: simplesmente não faz sentido para as empresas farmacêuticas investir cerca de $870 milhões (ou $1.8 biliões tendo em conta os custos de capital) por medicamento aprovado pelos reguladores num produto que as pessoas só usam uma mão cheia de vezes na sua vida quando têm uma infecção, comparado com investir a mesma quantia no desenvolvimento de medicamentos altamente lucrativos para doenças crônicas como a diabetes ou o cancro que os doentes têm que tomar diariamente, muitas vezes para o resto da vida.

Todos os anos nos EUA, de acordo com os CDC (Centros de Controlo e Prevenção da Doença) cerca de dois milhões de pessoas são infectadas com bactérias resistentes aos antibióticos. Em resultado disso, 23 mil morrem.

Vemos uma situação idêntica com o desenvolvimento das vacinas. Há décadas que as pessoas compram medicamentos para a asma ou insulina, por exemplo, enquanto que as vacinas habitualmente só precisam de uma ou duas tomas uma vez na vida. Há décadas que muitas empresas farmacêuticas abandonaram não só a investigação e o desenvolvimento de vacinas mas também a produção, de tal modo que em 2003 os Estados Unidos começaram a sentir escassez de muitas das vacinas para a infância. A situação é tão grave que os CDC têm um site público que dá conta da escassez e dos atrasos correntes em vacinas.

Mas pelo menos, com respeito ao ebola onde o mercado se recusa em prover, o departamento de defesa sente-se à vontade para intervir e afastar os princípios do mercado livre no interesse da segurança nacional.

O virologista Thomas Geisbert do Ramo Médico da Universidade do Texas em Galveston falou à Scientific American sobre a sua esperança na vacina VSV uma das opções mais promissoras contra o ebola:

Estamos tentado arranjar financiamento para fazer os estudos humanos... mas depende de fato do apoio financeiro às pequenas empresas que desenvolvem estas vacinas. Os estudos humanos são caros e necessitam de dólares do governo. Com o ebola há um pequeno mercado global, não há um grande incentivo para uma grande empresa farmacêutica fazer uma vacina contra o ebola e por isso vai ser preciso financiamento governamental.

William Sheridan, o médico diretor da BioCryst Pharmaceuticals, que desenvolveu a droga anti-viral experimental BCX4430, descreve assim a difícil situação financeira que enfrenta a investigação e o desenvolvimento do tratamento do ebola: “Simplesmente não faria um corte numa grande empresa.”
Mas para uma pequena empresa como a sua, o governo federal apoiou a investigação e prometeu comprar as provisões de medicamentos anti-ebola como medida preventiva contra o bioterrorismo. A BCX4430 também é desenvolvida em cooperação com o Instituto de Pesquisa Médica para Doenças Infecciosas do Exército dos EUA (US Army Medical Research Institute for Infectious Diseases (USAMRIID). “Há um mercado e o mercado é o governo dos Estados Unidos”, disse à NPR.

O USAMRIID, juntamente com a Agência para a Saúde Pública do Canadá, também está a apoiar o desenvolvimento do ZMAPP, um soro de anticorpos monoclonais, por uma pequena empresa biotecnológica, a MAPP Biopharmaceutical em San Diego, o qual foi administrado a semana passada a dois médicos americanos, Kent Brantly e Nancy Writebol, a trabalhar com o grupo missionário evangélico cristão Samaritan’s Purse.

Os dois tinham adoecido na Libéria quando cuidavam de pacientes infectados com o vírus ébola. O estado de Brantley tinha-se deteriorado rapidamente e tinha telefonado à sua mulher a despedir-se.  Uma hora depois de Brantley ter recebido o soro experimental o seu estado tinha mudado de forma evidente, com a melhoria da respiração e o fim da irritação na pele.

Na manhã seguinte foi capaz de tomar duche sozinho e quando chegou aos Estados Unidos depois de ter sido evacuado da Libéria, foi capaz de descer da ambulância sem ajuda. Igualmente, Writebol está “de pé e a andar” depois da sua chegada a Atlanta procedente da capital liberiana.

Devemos ser extremamente cautelosos quanto a tirar conclusões deste desenvolvimento, afirmando que este medicamento curou os missionários. Temos uma amostra de apenas dois nesta “experiência clínica” sem grupos cegos ou de controlo. O medicamento nunca tinha sido testado até ao momento em seres humanos por segurança e eficácia. E como em qualquer doença, uma certa percentagem de doentes melhoram por si. Não sabemos se o ZMapp foi a causa da evidente recuperação. Não obstante, não é descabido afirmar que este acontecimento é uma grande esperança.

Dois dos anticorpos ZMapp foram originalmente identificados e desenvolvidos por investigadores no Laboratório Nacional de Microbiologia em Winnipeg e em Defyrus uma “empresa de biodefesa das ciências da vida” em Toronto com financiamento do Canadian Safety and Security Program of Defence R&D Canada. O terceiro anticorpo na mistura foi produzido por Mappbio em colaboração com o USAMRIID, os Institutos Nacionais de Saúde e a Agência de Defesa de Redução de Ameaças. As empresas associaram-se com a Kentucky Bioprocessing em Owensboro, uma firma produtora de proteinas que foi comprada no início deste ano pela empresa-mãe da RJ Reynolds Tobacco, para fazer pharming nas plantas de tabaco carregadas de anticorpos.

Ao saber-se do papel do Pentágono e da instituição de defesa do Canadá, alguns deram um salto para as teorias da conspiração. Com efeito, ZMapp parece ser uma tempestade perfeita de uma nêmesis popular: OGMs, Big Tobacco, Pentágono e injeções que se parecem um pouco com vacinas!
Mas o financiamento do Departamento de Defesa não deve ser visto como maléfico. Antes, é clara a superioridade do sector público como guardião e motor da inovação.

No entanto, nem todas as doenças não lucrativas são sujeitos de preocupação pelo bioterrorismo dos coronéis. E por que havia o sector privado de agarrar as condições lucrativas e deixar as não lucrativas para o sector público?

Se, devido ao seu imperativo de busca do lucro, a indústria farmacêutica é estruturalmente incapaz de produzir esses produtos de que a sociedade precisa, e o sector público (neste caso debaixo da capa militar) tem consistentemente de cobrir as falhas deixadas por esta falha do mercado, então este sector tem de ser nacionalizado, permitindo que as receitas dos tratamentos lucrativos subsidiem a investigação, desenvolvimento e produção de tratamentos não lucrativos.

Em tal situação, não teríamos sequer que discutir se a prevenção da malária, do sarampo ou da poliomielite merece uma maior prioridade; podíamos apontar ao mesmo tempo para os grandes nomes e para as doenças negligenciadas. Não há garantia que abrir a torneira do financiamento público produza imediatamente um resultado positivo, mas neste momento, as empresas farmacêuticas privadas nem sequer estão a tentar.

