1 de agosto de 2014

Retórica do populismo

Ernesto Laclau, 1935-2014

John Kraniauskas

Radical Philosophy


Tradução / A publicação de As Fundações Retóricas da Sociedade, de Ernesto Laclau, poucas semanas depois da sua morte, em abril de 2014, confirma o seu estatuto como um dos mais importantes teóricos políticos contemporâneos da esquerda. Desde os anos 1980, a sua influência tem sido enorme, em particular no Reino Unido e na América Latina: repensar as políticas democráticas de esquerda durante e depois da era Thatcher, no primeiro caso, e dotar de legitimidade teórica a recente maré-rosa neopopulista, no segundo caso. Por ocasião da sua morte, a presidente argentina Cristina Kirchner insistiu que Laclau «tinha três virtudes: pensava, fazia-o com grande inteligência e em conflito aberto com os paradigmas emitidos a partir dos centros do poder mundial». O falecido presidente da Venezuela, Hugo Chávez, alegadamente também consultava Sobre a Razão Populista (2005), e talvez tenha até aí descoberto um esboço discreto do seu retrato.

Em comum com Política e Ideologia na Teoria Marxista (1977), Novas Reflexões sobre a Revolução do nosso Tempo (1990) e Emancipação(ões) (1996), As Fundações Retóricas é um trabalho conceitual a meio caminho; uma coleção de ensaios que anuncia uma monografia por vir mais “acabada”, do tipo representado por Hegemonia e Estratégia Democrática: em Direção a uma Política Democrata Radical (1985), coescrito com Chantal Mouffe, e, mais recentemente, Sobre a Razão Populista, no qual Laclau sistematicamente estabelece as suas agora paradigmáticas versões dos conceitos de hegemonia e populismo. A maioria destes ensaios tinha sido incluída em antologias já publicadas na Argentina: Misticismo, retórica e política (2002) e Debates e combates: por um novo horizonte da política (2008); todos eles, exceto um, tinham sido primeiramente publicados em inglês. A exceção, Antagonismo, Subjetividade e Política (2012), é o mais recente. Foi publicado originalmente em espanhol, no jornal de Buenos Aires Debates y Combate, criado em 2011 e dirigido pelo próprio Laclau. Desde a sua reforma, Laclau despendeu bastante do seu tempo na cidade, comentando e participando na política da região. Este é um dos quatro ensaios do livro escrito depois da publicação de Sobre a Razão Populista. Os outros são: Porque Construir um “Povo” é a Principal Tarefa da Política Radical (uma resposta às críticas “não-terrenas” de Slavoj Zizek acerca de Sobre a Razão Populista; Laclau refere a «marcianização» da política - na qual os seus diferentes Lacans - gramsciano e hegeliano, respetivamente - são combatidos); Vida Nua ou Indeterminação Social (um engajamento crítico com o trabalho de Georgio Agamben, no qual a noção constitutiva mas unilateral de «proscrição soberana» é transformada, por via da ideia de uma proscrição bilateral “mútua”, no «antagonismo radical» constitutivo - Laclau pensa em revolução aqui); e Articulação e os Limites da Metáfora, ao qual regressarei com algum detalhe mais abaixo.

Fundações Retóricas parte do processo de produção de Sobre a Razão Populista, ao mesmo tempo que se orienta para a produção de algo novo. Efetivamente, este ensaio testa ideias já razoavelmente trabalhadas em Sobre a Razão Populista e outras apenas aí sugeridas, como a importância da figuração retórica para a política. Os quatro mais recentes ensaios são agora os contributos finais de um projeto em curso, anunciado na introdução de Fundações Retóricas, de produzir uma ontologia política do social retorizada a partir da sua consideração prévia da razão política enquanto populismo, isto é, fundamentada no antagonismo político e na articulação hegemônica emergente das reivindicações políticas rejeitadas (antagonismo populista) que instituem novas formações sociais, democratizadas (hegemonia), tal como acontece, mais radicalmente, talvez, e de formas diferentes, com os governos recentes de Chávez e Evo Morales, na Venezuela e na Bolívia; aqui concebidos como revoluções democrático-nacionais. Na medida em que o livro final de Laclau procura “retorizar” esses antagonismos e, ainda mais, as articulações hegemônicas (mais do que, por exemplo, a ideia psico-semiótica de um «significante vazio» já por si desenvolvida), do ponto de vista do seu agora tristemente interrompido projeto filosófico de produzir uma ontologia, estes ensaios - especialmente Antagonismo e Articulação - constituem as mais importantes contribuições deste volume.