Isto é precisamente o que se quer dizer quando os socialistas falam de o capitalismo ser um entrave no desenvolvimento posterior das forças produtivas. A nossa preocupação aqui não é meramente que a recusa da Big Pharma em se envolver em doenças tropicais esquecidas, em vacinas e em antibióticos R&D seja grosseiramente imoral ou injusto, mas que a produção de uma potencial quantidade de novos produtos e serviços que possam trazer benefícios para a nossa espécie e expandir a esfera da liberdade humana estejam bloqueados devido à letargia do mercado livre e à escassez de ambição.

É vital concentrar a atenção numa vacina ou em medicamentos. Mas fazer isso sem também prestar atenção à deterioração da saúde pública e das infraestruturas gerais ao longo da África Ocidental e às condições econômicas que contribuem para a probabilidade de epidemias de doenças zoonóticas como o ebola é como usar um balde para esvaziar a água de um barco roto que se está a afundar.

O filogeógrafo e ecologista Rob Wallace descreveu bem como a disputa neoliberal estabeleceu as condições ideais para a epidemia. A Guiné, a Libéria e a Serra Leoa são alguns dos países mais pobres do planeta, ficando nos 178º, 174º e 177º lugares entre os 187 países no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas.

Se tal surto ocorresse nos países do norte da Europa, por exemplo, nos países com algumas das melhores infraestruturas de saúde do mundo, a situação teria mais probabilidades de ser contida.
Não é apenas a inexistência de hospitais de campo, a falta de práticas de higiene apropriada nos hospitais existentes, a ausência de unidades de isolamento e um quadro limitado de profissionais de saúde altamente treinados capazes de seguir todas as pessoas que possam ter estado expostas e isolá-las. Ou que melhores cuidados de apoio sejam uma condição vital para melhores resultados, qualquer que seja o tratamento disponível. A propagação da doença também foi exacerbada por um tremendo afastamento das estruturas governamentais básicas que, de outro modo, seriam capazes de mais eficazmente restringir movimentações, gerir dificuldades logísticas e coordenar-se com outros governos.

Daniel Bausch, epidemiologista e especialista em doenças infecciosas, que trabalhou em missões de investigação perto do epicentro do atual surto, descreve num artigo publicado em julho no jornal da Public Library of Science Neglected Tropical Diseases (Doenças Tropicais Esquecidas) como “testemunhou este “contra-desenvolvimento em primeira mão”; em cada viagem de volta à Guiné, em cada longa viagem de carro de Conakry à região da floresta, as infraestruturas pareciam cada vez mais deterioradas – a estrada que tinha sido pavimentada estava pior, os serviços públicos eram menos, os preços mais altos e a floresta mais desbastada.”

Wallace refere que aqui, tal como em muitos países, uma série de programas de ajustamento estrutural foram encorajados e aplicados por governos ocidentais e por instituições financeiras internacionais que exigem a privatização e a contração de serviços governamentais, a remoção de tarifas enquanto o agro-negócio do norte continua subsidiado e uma orientação no sentido de as colheitas irem para exportação à custa da autossuficiência alimentar. Tudo isto leva à pobreza e à fome e, por sua vez, à competição entre a comida e as colheitas para exportação para a capital; a terra e as produções agrícolas que levam a uma cada vez maior consolidação da posse da terra, em especial por companhias estrangeiras que limitam o acesso dos pequenos agricultores à terra.

O ebola é uma doença zoonótica, o que significa uma doença que se espalha dos animais para os humanos (ou vice versa). Cerca de 61% das infecções humanas ao longo da história foram zoonóticas, desde a gripe à cólera ou o HIV.

O principal fator que leva ao crescimento de novas patogenias zoonóticas é o maior contato entre humanos e a vida selvagem, muitas vezes pela expansão da atividade humana na selva. À medida que as forças de ajustamento estrutural forçam as pessoas a sair do campo, mas sem isso ser acompanhado com oportunidades de emprego na cidade, Wallace refere que elas mergulham “no interior da floresta para se expandirem no território, para alargar as espécies de animais caçados, para encontrar madeira para produzir carvão e nas minas para extrair minerais, aumentando o seu risco de exposição ao vírus do ebola e outras patogêneses zoonóticas nestes cantos remotos.”

Como Bausch refere: “Fatores biológicos e ecológicos podem levar à emergência do vírus da floresta, mas claramente a paisagem sociopolítica dita para onde ele vai daí, um ou dois casos isolados ou uma grande e prolongada epidemia.”

Estes resultados são a consequência previsível de desenvolvimento não planeado, ao acaso, em áreas que se sabe serem a origem da propagação zoonótica e sem o tipo de apoio infraestrutural e valores igualitários que permitiram, por exemplo, a eliminação da malária da América do Sul depois da II Grande Guerra pelos CDC numa das suas primeiras missões.

Nestes poucos meses que passaram o pior surto de ebola na história expôs a falência moral do nosso modelo de desenvolvimento farmacêutico. A luta pela assistência de saúde pública nos Estados Unidos e a luta aliada contra a privatização da assistência médica noutros sítios no ocidente sempre tem sido uma meia batalha. O objectivo de tais campanhas só pode verdadeiramente ser atingido quando se montar uma nova campanha: reconstruir a indústria farmacêutica internacional como um serviço do sector público assim como atingir as políticas neoliberais mais vastas que minam indiretamente a saúde pública.

Podíamos ir buscar inspiração aos grupos ativistas do HIV do fim dos anos 80 e início dos anos 90 como o ACT UP e o Treatment Action Group e nos anos 2000, a Campanha Ação de Tratamento da África do Sul que combinava ação direta e desobediência civil contra as empresas e contra os políticos com uma compreensão cientificamente rigorosa da sua condição.

Mas desta vez, precisamos de uma campanha mais vasta e global que cubra não apenas uma doença, mas a panóplia de falhas do mercado quanto a desenvolvimento de vacinas, vazio de descoberta de antibióticos, doenças tropicais negligenciadas e todas as doenças esquecidas da pobreza. Precisamos de um ativismo do tratamento com base na ciência que tem o objectivo estratégico, ambicioso, mas alcançável da conquista democrática da indústria farmacêutica.

Precisamos de uma campanha para destruir as doenças não lucrativas.

Colaborador

Leigh Phillips é escritora de ciência e jornalista de assuntos da UE. Ele é o autor de Austerity Ecology & the Collapse-Porn Addicts.

10 de agosto de 2014

Petróleo e Erbil

Por que os EUA estão lançando bombas para defender a cidade curda, dois anos e meio depois que as tropas americanas deixaram o Iraque?

Steve Coll


Créditos: Sebastian Meyer/Corbis.

Tradução / Para defender Erbil: essa foi a principal causa que levou o presidente Obama de volta à guerra no Iraque semana passada, dois anos e meio depois de cumprir promessa de campanha e retirar de lá os últimos soldados.

Depois de Mazar-i-Sharif, Nasiriyah, Kandahar, Mosul, Benghazi, e incontáveis outros pontos de intervenção militar da América – cidades cujos nomes derrotariam todos os candidatos de programas de “adivinhe onde fica” antes de 2001 – chegamos agora a Erbil. Pode-se perdoar o isolacionista: Onde?

Erbil tem longa história, mas, em termos de política econômica, entende-se melhor a cidade hoje como uma espécie de “Deadwood” curda, como no seriado de David Milch para a HBO, sobre uma cidade da corrida do ouro, cujo anti-herói, Al Swearengen, convence um governo local a inventar por ali um verniz de governo e normalidade, porque interessa aos negócios dele.

Erbil é a cidade da corrida do petróleo, onde os poderes locais manobram similarmente seus ambíguos poderes para garantir ganhos financeiros – deles mesmos e de qualquer pioneiro selvagem esperto o bastante para conseguir investir dinheiro sem ser imediatamente roubado.

Erbil é a capital do Governo Regional Curdo & Petróleo, no norte do Iraque. Ali a América construiu alianças políticas e armaram milícias peshmerga curdas muito antes de o governo Bush invadir o Iraque em 2003. Desde 2003, tem sido o local mais estável de um país instável. Mas semana passada, guerrilheiros muito bem armados, leais ao Estado Islâmico no Iraque e Levante (EIIL), ameaçaram os arredores de Erbil, o que forçou a espetaculosa ação de Obama. (O presidente também ordenou operações aéreas para entregar ajuda humanitária a dezenas de milhares de yazidis e outras minorias não muçulmanas cercadas no remoto Monte Sinjar. Um Curdistão seguro garantiria santuário para esses sobreviventes).

“A região curda é funcional do modo como gostaríamos de ver” – Obama explicou em fascinante entrevista que deu a Thomas Friedman, publicada na sexta-feira (8 de agosto de 2014). “É tolerante com outras seitas e outras religiões, como gostaríamos de ver em outros pontos. Por isso achamos importante assegurar que esse espaço esteja protegido”. Dito assim, até parece verdade, e até certo ponto é convincente.

O Curdistão é, sim, um dos já raros aliados confiáveis da América no Oriente Médio, nesses tempos. A economia conheceu um boom em anos recentes, atraindo investidores de todo o mundo, o que fez erguer-se ali um fulgurante novo aeroporto internacional com as mais modernas e também fulgurantes facilidades e serviços. Claro, comparado à, digamos, Jordânia ou Emirados Árabes Unidos, o Curdistão tem um déficit terrível, na condição de aliado da América: o Curdistão não é estado. Nem tem nada a ver com fabricar a unidade nacional do Iraque, que continua a ser o principal projeto do governo Obama no Iraque. Vistas as coisas por esse ângulo, a explicação que Obama ofereceu para seu casus belli pareceu um pouco incompleta.

Conselheiros de Obama explicaram aos jornalistas que Erbil abriga um consulado dos EUA e que “milhares” de norte-americanos vivem lá. A cidade tem de ser defendida, dizem eles, contra o risco de o ISIL passar por lá, destruir tudo e ameaçar vidas de norte-americanos. Tudo muito bem, mas... O que fazem lá, em Erbil, os tais milhares de norte-americanos? Em busca de ar puro é que não estão.

ExxonMobil e Chevron estão entre as muitas empresas de petróleo e gás com contratos grandes e pequenos para perfurar no Curdistão, contratos cujos números compensam as empresas pelo risco político sempre alto. (Chevron informou, semana passada, que estava retirando alguns expatriados do Curdistão; ExxonMobil não quis comentar). Com essas gigantes do petróleo chegaram, como sempre os de sempre: empresas de serviço nos campos de petróleo, contadores, empresas de construção, de transporte e, no fundo do poço da cadeia econômica, diversos empreendedores cavando espaço.

Percorrer com os olhos a lista telefônica da Câmara de Comércio de Erbil é uma experiência poética, só dos nomes dos empreendimentos: Cozinha dos Sonhos, Sonho Vivo, Ouro Puro, Gala Eventos, Emoções Eventos e o endereço onde eu pensaria em fazer minha última refeição, se colhido no torvelinho de um massacre do EIIL, “Famous Cheeses Teak”.

Não tem nada a ver com petróleo. Depois que você tiver escrito essa frase 500 vezes no quadro, até aprender, assista ao documentário “Why We Did It” de Rachel Maddow, para conhecer uma visão altamente sofisticada, embora agudamente jornalística, e entender de uma vez por todas que a economia mundial do petróleo sempre esteve lá, desde o início, como parceira silenciosa do fiasco da América no Iraque.

Claro que é dever do presidente Obama defender vidas e interesses da Améirca, em Erbil e onde for, com petróleo ou sem. Mas o caso é que, em vez de ordenar a imediata evacuação dos cidadãos, ele ordenou uma campanha de ataques aéreos que vai durar meses, para defender o status quo do Curdistão, em campo – presumivelmente, seria essencial para um Iraque unificado capaz de isolar o EIIL. Mas o status quo no Curdistão inclui produção de petróleo por empresas internacionais, como seria honesto declarar. Tudo bem. A defesa do Curdistão que Obama ordenou deve funcionar, se a peshmerga curda puder ser novamente recolhida, reunida e fortalecida em campo, depois de uma alarmante retirada, semana passada.

Mas há buracos na lógica de Obama sobre Erbil. O presidente disse claramente, na semana passada, que ainda acredita que um governo duradouro de unidade nacional – que inclua líderes sérios da maioria xiita do Iraque, curdos e sunitas que se opõem ao EIIL – possa ser formado em Bagdá, ainda que exija mais semanas, além dos três meses de dificuldades que já se passaram desde a mais recente eleição parlamentar no país.

O projeto de um governo unificado em Bagdá, forte o bastante para derrotar o EIIL com um exército nacionalista e na sequência extrair dele os seguidores dos sunitas parece cada vez mais uma ideia delirante; era difícil, na entrevista a Friedman, entender de que lado Obama realmente estava.

Por que tem sido tão difícil construir qualquer tipo de unidade política em Bagdá e há tanto tempo? Há muitas razões  importantes – a desastrosa decisão dos América de desmobilizar o Exército Iraquiano, em 2003, e de apoiar a furiosa des-Baathificação, que afastou os sunitas, distanciamento que ainda não foi corrigido; ódio sectário crescente entre xiitas e sunitas; o envolvimento de sunitas com a filosofia da Al-Qaeda e com o dinheiro e “soft Power” do Golfo Persa; a interferência do Irã; as dificuldades das fronteiras pós-coloniais do Iraque; o mau governo em Bagdá, particularmente sob o primeiro-ministro, Nouri al-Maliki. Mas outra razão, e de primeira ordem, é que a América cobiça o petróleo dos curdos.