Em Antagonismo, Subjetividade e Política, Laclau regressa aos argumentos que ensaiou previamente nos quais opõe a noção kantiana de «oposição real», de Lucio Colletti, à «contradição dialética» hegeliano-marxista para produzir uma versão de antagonismo, desenvolvida na sua avaliação do populismo, consonante com a versão da articulação estratégica não-dialetizável desenvolvida em Hegemonia e Estratégia Socialista. Fá-lo agora, contudo, através de uma breve reflexão sobre a noção heideggeriana de «diferença ontológica» procurando - para o dobrar de volta na sua versão de hegemonia - pensar como o hiato entre Ser e seres pode ser superado como uma fundação antifundacional. Este é uma nova partida para Laclau, mas uma vez que permanece apenas ligeiramente desenvolvido como um traço de uma possível ontologia política (e como Laclau repetidamente desenvolve uma verdadeira capacidade de produzir versões que encaixam bastante acertadamente nos seus próprios esquemas conceituais em desenvolvimento), no que se segue concentrar-me-ei na política da figuração retórica. Isto tem a vantagem adicional de facilitar uma revisão geral da teoria política hoje existente.

A performatividade da linguagem foi central na teoria política de Laclau desde os anos 1970: primeiro como «interpelação» e, mais recentemente, em Sobre a Razão Populista, como aquilo que poderia ser descrito como um princípio performativo de «hegemonização» - o processo afetivo através do qual particulares heterogêneos (reivindicações políticas) são reunidos (a «lógica da equivalência») sobre outro (agora tornado um «significante vazio») e quase-universalizados como vontade coletiva: «não há populismo sem investimento em objetos parciais». A mudança-chave na compreensão deste processo semiótico de significação política da interpelação para a hegemonização performativa não é, contudo, linguística enquanto tal, mas psicanalítica - ou antes, é uma questão das dimensões psicoafetivas da comunicação verbal: «[a]feto não é algo que exista por si só, independentemente da linguagem; constitui-se a si próprio apenas através de catexias diferenciais de uma cadeia significante». A este respeito, Sobre a Razão Populista apresenta a sua avaliação da produção do sujeito político populista como um investimento de entusiasmo numa particularidade afetiva da base para o topo (catexia), em vez de uma «convocação» à existência do topo para a base pela ordem simbólica, tal como existia no trabalho anterior de Laclau sobre o fascismo e populismo, em Política e Ideologia. Neste sentido, sugere uma democratização do processo, escrita na perspetiva de «irmãos» e «mães», ao invés de «pais», os «pequenos outros», ao invés do «grande Outro». O trabalho de Jacques Lacan é, claro, central em ambos os processos de produção subjetiva, sendo que a mudança no seu desenvolvimento, por Laclau, para longe do bem conhecido conceito de «interpelação» produzirá uma identificação entre as lógicas parciais do «object petit a» (aquele pequeno pedaço do Real - ou outro «maternal» - que faz sentir a sua presença na ordem simbólica), por um lado, e a noção de hegemonia de Gramsci (também fundamentada, segundo Laclau, numa lógica de particularidades), por outro. Nas palavras de Laclau: «A lógica do object petit a e a lógica hegemônica não são apenas semelhantes: são simplesmente idênticas... O único horizonte totalizador possível é dado por uma parcialidade (a força hegemônica) que assume a representação de uma totalidade mítica. Em termos lacanianos: um objeto é elevado à dignidade da Coisa».