Durante o governo Bush, aventuras como a da empresa Hunt Oil, que tem sede em Dallas, pavimentaram o caminho para a ExxonMobil, que acertou um negócio em Erbil em 2011. Bush e seus conselheiros não conseguiram forçar empresas americanas de petróleo, como a Hunt, a sair do Curdistão nem a sancionar investidores não americanos. Deixaram os gatos selvagens agir como bem entendessem, sempre insistindo que os políticos de Erbil negociassem uma partilha de lucros do petróleo e a unidade política, com Bagdá. O governo de Erbil nunca entendeu exatamente a necessidade de um compromisso final com políticos xiitas de Bagdá – e com os curdos ficando cada vez mais ricos, nos seus próprios termos, eles passaram a atrair empresas de petróleo mais confiáveis e mais ricas; assim, cada vez mais foi criando uma impressão de que aquele governo governava um estado de-facto. O governo Obama nada fez para reverter essa tendência.

Assim também, em Erbil, nas semanas vindouras, pilotos americanos defenderão por ar a capital cuja crescente independência e crescente riqueza já afrouxaram os laços com o Iraque, ao mesmo tempo em que, em Bagdá, diplomatas da América ainda insistem quixotescamente no esforço para alinhar todos os pedaços do mesmo país, para enfrentar o EIIL.

Obama a defender Erbil defende, de fato, um estado-petróleo curdo não declarado. Sobre as fontes de sedução geopolítica desse estado – como fornecedor não russo, de longo prazo, de gás para a Europa, por exemplo – melhor não falar, se houver crianças ou gente civilizada na sala, como Al Swearengen, do seriado Deadwood, entenderia. A vida – como disse Swearengen num episódio – é quase sempre feita de “um serviço sujo depois do outro”. É como a política da América no Iraque.

Steve Coll, a staff writer, is the dean of the Graduate School of Journalism at Columbia University. His latest book is “Directorate S: The C.I.A. and America’s Secret Wars in Afghanistan and Pakistan.”

5 de agosto de 2014

Zygmunt Bauman: "Gaza tornou-se um gueto. Com o apartheid, Israel nunca construirá a paz"

A amargura do intelectual polonês de origem judaica. Tendo fugido do Holocausto, ele não poupa críticas ao Hamas e a Netanyahu: "Eles pensam na vingança, não na convivência. Infelizmente, está acontecendo o que estava amplamente previsto. A Shoah é a prova daquilo que os homens são capazes de fazer a outros seres humanos em nome dos seus interesses. Uma lição nunca leva seriamente em consideração."

Antonello Guerrera



Tradução / "Aquilo que estamos assistindo hoje é um espetáculo triste: os descendentes das vítimas dos guetos nazistas tentam transformar a Faixa de Gaza em outro gueto." Quem diz isso não é um palestino furioso, mas Zygmunt Bauman, um dos principais intelectuais contemporâneos, de família judaica que escapou do Holocausto ordenado por Hitler, graças a uma tempestiva fuga para a URSS em 1939.

Bauman tem 88 anos, seu pai era um granítico sionista e, ao longo dos anos, eviscerou como poucos a aberração e as consequências da Shoah. Até agora, o grande estudioso polonês não quisera se expressar publicamente sobre o recrudescimento do abissal conflito israelense-palestino. Mas agora, depois de ter se referido à questão há alguns dias no Futura Festival de Civitanova Marche, em um encontro organizado por Massimo Arcangeli, Bauman confessa a sua amargura nesta entrevista ao La Repubblica.

Professor Bauman, o senhor é um dos maiores intelectuais contemporâneos e é de origem judaica. Qual foi a sua reação à ofensiva israelense em Gaza, que até agora provocou quase dois mil mortos, muitos deles civis?

Isso não representa nada de novo. Está acontecendo o que tinha sido amplamente previsto. Por muitos anos, israelenses e palestinos viveram em um campo minado, prestes a explodir, mesmo que nunca saibamos quando. No caso do conflito israelense-palestino, foi a prática do apartheid – nos termos de separação territorial exacerbada pela recusa ao diálogo, substituído pelas armas – que sedimentou e atiçou essa situação explosiva. Como escreveu o estudioso Göran Rosenberg no jornal sueco Expressen no dia 8 de julho, antes da invasão de Gaza, Israel pratica o apartheid recorrendo a "dois sistemas judiciários claramente diferentes: um para os colonos israelenses ilegais e outro para os palestinos 'foras da lei'.

Além disso, quando o exército israelense acreditou ter identificado alguns suspeitos palestinos [na caça aos responsáveis pelo homicídio de três adolescentes israelenses sequestrados na Cisjordânia em junho passado], pôs sob ferro e fogo as casas dos seus pais. Ao contrário, quando os suspeitos eram judeus [pelo caso posterior do menino palestino queimado vivo], não aconteceu nada de tudo isso. Este é o apartheid: uma justiça que muda com base nas pessoas. Sem falar nos territórios e nas estradas reservadas apenas a poucos". E eu acrescento: os governantes israelenses insistem, com razão, no direito do próprio país viver em segurança. Mas o seu erro trágico reside no fato de que concedem esse direito só a uma parte da população do território que controlam, negando-o aos outros.

Como o senhor mesmo destaca, no entanto, Israel deve defender a sua existência ameaçada pelo Hamas. Há quem diga, como os EUA, que a reação do Estado judaico contra Gaza é dura, mas necessária, e quem a julgue como excessiva e "desproporcional". O que o senhor acha?

E como seria uma reação violenta "proporcional"? A violência freia a violência como a gasolina no fogo. Quem comete violência, de ambas as partes, compartilha o compromisso de não apagar o incêndio. No entanto, a sabedoria popular (quando não está cega pelas paixões) nos lembra: "Quem semeia vento colhe tempestades". Essa é a lógica da vingança, não da convivência. Das armas, não do diálogo. De maneira mais ou menos explícita, é cômodo a ambos os lados do conflito a violência do adversário para revigorar as suas próprias posições. E e o resultado é: tanto o Hamas quanto o governo israelense, tendo concordado que a violência é o único remédio para a violência, defendem que o diálogo é inútil. Ironicamente, mas também dramaticamente, ambos poderiam ter razão.

O que o senhor pensa, especificamente, do primeiro-ministro israelense, Netanyahu, e do seu governo? Ele cometeu erros?

Netanyahu e os seus associados, e ainda mais os israelenses que anseiam pelo seu próprio posto, esforçam-se para fomentar o desejo de vingança contra os seus adversários. Espalham sementes de ódio, porque temem que o ódio do passado enfraqueça. À luz da sua estratégia, esses não são "erros". Os governantes israelenses têm mais medo da paz do que da guerra. Além disso, eles nunca aprenderam a arte de governar em contextos pacíficos. E, ao longo dos anos, conseguiram contaminar grande parte de Israel com a sua abordagem. A insegurança é a sua melhor, e talvez única, vantagem política. E talvez vencerão facilmente as próximas eleições aproveitando-se dos medos dos israelenses e do ódio dos vizinhos, que fizeram de tudo para fortalecer.

No passado, o senhor foi um crítico do sionismo e do uso que Israel faz da tragédia do Holocausto para justificar as suas ofensivas militares. O senhor ainda pensa assim?

Raramente a vitimização enobrece as suas vítimas. Ou, melhor, quase nunca. Muito frequentemente, no entanto, provoca uma única arte, que é a do sentir-se perseguido. Israel, nascido depois do extermínio nazista contra os judeus, não é uma exceção. Estamos diante de um triste espetáculo: os descendentes das vítimas nos guetos tentam transformar a Faixa de Gaza em um gueto que beira a perfeição (acesso bloqueado na entrada e na saída, pobreza, limitações), fazendo com que alguns tomem o seu testemunho no futuro.

A esse respeito, o que o senhor pensa do silêncio de políticos e intelectuais europeus sobre o conflito que explodiu novamente em Gaza?

Acima de tudo, não existe a "comunidade internacional" de que falam norte-americanos e europeus. Estão em jogo apenas coalizões extemporâneas, ditadas por interesses particulares. Em segundo lugar, como observou Ivan Krastev, celebrando o centenário do início da Grande Guerra, nós, europeus, temos bem em mente que uma reação "excessiva", como a do homicídio de Francisco Ferdinando, levou à catástrofe "que ninguém queria ou esperava".

O senhor escreveu no passado que a sociedade moderna não aprendeu a gélida lição do Holocausto. Esse conceito também pode ser aplicado ao conflito israelense-palestino?

As lições do Holocausto são muitas. Mas pouquíssimas delas foram seriamente levadas em consideração. E muito menos foram aprendidas – sem falar naquelas que realmente foram postas em prática. A mais importante dessas lições é: o Holocausto é a prova inquietante daquilo que os humanos são capazes de fazer a outros seres humanos em nome dos seus próprios interesses.

Outra lição é: não pôr um freio nessa capacidade dos humanos provoca tragédias, físicas e/ou morais. Essa lição, no nosso mundo veloz, globalizado e irreversivelmente multicêntrico, adquire ainda uma importância universal, aplicável a todos os antagonismos locais. Mas não há uma solução de curto prazo para o impasse atual. Aqueles que pensam só em se armar ainda não aprenderam que, por trás das duas categorias de "agressores" e "vítimas" da violência, há uma humanidade compartilhada. Nem percebem que a primeira vítima de quem exerce violência é própria humanidade. Como escreveu Asher Schechter no Haaretz, a última onda de violência na região "fez com que Israel desse mais um passo para aquele torpor emotivo que se recusa a ver qualquer sofrimento que não seja o próprio. E isso é demonstrado por uma nova e violenta retórica pública".

1 de agosto de 2014

As chances do Hamas

Nathan Thrall

London Review of Books


Tradução / A atual guerra na Faixa de Gaza não foi Israel ou o Hamas que procurou. Mas os dois lados sabiam com certeza absoluta que um novo confronto viria. O cessar-fogo de 21 de novembro de 2012, que pôs fim a oito dias de fogo, foguetes de Gaza contra Israel e bombardeio aéreo de Israel contra Gaza, jamais foi implementado. Aquele acordo estipulava que todas as facções palestinas em Gaza suspenderiam as hostilidades contra Israel e que Israel suspenderia todos os ataques contra Gaza por terra, mar e ar – inclusive o “alvo de indivíduos” (assassinatos, quase sempre por mísseis disparados de drones controlados à distância) – e que o cerco de Gaza acabaria, dado que Israel aceitou, por aquele acordo de 2012, “abrir as passagens e facilitar o deslocamento de pessoas e transferência de produtos, pondo fim a qualquer medida que restringisse a livre movimentação de residentes em áreas de fronteira”. Uma cláusula adicional registrava que “outros assuntos que venham a ser solicitados serão discutidos” – que parece fazer referência ao envolvimento, acordado privadamente com Egito e EUA, para ajudarem a pôr fim ao contrabando de armas para Gaza, embora o Hamas sempre tenha negado essa interpretação para essa cláusula.

Durante os três meses depois daquele cessar-fogo, o Shin Bet só registrou um ataque: dois morteiros disparados de Gaza, em dezembro de 2012. Os funcionários israelenses ficaram impressionados. Mas convenceram-se rapidamente de que a calma na fronteira de Gaza seria, em primeiro lugar, efeito da contenção pelos israelenses e de os palestinos terem entendido qual seria o interesse deles. Israel, por isso, não viu um motivo forte para aplicar a parte que lhe cabia aplicar daquele acordo. Nos três meses seguintes, depois do cessar-fogo, as forças israelenses atacaram Gaza com regularidade, atacaram agricultores palestinos e os que recolhiam lixo em áreas próximas à fronteira, e atiraram contra barcos de pesca, impedindo os pescadores de terem acessos à maioria dos pesqueiros no mar de Gaza.

A abertura do cerco de Gaza jamais aconteceu. As passagens foram mantidas permanentemente fechadas. As chamadas “zonas de amortecimento” – terras agricultáveis nas quais os agricultores de Gaza não poderiam pisar sob risco de serem mortos a tiros – foram restabelecidas. As importações caíram, as exportações foram bloqueadas e habitantes de Gaza obtiveram autorização para entrar em Israel e na Cisjordânia.

Israel tinha se comprometido a realizar negociações indiretas com o Hamas sobre a implementação do acordo de cessar-fogo, mas sempre adiou as reuniões, primeiro porque queria ver se o Hamas iria manter a sua parte do acordo; depois, porque Netanyahu não podia fazer qualquer concessão ao Hamas nas semanas antes das eleições de janeiro de 2013; depois, porque uma nova coalizão israelense estava sendo formada e precisava de tempo para ser implantada. A lição para o Hamas era clara. Ainda que um acordo fosse negociado por EUA e Egito, Israel poderia deixar de honrá-lo.

Mas o Hamas continuou a manter o cessar-fogo, para grande satisfação de Israel. Implantou uma nova força policial encarregada de prender palestinos que tentassem lançar foguetes. Em 2013, houve ainda menos foguetes lançados de Gaza, que em qualquer ano desde 2003, logo depois que os primeiros rojões primitivos começaram a ser lançados para o outro lado da fronteira. O Hamas precisava de tempo para reconstituir seu arsenal, fortificar suas defesas e preparar-se para a batalha seguinte, quando usaria suas forças armadas para tentar pôr fim ao cerco de Gaza. Mas também esperava que o Egito iria abrir-se a Gaza, pondo fim ao período durante o qual Egito e Israel se dedicaram a escapar, os dois lados, à responsabilidade pelo território e seus habitantes reduzidos à miséria, o que tornaria menos decisivamente importante conseguir que Israel aliviasse o cerco.

Em julho de 2013, o golpe de Estado no Cairo liderado pelo general Sisi acabou com as esperanças do Hamas.. O regime militar de Sisi culpou o deposto presidente Morsi, da Fraternidade Muçulmana, e o Hamas, braço palestino do mesmo grupo, por todas as desgraças do Egito. As duas organizações foram banidas do Egito. Morsi foi formalmente acusado de conspirar com o Hamas para desestabilizar o Egito. O líder da Fraternidade Muçulmana e centenas de apoiadores de Morsi foram condenados à morte. Os militares egípcios usaram uma retórica cada vez mais ameaçadora contra o Hamas, que passou a temer que o Egito, Israel e a Autoridade Palestina liderada pelo Fatah se aproveitassem de sua fraqueza para lançar uma campanha militar coordenada. Proibições de viagem foram impostas aos funcionários do Hamas. O número de habitantes de Gaza autorizados a entra no Egito foi reduzido a uma pequena fração do que havia sido antes do golpe. Quase todas as centenas de túneis que haviam levado bens do Egito para Gaza foram fechados. O Hamas usava impostos cobrados sobre esses bens para pagar os salários dos mais de 40 mil funcionários públicos em Gaza.