Isto quer dizer, traduzido de volta no gramscianismo de Laclau, que um interesse particular se torna geral, ou seja, hegemônico: a sua mecânica ideológica produtiva (e afetiva) é agora formalizada e explicada. Pela sua parte, a própria linguagem como «cadeia significante» não é um meio de comunicação meramente neutral; ao invés dobra e é dobrada pela ideologia na enunciação. Como o lugar no qual a política e os impulsos se encontram na produção afetiva de sujeitos - ainda que constitutivamente instável (sujeito de enunciação/sujeito enunciado) -, a linguagem joga um papel crucial na ontologia retorizada proposta por Laclau. A retórica é tanto pedagogia sobre a arte prática da persuasão como conhecimento das figuras e tropos da linguagem, o seu poder de moldar. Este é o novo objeto de análise de Laclau. Na verdade, a sua evocação, nas Fundações Retóricas, da análise estruturalista de Gérard Genette sobre a narrativa de Marcel Proust sugere uma sobreposição importante do político ao literário na ideia de retórica, à qual Roland Barthes se referia como o «império dos signos». O ponto principal de Laclau é que, do ponto de vista da produção da vontade coletiva, todos eles - política, afeto, retórica - são feitos de e/ou desenvolvidos na mesma matéria: discurso, palavra.

Tal como na versão de Lacan da psicanálise, Laclau, seguindo também as pegadas dos estudos linguísticos de Roman Jakobsen sobre a afasia, centra as suas reflexões nas figuras retóricas da metonímia - os deslocamentos verbais ao longo de um eixo sintagmático de combinação contígua - e metáfora - os deslocamentos verbais ao longo de um eixo paradigmático de substituição - que estruturam o discurso e as formas nas quais se interrompe e disturba o outro tal como nos distúrbios afásicos. Dobrando esta estrutura para a sua análise, a hegemonia, de acordo com Laclau, é produzida através de uma lógica de equivalência na qual lutas distintas, mas coexistentes - por exemplo, o antirracismo e reivindicações salariais -, são recombinadas e identificadas com o mesmo ator político - por exemplo, um sindicato - de forma que «a relação de contiguidade comece a desvanecer até uma relação de analogia, a metonímia comece a desvanecer até uma metáfora e seja substituída».
Neste «deslocamento retórico» de um eixo (o sintagmático) para o outro (o paradigmático), as reivindicações heterogêneas corporativas - antirracismo de um lado, salários melhorados do outro - tornam-se parcialmente desparticularizadas enquanto estejam ambas ligadas crescentemente com o ativismo sindical, o qual, assumindo ambas as exigências, é também, ele próprio, transformado politicamente em algo mais do que apenas uma representação de interesses laborais ou de classe. Um novo «povo» começa assim a emergir, de acordo com Laclau, articulando mais do que reivindicações corporativas (as diferenças contíguas que ele associa com a figura da metonímia), ao fundirem-se (através da substituição metafórica) em exigências hegemônicas. Desta forma o «significante vazio» de tal equivalência - os nomes de «Hugo Chávez» ou «General Péron», por exemplo - tornam-se o locus de uma ligação política afetiva: uma superfície de inscrição afetiva torna-se o sujeito de mudança política. A relação da linguagem (entendida retoricamente) e da política (entendida como hegemônica) torna-se então uma relação de identidade na análise de Laclau, na medida em que cada uma também partilha as lógicas parciais afetivas do petit objet a: «os mecanismos retóricos», conclui, «constituem a anatomia do mundo social». O desejo chamado política está estruturado como uma linguagem.

Laclau evoca a análise de Genette sobre a metonímia e a metáfora em Proust, de forma a consolidar a sua quase-literária «viragem retórica» em direção a um pós-estruturalismo. Ao invés de constituir uma oposição binária, os seus eixos distintivos são considerados contínuos e copresentes (tal como sugerido pela análise de Jakobsen dos distúrbios afásicos que, contudo, Laclau transforma de volta na norma e, na verdade, em condição de sentido). Desta forma, a versão pós-estruturalista da significação retórica, ainda que ancorada nos tropos fundadores da metonímia e da metáfora, pode ser mais aparentada com as noções de «texto» e «escrita», de Barthes e de Jacques Derrida, do que, por exemplo, com a «elocução» do estruturalismo; posicionando-se, relativamente a esta última, como um exemplo «da sua compreensão filosófica e a elaboração das suas consequências» na forma de algo como uma gramática tropológica de tradução. Esta transmissão retórica da tradução de afetos em política através da linguagem, e da transmissão da política em afetos em retorno, é o que surge como novo em As Fundações Retóricas, apesar do seu telos - a hegemonia - permanecer o mesmo do que em Hegemonia e Estratégia Socialista e Sobre a Razão Populista. De acordo com Genette, «apenas o cruzamento mútuo de uma rede metonímica e uma cadeia metafórica assegura a coerência, a necessária coesão do texto». Mais: «Sem metáfora Proust... diz, não há verdadeiras memórias... sem metonímia, não há encadeamento de memórias, não há história, não há novela. Porque é esta metáfora que recupera o Tempo perdido, mas é a metonímia que o reanima, que o põe de volta em movimento... Por isso aqui, apenas aqui - através da metáfora mas dentro da metonímia - é onde a Narrativa (Récita) começa» (pp. 54-55).