Antigos aliados e os primeiros apoiadores do Hamas, Irã e Síria, não iria ajudá-lo, a menos que o Hamas deixasse de apoiar a Fraternidade Muçulmana e passasse a apoiar o governo do alawita Bashar al-Assad, na guerra cada dia mais sectária na Síria contra o que se convertera em oposição predominantemente sunita. Os aliados que restavam ao Hamas tinham seus próprios problemas: a Turquia, preocupada com os tumultos internos; o Qatar pressionado pelos vizinhos, para reduzir seu apoio à Fraternidade, que as demais monarquias do Golfo veem como principal ameaça contra elas. A Arábia Saudita declarou a Fraternidade “organização terrorista”; outros estados do Golfo continuavam a reprimir os Irmãos. Na Cisjordânia, o Hamas não podia hastear uma bandeira, fazer um discurso ou uma reunião, sem o risco de ter seus membros presos por Israel ou pelas forças de segurança da Autoridade Palestina.

Com a pressão aumentando e sem aliado forte ao qual recorrer, a queda de Gaza foi rápida. Embora Israel tenha “respondido” ao fechamento dos túneis pelo Egito e à licença para que pedestres cruzassem a fronteira, com pequeno aumento na oferta de bens e no número de licenças para sair da Faixa de Gaza, não houve mudança na sua política fundamental. A escassez de eletricidade aumentou, com apagões diários com duração entre 12 e 18 horas por dia. Os necessitados de tratamento em hospitais egípcios pagavam propinas de até US$ 3000 para cruzar a fronteira, vez ou outra, quando era ocasionalmente aberta por um dia. Os racionamentos de combustíveis faziam com que se formassem filas de vários quarteirões nos postos, e brigas em torno das bombas. O lixo continuava empilhado nas ruas porque o governo não tinha meios para comprar combustível para os caminhões de coleta. Em dezembro, as usinas de tratamento de esgoto e água foram fechadas e o esgoto passou a escorrer pelas ruas. A crise da água piorou: mais de 90 por cento do aquífero de Gaza já estava contaminado.

Quando se tornou evidente que a agitação no Egito não levaria a Sisi ser deposto ou ao retorno da Irmandade, o Hamas viu apenas quatro possíveis saídas. A primeira foi a aproximação com o Irã, ao preço inaceitável de trair a Fraternidade na Síria e enfraquecer o apoio ao Hamas entre os próprios palestinos e a maioria dos muçulmanos sunitas em todo o mundo. A segunda foi criar novos impostos em Gaza, mas nenhum novo imposto compensaria a perda da renda dos túneis; e qualquer novo imposto contribuiria a favor da oposição ao Hamas. A terceira foi lançar foguetes contra Israel, na esperança de que um novo cessar-fogo trouxesse alguma melhoria nas condições em Gaza. Essa possibilidade horrorizou os funcionários dos EUA: minaria a cordata liderança palestina em Ramallah e poria fim às negociações de paz que John Kerry lançou no mesmo mês do golpe do general Sisi. Mas o Hamas sentiu-se vulnerável demais, especialmente por causa do papel potencial de Sisi em qualquer novo conflito entre Gaza e Israel, para adotar essa terceira possibilidade. Quanto às negociações de paz, não cabia dúvida alguma de que também fracassariam. A última opção, que o Hamas finalmente escolheu, foi entregar toda a responsabilidade pelo governo de Gaza a prepostos do Fatah, da liderança em Ramallah, apesar de eles terem sido derrotados nas eleições de 2006.

O Hamas pagou um preço alto, aceitando quase todas as demandas do Fatah. O novo governo da Autoridade Palestina não incluiu nenhum membro do Hamas ou aliado do Hamas, e todas as principais figuras do governo da Autoridade Palestina permaneceram em seus postos. O Hamas concordou com que a Autoridade Palestina deslocasse de volta para Gaza vários milhares de seus guardas de segurança; que pusesse seus guardas nas fronteiras e postos de passagem, sem posição recíproca para o Hamas no aparelho de segurança na Cisjordânia. Mais importante, o governo anunciou que aceitava as três condições impostas pelos EUA e aliados em troca de uma ajuda ocidental longamente esperada: não violência, cumprimento de acordos passados e o reconhecimento de Israel. Embora o acordo estipulasse que o governo da Autoridade Palestina se absteria de fazer política, Abbas anunciou que manteria seu programa político. O Hamas mal protestou.

O acordo foi assinado em 23 de abril de 2014, depois que os diálogos de paz de Kerry fracassaram; se as negociações tivessem feito algum progresso, os EUA teriam feito o máximo que pudessem para impedir que o acordo fosse assinado. Mas o governo Obama estava desapontado com as posições que Israel assumiu durante as negociações e declarou Israel culpada por parte do fracasso. A frustação ajudou a empurrar os EUA a reconhecer o novo governo palestino, apesar das objeções de Israel. Mas isso era o mais longe até onde iriam os EUA. Por trás das cortinas, os EUA pressionavam Abbas para que evitasse qualquer verdadeira reconciliação entre o Hamas e o Fatah. O Hamas buscou reativar o conselho legislativo palestino deixado esquecido há muito tempo, para que fiscalizasse o novo governo. Mas a assembleia tem a maioria dos membros do Hamas e os EUA advertiu Abbas que cortaria o apoio financeiro e político ao novo governo se a assembleia voltasse a se reunir

O acordo de reconciliação era impopular dentro Hama. Dos movimentos de base ao segundo escalão da liderança, todos entendiam que o acordo geraria problemas terríveis. Moussa Abu Marzouk, alto dirigente do gabinete político, passou semanas em Gaza em reuniões com quadros do Hamás, ouvindo suas preocupações e tentando convencê-los da sabedoria do acordo. Os militantes temiam que o pessoal de segurança do Fatah tentasse vingar as mortes resultantes da luta entre Hamás e Fatah em 2006 e 2007, e iniciassem nova guerra civil. Comandantes do Hamás queriam garantias de que a Autoridade Palestina não estenderia sua colaboração com Israel e contra o Hamás, da Cisjordânia para dentro da Faixa de Gaza. Funcionários públicos, milhares dos quais não são membros do Hamás, temiam ser despedidos, dispensados ou ficar sem salários. Outros diziam que o Hamás cedera tudo, sem qualquer garantia de que o Fatah cumpriria o que prometera. Um dos argumentos que os líderes do Hamás apresentavam para ter assinado o acordo foi que o acordo permitiria que o movimento se focasse na sua própria missão original: a resistência militar contra Israel.

Tão logo o governo foi formado, todos os medos dos ativistas do Hamás começaram a confirmar-se. Os termos do acordo não apenas eram desfavoráveis: eles tampouco foram postos em prática. A condição mais básica do acordo – que o governo pagaria os funcionários públicos que fazem Gaza funcionar e que seria aberta a passagem com o Egito – ficaram no papel. Ao longo de anos, os gazenses ouviram dizer e repetir que todos os seus sofrimentos eram culpa do governo do Hamás. Já não havia governo do Hamás, e as condições de vida na Faixa de Gaza haviam piorado muito.

*

Em 12 de junho de 2014, dez dias depois de formado o novo governo, um evento inesperado mudou radicalmente o destino do Hamas. Três estudantes israelenses foram sequestrados e mortos quando voltavam da escola religiosa na Cisjordânia. Quando os cadáveres foram encontrados, um grupo de judeus israelenses capturaram um palestino de 16 anos perto de sua casa em Jerusalém Leste, jogaram-lhe gasolina sobre o corpo e o queimaram vivo. Irromperam protestos entre os palestinos em Jerusalém, Negev e Galileia, e a Cisjordânia permaneceu relativamente calma. Israel culpou o Hamas pelo assassinato dos estudantes que saíam da escola religiosa, apesar de vários funcionários da segurança de Israel terem declarado que acreditavam que os criminosos tivessem agido por conta própria, sem ordens superiores.

Em sua busca pelos suspeitos, Israel fez sua maior campanha na Cisjordânia contra o Hamas desde a Segunda Intifada: fechou escritórios do Hamas e prendeu centenas de membros de todos os níveis. O Hamás negou responsabilidade pelas capturas e disse que as acusações de Israel eram pretexto para iniciar uma ofensiva contra o grupo. Dentre os presos estavam mais de 50 dos 1.027 prisioneiros que haviam sido libertados em 2011, na troca pelo soldado israelense Gilad Shalit, capturado em combate pelo Hamás. O Hamás viu essas prisões como mais uma violação do acordo Shalit, que especifica as condições sob as quais os prisioneiros libertados poderiam voltar a ser presos, e contém outros dispositivos que Israel jamais cumpriu, sobre melhoria de condições dos demais prisioneiros palestinos e direitos a receber visitas.

A liderança palestina em Ramallah trabalhou em íntima coordenação com Israel para prender militantes, e raramente resultou tão desprestigiada entre seus próprios eleitores, muitos dos quais creem que sequestrar israelenses é o único meio efetivo para obter a liberdade de prisioneiros que a ampla maioria do país vê como heróis nacionais. Em inúmeras cidades da Cisjordânia, os moradores protestaram contra a colaboração entre a segurança da Autoridade Palestina e Israel. Um ex-ministro de Assuntos Religiosos, muito próximo de Abbas, foi com seus guarda-costas à Mesquita al-Aqsa; pessoas que lá rezavam os atacaram e todos tiveram de ser hospitalizados. O emissário que Abbas enviou para visita de condolências à família do adolescente palestino assassinado foi expulso da casa.

Com os protestos espalhando-se por Israel e Jerusalém, militante em Gaza, de grupos não ligados ao Hamas, começaram a lançar foguetes e morteiros em movimento de solidariedade. Sentindo a vulnerabilidade de Israel e a fragilidade da liderança em Ramallah, líderes do Hamas ordenaram que os protestos fossem ampliados até converterem-se numa terceira intifada. Quando o fogo dos foguetes aumentou, viram-se arrastados para um novo dilema: não podiam ser vistos proibindo os ataques e, ao mesmo tempo, conclamando para um levante em massa. A retaliação de Israel culminou no bombardeio de 6 de julho, que matou vários militantes do Hamas, o maior número de baixas que o grupo sofreu em vários meses. Dia seguinte, o Hamas começou a chamar para si toda a responsabilidade pelos foguetes. E Israel então anunciou a “Operação Linha Protetora”.

Para o Hamas, a escolha não foi tanto entre paz e guerra, quanto entre morrer por estrangulamento lento e uma guerra que tinha uma chance, embora pequena, de afrouxar o nó. O Hamas vê-se numa batalha pela própria sobrevivência. Seu futuro em Gaza depende do desenlace. Como Israel, o Hamás definiu limites bem definidos, objetivos com os quais simpatiza grande parte da comunidade internacional.

O principal objetivo é conseguir que Israel honre os três acordos passados: o acordo da troca do prisioneiro Shalit, inclusive com a libertação dos antigos prisioneiros soltos e agora novamente presos; o acordo do cessar-fogo de novembro de 2012, que determina o fim do cerco da Faixa de Gaza; e o acordo de reconciliação de abril de 2014, que permite que o governo palestino pague salários em Gaza, mantenha funcionários seus nas fronteiras, receba o material de construção desesperadamente necessário e reabra a passagem de pedestres entre Gaza e o Egito.

Estes não são objetivos irrealistas e há crescentes sinais de que o Hamas tem boa chance de obter pelo menos alguns desses objetivos. Obama e Kerry disseram que acreditam que o cessar-fogo deva basear-se no acordo de novembro de 2012. Os EUA também mudaram sua posição sobre o pagamento de salários em Gaza, e propuseram, num rascunho de acordo apresentado a Israel dia 25/7, que os fundos sejam transferidos para os funcionários em Gaza. Durante a guerra, Israel decidiu que poderia resolver seu problema de Gaza com a ajuda do novo governo de Ramallah que, antes, Israel havia formalmente boicotado. O ministro da Defesa de Israel disse que esperava que um cessar-fogo serviria para implantar forças de segurança do novo governo de Ramallah nas passagens de fronteira em Gaza. Netanyahu também já começou a baixar o tom de voz sobre Abbas. Perto do fim da terceira semana de combates, Israel e os EUA discretamente fingiram que não viram que o governo palestino pagou todos os funcionários que trabalham em Gaza, pela primeira vez. Funcionários israelenses em todo o espectro político já começam a admitir privadamente que sua política anterior para Gaza foi errada. Todas as partes envolvidas em mediar um cessar-fogo já cogitam arranjos pós-guerra que efetivamente fortalecerão o novo governo palestino e seu papel em Gaza – e, por extensão a própria Gaza.

Conseguir a libertação dos prisioneiros presos novamente, será muito mais difícil. Mas se a guerra prossegue, e uma incursão por terra torna-se mais provável, as chances de o Hamas capturar um soldado israelense aumentam. O Hamas já tentou pelo menos quatro vezes capturar um soldado israelense até agora e pode ter tido sucesso em duas delas (já há hoje, 1/8/2014, pelo menos um soldado israelense capturado em combate – embora os jornalistas brasileiros só falem em “soldado sequestrado”, como se tivesse sido sequestrado no supermercado. Não. Foi capturado em combate [NTs]). Israel nega que a primeira tenha sido bem sucedida e, no momento em que redijo esse artigo, Israel ainda procura pelo segundo soldado não localizado. Poucas coisas desmoralizariam mais completamente o governo de Ramallah que um novo acordo de troca de prisioneiros com o Hamás, mesmo que em escala menor que o acordo Shalit. Quando o Hamas anunciou que capturara um soldado israelense dia 20/7/2014, multidões acorreram para as ruas de Gaza, Jerusalém e na Cisjordânia, soltando fogos de artifício e distribuindo doces e balas pelas ruas, com renovada esperança de voltar a ver amigos e parentes presos nas prisões israelenses.