Aqui também, com a produção figurativa da narrativa - e o desfazer literário da oposição entre etonímia e metáfora - a retórica política do social específica de Laclau começa igualmente. É a figura da catacrese, contudo, que fundamenta particularmente a mecânica textual de tradução da viragem retórica de Laclau e o seu desejo de produzir uma ontologia retórica do social que é inerentemente política. A catacrese descreve a ação do «significante vazio», o ponto de convergência e tradução da diferença metonímica em equivalência e a sua projeção metafórica - tal como a narrativa em Proust, de acordo com Genette, mas como hegemonia em Gramsci, de acordo com Laclau. À medida que avança para construir a sua ontologia retórica, contudo, a figura da catacrese é obrigada a carregar um fardo conceptual considerável, porque igualmente fundamenta a significação enquanto tal.

Pedra de toque da invenção teórica de Laclau, a catacrese é o seu tropo mestre: tal como a metáfora, também é uma figura de substituição, uma má nomeação, que apesar de tudo nomeia «um lugar vazio», o inominável limite da significação (tal como o Real em termos psicanalíticos). Neste sentido, o «significante vazio» marca o momento do necessário fechamento da significação (essencial para acontecer o sentido), no qual «a condição sem sentido do sentido» - o que pode ser aqui referido como a lógica da différance - está paralisada e representada. Por esta razão, de acordo com Laclau, a catacrese «é inerente ao figurativo como tal», descrevendo a forma através da qual o «significante vazio», metonominicamente, um particular entre particulares diferidos-e-deferidos, está «fendido» no próprio momento em que metaforicamente (mal)representa o todo: «é este duplo papel», acrescenta Laclau, «que está na raiz do deslocamento tropológico» (pp. 64-5). Tendo previamente apresentado as condições populistas do político qua articulação hegemônica e instituição do social em «Sobre a azão Populista», agora, que essas condições são dobradas numa avaliação de significação catacrésica, uma «retoricidade» politizada torna-se para Laclau «limítrofe em relação à própria estrutura da objetividade... equivalente à produção social de sentido - ou seja, ao próprio tecido da vida social» (p. 65). A retórica, por outras palavras, torna-se performance afetiva envolvente de tudo (subjetivizante) e ação (objetivizante), reconfigurando o social. Laclau não produz, tanto, conceptualmente um idealismo semiótico quanto um materialismo retórico do sujeito assente nas dinâmicas tropológicas da linguagem - ou seja, figurativas: centrado no futuro «agora» da ação política, na medida em que é também uma teoria da vontade coletiva, parece-se a uma espécie de voluntarismo. Isto é principalmente devido à sua escassa atenção à crítica da economia política: à lógica de equivalência (e retórica digitalizada?) do capital, por exemplo, tal como enforma o discurso por via das novas tecnologias da comunicação e representação. Este nem sempre foi o caso.

Frequentemente, Laclau constrói as suas análises através de um engajamento crítico com as tradições marxistas, a pedra de toque histórica e teórica do seu trabalho. Para além de se apresentar como um desenvolvimento retórico da teoria da hegemonia de Gramsci, reflexões sobre o trabalho de Lenin, Trotsky ou Sorel como sintomáticas de problemas a resolver são cruciais para o pensamento de Laclau e continuam a impregnar todos os ensaios das Fundações Retóricas, tal como acontecia nos volumes prévios, especialmente Hegemonia e Estratégia Socialista. Todos estes três pensadores são, por outras palavras, pensadores anti-hegemônicos, que, não obstante, sintomatizam a sua necessidade política e teórica.