Protestos palestinos em solidariedade com Gaza se espalharam. Já se viam mais bandeiras do Hamas que do Fatah em recente protesto em Nablus. A liderança em Ramallah, embora não muito convincentemente, adotou parte da retórica do Hamás, usando com frequência a palavra “resistência” e elogiando a luta do Hamás. Tem havido confrontos em pontos da Cisjordânia e em Jerusalém Leste quase todas as noites. Dia 24 de julho de 2014, na noite de Laylat al-Qadr, dia santificado para os muçulmanos, o ponto de controle de Qalandiya, no norte de Jerusalém, foi cenário da maior manifestação popular em toda a Cisjordânia desde a Segunda Intifada. O Hamas sabe que não pode derrotar militarmente Israel, mas a guerra de Gaza guarda a possibilidade de uma recompensa distante, mas não menos importante: agitar a Cisjordânia, minar a liderança de Ramallah e todo o programa de negociação perpétua e perpétua concessão e perpétua dependência dos EUA, que o governo de Ramallah representa.

Para muitos palestinos, o Hamas demonstrou, mais uma vez, a efetividade comparativa da militância. Os túneis, que foram fator decisivo para os sucessos do Hamas na atual guerra são motivo dos ataques dos israelenses contra Gaza desde bem antes da retirada de Israel em 2005. O Hamas destaca sempre uma série de ataques baseados nos túneis, inclusive a explosão de dezembro de 2004, no subsolo de um posto do exército de Israel no sul de Gaza, que ajudou a precipitar a retirada israelense. Desde que os combates em Gaza recomeçaram, esse verão, Israel não anunciou sequer uma única nova colônia e já manifestou disposição para fazer algumas concessões em demandas palestinas – conquistas que o governo de Ramallah nunca sequer se aproximou de alcançar apesar dos muitos anos de negociações. O resultado da luta ajudará a determinar o caminho futuro do movimento nacional palestino.

O verdadeiro obstáculo que impede um levante na Cisjordânia jamais foi, como o Hamas tem dito, a colaboração de Abbas com Israel. Obstáculo real é a fragmentação social e política, e a ideia que se vai implantando entre os palestinos, sem encontrar qualquer oposição, de que a libertação nacional deva ser o segundo objetivo, superado de longe, em importância, por projetos apolíticos e tecnocráticos de construção do estado e de desenvolvimento econômico. Esses são os maiores obstáculos que o Hamas enfrenta. Se a guerra mais recente conseguiu instilar algum orgulho nas multidões palestinas, que dizem que já se acostumaram a sentir vergonha do modo como seus líderes rastejam aos pés de norte-americanos e israelenses, a vitória do Hamas não foi pequena.

Mas o Hamas também se arriscou muito. Pode perder tudo, no caso de Israel reavaliar a posição, mantida há muito tempo, de que o Hamas pode ser deixado com a tarefa de policiar Gaza, estratégia que tem mantido o Hamas suficientemente forte em Gaza para exercer algo bem perto de monopólio do uso da força. Ironia das semanas recentes de combate em campo é que a demonstração de poder do Hamas está pondo em risco a própria posição deles, em Gaza. Israel pode decidir que o Hamas está forte demais e é ameaça grande demais. O Hamas conseguiu deter (no sentido de ter tornado extremamente lenta) a incursão dos israelenses por terra e infligiu dúzias de baixas aos soldados de Israel, muito mais do que os israelenses previam. Duas semanas depois de iniciada a ação dos “coturnos em solo”, o exército de Israel ainda não avançou além da primeira linda de território urbano densamente povoado. Graças à vasta rede subterrânea de túneis que levam não só para dentro de Israel, mas espalha-se também sob Gaza, se Israel decidir entrar nas áreas centrais das cidades, o número de baixas certamente aumentará. Durante a Operação Chumbo Derretido em 2008-09, Israel entrou muito mais fundo dentro de Gaza e perdeu só dez soldados, quatro deles em fogo amigo; em 2014, só até agora, o exército de Israel já perdeu mais de 60 soldados. As baixas de militantes do Hamás parecem ser suportáveis. Pela primeira vez em décadas, Israel defende-se contra um exército que conseguiu entrar fundo nas fronteiras de 1967 – usando túneis e em incursões navais. Os foguetes produzidos pelo Hamas já alcançam agora todas as grandes cidades de Israel, inclusive Haifa, e o Hamas já tem drones armados com foguetes. O Hamas conseguiu manter fechado o principal aeroporto de Israel durante dois dias. Israelenses que vivem perto de Gaza já abandonaram suas casas e temem retornar, porque o exército de Israel diz que é possível que ainda haja túneis não localizados. Os foguetes de Gaza obrigam os israelenses a dormir nos abrigos, noite após noite – o que mostra que o exército de Israel não está conseguindo neutralizar a ação do Hamas. Estima-se que a guerra custou ao país bilhões de dólares.

Os maiores custos, é claro, foram suportados pelos civis de Gaza, que são a maioria dos mais de 1.600 mortos até o momento do cessar-fogo anunciado e imediatamente quebrado, em 1º de agosto de 2014. A guerra matou famílias inteiras, devastou bairros inteiros, destruiu residências, cortou a eletricidade e quase todo o acesso à água. Gaza precisará de anos para se recuperar, se algum dia recuperar-se.

E parece improvável que o Hamas estará pronto para outra luta tão cedo. Assim, teve todos os incentivos para tentar alcançar seus objetivos centrais, principalmente o de pôr fim ao cerco de Gaza. Os mediadores estão tentando ajudar o povo de Gaza sem dar a impressão de que reconhecem uma vitória do Hamas e registram a derrota de Israel. O que está em jogo para Israel e Egito é o que uma suposta vitória do Hamas diz sobre o futuro da Irmandade Muçulmana na região. O que está em jogo para os aliados da Irmandade Muçulmana, Qatar e Turquia, é o significado de uma derrota. O simbolismo do conflito, ajudou a prolongá-lo.

A solução óbvia é deixar o novo governo palestino voltar a Gaza e reconstruí-la. Israel poderá dizer que enfraquece o Hamas ao fortalecer seus inimigos. O Hamas pode dizer que conseguiu reconhecimento para o novo governo e alívio considerável no bloqueio. Esta solução, claro, estavam disponpiveis para Israel, EUA, Egito e a Autoridade Palestina nas semanas e meses antes do começo da guerra, antes de tantas vidas despedaçadas.

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