Retoricamente, de acordo com Laclau, as reflexões de Sorel sobre o mito da «greve geral» enquanto forma revolucionária são sem conteúdo, produzindo um dos mais puros exemplos de um «significante vazio». Isto porque os conteúdos particulares de uma luta particular ou greve são, para todos os efeitos, irrelevantes para mito da «greve» em si. «Estamos perante», de acordo com Laclau, «a pura reagregação metafórica que não é interrompida por nenhuma pluralidade metonímica» - não contém, por outras palavras, reivindicações reais; assim: o corte revolucionário não procede através de equivalência, mas através de absoluta identidade», deixando toda a particularidade e cada greve real intocada.
Por outras palavras, a «greve geral» de Sorel é pura metáfora. O leninismo, por contraste, inibe a metaforização com a sua insistência na particularidade metonímica, isto é, nas identidades de classes (burguesia, campesinato, mas, mais importante, proletariado) e as suas supostas tarefas históricas particulares. Mesmo com o reconhecimento claro que uma burguesia fraca na Rússia não poderia levar avante estas tarefas, e que estas teriam de ser tomadas pela classe trabalhadoras (tal como teorizado, por exemplo, na avaliação de Trotsky da «revolução permanente»), «a estratégia leninista foi desenhada para prevenir que a tarefa excecional se tornasse a forma de construção de uma nova subjetividade. A natureza de classe do proletariado tinha de permanecer imutável». A insistência leninista na metonímica da classe inibe, assim, a possibilidade de metaforização associada à produção do todo-importante significante vazio para Laclau. Isto porque iria envolver o esvaziamento parcial da identidade proletária - ou seja, a sua desuniversalização - em favor da emergência de uma nova hegemónica - possivelmente até guiada pela classe trabalhadora - versão de um «povo». Apesar do reconhecimento do leninismo da anomalia da história russa relativamente às avaliações convencionais marxistas, «a subversão metonímica do espaço diferencial da teleologia marxista» - o grau zero administrativo da retoricidade característico do marxismo da Segunda Internacional baseado, segundo Laclau, na explicação de Marx sobre o curso da história através de estádios, no Prefácio de 1859 (essa velha castanha!), - tem de permanecer visível, «até ao ponto de tornar impossível o movimento em direção ao seu telos metafórico»: o socialismo evolucionário. É a sua combinação do desenvolvimento desigual na história, por um lado, com os seus efeitos políticos ao nível da identidade dos sujeitos de transformação social, por outro, que constitui o fulcro das preocupações críticas de Laclau - provavelmente desde os seus começos e certamente no seu fim.

Neste contexto, o conceito de hegemonia e de vontade coletiva de Gramsci providencia a lógica parcial de equivalência que potencialmente transcende os «distúrbios» da metonímia por sobre-metaforização (Sorel) e metáfora por sobre-metonimização (leninismo) em nome («significante vazio») do democrático popular. Mais ainda, é a capacidade de Gramsci de incorporar teórica e politicamente questões do desenvolvimento desigual (revolução passiva, guerra de posições e de manobra, a Questão Meridional - que desfaz o historicismo tradicional do marxismo e a sua teleologia política) na sua conceptualização da política com a qual Laclau se identifica - isto é, a famosa análise de Gramsci da Revolução Bolchevique como uma «revolução contra o capital». Tais questões, associadas com a experiência histórica do imperialismo e dependência, são, na verdade, a chave da continuidade do pensamento de Laclau.

Para compreender o desenvolvimento do pensamento de Laclau historicamente, é importante regressar a Política e Ideologia; outra obra intermédia de trabalho conceptual e, talvez, o seu trabalho mais importante. Porque, ao contrário de Fundações Retóricas, é visivelmente, em retrospetiva, um trabalho de transição. Olha para a frente, para a generalização do populismo como uma condição de, primeiro, uma conceção hegemonizada, e, segundo, uma conceção retorizada da política, tal como olha para a sua viagem para fora do marxismo com a sua companheira Chantal Mouffe. Contudo, olha também para trás, para os escritos iniciais de Laclau enquanto historiador económico e militante político na Argentina durante os anos 1960 (antes da sua mudança para o Reino Unido, para completar os seus estudos, encorajado por Eric Hobsbawm). Este trabalho, ainda por compilar, consiste principalmente em pequenos editorais publicados nos semanários Lucha Obrera, do mais ou menos trotskista Partido Socialista de la Izquierda Nacional (PSIN), que ele editava, junto com alguns ensaios curtos publicados no jornal teórico do PSIN, Izquierda Nacional, e um ou dois artigos publicados em jornais mais académicos. Revelam a preocupação inicial de Laclau pela conceptualização da história, a questão da periodização da perspetiva do desenvolvimento desigual, do ponto de vista da história como uma disciplina académica e das condições do pensamento político e estratégico adequado. Em Consciência Histórica e Esquerdismo Pequeno-Burguês, por exemplo, um curto artigo escrito para o Izquierda Nacional, fulmina a pequena-burguesia devido à sua falta de sentido do tempo, tanto histórico quanto político - um tópico epistemológico que iria desenvolver em Política como Ideologia com uma preocupação althusseriana pela «ciência» e a especificação correta de conceitos regionais das instâncias do social «política» e «económica» -, o seguimento, por outras palavras, da luta de classes ao nível da teoria. «Tal como o 1.º Maio é o dia internacional da classe trabalhadora, o 17 de outubro é a data que define o proletariado argentino.» Assim escreve Laclau num editorial da Lucha Obrera, datado de 15 de outubro de 1963. Na altura em que o escreve, estava a tentar provar vários pontos importantes ao mesmo tempo. Ele lembra os seus leitores, por exemplo, que o peronismo tinha sido banido enquanto movimento político desde o derrube do governo democrático do General Perón em 1955, deslegitimizando todos os governos nos anos que se seguiram.

Nos anos 1960, Laclau era um - notoriamente carismático - líder estudantil na Universidade de Buenos Aires, tal como um militante do PSIN. O PSIN partilhava com uma emergente Nova Esquerda, focada na política nacional no dealbar da Revolução Cubana, um interesse na configuração particular da Argentina enquanto nação capitalista agrária sem burguesia (ou seja, tal como configurada por uma revolução passiva «burguesa»), ou, pelo menos, com ausência de uma burguesia modernizadora (ou seja, desinteressada relativamente ao desenvolvimento das forças de produção). Por outras palavras, a Argentina - e o resto da América Latina neste particular - era definida por um conjunto similar de «anomalias», tal como a Rússia tinha sido. Contudo, o movimento peronista, emergindo de um processo de industrialização dependente (de substituição de importações) a partir dos anos 1930, produziu uma mudança real nesta situação. Este foi outro dos assuntos para os quais os editoriais de Laclau no Lucha Obrera procuraram captar a atenção dos seus leitores: com o peronismo, uma classe trabalhadora industrial organizada torna a sua presença notada na esfera política, urbanizando-a, democratizando-a e assim transformando-a completamente (Eva Perón era fundamental a este respeito - mobilizando o afeto plebeu, por exemplo -, apesar de Laclau muito raramente a mencionar). Com o surgimento histórico de um proletariado industrial, por outras palavras, o nãosíncrono historicamente parece ter-se sincronizado na ainda desenvolvimentista perspetiva do PSIN, trazendo o socialismo para o horizonte político da Argentina. Do ponto de vista do PSIN, toda a política revolucionária era assim necessariamente enformada pela experiência do populismo e, na verdade, a sua plataforma política e «tarefas imediatas» consistiam numa extensão antinacionalista e socialista (especificamente a exigência de um «governo popular dos trabalhadores» em toda a América Latina) do próprio populismo peronista: independência económica, soberania política e justiça social. O peronismo alimenta assim a política marxista - uma ordem que, com o tempo, Laclau reverterá, mantendo um compromisso com o marxismo, mas principalmente enquanto um recurso para negar teoricamente e para alimentar a generalização do populismo à política enquanto tal.

Esta é a experiência histórica do populismo, e a sua relação com o marxismo, a partir da qual Laclau começa e que desenvolve em Política e Ideologia: começando com a preocupação da forma ideológica e da sobredeterminação estrutural no âmbito dos contextos de crise (na peugada de Althusser), produz uma torção na teoria da revolução permanente - incorporando a revolução democrática ou «interpelação democrática popular» (relações de dominação Estado-e-pessoas) na luta de classes (relações de produção burguesia-e-proletariado) para construir uma teoria de dupla articulação. Uma tentativa de ultrapassar o reducionismo de classe, mantendo as relações de produção enquanto determinação social que sugeria um avanço teórico importante. Lido a partir da perspetiva do muito alardeado «Pós-Marxismo» de Hegemonia e Estratégia Socialista, contudo, o ensaio clássico Em Direção a uma Teoria do Populismo, com o qual Política e Ideologia se conclui, providencia o espaço teórico para os seus subsequentes redesenvolvimentos teóricos através de uma reconfiguração «discursivista» do conceito gramsciano de «hegemonia», no qual as «relações de dominação» - e as exigências democráticas (política e ideologia) - definitivamente descentram e deslocam as «relações de produção e a luta de classes» (estrutura económica).

Em Direção a uma Teoria do Populismo foi influente, primariamente como o ponto de partida para a avaliação de Stuart Hall do thatcherismo como uma forma de "populismo autoritário". Na verdade, a abordagem althusseriana do populismo de Laclau apresentava-o como uma contribuição à teoria da ideologia, concebida regionalmente como uma instância relativamente autônoma do social. Isto leva-nos ao que é deixado para trás em Política e Ideologia, tal como está sintomatizado na sua estrutura composicional: se o seu capítulo de conclusão Em Direção a uma Teoria do Populismo olha em frente para a formalização das ideias enquanto condição do político e, agora, instituição retórica do social, o seu primeiro capítulo olha para trás, para o interesse de Laclau na história - e periodização - das estruturas econômicas, como é evidente no título do primeiro capítulo do volume: "Feudalismo e Capitalismo na América Latina". Este é uma crítica da análise de Andre Gunder Frank da história do capitalismo na região, redefinido como sistema de circulação, em vez de modo de produção com a sua forma definidora de apropriação da mais-valia. Para Frank, a América Latina tinha, desde a sua inclusão colonial numa ordem mundial mercantil, sido sempre capitalista e nunca feudal enquanto tal. Este é o lugar conceitual do seu desacordo. Contudo, Laclau concorda com a crítica de Frank das análises pós-Terceira Internacional da América Latina ancoradas numa «tese dualista» e cuja conclusão política era o apoio comunista às burguesias modernizadoras para «completarem as suas tarefas históricas». Pela sua parte, Laclau olha, ao invés, para uma mais complexa análise de modos de produção coexistentes subordinados a um «sistema econômico» capitalista abrangente produzindo o tipo de «anomalias» históricas descritas acima quer na Rússia quer na Argentina. É esta insistência na análise das especificidades de experiências distintas do capital que desvanece nos ensaios finais de Laclau em Política e Ideologia, incluindo Em Direção a uma Teoria do Populismo. Este constitui um decréscimo do econômico que se pode defender que também enforma a análise subsequente de Hall do thatcherismo. «Feudalismo e Capitalismo» tem um ensaio irmão escrito por Laclau, publicado em 1969: «Modos de Produção, Sistemas Económicos e População Excedente: Uma Aproximação Histórica aos Casos Argentino e Chileno. Este ensaia uma crítica a temas teóricos semelhantes e contém a maior das partes das críticas a Gunder Frank feitas em «Feudalismo e Capitalismo». A diferença reside nas suas análises detalhadas e avaliação teórica do «excedente de população», um termo que Laclau contrapõe aos desenvolvimentos instrumentalistas da ideia de Marx de «exército de reserva de trabalho», um tópico cuja importância foi reiterada recentemente por Fredric Jameson no seu «Representando o Capital». O ponto é que Laclau produz o seu conceito através de um engajamento crítico com as «anomalias» históricas produzidas pela articulação de diferentes modos de produção dentro de um sistema capitalista abrangente. Este outro ensaio, contudo, não está incluído em Política e Ideologia. Isto pode ser porque já tinha então (1977) começado, definitivamente, a pertencer ao passado intelectual de Laclau. Ironicamente, este decrescimento da história económica no trabalho de Laclau tende a apagar as próprias condições históricas da sua preocupação crítica permanente por, e focada em, formas supostamente «anómalas», tais como o populismo.

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